Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALBERTO RUÇO | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA LIVRE CONVICÇÃO PROVA TESTEMUNHAS | ||
Data do Acordão: | 12/11/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.607 Nº4 CPC | ||
Sumário: | Os depoimentos que descrevem situações factuais não corroboradas por outros elementos de prova ou pelas regras da experiência e que são praticamente impossíveis de refutar, por terem ocorrido, segundo os depoentes, no interior de espaços domésticos, apenas perante as pessoas que os marram, carecem, em regra, de capacidade para a formação da convicção do juiz – n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil –, no sentido dos factos afirmados terem existido. | ||
Decisão Texto Integral: | I. Relatório ([1]) A) A Executada deduziu embargos à execução que lhe move a recorrida com o fim de ver a execução ser julgada extinta. Alegou que os cheques que servem de base à execução foram apresentados a pagamento fora do prazo de 8 (oito) dias, posteriores à data da emissão ou da entrega. O pagamento deles não foi exigido nem está demonstrado que foi recusado por qualquer dos bancos sacados, pelo que, carecem dos requisitos de exequibilidade. Acrescenta que, as vendas ocorreram mediante pagamento a pronto ou em prestações, servindo os cheques de garantia. Alega que, a executada procedeu ao pagamento integral, sem que lhe tenham sido devolvidos os cheques. Por último, alega a prescrição presuntiva, prevista no artigo 317.º, al. b), do Código Civil. A Exequente contestou os embargos pugnado pela sua improcedência. No final foi proferida sentença a julgar os embargos improcedentes com fundamento no facto de não ter resultado do julgamento que a dívida exequenda esteja paga, no todo ou em parte. B) É desta decisão que vem interposto o presente recurso, cujas conclusões são as seguintes: «Deve ser reapreciada a prova testemunhal cujos depoimentos foram ora transcritos; Confirmar-se a sua veracidade; Confirmar-se que a embargante comprou produtos à embargada; Que foram pagos em prestações; Que o valor das compras estava todo pago; Que o cheque de garantia que abusivamente a executada manteve em sua posse devia ter sido entregue a embargante. Declarando-se afinal, sempre com reapreciação da prova, que ora se requer, que estas prestaram declarações sérias e não comprometidas com nada nem com ninguém, e por via disso dar os embargos por provados e que a embargante nada deve à embargada». C) A Recorrida não contra-alegou. II. Objeto do recurso Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes: 1 – Em primeiro lugar, cumpre analisar a impugnação da matéria de facto que consiste em verificar se há fundamento para declarar provado «Que o valor das compras estava todo pago». 2 – Em segundo lugar, face à resposta dada à questão anterior, cumpre verificar se deve manter-se ou revogar-se a decisão recorrida. III. Fundamentação A) Vejamos a impugnação da matéria de facto, que consiste em verificar se, face à prova produzida, o tribunal deve declarar provado «Que o valor das compras estava todo pago». Cumpre começar por observar que a argumentação destinada a fundamentar a impugnação da matéria de facto é frágil, porquanto é feita em termos vagos, como vaga foi já a base factual constante da petição dos presentes embargos. Com efeito, a Embargante não recorta e descreve factos devidamente situados no espaço e no tempo dos quais se possa concluir que em «certo local» e em «certo tempo» a Executada fez o pagamento de «tantos euros» à Exequente. A Executada a diz no artigo 17.º da petição de embargos que «Embora a ora executada haja satisfeito, integral e pontualmente, as prestações acordadas, o certo é que a exequente manteve em seu poder, abusivamente, esses cheques». Ora, esta afirmação sobre o pagamento (satisfação integral das prestações acordadas) em boa verdade nem contém em si um facto, consistindo apenas numa afirmação com valor jurídico. Dir-se-ia que a impugnação da matéria de facto podia ser decidida negativamente sem mais considerações, porque não há, de facto, qualquer impugnação de factos, nem podia haver porque a petição não contém factos dos quais se pudesse concluir ter sido paga alguma quantia. Sendo assim, o tribunal teria de formar a sua convicção apenas de acordo com a existência dos cheques apresentados pela Exequente. E formava a convicção no sentido de que existia uma dívida da Executada para com a Exequente, porquanto a emissão dos cheques por parte da Executada e a sua posse por parte da Exequente só se explica, no contexto factual relatado nos autos e que é consensual (como é o caso da aquisição de mercadoria por parte da executada à exequente), porque a Executada sabia e reconheceu que tinha uma dívida para com a Exequente correspondente à mercadoria que a Executada recebeu e ao montante constante dos cheques e, por isso, os emitiu e entregou à Exequente. Não tendo a Executada alegado quaisquer factos de onde o tribunal pudesse concluir que tinham sido feitos pagamentos por conta dessa dívida, o tribunal não encontraria razões para alterar a convicção que fica exposta, resultante da existência dos cheques na posse da Exequente e respetivo contexto consensualmente assente entre as partes, e concluiria no sentido de que a dívida não estava paga, no todo ou em parte. Perante a omissão de alegação de factos, na petição de embargos, relativos ao pagamento, não era espetável que, em julgamento, as testemunhas concretizassem os factos que, a existirem, deveriam constar da petição. A ocorrer tal situação estar-se-ia, aliás, a inverter a lógica ou a ordem dos atos processuais, pois em primeiro lugar afirmam-se os factos e só posteriormente se apresentam as provas que houver acerca dos mesmos. Por isso, era de esperar que as testemunhas em julgamento, se depusessem sobre os pagamentos da executada, se referissem a eles também de modo vago. E foi o que aconteceu. A testemunha L (…), irmã da Executada, referiu que algumas vezes estando em casa da irmã, onde visitava o pai, viu a Exequente comparecer e a sua irmã entregar-lhe dinheiro; outras vezes a irmã deixava o dinheiro destinado à Exequente «escondido» e chegou a ouvir dizer à Exequente, dirigindo-se à Executada, que «estava tudo pago» e, ainda, que a sua irmã lhe pediu a devolução do cheque e um recibo de pagamento. A testemunha M (…) referiu que ouvia dizer à Executada que tinha já pago os cheques e que deixava dinheiro à Exequente em lugares combinados para esta o ir recolher; que um dia lhe perguntou se já tinha os recibos e como a resposta fosse negativa incentivou-a a pedir os recibos, o que a Executada fez ligando à Exequente a pedir os recibos, tendo sido audível para si a conversa ao telemóvel, tendo ouvido a Exequente dizer que passaria em (...) para lhe entregar os recibos. A testemunha G (…) também referiu que ouviu a Exequente dizer para a Executada, em casa desta, onde a testemunha ia ajudar a fazer limpezas domésticas, que o cheque estava quase pago. E é isto, no essencial, o que consta dos depoimentos. Estes depoimentos mostram-se incapazes de fundamentar a convicção do juiz no sentido de tal factualidade corresponder à realidade histórica, pelas seguintes razões: (I) Como é sabido, os depoimentos têm por função dar a conhecer uma certa representação da realidade, pelo que as declarações das testemunhas não são os factos tout court, nem as palavras têm a virtualidade de criar os factos na história: as palavras apenas podem estar ou não estar de acordo com a realidade. Sendo assim, logicamente que as declarações só por si não garantem a sua correspondência com a realidade. (II) O testemunho é prova porque os homens reconhecem aos outros homens a capacidade de percecionarem, guardarem e transmitirem, com relativa fidelidade, uma representação daquilo que observaram no passado. Porém, o juiz tem de colocar sempre a hipótese da representação comunicada pela testemunha não corresponder ao que efetivamente ocorreu. Por um lado, porque o homem tem a capacidade de ficcionar a realidade, ou seja, de a falsear, mentindo deliberadamente, por ação ou omissão, o que ocorre quando uma testemunha narra em tribunal factos que sabe serem inexistentes no todo ou em parte ou omite propositadamente factos relevantes que percecionou. (III) Ora, no caso em apreço os depoimentos prestados pelas testemunhas descrevem situações factuais impossíveis, na prática, de serem refutadas, pois os factos são descritos como tendo ocorrido no interior de um espaço doméstico, em dia e ano não determinados e apenas perante as pessoas que testemunharam. Ora, depoimentos que descrevem situações que na prática não podem ser refutadas por elementos probatórios de outra natureza, incluindo as regras da experiência, não têm, em regra, capacidade para determinarem a formação da convicção do juiz no sentido dos factos afirmados terem existido, salvo, como se disse, se existir corroboração por outros elementos probatórios, incluindo, repete-se, as regras de experiência. E quanto às regras da experiência cumpre dizer que não é comum alguém adquirir bens no montante de €18.100,00 (montante dos dois cheques), a pagar em prestações, e depois fazer pagamentos sem ficar com qualquer prova de ter feito esses pagamentos. Aliás, a Exequente juntou extrato da sua conta bancária através do qual se vê que a Executada em 2013-2-09, em 2014-07-25 e em 2014-08-23, fez depósitos nessa conta, de €100,00, €150,00 e €150,00, respetivamente. Verifica-se, por conseguinte, que a Executada sabia como precaver-se quanto à prova dos pagamentos que fazia. Pelo exposto, afigura-se apropriado ao caso dos autos manter a decisão recorrida quanto ao julgamento da matéria de facto, pois perante os cheques e a sua posse pela Exequente forma-se a convicção de que os mesmos mostram a existência da dívida alegada e as provas apresentadas não permitem formar a convicção de que a dívida foi paga para além das parcelas que a Exequente afirmou na petição executiva terem sido pagas pela Executada. B) 1. Matéria de facto – Factos provados 1- A Exequente/Embargada é comerciante e fazia venda ambulante em estabelecimentos, entre outros de saúde na região de Viseu, onde se deslocava ofertando os produtos e vendendo aos potenciais compradores, os produtos que consigo transportava. 2- As vendas operavam-se mediante pagamentos a pronto ou em prestações, o que, levava a que a Exequente tivesse uma conta-corrente que ela preenchia e guardava após cada negócio, entrada ou prestação. 3- Em complemento e para garantia do bom pagamento exigia a entrega de cheque que acautelasse o valor em divida, o qual seria devolvido no ato do pagamento integral (última prestação). 4- Nos anos, pelo menos, de 2006, 2007 e 2008, no exercício da sua atividade de comércio a retalho de têxteis em estabelecimentos especializados, a exequente vendeu à executada vários bens que esta previamente lhe encomendara. 5- As partes combinaram entre si o pagamento faseado da divida e a titulo de garantia do pagamento integral a executada emitiu e entregou à exequente dois cheques: - o cheque n.º (...) 01, sacado sobre a Y (...) , no valor de €13.800,00 (treze mil e oitocentos euros); e o cheque n.º (...) 02 sacado sobre o banco K (...) , no valor de €4.300,00, os quais servem de base à execução a que os presentes autos se encontram apensos (fls. 11 dos autos de execução). 6- A última prestação paga pela Executada/Embargante ocorreu em agosto de 2014, data a partir da qual a Exequente deixou de pagar. 7- A Exequente instaurou a execução a que os presentes autos se encontram apensos, em 12/05/2015, peticionando a quantia de €14.869,60, sendo o montante de €14.750,00 a título de capital. 8- A Executada/Embargante foi citada por carta registada com aviso de receção expedida em 12/06/2015. 2. Matéria de facto – Factos não provados (I) Que a executada/Embargante tenha procedido ao pagamento integral e que apesar disso a Exequente tenha mantido na sua posse os cheques. (II) Que a Executada/Embargante tenha sido interpelada para proceder ao pagamento da quantia Exequenda extrajudicialmente. C) Apreciação da questão objeto do recurso A reanálise do aspecto jurídico da sentença estava dependente da procedência do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto. Como a matéria de facto não sofreu alteração o recurso também improcede quanto ao seu aspecto jurídico, uma vez que não vem colocada em causa a solução jurídica exarada na sentença tendo em consideração a matéria de facto ai declarada provada. IV. Decisão Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pela Recorrente. * Coimbra, 11 de Dezembro de 2018
Alberto Ruço ( Relator ) Vítor Amaral Luís Cravo
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