Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1898/16.6T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
AUTENTICAÇÃO
ADVOGADO
MANDATÁRIO JUDICIAL
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 5, 46, 70 C NOTARIADO, 90 EOA, 38 Nº1 DL Nº 76-A/2006 DE 29/12
Sumário:
1 - A proibição prevista no artº 5º nº1 do Código do Notariado, aplicável ex vi do artç 38º do DL 76-A/2006 de 29.12 reporta-se apenas ao ato autenticado em si mesmo considerado, ie., ao seu próprio conteúdo substancial, e não aos atos externos ao mesmo, descritos pelo advogado certificante - vg. sobre o comparecimento na sua presença dos outorgantes do documento e a assinatura perante si - , que certificam a sua veracidade e autenticidade formal.
2 - O facto de o advogado certificador ser mandatário de um dos outorgantes, não lhe atribui, ipso facto, liminar e aprioristicamente, qualquer interesse, direto ou indirecto, no negócio ínsito no instrumento certificado, devendo, se assim qualquer interessado não o entender, provar a sua existência.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 1898/16.6T8Vis-B.C1


DECISÃO DO RELATOR NOS TERMOS DO ARTº 652º Nº1 AL. C) DO CPC.

1.
D (…) Unipessoal, Ldª instaurou contra A (…) execução para pagamento de quantia certa.

Este deduziu embargos de executado.
Nos quais, para além do mais, invocou a inexequibilidade do título dado à execução – instrumento particular de confissão de dívida e acordo de pagamento - com o fundamento de o mesmo ter sido autenticado por ilustre advogada que, na altura, era mandatária da exequente.

Em sede de audiência prévia este fundamento foi indeferido.

Tendo na decisão atinente sido invocados os seguintes argumentos:
«Desde logo porque não foi arguida a falsidade do ato, nem foi invocada qualquer causa que pudesse importar, sem mais, a nulidade do referido ato.
O facto da exequente ser cliente da Ilustre Advogada que subscreveu o termo de autenticação não significa que a mesma não tenha cumprido com os deveres que para si resultam do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
Acresce que o artigo 5.º, n.º1 e 2 do Código de Notariado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º207/95, de 14 de agosto), contrariamente ao sustentado pelo embargante, não têm aplicação ao presente caso, pois que visa apenas os casos em que do reconhecimento/autenticação resulte um interesse direto ou indireto no ato reconhecido e não um qualquer interesse direto/indireto emergente do exercício da própria profissão, tanto mais que os advogados estão obrigados a um conjunto de normas imperativas, designadamente o de não advogar contra o direito (artigo 90.º, n.º2, a) do EOA) e o de recusar a prestação de serviços quando suspeitam seriamente que a sua atuação vise a obtenção de resultados ilícitos (artigo 90.º, n.º2, d) EOA).
Dado que, como se referiu, não resulta dos autos que a intervenção da Exma. Sra. Advogada subscritora tenha violado algum dos referidos preceitos, improcede a invocada nulidade.
A omissão dos elementos a que alude o artigo 46.º, n.º1 do Código de Notariado (estado civil, naturalidade e residência habitual) não importa a nulidade do ato, por não se integrar em nenhuma das hipóteses contempladas no artigo 70.º do referido diploma legal, constituindo, por conseguinte, mera irregularidade que não contende com a validade do documento.»

2.
Inconformado recorreu o embargante.
Rematando as suas alegações com as seguintes, sinópticas, conclusões:
1ª - É indubitável um interesse, ainda que indirecto, da ilustre advogada no ato notarial por si praticado.
2ª –Uma vez que à data da prática dos atos notariais era mandatária da recorrida.
3ª – Tanto mais que nos embargos o executado coloca em causa todo o conteúdo do documento elaborado e autenticado pela ilustre mandatária.
4ª – Nas funções notariais a independência tem de ser assegurada não do ponto de vista técnico mas também económico jurídico pois que só assim se acautelará o relevante interesse público subjacente à fé pública que deve merecer a certificação dos documentos ou o reconhecimento das assinaturas.
5ª – Parece evidente que a autenticação ou a certificação de documentos e/ou o reconhecimento de assinaturas têm de ser praticados por quem se encontre livre de qualquer subordinação, seja ela técnica, jurídica, ou económica.
6ª Assim, quando é chamado a certificar um documento, ou a reconhecer determinada assinatura, o advogado não pode estar na situação de mandatário do interessado ou beneficiário na autenticação ou na certificação; ou seja, não pode ser mandatário no âmbito do processo no qual o documento que autenticou ou certificou vai ser utilizado como título executivo.
7ª – A nulidade da autenticação acarreta a inexistência ou a insuficiência do título executivo, conduzindo à extinção da instância executiva.

3.
Decidindo.
3.1.
O recurso não tem qualquer cabimento, mostrando-se perfeitamente peregrino e, assim, meridianamente, improcedendo.
Certo é que, com diz o recorrente -, quiçá, o único ponto relevante em que está certo - os poderes de autenticação conferidos, vg. aos advogados, pelo artº 38º nº1 do DL 76-A/2006 de 29.12, devem ser exercidos nos termos da lei notarial.
Ora o preceito invocado é o artº 5º dado Código do Notariado.
Estatui ele:
«Casos de impedimento.
1 - O notário não pode realizar actos em que sejam partes ou beneficiários, directos ou indirectos, quer ele próprio, quer o seu cônjuge ou qualquer parente ou afim na linha recta ou em 2.º grau da linha colateral.
2 - O impedimento é extensivo aos actos cujas partes ou beneficiários tenham como procurador ou representante legal alguma das pessoas compreendidas no número anterior.
3 - O notário pode intervir nos actos em que seja parte ou interessada uma sociedade por acções, de que ele ou as pessoas indicadas no n.º 1 sejam sócios, e nos actos em que seja parte ou interessada alguma pessoa colectiva de utilidade pública a cuja administração ele pertença.»
Uma simples e perfunctória atuação exegética sobre tal preceito, demonstra-nos, clara e inequivocamente, que a proibição se reporta, única e exclusivamente, ao interesse do mandatário no ato autentica(n)do em si mesmo considerado, ie., ao seu próprio conteúdo substancial.
Na verdade, maior alcance, abrangência e amplitude, como, vg. o/a que ora é pretendido/a pelo recorrente não podem ser retirados, pois que a letra da lei não o permite, dela assim não podendo ser extraído outro pensamento legislativo que não o único que, claramente, encerra – artº 9º nº2 do CC.
3.2.
O caso vertente é, aliás, paradigmático da sem razão do insurgente.
Versus o alegado pelo recorrente, a ilustre advogada não elaborou o documento dado à execução.
Efetivamente, o termo de autenticação limita-se a atestar que os outorgantes do instrumento de confissão de dívida e do acordo de pagamento compareceram perante a ilustre advogada e se identificaram e assinaram o instrumento e o termo de autenticação na sua presença.
Estamos, pois, perante singelos factos, externos ao teor do instrumento/documento, e que apenas se atêm à sua veracidade e autenticidade formal.
Destarte, é evidente que tais afirmações e constatações verbalizadas/certificadas pela ilustre advogada, em si e só por si, não lhe conferem ou atribuem qualquer interesse, direto ou indirecto, e seja ela, ou não seja, mandatária de qualquer dos intervenientes/outorgantes no/do instrumento.
Obvia, natural e intuitivamente que a simples qualidade de mandante de uma das partes por banda da advogada não a inibe de certificar factos singelos, concretos e objectivos como os referidos: presença das pessoas, sua identificação e assinaturas perante si.
O conteúdo do instrumento é, apenas e somente, definido pelas partes e, pelo menos presuntivamente – presunção que se estiver errada o interessado tem de ilidir - a advogada certificante da sua autenticidade formal, nada terá a ver com ele, pelo menos na perspectiva de o mesmo lhe poder, ou não, interessar, ou seja, com ele e por causa dele, ganhar ou perder algo.
Se o recorrente entende que assim não é e a advogada, máxime, porque é mandante de uma das partes, tem interesse na certificação, e esta, apenas ou essencialmente, foi determinada por este interesse, tem de, concretamente, alega-lo e prová-lo.
A tese do recorrente parece querer lançar um labéu de, abstracta, apriorística e liminar inidoneidade e infidedignidade sobre a atuação dos ilustres advogados, o que não é de aceitar, mesmo se forem mandatários.
Pois que, como mais uma vez bem se expressa na decisão, tal não é suposto que assim aconteça, quer por virtude da concessão de uma presumida qualidade de pessoa de bem, quer pelo presumido respeito e cumprimento dos critérios legais e deontológicos que regem o exercício da sua profissão.
Esta desconfiança, levada ao extremo e para outros campos probatórios, vg. o testemunhal, descambaria na impossibilidade de produção de tais meios, ou, ao menos, na sua liminar e apriorística desacreditação.
Pois que a vida é feita de uma complexa teia de interesses, diretos e indirectos, conscientes ou, até, subconscientes, materiais ou morais, lato sensu, determinados por múltiplos factores, como sejam as simpatias e antipatias, as relações de amizade ou inimizade, as relações familiares, etc.
A verdade judicial é uma verdade relativa, a verdade possível, pois que a decisão é, ou pode ser, condicionada por uma plêiade de factores, alguns dos quais não percursores da sua justeza.
Mas tal é inelutável, devendo o juiz, para minimizar este risco, ter a capacidade e a sagacidade, com a exigível contribuição dos demais atores judiciários, para distinguir o «trigo do joio».
Não pode é adotar-se uma postura maniqueísta extrema e desconfiar-se de tudo.
Enfim, considerando a certificação destes factos, o vício que poderia emergir, não é o do interesse da certificante no teor do documento, mas antes, como outrossim bem se menciona na decisão, o da veracidade ou falsidade daqueles.
Ou seja: compareceram, ou não, as pessoas? identificaram-se ou não? assinaram ou não?
Ora quanto a isto o recorrente diz: nada.
O que até admite a conclusão que tal autenticação condiz com o que, na realidade e verdade, se passou.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

4.
Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.
I - A proibição prevista no artº 5º nº1 do Código do Notariado, aplicável ex vi do artç 38º do DL 76-A/2006 de 29.12 reporta-se apenas ao ato autenticado em si mesmo considerado, ie., ao seu próprio conteúdo substancial, e não aos atos externos ao mesmo, descritos pelo advogado certificante - vg. sobre o comparecimento na sua presença dos outorgantes do documento e a assinatura perante si - , que certificam a sua veracidade e autenticidade formal.
II - O facto de o advogado certificador ser mandatário de um dos outorgantes, não lhe atribui, ipso facto, liminar e aprioristicamente, qualquer interesse, direto ou indirecto, no negócio ínsito no instrumento certificado, devendo, se assim qualquer interessado não o entender, provar a sua existência.

5.
Decisão.
Termos em que se julga o recurso improcedente e se confirma a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2018.07.10.


Carlos Moreira ( Relator )