Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULA MARIA ROBERTO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO IN ITINERE SUA VERIFICAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 05/22/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA– JUÍZO DO TRABALHO DE COIMBRA – JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTº 9º, Nº 3 DA NLAT. | ||
Sumário: | 1. Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito - n.º 3 do artigo 9.º da LAT. 2. Tendo em conta critérios de adequação social e de razoabilidade, a interrupção feita pelo sinistrado com a paragem por 20 minutos no café com um colega, onde beberam um copo de vinho, não poderá considerar-se como tendo sido determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, não visou a satisfação de qualquer necessidade elementar de convívio social do mesmo e não consubstancia uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral. 3. Resultando da matéria de facto provada que o embate dos veículos ocorreu já depois da residência do sinistrado, na EN 231-2, a caminho da residência do colega S... que havia pedido àquele que o levasse para a localidade de ... onde residia, sendo certo que o trajeto normal do sinistrado efetua-se pela EN 231, não sendo necessário transitar pela 231-2, este desvio não foi determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nem por motivo de força maior ou caso fortuito, antes decorreu de um ato voluntário do mesmo que acedeu ao pedido do seu colega de o levar para a localidade onde residia e não de um qualquer motivo estranho ou alheio à sua vontade. 4. Tendo o trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado de regresso do local de trabalho para casa sofrido uma interrupção e um desvio não determinados pela satisfação de necessidades atendíveis nem por motivo de força maior ou por caso fortuito, o acidente de que foi vítima não pode considerar-se acidente de trabalho in itinere. | ||
Decisão Texto Integral: |
Apelação n.º 7304/17.1T8CBR.C1 Acordam[1] na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra: I - Relatório M..., residente em ..., intentou a presente ação especial de acidente de trabalho contra: G... – Companhia de Seguros, SA, com sede em ... alegando, em síntese, que: Foi casada com o sinistrado que no dia 29/09/2017 terminou o trabalho pelas 12 h, um colega pediu-lhe boleia e, como era habitual, pelas 12 h e 20 m iniciou a condução do seu veículo rumo à localidade onde residia e quando se encontrava a finalizar uma manobra de mudança de direção surgiu um veículo na semi faixa que estava a atravessar que nele embateu e o projetou e fez ficar virado no sentido inverso, veículo aquele que circulava com excesso de velocidade e que foi a causa direta do sinistro; em consequência direta do embate o sinistrado veio a falecer; o acidente ocorreu no trajeto de regresso do local de trabalho à residência do sinistrado, no final da jornada de trabalho, no trajeto normal e no tempo habitualmente gasto em tal deslocação, consubstanciando um acidente de trabalho in itinere. Termina, dizendo que: “Nestes termos e nos mais de Direito deve a presente acção ser recebida e em consequência deve ser julgada totalmente procedente por provada e consequência: - Deve ser reconhecido que o falecido A... sofreu acidente de viacção in itinere que consubstancia um acidente de trabalho; - E, por isso, deve a Ré ser condenada a pagar à Autora os seguintes montantes: - 5.561,40€ (cinco mil quinhentos e sessenta e um euro e quarenta cêntimos) a título de subsidio por morte; - 2.671,88€ (dois mil seiscentos e setenta e um euro e oitenta e oito cêntimos) a título de pensão anual vitalícia, correspondente a 30% da retribuição anual do sinistrado, que é de 8.906,25€, com início em 30-09-2017; - 1.991,40€ (mil novecentos e noventa e um euro e quarenta cêntimos) a título de despesas de funeral suportadas pela Autora, conforme documento (Factura da Agência Funerária ..., Lda.)junto aos presentes autos a fls. 61; - 40,00€ (quarenta euros) por cada viagem que tenha sido ou que venha a ser efectuada pela Autora para estar presente em actos judiciais, sendo que até à presente data esteve presente na tentativa de conciliação ocorrida em 01-10-2018, sendo por isso devido na presente data a essetitulo o montante de 40,00€; - Todos os montantes acima referidos devem ser pagos acrescidos de juros de mora vencidos desde o dia 30-09-2017 e vincendos até integral e efectivo pagamento.” * O ISS,IP veio deduzir pedido de reembolso, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €4.859,12, montante este que pagou à viúva do sinistrado a título de pensão de sobrevivência, acrescida de juros de mora legais, desde a data da citação até integral pagamento. * A Ré contestou alegando, em sinopse, que: Apurou que no dia do acidente o sinistrado deu boleia a um colega de trabalho e que o acidente de viação em causa nos presentes autos ocorreu já depois da residência do sinistrado, na EN 231-2, a caminho da residência do referido colega e no caminho, antes do acidente, o sinistrado e o colega pararam cerca de 15 m após o início do percurso, na EN 231, no café X (...), onde permaneceram cerca de 20 m, tendo bebido um copo de vinho, paragem que era um hábito do sinistrado sempre que terminava o trabalho; o acidente ocorreu numa estrada de desvio e foi cortada a ligação ou relação com o trabalho, não se tratando de um desvio atendível, pelo que, foge ao conceito de acidente de trabalho; o sinistrado conduzia com uma TAS de 1,58 g/l e, ao aproximar-se de um entroncamento, sem efetuar o sinal de mudança de direção, sem parar e sem abrandar, iniciou obliquamente uma manobra de mudança de direção à esquerda, numa altura em que o outro veículo já lhe era totalmente visível, cortando a linha de marcha deste que travou a fundo sem, contudo, conseguir evitar o embate entre a sua frente esquerda e a esquina direita da frente do veículo do sinistrado; o comportamento temerário em alto e relevante grau do sinistrado foi causa exclusiva do acidente verificado, estando preenchidos todos os requisitos legais previstos para a descaracterização do acidente por negligência grosseira. Conclui dizendo que a presente ação deve ser julgada improcedente por não provada e ser a Ré absolvida do pedido. * Foi proferido despacho saneador, consignada a matéria assente e elaborada a B.I. de fls. 234 e segs. Procedeu-se a julgamento nos termos constantes das atas de fls. 338 e segs. Foi, depois, proferida sentença que julgou a presente ação improcedente e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados pela A. e pelo ISS,IP. A Autora, notificada desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte: ... Termos em que a decisão proferida deve ser revogada. * A Ré respondeu sustentando que: ... O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 472 e segs., concluindo que o recurso merece provimento. Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. II – Questões a decidir Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º do CPC), com exceção das questões de conhecimento oficioso. Assim, cumpre apreciar as questões suscitadas pela A. recorrente, quais sejam: 1ª – Reapreciação da matéria de facto. 2ª – Se o acidente de viação que vitimou o sinistrado é também um acidente de trabalho in itinere. III – Fundamentação a)- Factos provados ... Não se provaram os seguintes quesitos da base instrutória: ... * Fundamentação da matéria de facto: ... b) - Discussão 1ª questão Reapreciação da matéria de facto ... Procede, assim, apenas parcialmente, a impugnação da matéria de facto. 2ª questão Se o acidente de viação que vitimou o sinistrado é também um acidente de trabalho in itinere. A A. recorrente alega que a interrupção da viagem de regresso à residência – paragem num café – que não demorou mais do que cinco minutos, enquadra-se num interesse atendível do trabalhador e, ainda, que o sinistrado transportou o seu colega, a pedido deste, porque não tinha meio de transporte, tratando-se, por isso, de um caso fortuito, pelo que, terá de se concluir que o acidente de viação que vitimou mortalmente o sinistrado configura um acidente de trabalho in itinere, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, da LAT. A este propósito consta da sentença recorrida, além do mais, o seguinte: “Face aos moldes em que a autora estriba a ação, a existir um acidente de trabalho tratar-se-ia de um acidente in itinere. Como anteriormente referido o conceito de acidente de trabalho é ampliado ou estendido pelo art.º 9.º da NLAT (com a epígrafe extensão do conceito). Assim, também é considerado acidente de trabalho o acidente verificado no trajeto de ida e para o local de trabalho nos termos definidos pelas alíneas a) a f) do n.º 2.º do art.º 9.º da NLAT. A alínea a) do referido n.º 1 do art.º 9.º da NLAT não fornece nenhum conceito de acidente de trabalho in itinere, remetendo para a normatividade constante do seu n.º 2 e das suas diversas alíneas. O acidente de trajeto assume, em princípio, todas as características de um acidente, envolvendo qualquer meio de transporte (terrestre, aquático ou aéreo) ou simplesmente uma deslocação a pé. O acidente de trajeto pode definir-se, em linhas gerais, como o que atinge o trabalhador no caminho de ida ou de regresso do local de trabalho. O acidente de trajeto pode ser ou não, simultaneamente, acidente rodoviário ou de viação. Tal como sucedia no âmbito da anterior lei (Lei n.º 100/97, de 13/09), já não se exige que o acidente seja consequência de particular perigo do percurso, não fazendo sentido também discorrer sobre a propriedade do meio de transporte utilizado. Conforme salienta Carlos Alegre, a tendência das teorias mais modernas é a de considerar que o risco é inerente ao cumprimento do dever de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a sua prestação, resultante do contrato de trabalho (ou equiparado) como uma das suas obrigações, instrumentais ou acessórias, eventualmente, a primeira delas, quotidianamente. Nesta ordem de ideias, o trabalhador é obrigado a fazer o percurso necessário para poder comparecer no lugar pré-determinado, usando as vias de acesso e os meios de transportes disponíveis, a fim de que possam contar com a sua prestação (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, pág. 55). Já Júlio Gomes refere que, na génese do acidente de trajeto está, ou a noção de que durante o trajeto se mantém o risco de autoridade por subsistir mesmo que atenuada, a subordinação ou dependência do trabalhador, ou a ideia de que o acidente de trajeto é, ainda, o resultado de um risco a que o trabalhador se expõe por força do trabalho e se expõe, pelo menos, na maior medida do que a generalidade das pessoas que também participam na circulação rodoviária (O acidente de trabalho - o acidente in itinere e a sua descaracterização), pp. 162 e 163). Os acidentes in itinere têm alguma especificidade ou são meros acidentes de trabalho como qualquer outro, com a única particularidade de se dar no caminho? O acidente in itinere caracteriza-se, precisamente, por ter lugar fora do tempo e do lugar de trabalho que carateriza o acidente de trabalho propriamente dito. Estas diferenças levam-nos a concluir que são diversas as noções de acidente de trabalho (em sentido estrito) e de acidente in itinere. Tendo em comum a conexão trabalho - lesão, não partilham os demais elementos tempo e local de trabalho. Em suma, os acidentes in itinere são acidentes de trabalho em sentido amplo: têm conexão com o trabalho e a própria lei os designa como tal, traduzindo uma extensão da noção de acidente de trabalho (em sentido estrito, isto é, ocorridos no tempo e no local de trabalho e relacionados com ele), abrangendo também situações que não estariam formalmente compreendidas no conceito indeterminado do art.º 8, n.º 1, da Lei 98/2009. Deste modo, o acidente no percurso ocorre fora do local e do tempo de trabalho, continuando a ser relevante para o direito infortunístico pela sua relação com o trabalho, já que foi a necessidade de se deslocar por motivos laborais que expôs o trabalhador ao risco do sinistro (neste sentido o Ac. da RL de 18.6.2014, disponível em www.dgsi.pt). O art.º 9.º, n.º 2.º da NLAT, nas suas diversas alíneas, enumera, pormenorizadamente, os percursos protegidos nas duas extremidades (ida e regresso para e do local de trabalho), compreendendo os acidentes que se verificam nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (dois requisitos gerais): a) entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego; b) entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho; c) entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição; d) entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente; e) entre o local de trabalho e o local de refeição; f) entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional; O requisito de habitualidade do trajeto deve ser interpretado de acordo com o n.º 3.º do mesmo art.º 9.º, no qual se dispõe que não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. Na realidade, os mencionados requisitos (trajeto normalmente utilizado no regresso do trabalho a casa e o tempo habitualmente gasto nesse trajeto) estabelecem uma presunção ilidível (iuris tantum) de que, quando verificados, ocorreu um acidente de trabalho in itinere, e não uma presunção inilidível (iuris et de iure), sendo que competirá sempre à parte contrária efetuar prova suficiente e cabal para ilidir essa presunção. Dito de outro modo, o que a lei protege é o trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, no percurso normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador desde que inexistam interrupções, sendo que, quando estas ocorram, não deixa de se considerar acidente de trabalho se as interrupções ou desvios tiverem sido determinados para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito (n.º 3 do art.º 9.º da LAT). É desta forma que a nossa lei caracteriza como acidente de trabalho o acidente in itirene. Como escreve o Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes, na sua obra O Acidente de Trabalho - o acidente in itinere e a sua descaracterização, página 162: Como se vê, a Lei portuguesa optou, à semelhança do que fazem as legislações francesa e italiana, mas diferentemente das legislações alemã e espanhola, por definir-embora como veremos, seja duvidoso se o elenco do n.º 2 do art.9.º é taxativo - o ponto de partida e o ponto de destino de trajetos protegidos. Resta, contudo, saber quando é que o acidente “se dá no caminho” e quando se inicia esse “caminho”, o que equivale a questionar onde se inicia o trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer, para que o acidente possa ser considerado como acidente de trabalho. Então, qual o trajeto que a lei considera tutelado para efeitos de se considerar que o acidente é ainda um acidente de trabalho? Sobre o trajeto tutelado escreve o mesmo autor, na página 177 da obra citada: A circunstância de hoje o acidente in itinere ser tutelado mesmo que o trajeto não acarrete qualquer agravamento do risco permite, quanto a nós uma visão um pouco mais lassa do elemento temporal ou cronológico. No fundo este elemento temporal indicia o elemento teleológico que parece ser, ele sim, o essencial; o trajeto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação. E sobre as interrupções e desvios do trajeto escreve o mesmo autor, na página 184 da citada obra que: O nº 3 prevê a possibilidade de existir um acidente de trabalho, mesmo “quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito. Note-se em primeiro lugar, que a norma não esclarece se, tendo o trajeto normal sofrido interrupções ou desvios “injustificados” tal acarreta - como parece ser o entendimento dominante entre nós - que, a partir do momento do desvio ou da interrupção, qualquer acidente já não poderá ser considerado acidente de trabalho, ou se, terminada a interrupção ou terminado o desvio “injustificados”, e retomando o trabalhador o trajeto normal, um acidente neste percurso voltaria a ser considerado acidente de trabalho. E na página 186 lemos que: A Lei permite, em todo o caso interrupções ou desvios. As interrupções parecem ser, simplesmente, paragens, momentos em que o trabalhador deixa de se deslocar para o trabalho, reatando posteriormente essa deslocação, enquanto o desvio supõe um abandono parcial do itinerário ou trajeto normal. Sobre a interrupção ou desvio do trajeto determinados por caso fortuito ou de força maior ou por necessidades atendíveis do trabalhador refere o mesmo autor, nas páginas 188 e 189 que: Em primeiro lugar o trabalhador pode ver o seu trajeto interrompido ou ter que se desviar da rota planeada por motivos estranhos ou alheios à sua vontade, os quais podem ou não ser de força maior ou caso fortuito: uma ponte levada pela enxurrada, uma via cortada pelas autoridades públicas na sequência de uma manifestação, de uma prova desportiva ou de uma procissão, uma estrada submersa, são, obviamente, motivos independentes da vontade do trabalhador. Mas também pode tratar-se, por exemplo, do cumprimento do dever legal de socorro a sinistrados que implicou que o trabalhador teve que fazer um desvio e levar o referido sinistrado ao hospital, antes de se poder dirigir para o emprego. Quanto às necessidades atendíveis, parece-nos claro que serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador em que a nossa Lei, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível. Podem tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno-almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou ir buscar os filhos à escola ou ao jardim infância. No caso vertente, tendo a ré seguradora alegado que o sinistrado, no final da sua jornada de trabalho, no regresso a casa, efetuou uma paragem a meio do percurso num café e efetuou um desvio do percurso para levar um colega de trabalho casa, o sinistro que vitimou mortalmente A... apenas poderá ser considerado de acidente de trabalho in itinere se tal paragem e desvio forem considerados como tendo sido determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do sinistrado ou por motivo de força maior ou por caso fortuito. A este respeito provou-se nos autos que: - no dia 29 de setembro de 2017 A... desempenhava funções de cantoneiro de limpeza sob as ordens, direção e fiscalização da F (…), S.A.; - cumprindo horário de trabalho das 4 horas até às 11 horas e 30 minutos, com pausa das 8 horas às 8 horas e 30 minutos; - A... residia em ... e o seu local de trabalho situava-se na estação de transferência, na zona industrial de V (…), em C (…); - entre a residência de A... e o seu local de trabalho distavam cerca 12 km; - A... fazia o percurso de ida e regresso (casa - local de trabalho) conduzindo um quadriciclo, de marca ... e matrícula ..., vulgarmente designado por papa-reformas. - no dia 29 de setembro de 2017 A... terminou a jornada de trabalho por volta das 12 horas; - no dia 29 de setembro de 2017 o colega de trabalho de A..., S..., pediu-lhe que o levasse para a localidade de ... onde residia; - por volta das 12 horas e 5 minutos, A... saiu das instalações de trabalho e iniciou a condução do seu quadriciclo rumo a ...; - no caminho proveniente das instalações da empregadora, A... e o colega S... pararam, cerca de 10 minutos após o início do percurso, na EN 231, no café X (...); - onde permaneceram cerca de 20 minutos, tendo bebido um copo de vinho cada um; - paragem que era um hábito de A... sempre que terminava a sua jornada de trabalho e regressava para casa; - depois desta paragem prosseguiram viagem e pelas 13 horas, na EN 231-2, quando se encontrava a executar a manobra de mudança de direção, com o objetivo de entrar na rua ..., em ..., que ficava exatamente à sua esquerda, surgiu na semifaixa que estava a atravessar, o veículo ligeiro de passageiros, de marca Ford Escort e matrícula ..., vindo no sentido ..., conduzido por ...; - que foi embater no quadriciclo conduzido por A... e lhe provocou lesões traumáticas tóraco-abdominais, que lhe determinam a morte; - em condições normais, o trajeto habitual entre as instalações da sua entidade empregadora e a residência de A... demora, num percurso ininterrupto, cerca de 30 minutos; - efetua-se pela EN 231; - não sendo necessário transitar pela EN 231-2; - o embate anteriormente descrito ocorreu já depois da residência do sinistrado, na EN 231-2, a caminho da residência do colega S...; - no dia 29 de setembro de 2017, pelas 13 horas, A... conduzia o seu quadriciclo pela EN 321-2, com uma taxa de alcoolémia no sangue de 1,58 g/l; Ressalta desta factualidade que o acidente de viação mortal ocorreu após o termo da jornada de trabalho de A..., depois deste efetuar uma paragem num café para beber um copo de vinho e já depois da sua residência, a caminho da residência do colega S..., numa estrada que não integra o trajeto direto entre as instalações da sua entidade empregadora e a sua residência. Ou seja, ocorreu uma interrupção e um desvio do trajeto habitual realizado por A... de regresso a casa proveniente das instalações da sua empregadora: a primeira para beber um copo de vinho num café e o segundo para transportar um colega de trabalho a casa. Assim delineados, impõe-se apurar se a paragem no café visou a satisfação de necessidades atendíveis de A... e se o desvio do trajeto foi determinado por motivo de força maior ou por caso fortuito. A lei não define o que seja necessidade atendível do trabalhador, pelo que se terá de recorrer a um critério de adequação social, atendendo a regras de razoabilidade. Como supra referido, para Júlio Gomes necessidades atendíveis, serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa lei não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível. Podem tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno-almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou de ir buscar os filhos à escola ou ao jardim-de-infância. Referem-se, ainda, como necessidades atendíveis, de acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais, a compra de um presente para oferecer a um afilhado ou as compras a realizar em supermercado (Ac. RL de 05-12-2018 e Ac. da RE de 26-04-2018, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.). Em qualquer caso o que importa apurar é se, no concreto contexto, segundo um critério de adequação social, atendendo a regras de razoabilidade, se tratou de uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral (neste sentido o Ac. da RL de 5 de dezembro de 2018, relatado por Sérgio Almeida). É certo que o convívio social faz parte da essência humana, não se podendo exigir a um ser humano que aja como se fosse uma máquina, ou seja, como mero cumpridor de horários e sem procurar satisfazer as mais elementares necessidades de convívio social. Porém, sendo o convívio social uma necessidade incontornável do ser humano, para que essa necessidade seja atendível nos termos do n.º 3 do art.º 9.º da LAT, torna-se indispensável que, na concreta situação em análise, ela se mostre justificável e compreensível. No caso vertente, segundo critérios de adequação social e de razoabilidade, afigura-se que a paragem de A... no café para beber um copo de vinho, pelas 12 horas e 15 minutos, no contexto em que ocorreu, não visou a satisfação de qualquer necessidade elementar de convívio social do mesmo e não consubstancia uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral. Note-se, a este respeito, que não foi alegado, nem tal resulta indiciado nos autos, que A... se encontrava carente de convívio social ou que a paragem que efetuou e o copo de vinho que bebeu visaram a satisfação de qualquer necessidade fisiológica do mesmo. Em suma, esta paragem que A... efetuou para beber um copo de vinho com o colega de trabalho, não manteve a conexão com a relação laboral havida, nem se revela determinada para satisfação de uma necessidade compreensível e adequada, pelo que não é atendível. Mas mesmo que assim não se entendesse, resulta com evidência da factualidade apurada, que o desvio que A... efetuou no seu trajeto habitual, para levar o colega S... a casa, não visou a satisfação de uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral e não foi determinado por um qualquer motivo de força maior ou por caso fortuito. Note-se, a este respeito, que também não foi alegado e não resulta indiciado nos autos, que naquele dia fatídico o colega Sebastião não tinha outro meio de transporte ao seu dispor para regressar a casa ou uma qualquer premência na realização desta viajem. O desvio em apreço resultou exclusivamente de um ato voluntário e altruísta de A... e não foi determinado por qualquer causa estranha ou alheia à sua vontade ou pelo cumprimento de um qualquer dever legal ou de ingerência. Sintetizando, o acidente de viação que vitimou A... não ocorreu no percurso direto e sem interrupções entre o seu local de trabalho e a sua residência e a paragem no café e o desvio que efetuou no seu trajeto habitual para transportar o colega S... a casa, não foram determinados pela satisfação de necessidades atendíveis ou por motivo de força maior ou caso fortuito, pelo que este acidente não consubstancia um acidente de trabalho in itinere. Por conseguinte, este acidente de viação não é tutelado, por se situar numa esfera de risco do próprio trabalhador, para a satisfação de necessidades privadas e a cujos perigos sempre se exporia mesmo sem o trabalho. Nestes termos, mostra-se afastada a tutela infortunístico-laboral do acidente e improcede a ação, sendo que a medida da responsabilidade da ré seguradora decorreria, caso se houvesse provado o acidente de trabalho, da proporção do salário auferido pelo sinistrado, em virtude da responsabilidade assumida pelo contrato de seguro (art.º 405.º e 406.º, n.º 1 do CC).” – fim de citação. Vejamos: Como já ficou dito na sentença recorrida, <<não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito>> - n.º 3 do artigo 9.º da LAT. E como refere o Exm.º Conselheiro Júlio Gomes[2], <<as interrupções parecem ser, simplesmente, paragens, momentos em que o trabalhador deixa de se deslocar para o trabalho, reatando posteriormente essa deslocação, enquanto o desvio supõe um abandono parcial do itinerário ou trajeto normal>>. Resulta da matéria de facto provada que o trajeto normal do sinistrado de regresso do trabalho para casa sofreu, desde logo, uma interrupção quando o mesmo parou num café e aí permaneceu durante 20 m, bebendo um copo de vinho com um colega. É manifesto que esta interrupção não foi determinada por motivo de força maior ou caso fortuito. Mas tê-lo-á sido para satisfação de uma necessidade atendível do trabalhador? Necessidades atendíveis do trabalhador são as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador. Citando Júlio Gomes, obra citada, pág. 189 e segs., <<podem tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou ir buscar os filhos à escola ou ao jardim de infância.>> Ora, tal como se refere na sentença recorrida, tendo em conta critérios de adequação social e de razoabilidade, a interrupção feita pelo sinistrado com a paragem por 20 minutos no café com um colega, onde beberam um copo de vinho, não poderá considerar-se como tendo sido determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, não visou a satisfação de qualquer necessidade elementar de convívio social do mesmo e não consubstancia uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral. Na verdade, como consta da sentença recorrida “não foi alegado, nem tal resulta indiciado nos autos, que A... se encontrava carente de convívio social ou que a paragem que efetuou e o copo de vinho que bebeu visaram a satisfação de qualquer necessidade fisiológica do mesmo. Em suma, esta paragem que A... efetuou para beber um copo de vinho com o colega de trabalho não manteve a conexão com a relação laboral havida, nem se revela determinada para satisfação de uma necessidade compreensível e adequada, pelo que não é atendível.” Acontece que, além desta interrupção, o trajeto normal do sinistrado sofreu também um desvio e, quanto a este, desde já avançamos que também acompanhamos a sentença recorrida. Na verdade, conforme resulta da matéria de facto provada o embate dos veículos ocorreu já depois da residência do sinistrado, na EN 231-2, a caminho da residência do colega S... que havia pedido àquele que o levasse para a localidade de ... onde residia, sendo certo que o trajeto normal do sinistrado efetua-se pela EN 231 não sendo necessário transitar pela 231-2. Por outro lado, este desvio não foi determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nem por motivo de força maior ou caso fortuito. Como se refere na sentença recorrida, nem sequer foi alegado que o colega do sinistrado não tinha qualquer outro meio de regressar a casa ou que tinha urgência em fazê-lo. Alega a recorrente que o sinistrado transportou o colega a pedido deste porque não tinha meio de transporte, tratando-se, por isso, de um caso fortuito. Acontece que, como já referimos, apenas se provou que o colega pediu ao sinistrado que o levasse para a localidade de ... Acresce que, um caso/motivo fortuito é algo imprevisto, acidental, inesperado, é uma situação que decorre de facto alheio à vontade da parte. Voltando a citar o Conselheiro Júlio Gomes[3], <<o trabalhador pode ver o seu trajeto interrompido ou ter que se desviar da rota planeada por motivos estranhos ou alheios à sua vontade, os quais podem ou não ser de força maior ou de caso fortuito: uma ponte levada pela enxurrada, uma via cortada pelas autoridades públicas na sequência de uma manifestação, de uma prova desportiva ou de uma procissão, uma estrada submersa, são, obviamente, motivos independentes da vontade do trabalhador. Mas também pode tratar-se, por exemplo, do cumprimento do dever legal de socorro a sinistrados que implicou que o trabalhador teve que fazer um desvio e levar o referido sinistrado ao hospital, antes de se poder dirigir para o emprego>>. Ora, o desvio efetuado pelo sinistrado decorreu de um ato voluntário do mesmo que acedeu ao pedido do seu colega de o levar para a localidade onde residia e não de um qualquer motivo estranho ou alheio à sua vontade. O desvio em causa resultou, como se refere na sentença recorrida, exclusivamente de um ato voluntário e altruísta de A... e não foi determinado por qualquer causa estranha ou alheia à sua vontade ou pelo cumprimento de um qualquer dever legal ou de ingerência. Em suma, o trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado de regresso do local de trabalho para casa sofreu uma interrupção e um desvio não determinados pela satisfação de necessidades atendíveis nem por motivo de força maior ou por caso fortuito, razão pela qual o acidente de que foi vítima A... não pode considerar-se acidente de trabalho in itinere[4]. Pelo exposto, tal como se decidiu na sentença recorrida: “Por conseguinte, este acidente de viação não é tutelado, por se situar numa esfera de risco do próprio trabalhador, para a satisfação de necessidades privadas e a cujos perigos sempre se exporia mesmo sem o trabalho. Nestes termos, mostra-se afastada a tutela infortunístico-laboral do acidente e improcede a ação, (…).” Assim sendo, na improcedência das conclusões da recorrente, impõe-se a manutenção da sentença recorrida, em conformidade. * III – Sumário[5] 1. <<Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito>> - n.º 3 do artigo 9.º da LAT. 2. Tendo em conta critérios de adequação social e de razoabilidade, a interrupção feita pelo sinistrado com a paragem por 20 minutos no café com um colega, onde beberam um copo de vinho, não poderá considerar-se como tendo sido determinada pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, não visou a satisfação de qualquer necessidade elementar de convívio social do mesmo e não consubstancia uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral. 3. Resultando da matéria de facto provada que o embate dos veículos ocorreu já depois da residência do sinistrado, na EN 231-2, a caminho da residência do colega S... que havia pedido àquele que o levasse para a localidade de ... onde residia, sendo certo que o trajeto normal do sinistrado efetua-se pela EN 231 não sendo necessário transitar pela 231-2, este desvio não foi determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, nem por motivo de força maior ou caso fortuito, antes decorreu de um ato voluntário do mesmo que acedeu ao pedido do seu colega de o levar para a localidade onde residia e não de um qualquer motivo estranho ou alheio à sua vontade. 4. Tendo o trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado de regresso do local de trabalho para casa sofrido uma interrupção e um desvio não determinados pela satisfação de necessidades atendíveis nem por motivo de força maior ou por caso fortuito, o acidente de que foi vítima não pode considerar-se acidente de trabalho in itinere. IV - DECISÃO Nestes termos, sem outras considerações acorda-se: Custas a cargo da A. recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido. Coimbra, 2020/05/22 (Paula Maria Roberto) (Ramalho Pinto) (Felizardo Paiva)
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