Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/21.8PFLRA-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SENTENÇA
DESPACHO
IRREGULARIDADE
MEDIDA DE COACÇÃO
SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA DE COACÇÃO
CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ ...
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 97.º, N.º 1 E 4, 123.º, 191.º, N.º 1, 193.º, N.º 1, 212.º, N.º 1 E 3, 379.º, N.º 1, ALÍNEA C), E 380.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – A omissão de pronúncia a que se refere artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal constitui uma nulidade da sentença e quanto a estas nulidades não existe norma de conteúdo idêntico à do n.º 3 do artigo 380.º do mesmo código.

II – Não sendo a decisão sobre o pedido de alteração de medida de coacção uma sentença, a eventual omissão de pronúncia de que tal despacho padeça tem que ser decidida à luz do princípio geral enunciado no n.º 4 do artigo 97.º do Código de Processo Penal.

III – O que a lei exige no n.º 4 do artigo 97.º do Código de Processo Penal é que o juiz indique, de forma compreensível, os factos e o direito relevantes para o que decidiu, relativamente à questão concreta apreciada no acto decisório, sendo esta questão concreta que deve ser objecto do seu [do juiz] discurso argumentativo, sob pena de irregularidade, sujeita ao regime do artigo 123.º do mesmo código, arguível no prazo de três dias previsto no seu n.º 1, sob pena de sanação.

IV – As medidas de coacção visam assegurar as exigências processuais de natureza cautelar, devendo ser, em concreto, necessárias e adequadas a tais exigências e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (artigos 191.º, n.º 1, e 193.º, n.º 1) e tendo, necessariamente, natureza temporária.  

V – Depois de decretada e transitada a respectiva decisão, a medida de coacção fica sujeita à cláusula rebus sic stantibus, o que vale dizer que só pode ser revogada se tiver sido aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei, ou se tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação, e que só pode ser substituída por outra medida, menos grave, se e quando tenha ocorrido uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º do Código de Processo Penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

… o arguido AA … foi submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 2 de Dezembro de 2022, vindo no respectivo termo, e por despacho do Mmo. Juiz de instrução, a ser determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, por estar fortemente indiciada a prática de um crime de tráfico, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro e existir perigo de continuação da actividade criminosa.

Em 19 de Fevereiro de 2023, o arguido peticionou a alteração da medida de coacção de prisão preventiva, com fundamento na circunstância de poder passar a residir na aldeia de ..., concelho ..., em cada de sua avó materna, aldeia esta situada a mais de duzentos quilómetros de ..., o que esbateria o invocado perigo de continuação da actividade criminosa, determinante da não aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, requerendo que, nos termos do art. 212º, nº 1, b) do C. Processo Penal, fosse alterada a medida de coacção de prisão preventiva, passando a estar sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, na residência da referida familiar, cumulada com a medida de coacção de proibição de contactos com indivíduos conotados com o tráfico e o consumo de estupefacientes.

Por despacho de 23 de Fevereiro de 2023, o Mmo. Juiz de instrução indeferiu o requerido, mantendo a decretada medida de coacção de prisão preventiva.


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            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

               …

5. Veio o arguido requerer a alteração da medida de coação aplicada, com fundamento na alteração da sua residência …

7. Tal facto enfraquece e bastante o perigo da continuação da actividade criminosa, na medida em que não é possível que os consumidores façam mais de 200 km para comorarem a sua dose diária ao recorrente.

8. De facto, o tribunal não se pronuncia sobre se a aplicação da MC de OPHVE em morada distante em 230 KM enfraquece ou não tal perigo, nem tão pouco se pronunciou quanto à adequação ou não da OPHVE na tal morada em cumulação com a proibição de contacto com indivíduos conotados com o trafico de produto estupefaciente – e nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal – nulidade essa que aqui se argui para todos os efeitos legais.

9. … cabia ao tribunal fundamentar em que medida tal facto superveniente não faz com que o perigo de continuação da actividade criminosa se tenha desvanecido, uma vez que como resulta da experiência e do normal acontecer um consumidor que viva em ... não faz 230 km para comprar a droga que consome.

12. No entanto, entendeu o Tribunal que a alteração da residência não acautela o elevado perigo de continuação a atividade criminosa, porque não se permite com concluir que a “tentação” deixou de existir.

13. Mas se assim é, a medida de coação de prisão preventiva também não permite acautelar o perigo de continuação da atividade criminosa, isto porque, a “tentação” poderia continuar e o arguido proceder ao tráfico de produto estupefaciente no interior do EP, onde a venda de droga se faz a larga escala e o rendimento é bem superior, pois o preço pelo qual é vendida é muito, muito superior e os seus fornecedores, imagine-se, estão em prisão preventiva no mesmo EP. Surreal a justificação da “tentação”!!!


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público …


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            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

           

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia;

- A verificação dos pressupostos da substituição da medida de coacção de prisão preventiva pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, cumulada com a medida de proibição de contacto com cidadãos conotados com o consumo e tráfico de estupefacientes.


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Para a resolução destas questões importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

            “(…).

            …

Em requerimentos autónomos, vieram os arguidos AA e BB requerer a alteração do seu estatuto coactivo, requerendo que, em vez de prisão preventiva, ficassem sujeitos a obrigação de permanência na habitação, em morada diferente e distante da que tinham à data dos factos, sujeita a vigilância por meios técnicos de controlo à distância – cfr. fls. 2750 a 2753 e 2755 a 2758.

Como se referiu na decisão que aplicou aos arguidos a prisão preventiva, «(…) estando em causa tráfico de estupefacientes, em grande parte executado a partir da residência de vários dos arguidos, é manifesto não ser adequada, em concreto, a sujeição dos arguidos a obrigação de permanência na habitação, mesmo que sujeita a vigilância por meios técnicos de controlo à distância. Essa vigilância incide sobre a permanência de pessoas num local, não sobre o que aí fazem (…)».

Sendo verdade que os arguidos, segundo se indicia, exerciam a actividade de tráfico de estupefacientes a partir da cidade ..., nada legitima considerar que inexiste perigo de continuação da actividade criminosa caso os arguidos requerentes passem a residir perto de ... e em .... Tanto quanto se indicia, os arguidos requerentes dedicavam-se, em exclusivo, ao tráfico de droga, auferindo proventos muito acima do que conseguiriam com uma actividade legal. Nada permite concluir que essa “tentação” deixou de existir e que a alteração de residência acautele suficientemente um elevado perigo de continuação da actividade criminosa.

Reitero: a alteração do estatuto coactivo dos arguidos impõe uma alteração do condicionalismo que motivou a sua implementação. Não basta indicar residências alternativas para considerar alterado o que se disse aquando da aplicação da prisão preventiva: que o tráfico era feito a partir da residência dos arguidos e, por isso, a obrigação de permanência na habitação é inadequada ao acautelamento do perigo de continuação da actividade criminosa.

(…)”.


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            Importa igualmente ter presente alguma da factualidade relevada no despacho de 2 de Dezembro de 2022, que determinou que o recorrente ficasse sujeito à medida de coacção de prisão preventiva. Assim, aí foi considerado fortemente indiciado, que:

Por último, cabe dizer que, por acórdão desta Relação, de 22 de Fevereiro de 2023, foi julgado improcedente o recurso interposto do despacho de 2 de Dezembro de 2022, que decretou ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva.


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            Da nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia

            1. Alega o recorrente – conclusões 6 a 8 – que, tendo requerido a alteração da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi decretada nos autos, para a medida de obrigação de permanência na habitação com utilização de meios técnicos de controlo à distância, cumulada com a proibição de contactos com pessoas conotadas com a venda e consumo de estupefacientes, com fundamento na alteração da sua residência, de ..., área onde lhe é imputada a prática de tráfico, para ..., portanto, a cerca de 230 km daquela cidade, assim se enfraquecendo bastante o perigo de continuação da actividade criminosa cuja afirmação suportou a aplicação da prisão preventiva, não tendo o tribunal a quo, no despacho recorrido, emitido pronúncia sobre este enfraquecimento e sobre a adequação ou não ao caso, das pretendidas medidas de coacção substitutivas daquela outra, dando causa a nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, c) do C. Processo Penal.

            Com ressalva do respeito devido, não assiste razão ao recorrente. Explicando.

            Começamos por referir que a omissão de pronúncia a que se refere o invocado art. 379º, nº 1, c) do C. Processo Penal, constitui uma nulidade da sentença (como resulta da respectiva epígrafe e do corpo do referido número), e quanto a estas nulidades, não existe norma de conteúdo idêntico ao do nº 3 do art. 380º do mesmo código.

            Assim sendo, porque é inquestionável que a decisão recorrida é um despacho e não, uma sentença (art. 97º, nº 1, a) e b) do C. Processo Penal), a questão submetida pelo recorrente ao conhecimento da Relação, tem que ser decidida à luz do princípio geral enunciado no nº 4 do mesmo artigo).

            Dispõe este nº 4 que, os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. O que aqui a lei exige é que o juiz indique, de forma compreensível, os factos e o direito relevante para o que decidiu, relativamente à questão concreta apreciada no acto decisório sendo, pois, esta questão concreta que deve ser objecto do seu [do juiz] discurso argumentativo.

            Quando tal não acontece, quando este discurso não contemplou a questão concreta submetida ao conhecimento do julgador, foi cometida omissão de pronúncia, desrespeitando aquele o comando ínsito no nº 4 do art. 97º do C. Processo Penal, assim gerando uma irregularidade, sujeita ao regime do art. 123º do mesmo código, portanto, arguível no prazo de três dias, previsto no seu nº 1, sob pena de sanação.

            Em todo o caso, sempre diremos que, basta a simples leitura do despacho recorrido, para constatar que o Mmo. Juiz a quo se pronunciou sobre a concreta questão suscitada pelo recorrente …

Como se vê, foi expressamente considerada a possibilidade de mudança de residência do recorrente para ... e ponderada a repercussão que esta mudança poderia ter na densidade do perigo de continuação da actividade criminosa, tendo-se concluído, face à natureza e relevância do tráfico indiciariamente praticado pelo recorrente, não ser possível concluir que tal mudança de residência e consequente aplicação da obrigação de permanência na habitação e proibição de contactos com pessoas relacionadas com o tráfico e consumo de estupefacientes, desse integral satisfação às exigências cautelares in casu requeridas.

Em suma, o tribunal a quo pronunciou-se sobre a concreta questão, cujo conhecimento diz o recorrente ter sido omitido, pelo que se mostra observado o disposto no nº 4 do art. 97º do C. Processo Penal, improcedendo, pois, a invocada [mas inexistente, pelas sobreditas razões] nulidade.


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            Da verificação dos pressupostos da substituição da medida de coacção de prisão preventiva pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, cumulada com a medida de proibição de contacto com cidadãos conotados com o consumo e tráfico de estupefacientes

            2. Alega o recorrente – conclusões 9 a 17 – que tendo o tribunal considerado que, residindo em ..., traficava estupefacientes nesta cidade e que, por isso, a sua sujeição à medida de obrigação de permanência na habitação com utilização de meios técnicos de controlo à distância não acautelava de forma conveniente o perigo de continuação da actividade criminosa, indicando agora uma nova residência, nos ..., a mais de 230 km de distância de ..., e com um tempo de viagem de cerca de 2h27, seguramente que aquele perigo ficará claramente atenuado, pois, não só não conhece ninguém nos ..., como nenhum consumidor residente em ..., pelo tempo e distância envolvidos, o irá procurar nessa localidade, para lhe comprar estupefaciente se abastecer de estupefacientes, pelo que, a referida medida de obrigação de permanência na habitação, coadjuvada com a medida de proibição de contactos com pessoas relacionadas com o tráfico e o consumo, pelo que, neste diferente circunstancialismo, são as medidas de obrigação de permanência na habitação e de proibição de contactos suficientes para acautelarem o perigo de continuação da actividade criminosa.

            Vejamos.

            As medidas de coacção visam assegurar as exigências processuais de natureza cautelar, devendo ser, em concreto, necessárias e adequadas a tais exigências e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (arts. 191º, nº 1 e 193º, nº 1 do C. Processo Penal), e tendo, necessariamente, natureza temporária. 

           

            O C. Processo Penal prevê no art. 212º os casos de revogação e substituição da medida de coacção.

            Na alínea a) do seu nº 1 está prevista a situação de imediata revogação da medida de coacção, por ter sido aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei, o que significa que a análise da ilegalidade se deve reportar ao momento da aplicação da medida. Na alínea b) do seu nº 1 está prevista a situação de imediata revogação da medida de coacção, por terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação, o que, necessariamente, implica que a análise a efectuar se reporte a um momento – a acontecimentos – posterior ao da aplicação da medida.

            Por sua vez, o nº 3 do mesmo artigo prevê a situação de substituição da medida de coacção por outra menos grave, quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação.

           

Assim, depois de decretada a prisão preventiva – nos autos, foi-o, como sabemos, por despacho de 2 de Dezembro de 2022 – de transitada a respectiva decisão – pela sua confirmação, operada pelo acórdão desta Relação de 22 de Fevereiro de 2023 –, tal medida de coacção fica sujeita à cláusula rebus sic stantibus, o que vale dizer que só pode ser revogada se tiver sido aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei, ou se tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação (alíneas a) e b) do nº 1 do art. 212º do C. Processo Penal), e que só pode ser substituída por outra medida, menos grave, se e quando tenha ocorrido uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação (nº 3 do mesmo artigo).

Embora o recorrente indique, entre as normas violadas pelo despacho recorrido, a do art. 212º, nº 1, a) do C. Processo Penal, certo é que a questão por si suscitada foi colocada na perspectiva da substituição da medida de coacção de prisão preventiva, como resulta, quer das conclusões formuladas, quer da argumentação levada ao corpo da motivação, sendo certo que entre as normas violadas também incluiu a do nº 3 do mesmo art. 212º.

Aqui chegados.

3. Como vimos, o recorrente suporta a atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua sujeição a prisão preventiva nas seguintes considerações:

- Estando indiciado por tráfico de estupefacientes em ..., onde reside, incluindo, na sua residência, a aplicação da referida medida de coacção, em detrimento da de obrigação de permanência na habitação ficou a dever-se à consideração de que esta medida de coacção não daria satisfação necessária às exigências cautelares requeridas pelo verificado perigo de continuação da actividade criminosa;

- A mudança da sua residência para a remota localidade de ..., concelho ..., onde não conhece ninguém, e onde, pela distância geográfica – cerca de 230 km – e pela duração da viagem – cerca de 2h27 – se torna inviável a deslocação dos consumidores que o procuravam em ..., reduz significativamente aquele perigo, viabilizando a sua sujeição agora, à obrigação de permanência na [nova] habitação conjugada com a proibição de contactos com pessoas ligadas ao tráfico e ao consumo de estupefacientes.

Concedemos que a distância entre a cidade ... e a vila de ... excederá os 200 km, nem todos percorridos em auto-estrada – factos que a mera consulta a qualquer mapa rodoviário confirmará e que, por isso, temos por notórios. Assim, é igualmente de aceitar que o tempo da deslocação entre as duas localidades, em veículo automóvel, excederá as duas horas.

É, pois, evidente que, no que respeita ao perigo de continuação da actividade criminosa, não é de equacionar, em termos de razoabilidade, a possibilidade de consumidores da zona de ..., antigos “clientes” do recorrente, se passarem a deslocar aos ..., para se abastecerem de estupefaciente junto dele. Com efeito, a tem que ser colocada noutros termos.

Resulta efectivamente indiciado – como tal foi considerado no despacho de 2 de Dezembro de 2022, que decretou a prisão preventiva – que o recorrente, residente em ..., ..., recebia nesta residência os estupefacientes que o seu fornecedor lhe trazia, para posterior revenda, sendo as vendas por si feitas, umas vezes na residência de “clientes”, outras nas traseiras da sua habitação, outras nesta e outras, ainda, em locais públicos.

Resulta também indiciado que o recorrente, não exercendo qualquer actividade lícita da qual pudesse obter rendimentos, era possuidor de um veículo ..., de matrícula relativamente recente, e que no período de quinze dias – no dia 16 e no dia 30 de Novembro de 2022 – comprou a um seu fornecedor – o co-arguido CC – no primeiro dia, € 3704 de estupefaciente não determinado, e no último dia, € 10160 de haxixe, correspondendo a quarenta placas, com o peso total de 4267 gramas.

É, pois, evidente, a sua considerável capacidade financeira para adquirir significativas quantidades de droga que, por sua vez, significam a existência de mercados alargados.

Por outro lado, o recorrente efectuava o seu abastecimento de substâncias ilícitas, a fornecedores residentes na margem esquerda do rio Tejo, Seixal – área da grande Lisboa –, portanto, a considerável distância da área da sua residência.

Pois bem. Considerando a capacidade financeira do recorrente, os contactos de que dispõe e a sua capacidade de iniciativa, revelada pela dimensão do negócio, apesar da sua relativa juventude, com facilidade lograria criar nos ..., uma estrutura organizativa idêntica à de que dispunha em ..., passando a aí exercer a mesma actividade ilícita, ainda que com a movimentação restrita à nova residência.

Com efeito, não só não está demonstrado que o recorrente não conheça ninguém nos ... – e assim não será, em absoluto, pois, no limite, sempre conhecerá a familiar para cuja residência pretende ir – como o conhecimento de alguém nesta localidade não é imprescindível para o exercício de tal actividade. É que também na região de ..., como, aliás, e lamentavelmente, em todas as regiões do país, com maior ou menor escala, o problema do tráfico e do consumo de droga está presente. E, como é sabido, neste ramo de actividade, as notícias correm céleres.

Em suma, pelas sobreditas razões, a mudança de residência do recorrente, de ..., ..., para os ... – sujeito agora à obrigação de permanência na habitação com utilização de meios técnicos de controlo à distância e à obrigação de contactos com pessoas relacionadas com o consumo e tráfico de estupefacientes – não significa uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, uma vez que se mantém o perigo de continuação da actividade criminosa [apenas, agora, com diversa localização].

Assim, persistindo o perigo de continuação da actividade criminosa, atenta a cláusula rebus sic stantibus a que a medida de coacção de prisão preventiva está sujeita, deve a mesma ser mantida.


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            Improcedem, pois, as conclusões do recurso.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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            Custas pelo recorrente, fixando-se, individualmente, a taxa de justiça em 3 UCS. (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Coimbra, 24 de Maio de 2023



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Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator –, Maria José Guerra – adjunta – e Helena Bolieiro – adjunta