Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
486/21.0GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE VIOLAÇÃO
CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES
TRATO SUCESSIVO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REGRAS DE CONDUTA
Data do Acordão: 06/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSOS DECIDIDOS EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS
Legislação Nacional: ARTIGOS 50.º, 52.º, 152.º, N.º 1, E 164.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – Apontam-se como tuteladas pela proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.

II – A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção comporta e também com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna, mas a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.

III – Existe uma relação de concurso efectivo de crimes, a ser punido nos termos do artigo 77.º do Código Penal, entre o crime de violência doméstica e o crime de violação, não apenas porque este último é punível com uma moldura penal abstracta cujo limite mínimo é de 1 ano e o limite máximo é  de 6 anos de prisão, enquanto que o primeiro é punível com uma moldura penal abstracta cujo limite mínimo é de 2 e o limite máximo é de 5 anos de prisão,  mas ainda porque, no caso dos autos, os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciada e mostram-se autonomizados, tal como foi decidido.

IV – No crime de violação quando não resulte da matéria provada nem a determinação do concreto número de vezes em que ocorreram os actos sexuais não consentidos, nem a sua delimitação, no espaço e no tempo, justifica-se o recurso à figura do trato sucessivo, à luz do princípio do in dubio pro reo.

V – A imposição de deveres e de regras de conduta constitui sempre um poder-dever do juiz, no primeiro caso condicionado pelas exigências de reparação do mal do crime e no segundo vinculado à necessidade de afastar o delinquente da prática de futuros crimes.

VI – As regras de conduta assumem maior importância do que os deveres em sentido estrito, na medida em que se ligam, ao contrário destes, ao cerne socializador da pena de suspensão de execução de prisão.

VII – Se, depois de sair da residência onde viveu com a assistente, o arguido fez ameaças de morte a esta e aos filhos comuns, em consequência do que aquela passou a viver apavorada, em estado de medo e de ansiedade permanentes e isolada em casa, e se passava de carro, várias vezes, junto da residência da assistente, a regra de conduta de não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações na localidade de residência desta, imposta como condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, está relacionada, em termos globais, com os fins preventivos almejados no caso concreto, designadamente com as exigências de proteção da vítima e, apesar da sua extensão e implicação no direito de deambulação do arguido, revela-se adequada e proporcional aos fins visados.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I- Relatório

           

            1.

            …


*

            1.3. Realizada a audiência de julgamento, … veio a ser proferida sentença, em 17.01.2022, na qual se decidiu:

          3.2. Condenar AA pela prática, em autoria material e forma consumada, e em concurso efetivo:

               de um crime de violência doméstica nos termos do disposto do art. 152.º, n.ºs 1 al. a) e n.º 2, al. a) Código Penal numa pena de 3 (três) anos de prisão um crime de violação em trato sucessivo, p. e p. nos termos do art. 164.º, n.º1 e n.º3 do CP, na pena de (dois) anos de prisão;

               Operar o cumulo jurídico condenado o arguido na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, ficando tal suspensão da execução da pena condicionada ao cumprimento das seguintes regras de conduta:

               o a) frequência de Programa para autores de crimes no contexto da Violência Doméstica (cfr. art. 2.º al. f) da Lei n.º 112/2009 de 16.09o qual constitui uma resposta estruturada dirigida a agressores de violência doméstica que visa promover a consciência e assunção da responsabilidade do comportamento violento e a utilização de estratégias alternativas ao mesmo, com as seguintes componentes estratégicas: Prevenir o cometimento no futuro de factos de idêntica natureza; Permitir o confronto do arguido com as suas ações e tomada de consciência das suas condicionantes e consequências; Procurar o confronto do arguido com os eventuais problemas de que possa padecer, procurando alcançar formas de os eliminar/minorar; Promover a consciência e assunção da responsabilidade do comportamento violento e impulsivo e a utilização de estratégias alternativas ao mesmo, devendo ainda o mesmo sujeitar-se, durante o período de suspensão de execução da pena a todas as ações deste género que a DGRSP lhe proponha;

               o b) durante 2 anos não contactar a ofendida, por qualquer meio, seja presencial, seja telefónico, via internet ou outro, não se deslocando à casa que a mesma habita, não podendo ainda frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações na ... (salvo restaurante da sua própria irmã) nem passar propositadamente em locais onde sabe que a mesma se encontra;

               aplicando-se ainda a pena acessória de proibição de uso e porte e arma por 2 anos.

               3.2. Condenar a arguida BB, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 2º, nº1, als. x) e p)-ii), art. 3º, nº2, al. l), art. 2º, nº 3, als. p) e ac), 3º, nº1, art. 2º, nº1, al. ap) e art. 3º, nº 2, al. e), art. 2º, nº1, al. m) e 3º, nº2, al. ab), art. 3º, nº2, f), e art. 86º, nº1, als. c) e d), do Regime Jurídico das Armas na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de € 10,00 (dez euros), num total de € 2.000,00 (dois mil euros);

              

               3.3. Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por CC parcialmente procedente por parcialmente provado, condenando AA no pagamento à demandante de indemnização que se fixa em €6.000,00 (seis mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora civis, à taxa legal de 4% desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento;

               3.4. Declaro as armas apreendidas perdidas a favor do Estado (art. 109.º do C.P.), devendo proceder-se, após trânsito, nos termos do art. 78.º da Lei n.º 5/2006 de 23.02.”


*

            2. Inconformados com o decidido, recorreram os arguidos AA e BB

            2.1. Do recurso do arguido AA:

            “ 1. Foi o arguido condenado pelo crime de violência doméstica e violação em trato sucessivo.

               …

               3. Salvo o devido respeito, entende o recorrente que é errada a conformação jurídica da douta decisão que se baseia exclusivamente nas declarações de memória futura prestadas pela ofendida. Aliás,

               4. No caso sub judice, inexiste fundamento para autonomizar os dois crimes em questão, punindo o recorrente pela sua prática já que a ofendida nas suas declarações para memória futura refere que muitas das vezes teve relações sexuais contra a sua vontade mas que havia relações Sexuais consentidas, mas que sobretudo quando o arguido a tinha tratado mal,(…), negava essas relações mas o arguido não tinha em conta a sua vontade dizia o que interessava era despeja-los…

               Refere que não resistia fisicamente, mas dizia que não e virava-se de costas mas o arguido não aceitava a sua recusa e ela desistia e estava ali nas relações sexuais…

            5. Por outro lado, e no que à “ofensa sexual” diz respeito, dada como provada, pela douta sentença recorrida, no caso sub judice, entende o recorrente que não praticou nenhuma ofensa sexual na pessoa da ofendida, já que as relações para si foram sempre consentidas. Assim,

              

               8. A ofensa sexual exige imputação a título de dolo, e para que se verifique o elemento intelectual do dolo é necessário que o recorrente (agente) tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática da cópula.

               9. O que no caso em apreço, não se verificou, pese embora, o Tribunal “a quo” tenha irrelevado, nessa parte, as declarações do recorrente que : “ refere ter ocorrdo com o consentimento da vítima após sua insistência, vencendo uma relutância inicial da mesma”.

               …

          …

               12. Existe aqui, e é por demais evidente, uma grosseira, violação do princípio in “dúbio pro Reo”, como supra já se mencionou.

               13. Estamos aqui, sem dúvida, perante uma errada decisão sobre a matéria de facto …

               …

            18. No que tange ao crime de violência doméstica, sempre se diz que o arguido foi condenado por este crime apenas e só por apelidar a ofendida de puta, vaca, ovelha e por supostamente levar amantes para casa…

            …           …

            23. Mais uma vez e reitera-se não foi feita qualquer tipo de prova que permita concluir que foi o arguido autor do crime de violação e de violência doméstica.

               24. Com a consequente condenação de não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de Associações na ... durante dois anos.

               25. Igualmente não se compreende tal limitação até porque a freguesia ... é das maiores do Distrito ..., não se compreendendo o alcance de tal medida, (completamente inconstitucional).

               …


*

            2.2. Do recurso da arguida BB:

            “…

               3. Entendeu o Tribunal classificar as armas em apreço em conformidade com o artigo 86º n.º 1 alíneas c) e d) do art. 86º, nº1, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, tendo a Meritíssima Juiz entendido ainda que a arguida deveria ser punida apenas por um crime, no caso em apreço o mais grave. No entanto,

               4. Salvo melhor opinião, o Tribunal classificou erradamente as armas detidas pela arguida …

              


*

            3. A Exma. Procuradora da República na primeira instância respondeu aos recursos interpostos por ambos os arguidos …

           

           


*

            3.3. Da resposta da assistente ao recurso interposto pelo arguido AA:

              

              


*

            4. Ambos os recursos foram admitidos.

*

            5. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.

*

            6. Cumprido o disposto no Art. 417º nº2 do CPP, não foi apresentada resposta ao aludido parecer.

*

            7. Colhidos os vistos legais, os autos foram a conferência.

*

            II-  Fundamentação

            A) Delimitação do objecto dos recursos

            … as questões a decidir nos presentes recursos são as seguintes:

            - Do recurso do arguido AA:

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

            - O incorrecto enquadramento jurídico-penal relativamente aos crimes de violência doméstica e de violação e a infundamentada autonomização dos mesmos.

            - A inconstitucionalidade da regra de conduta atinente a não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações, na ... ( salvo restaurante da sua própria irmã ), durante 2 anos, imposta como condição à suspensão da execução da pena de prisão.

            - Do recurso da arguida BB:

            - O incorrecto enquadramento jurídico-penal relativamente ao crime de detenção de arma proibida;

            - A excessiva medida da pena de multa aplicada.


*

            B) Da decisão recorrida

            Para a apreciação dos recursos, importa ter presente o que consta da decisão recorrida, que, na parte relativa à factualidade provada e não provada e à motivação, se passa a transcrever:

            a) Nela foram considerados provados e não provados os seguintes factos:

               “ 2. FUNDAMENTAÇÃO

               2.1. Factos Provados

              

               1. No dia 20/07/1974, CC casou com o arguido AA.

               2. Deste casamento, nasceram três filhos, todos maiores de idade, a saber, DD, EE e FF, e um outro filho, que veio a falecer, com 4 meses de idade.

               3. CC sempre dependeu economicamente do arguido, o que a tornava mais dependente dele e frágil relativamente a ele.

               4. Desde há 38 anos, o casal passou a viver, juntamente com os filhos, na Rua ..., em ... (...).

               5. Poucos dias depois de casarem e diariamente, o arguido dirigia-se à vítima nos seguintes termos: “És uma puta, uma vaca, uma ovelha”;        

               6. Durante todo o casamento, o arguido nunca respeitou a vítima e sempre lhe foi infiel, não se coibindo de trazer mulheres para o interior da residência comum do casal;

               7. Nessas ocasiões, o arguido aproveitava-se da ausência de CC do interior da residência, para levar para casa as suas “amantes” para casa.

               8. No entanto, o arguido acusava a vítima de ter amantes e de andar a trair com outros homens, o que nunca sucedeu nem corresponde à verdade.

               9. Durante o casamento, por várias vezes, o arguido forçou CC a manter com ele relações sexuais de cópula completa, sem o seu consentimento e contra a sua vontade.

               10. Nessas ocasiões, mesmo perante a recusa manifesta da mulher, o arguido deitava-se na cama ao lado dela, mesmo contra a sua vontade, colocava-se em cima dela e introduzia o pénis, tanto na vagina, como no ânus de CC.

               11. Em consequência, CC sentiu dores e sentiu-se humilhada, escorrendo-lhes as lágrimas pelo rosto, fruto da humilhação e das dores que sentia.

               12. Em dezembro de 2019 (perto do natal), no interior da residência comum do casal, o arguido dirigiu-se a CC, nos seguintes termos: “És uma puta, uma vaca, uma cabra, uma ovelha ranhosa”;

               13. Em finais do ano de 2018, o arguido colocou CC para fora do quarto do casal, não a deixando dormir na cama de ambos, alegando que ela ressonava muito.

               14. Em consequência, CC passou a dormir num quarto perto do do arguido.

               15. Contudo, cerca de 3 vezes, nesse período, o arguido dirigiu-se ao quarto onde CC dormia, e forçou-a a manter relações sexuais com ele, contra a sua vontade.

               16. Por três vezes, em datas não concretamente apuradas, e em datas não concretamente apuradas mas posteriores a 2018 quando CC já estava no quarto do lado, o arguido dirigiu-se a CC e ordenou-lhe “vem ter comigo à cama”, ao que a vítima lhe respondeu que ele sabia que tinha muitas dores e ele respondeu “não faz mal, eu interessa-me é despejá-los”.

               17. Com medo do arguido, CC acabou por ceder e manter relações sexuais com o arguido, contra a sua vontade.

               18. No dia 16/06/2021, na cozinha da residência, o arguido levantou o braço a fazer o movimento de força e dirigiu-se à vítima nos seguintes termos: “Vê lá se queres levar nos cornos”;

               19. Nessa ocasião, estava presente a neta GG.

               20. No dia 20/07/2021, junto à entrada da porta da residência do casal, o arguido dirigiu-se à vítima, à filha do casal, EE, e a neta, GG, em tom de voz alto, dizendo-lhes “arranco a cabeça a toda a gente”

               21. Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra descritas, encontravam-se presentes a filha do casal, EE, e a neta, GG.

               22. Devido ao estado de ansiedade permanentes em que vive, CC, está com uma depressão profunda e esteve oito dias internada no Centro Hospitalar ..., ligada a uma máquina do coração, tendo recebido alta no dia 11/08/2021;

               23. No dia 13/08/2021, cerca das 19h00m, no interior da residência, CC, as filhas EE e DD e o arguido encontravam-se sentados à mesa.

               24. A dada altura, o telefone do arguido tocou duas vezes, não tendo o arguido atendido, após o que rejeitou as chamadas.

               25. De seguida, revoltada, a filha do casal, EE, questionou o arguido sobre o motivo pelo qual não atendia o telefone e disse-lhe “é ela não é?”, referindo-se a BB.

               26. De imediato, o arguido levantou-se da mesa e foi ao carro buscar uma garrafa de pesticida, disse que se ia matar com aquilo, ao mesmo tempo que gritava “não vos posso ver, eu odeio-vos.”

               27. Após, GG tirou-lhe o frasco e ele pegou num objeto tipo “grosa”, que termina num bico, e disse “eu vou-me matar com isto”.

               28. No dia 28/08/2021, através dos filhos, CC soube que o arguido tem um relacionamento extraconjugal com outra mulher, BB.

               29. Nesse mesmo dia, o arguido saiu de casa e até à data não voltou, estando a viver com BB, sita na Estrada ..., nº 831, em ....

               30. BB já era conhecida da família dado que era a patroa da filha do casal EE e costumava frequentar a residência comum do casal.

               31. No dia 30/08/2021, à noite, a vítima acompanhada das suas filhas, DD e EE, e da neta, GG, avistaram o automóvel do arguido junto à residência de BB, na localidade da ....

               32. Nessa ocasião, o arguido apercebendo-se da presença daquelas dirigiu-se nos seguintes termos: “Acabou, vão para o caralho, vão-se foder, eu não volto mais para casa!”;

               33. No dia 06/09/2021, à noite, o arguido ligou para todos os filhos e para a vítima, que, primeiro, não atenderam.

               34. Depois, pelas 22h02m, o arguido AA voltou a ligar para o filho FF, que atendeu, e, num tom de voz muito exaltado e sério, disse ao filho “Eu vou-vos foder a todos! Eu limpo-vos a todos, acabou! Porque vos vou limpar (…)”;

               35. No decurso da mesma conversa telefónica, pelas 22h04m, o arguido continuou nos seguintes termos: “Eu matar não me mato, mas pode ser que mate alguém…Mas pode ser que vos foda a vida (…) Garanto-te, quando eu perder a cabeça, que vos limpo a todos, a todos… Limpo-vos a todos…todos…não escapa um…”.

               36. No decurso da referida conversa telefónica, o arguido disse ainda ao filho FF, em tom de voz alto, sério e ameaçador: “Viro-os a todos…vou comprar uma puta, não a tenho mas hei-de comprar…vou ali aos ciganos a ...…limpo-vos a todos…há-de lá ir a CMTV”, referindo-se à vítima, aos filhos e aos netos e pretendendo, com tal expressão, o arguido anunciar à vítima e aos filhos que tem intenções de adquirir uma arma e de os matar a todos. - cfr. fls. 145.

               37. Em consequência, CC vive apavorada, num estado de medo e de ansiedade permanentes, com muito medo de que o arguido venha a concretizar as ameaças de morte que lhe tem vindo frequentemente a fazer.

               38. Desde 28/08/2021, CC isolou-se em casa;

               39. Na última semana (por referência à data da acusação), o denunciado e BB têm passado, de carro, por várias vezes junto da residência da vítima.

               40. No dia 22/10/2021, de manhã, no interior da residência da arguida BB, a arguida tinha na sua posse, os seguintes objetos, os quais foram apreendidos: - uma pistola, de cor preta e branca, marca “BROWNING”, calibre 6,35 mm, com um carregador introduzido, e três munições; - vinte e três munições de calibre 6,35 mm; - uma navalha com uma lâmina de 23 centímetros; - uma soqueira/boxer. - um punhal decorativo.

               41. O arguido sabia que CC era sua mulher, e, sempre que adotou os comportamentos, atuou com o propósito concretizado e reiterado, de a ofender e maltratar física e psiquicamente, de modo a atingir o seu bem-estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.

               42. AA agiu do modo descrito, sabendo que infligia a CC maus-tratos físicos e psicológicos, humilhando-a e sujeitando-a a tratamentos degradantes e causando-lhe um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes.

               43. Ao atuar da forma descrita, a arguida BB quis e representou deter na sua posse a arma de fogo, curta, semiautomática e transformada, bem como as respetivas munições e o boxer, cujas características conhecia.

               44. Quis e representou a arguida BB deter no interior da sua residência a referida arma de fogo, munições e boxer, cujas características conhecia, bem sabendo a arguida que para deter aquelas armas teria de ser detentora de licença de uso e porte de arma emitida pelas entidades competentes, licença que não detém.

               45. Mais, tinha a arguida BB conhecimento de que a detenção de tal punhal era proibida, uma vez que, não obstante ser afeta a atividades domésticas, foi encontrada fora do local do seu normal emprego e, não obstante, não se absteve de prosseguir a conduta com plena consciência que era proibida.

               46. Mais, tinha ainda a arguida BB conhecimento de que a arma branca (navalha de grandes dimensões), composta de uma lâmina metálica, com o comprimento de 22,7 cm, composta por ricasso e na parte superior numa extensão de 10,5 cm, ficando, desse modo, com uma maior capacidade perfurante, uma vez que é aguçada em ambos os lados da lâmina, era proibida dado que a mesma na sua génese não está afeta ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, nem é objeto de decoração, cujas características conhecia, e, não obstante, não se absteve de prosseguir a conduta com plena consciência que era proibida.

               47. Os arguidos agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

               48. A conduta do arguido na pessoa da ofendida e demandante provocaram na mesma, ao longo dos 47 anos de casamento:

               a. humilhação, tristeza, angústia, ansiedade;

               b. medo, chegando a mesma a temer pela sua vida e dos seus filhos;

               c. a estar atualmente isolada em casa;

               d. a, pelo menos, ter contribuído para piorar a situação clínica da demandante, maxime, quanto à sua ansiedade, depressão com evolução de vários anos, e hipertensão da mesma;

               Mais se provou:

               49. Atualmente arguido e assistente encontram-se divorciados;

               50. O arguido continua a frequentar a sede da associação da terra onde a ofendida reside (...)

               51. O arguido:

               a. está reformado, recebendo €750,00 (setecentos e cinquenta euros) de reforma;

               b. vive com BB em casa da mesma com dois filhos da mesma, sendo que o arguido não paga por aí viver. Paga supermercado e outras despesas.

               c. Só tem as despesas de subsistência;

               d. tem a 4ª classe de escolaridade;

               e. mantém o apoio familiar dos seus irmãos, sendo que uma das irmãs tem um restaurante perto da localidade onde a ofendida reside;

               52. A arguida:

               …

               2.2. FACTOS NÃO PROVADOS

               …


*

              

               “ 2.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

               … 1 …2 …

               1 …

                    2 …

              


*

             C)Apreciação dos recursos

            I- Do recurso do arguido AA

            - Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

            …

     


*

            - Do incorrecto enquadramento jurídico-penal relativamente aos crimes de violência doméstica e de violação e da infundamentada autonomização dos mesmos

           

             Como deixamos já decidido, a factualidade provada constante da sentença recorrida mantém-se inalterada.

            E, sobre o respectivo enquadramento jurídico-penal, ponderou-se na mesma seguinte forma, que se transcreve:

            “2.4. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS PROVADOS

               …

               2.4.1. RESPONSABILIDADE CRIMINAL DE AA

               …

                              ___________________

               3 …

               4 …

                    5 …

                    6 …

                    7 …

               Contudo, importa ainda equacionar se face aos factos n.ºs 9 a 11 e 15 a 17 não constituem autonomamente crime de violação ou se integram as “ofensas sexuais” da execução não vinculada do crime de violência doméstica.

               Prevê-se no art. 164.º do Código Penal (na redação atual e que já era vigente e aplicável no ano que antecedeu o dia 26.12.2020) sob a epígrafe de violação, que “ 1 - Quem constranger outra pessoa a: a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos é punido com pena de prisão de um a seis anos. 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.

               …

               Legalmente, procedeu-se à definição do termo «constranger» com recurso à vontade cognoscível, resultando um inovador e redundante Modelo Misto. I.e., quem constrange, fá-lo para impor a sua vontade sobre a de outra pessoa, o que impõe implícita e inevitavelmente que esta seja contrária e demonstrada, de forma a que o dissentimento perante a prática sexual possa ser cognoscível e que, consequentemente, o agente tenha a faculdade de representar a oposição da vítima e de se determinar/agir de acordo com ela

               Quanto ao elemento do tipo “praticar” importa referir que abrange quer as condutas em que a vítima é constrangida a adotar uma posição ativa, quer passiva, perante o ato de cariz sexual.      

               Ora, no caso dos autos, o arguido constrangeu a ofendida à pratica dos atos provados, designadamente obrigando-a a ter sexo quer vaginal quer anal mesmo quando a ofendida lhe disse que lhe doía, que não queria tais atos, que queria que o arguido parasse, tendo assim sido perfeitamente cognoscível para o arguido a oposição da assistente.

               O arguido teve assim perfeito conhecimento da verdadeira vontade da vítima em não praticar tais atos e ainda assim não respeitou a sua vontade, atuando de forma livre, voluntária e consciente sabendo a sua conduta punível por lei penal, ou seja, com dolo direto – facto n.º 47- (art. 14.º, n.º1 do CP), pelo que praticou o crime de violação, p. e p. nos termos do art. 164.º, n.º1 e 3 do CP.

               E aqui se chegando, respaldados no que vem entendendo a Jurisprudência a este propósito, entendemos estar perante concurso efetivo entre o crime de violência doméstica e o crime de violação.

               …

              

Mas uma outra questão se coloca ainda: a da unidade ou pluralidade de crimes de violação já que sºao várias as situações ocorridas, e em distintas datas.       

               Vejamos.

               Conforme se sumaria em Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, de 29.12.2012, disponível em www.dgsi.pt “I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem. (…) III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. (…) VIII - Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.”

               Assim, e aplicados estes ensinamentos aos factos dos autos, pelo que consideramos estar perante um só crime de trato sucessivo (no mesmo sentido que ora preconizamos veja-se ainda o entendido por HELENA MONIZ, Revista Julgar on line, em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/04/20180411-ARTIGO-JULGAR-Crimes-de-trato-sucessivo-Helena-Moniz.pdf)

               Assim, vai o arguido condenado pela prática em autoria material e na forma consumada, um crime de violência doméstica agravado, em concurso efetivo com um crime de violação em trato sucessivo, p. e p. pelo disposto no art. 164.º, n.º1 e n.º3 do CP.”       

               Tal como foi considerado na sentença recorrida, a conduta do arguido descrita na factualidade provada preenche os elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – dos crimes de violência doméstica e de violação, entendimento que, por sufragarmos, sustenta o enquadramento jurídico-penal que nela foi ponderado.

            Para além do que na sentença recorrida – de forma assertiva - se deixou expendido sobre os bens jurídicos tutelados pela incriminação do crime de violência doméstica, afigura-se-nos importante acrescentar algumas notas sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica, a respeito do que vem sendo notada alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial – neste sentido, Nuno Brandão, in “ A tutela penal especial reforçada da violência doméstica “, Revista Julgar, nº 12, pag. 9 e segs.

            De forma, que poderemos considerar generalizada, apontam-se como tuteladas pela proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica,  a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa, porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada – a este propósito e de forma mais desenvolvida, vejam-se, entre outros, Plácido Conde Fernandes, «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal» in “Revista do CEJ, nº 8 (especial), pags 304-305, Augusto Silva Dias «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. aafdl, pag. 110.

            A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto, frisando-se, contudo, que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.

            E pressupõe, também, uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» - neste sentido, Cfr. Pedro Maia Garcia Marques, «Ora, trabalha sofre e cala … ou não» in “Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Nuno José Espinosa Gomes da Silva”, pags 332-333.

            Podendo, assim, dizer-se que o crime de violência doméstica tutela uma pluralidade de bens jurídicos, que encontram autónoma protecção noutros tipos legais e que a subsunção dos factos terá lugar em relação ao crime de violência doméstica quando houver lugar a um agravamento do juízo de censura referente à violação de pelo menos um dos bens jurídicos a que a norma alude, pela circunstância de esses bens serem ofendidos no âmbito de uma relação de coabitação ou de uma relação familiar, ou análoga, ainda que sem coabitação, ou após o termo dessa relação, mas como consequência dela.

            É em função dessa circunstância que se determina a relação de especialidade entre cada um daqueles tipos legais e o tipo de violência doméstica, aceitando-se, pois, que o crime de violência doméstica é uma forma especial do crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensas à integridade física, de ameaças, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra – vide, neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 4ª Edição actualizada, pág. 646-647.

            Ou, como também se perfilha no acórdão do STJ, de 11.03.2021, disponível in www.dgsi.pt, “ no ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada “da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.

            Em última instância, é ainda o conceito de integridade pessoal (física e psíquica) comum ao crime de ofensa à integridade física simples, com a particularidade de, aqui, ser outra a caracterização da agressão e da actuação do agressor, estabelecidas, ambas, em função do "ambiente e da imagem global do facto" indiciador de um maior desvalor da acção e de um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima. O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física ou psíquica de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si só, constitui um "risco qualificado que a situação apresenta para a saúde física ou psíquica da vítima". Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do artigo 152°, do CP. Se não, a situação integrará a prática de um dos vários crimes comuns.”

            E, como ainda se deixou expresso no Ac. do Tribunal da Rel. de Coimbra, de 22-09-2021, disponível in www.dgsi.pt., “ A opção do legislador na tipificação do ilícito actualmente constante do art. 152º do Código Penal terá decorrido essencialmente da generalização da percepção de que as condutas hoje integradas naquele tipo legal constituíam um grave problema social e familiar, transversal à generalidade das ordens jurídicas, carecido de urgente atenção legislativa. Não terá sido alheio ao pensamento legislativo o reconhecimento de que o tipo de relações em causa tem a potencialidade de gerar situações de dominação e de sujeição ou dependência, criando uma vulnerabilidade que pode propiciar um tratamento humilhante, de amesquinhamento, ou mesmo degradante. Porventura por força dessa constatação sectores consideráveis da doutrina, como da jurisprudência, acentuaram a relação de domínio ou de dependência e as vulnerabilidades daí resultantes. A evolução doutrinal e jurisprudencial veio apontar novos caminhos, afastando a necessidade de verificação de qualquer relação de dependência, esgrimindo, entre outros argumentos, a ausência de referência, na formulação legal, de semelhante requisito”.

            Daí que, como se salienta neste último aresto, “O elemento distintivo resultará necessariamente da imbricação entre o crime cometido e a relação existente entre o seu autor e a vítima e, nessa medida, o enquadramento será sempre casuístico. Sempre que as circunstâncias do caso evidenciarem que, apesar da relação conjugal, familiar ou análoga, contemporânea da infracção ou anterior a ela, a prática do crime se oferece como estranha a essa relação, poderemos estar perante um dos tipos de crime que tutelam a integridade física ou psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a honra, mas não já perante um crime de violência doméstica. Na verdade, este último crime não traduz um tipo legal qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela jurídico-criminal. A opção pelo tipo do art. 152º em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente os bens jurídicos por aquele abrangidos exige a verificação de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime ser indissociável da relação presente ou passada. “

            Pode, assim, concluir-se que a esfera de proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica abrange pressupostos que escapam aos tipos legais por ele abrangidos (de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc.).

            São, pois, estes os traços mais marcantes da natureza do crime de violência doméstica e da sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.

            Vejamos, agora, a ponderação que igualmente foi feita na sentença recorrida, a respeito do concurso efectivo entre o crime de crime de violência doméstica e o crime de violação.

            A parca argumentação do recorrente, que parece traduzir a dissensão do mesmo em relação à ponderação feita na sentença recorrida a respeito do concurso efectivo entre os dois referidos crimes, passa apenas pelo entendimento de que “ inexiste fundamento para autonomizar os dois crimes em questão “.

            …

            No caso em vertente, importa dizer que na acusação deduzida nos autos pelo MºPº contra o arguido ora recorrente vinha apenas imputada a prática de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos artigos 14º, nº1, 152º, nº 1, al. a), nº 2, al. a) do Código Penal, na pessoa da vítima CC.

             O tribunal a quo entendeu, com base nos factos apurados, proceder à convolação dos mesmos, como sendo uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos ( a ter tratamento idêntico a uma alteração não substancial de factos, à luz do artigo 358º, nº 3 do CP, cumprindo eficazmente no decurso da audiência de julgamento o disposto no nº 1 de tal preceito, não tendo, pois, a defesa sido surpreendida por esta convolação, mercê do facto de ter tido oportunidade de preparar a defesa em relação à mesma – tendo prescindido -  ), e concluiu na sentença recorrida no sentido de que o arguido cometeu, de forma autónoma, um crime de violação, p e p. pelo artigo 164º, nº 1, alínea b) e nº 3 do CP, em trato sucessivo, e não apenas o crime de violência doméstica que lhe vinha imputado na acusação, e, assim sendo, pela condenação do recorrente pela prática dos mencionados crimes em concurso efectivo.

            Respaldando o tribunal da primeira instância tal entendimento a respeito do concurso efectivo entre o crime de violência doméstica e o crime de violação na jurisprudência dos tribunais superiores que cita na sentença recorrida.

            E, tal entendimento, a nosso ver, não merece censura, face ao teor dos factos provados contidos nos pontos 9. 10., 11., 15., 16., 17., 42. e 47.

            Na verdade, também nós entendemos que no caso em vertente existe uma relação de concurso efectivo de crimes, a ser punido nos termos do artigo 77º do CP, entre o crime de violência doméstica e o crime de violação, não apenas porque este último é punível com uma moldura penal abstracta cujo limite mínimo é de 1 (um ) ano e o limite máximo é  de seis (6 ) anos de prisão, enquanto que o primeiro é punível com uma moldura penal abstracta cujo limite mínimo é de 2 (dois) e o limite máximo é de 5 ( cinco) anos de prisão,  mas ainda porque, no caso dos autos, os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciada e foram autonomizados, como tal, na sentença, perfilhando a este propósito o entendimento sufragado no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.02.2022, Proc.76/20.4GGCVL.C1, e de 12-04-2023, Proc. 604/20.5GCLRA.C1, disponíveis in www.dgsi.pt.

            Por fim, perante o recorte da matéria de facto contida nos pontos 9. 10., 11., 15., 16. e 17., da qual não deflui nem a determinação do concreto número de vezes, nem a delimitação, no espaço e no tempo, com nitidez e pormenores, em que ocorreu tal acto sexual não consentido,  que, para alguns, justificará o recurso à figura do trato sucessivo, à partida pouco ou nada vocacionado para os crimes sexuais, é curial ter-se aplicado na sentença recorrida a doutrina do trato sucessivo, à luz do princípio do in dubio pro reo, tal como opina Helena Moniz no seu artigo «Crimes de trato sucessivo », publicado na Revista JULGAR online, em Abril de 2018.

            Donde, também neste segmento improcede a pretensão recursiva do arguido AA.


*

            - Da inconstitucionalidade da regra de conduta atinente a não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações, na ... ( salvo restaurante da sua própria irmã ), durante 2 anos, imposta como condição à suspensão da execução da pena de prisão

            Não pondo em causa nem a medida das penas parcelares fixadas pelo tribunal a quo para o crime de violência doméstica … nem a pena única … insurge-se apenas o arguido e ora recorrente contra à condição imposta a tal suspensão da execução da pena de prisão consistente, entre o mais, na regra de conduta de não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações, na ... ( salvo restaurante da sua própria irmã ), durante 2 anos, alegando apenas que “ não se compreende tal limitação até porque a freguesia ... é das maiores do Distrito ..., não se compreendendo o alcance de tal medida, ( completamente inconstitucional )”.

            Em causa está, pois, apenas a regra de conduta imposta como condição da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, determinada na sentença recorrida, da seguinte forma:

            “ b) durante 2 anos não contactar a ofendida, por qualquer meio, seja presencial, seja telefónico, via internet ou outro, não se deslocando à casa que a mesma habita, não podendo ainda frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações na ... (salvo restaurante da sua própria irmã) nem passar propositadamente em locais onde sabe que a mesma se encontra”, da qual o recorrente apenas põe em causa o segmento referente a não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações na ... (salvo restaurante da sua própria irmã)  durante 2 anos.

            A propósito do que a respeito de tal regra decidida na sentença recorrida, consta desta que:

            “ Salvaguardando sempre melhor opinião em sentido contrário, a reação jurídico-penal deverá assentar, não apenas mas também numa perspetiva de “jurisprudência terapêutica”, a qual tem vindo a ser defendida pela doutrina da psicologia forense, sendo o seu percursor o Prof. DAVID B. WEXLER (vide artigo “Jurisprudência terapêutica: como podem os tribunais contribuir para a reabilitação dos transgressores”, in Psicologia e Justiça, AA.VV, Almedina, Dezembro de 2008, pp. 421 e ss., também disponível para consulta na internet no site http://www.law.arizona.edu/depts/upr-intj/pdf/ArticuloPortugues.pdf).12

               Nessa perspetiva, e na linha da corrente da expressivamente “jurisprudência terapêutica”, e ainda compatibilizando com as exigências de proteção da vítima, deverá tal suspensão ficar subordinada ao cumprimento das seguintes regras de conduta (cfr. artigo 50.º, n.º 2 e 52.º, n.º1 als. b) e c) todos do Código Penal e ainda art. 34.º-B da Lei n.º 112/2009 de 03.09):

            _____________________

               12 Segundo definição do Prof. David B. Wexler, "Jurisprudência Terapêutica é o estudo do papel da lei como um agente terapêutico." O estudo concentra-se no impacto da lei na vida emocional e no bem-estar psicológico. A Jurisprudência Terapêutica chama nossa atenção para este aspeto previamente subestimado, humanizando a lei e preocupando-se com seu lado emocional e psicológico, bem como com os do processo legal. Basicamente, a Jurisprudência Terapêutica é uma perspetiva que diz respeito à lei como uma força social que produz comportamentos e consequências. Às vezes, estas consequências caem no âmbito que chamamos de terapêutico; outras vezes são produzidas consequências anti-terapêuticas (para saber mais sobre a jurisprudência terapêutica, vide o website, www.therapeuticjurisprudence.org). Refere o citado autor, alguns dados sobre o que leva certos indivíduos a desistir do crime: encontrar papéis ou funções em que eles se sintam com sucesso; ter capacidade de sentir o passado delinquente e virar a página, gerando assim um sentimento de redenção; o envolvimento no aconselhamento e ajuda a outros em circunstâncias semelhantes; conhecer ou estar em contactar com alguém que conseguiu sair de uma situação semelhante; envolver-se em trabalho voluntário e comunitário.

            a) (…)

               b) durante 2 anos (…) não podendo ainda frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações na ... (salvo restaurante da sua própria irmã) (…);

               Tal prazo será o suficiente para, a nosso ver, acalmar os ânimos que esta fase aguda do julgamento possa ter aceso novamente e para que o arguido assimile todo o constante da presente sentença e a ofendida possa melhorar o seu estado anímico.

               Tudo a ser fiscalizado e acompanhado pela DGRSP”.

               Analisando.

            Dispõe o artigo 52.º, sob a epígrafe “Regras de Conduta”:

            “1 - O tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, nomeadamente:

            a) Residir em determinado lugar;

            b) Frequentar certos programas ou actividades;

            c) Cumprir determinadas obrigações.

            2 - O tribunal pode, complementarmente, impor ao condenado o cumprimento de outras regras de conduta, designadamente:

            a) Não exercer determinadas profissões;

            b) Não frequentar certos meios ou lugares;

            c) Não residir em certos lugares ou regiões;

            d) Não acompanhar, alojar ou receber determinadas pessoas;

            e) Não frequentar certas associações ou não participar em determinadas reuniões;

            f) Não ter em seu poder objectos capazes de facilitar a prática de crimes.”

            Por remissão directa do n.º4 do artigo 52º, para o n.º2 do artigo 51º, as regas de conduta não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

            Como resulta da lição do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português As consequências jurídicas do Crime, págs. 348 a 351, as regras de conduta assumem maior importância do que os deveres em sentido estrito, na medida em que aquelas, ao contrário destes, se ligam mesmo ao cerne socializador da pena de suspensão de execução de prisão.

            A imposição tanto de uns como de outras constitui sempre um poder-dever; só que no primeiro caso, condicionado pelas exigências de reparação do mal do crime, no segundo vinculado à necessidade de afastar o delinquente da prática de futuros crimes.

            Quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados.

            Não temos dúvidas que a regra de conduta em causa nos autos está relacionada, em termos globais, com os fins preventivos almejados no caso concreto, designadamente com as exigências de proteção da vítima, e que, apesar da sua extensão e implicação no direito de deambulação do arguido, se revela proporcional aos fins visados.

            Com efeito, como deflui da factualidade provada, mesmo depois de sair da residência onde viveu com a assistente nos autos, sua ex-mulher, o arguido ligou para esta e para os filhos, vindo através da conversa telefónica que teve com o filho FF a proferir ameaças de morte contra a ex-mulher e os filhos, em consequência do que a ofendida CC vive apavorada, num estado de medo e de ansiedade permanentes, como muito medo de que o arguido venha a concretizar tais ameaças de morte, isolou-se em casa, sendo, ainda que, o arguido acompanhado da também arguida nos autos BB ( com a qual o mesmo passou a viver ) têm passado, de carro, por várias vezes junto da residência da ofendida, pelo que a regra de conduta imposta como condição à suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA, atinente a não frequentar cafés, restaurantes nem sedes de associações na ... (salvo restaurante da sua própria irmã)  durante 2 anos, se apresenta adequada, tendo em conta que a ofendida vive na área abrangida pela referida restrição, concretamente, na Rua ..., em ... ( ... ).

            Pelo que, também neste segmento a pretensão recursiva do recorrente não é de acolher, julgando-se, por isso, totalmente improcedente o recurso por ele interposto.


*

            II- Do recurso da arguida BB

            - Do incorrecto enquadramento jurídico-penal relativamente ao crime de detenção de arma proibida

            … a sua discordância  em relação à sentença recorrida cinge-se à classificação das armas que foram apreendidas na sua posse,  para, com base no entendimento que a esse propósito sufraga, concluir que:

            - em relação à soqueira, ao punhal e à navalha, pretender que não se tratam de armas de classe A, mas apenas de armas brancas, logo não está preenchido o tipo de ilícito p. e p. pela alínea d) do artigo 86º n.º 1 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aduzindo, ainda que “Para além disso não existe qualquer prova nos autos que o punhal ou a navalha fossem efetivamente armas brancas até porque a navalha descrita nos autos não é mais do que um utensílio de cozinha; o punhal trata-se de um objecto decorativo e todas estas armas faziam parte da herança do falecido pai da arguida. Aliás nos próprios autos não existe qualquer tipo de prova que tais armas pudessem ser usadas como armas de agressão, reiterando-se mais uma vez não estar preenchido o ilícito p. e p. na alínea a) ou d) do artigo 86º n.º 1 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições “;

 e

               - em relação à arma ( pistola de cor preta e branca, marca “ Browning “, calibre 6,35 mm, com um carregador introduzido e 26 ( 3 + 23 ) munições, pretender que se trata “de uma arma de classe F, por foça do disposto na alínea c) do n.º 8 do artigo 3º da Lei 5/2006 de 23/02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 50/2013 de 24.07 “, aduzindo, ainda que “ Conforme relatório elaborado pela Polícia de Segurança Pública, inexiste qualquer tipo de prova que a mesma estava apta a produzir disparo “.

               …

            Pois bem.

            As armas em causa cuja detenção é imputada à arguida são, como deflui da factualidade contida no ponto 40. do elenco factual provado, as seguintes:

               - uma pistola, de cor preta e branca, marca “BROWNING”, calibre 6,35 mm, com um carregador introduzido, e três munições;           

            - vinte e três munições de calibre 6,35 mm;

            - uma navalha com uma lâmina de 23 centímetros;

            - uma soqueira/boxer.

            - um punhal decorativo.

            Tais armas mostram-se examinadas nos autos de exame directo …, laudo pericial esse que foi valorado pela Mma. Juiz a quo, como resulta da fundamentação aduzida na sentença recorrida, e dele, como nela se refere, não divergiu a mesma.

            E, não vindo o mesmo, como não vem, por qualquer forma, posto em causa pela recorrente, não poderão as características das mesmas divergir das que foram consideradas no referido laudo pericial, …

            Daí que, apesar das menções feitas pela recorrente à violação das disposições legais “ constantes nos artigos 410º n.º 2 al. a), b) e c), 368.º n.º 2, 374.º n.º 2 e 379º n.º 1 al. a), 127º todos do C.P.P.,.” por inexistência de qualquer tipo de concretização susceptível de ser enquadrada na densificação normativa contida em tais preceitos legais, quer no corpo da motivação do recurso, quer nas respectivas conclusões, não poderão ter-se por impugnadas as características das ditas armas que o tribunal a quo levou em consideração aquando da ponderação  da responsabilidade criminal da arguida e ora recorrente BB.

            …


*

           

*

*


            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA e BB, e, em consequência:

1. Negar provimento aos mesmos, confirmando-se a sentença recorrida.

            2. Condenar os recorrentes nas custas dos recursos, fixando a taxa de justiça individual em 4 UCs ( artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).


*

*


                                   Coimbra, 7 de junho de 2023

               ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

( Maria José Guerra  – relatora)

                   (Helena Bolieiro – 1ª adjunta)

                    ( Rosa Pinto – 2ª adjunta )