Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
176/13.7GCGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: AMEAÇA
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 05/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 153.º DO CP
Sumário: I - Para a consumação do crime não é necessário que a ameaça seja proferida perante a pessoa ameaçada.
II - Essencial é que a ameaça chegue ao conhecimento da pessoa ameaçada, e o conhecimento pode chegar por qualquer meio, nomeadamente pelo relato de terceiro.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO
1.

Nos presentes autos o arguido A... foi absolvido da prática de um crime de ameaça agravada, dos art. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal.

Foi, ainda, absolvido do pedido de indemnização deduzido pela ofendida.

2.

Inconformado, o Ministério Público recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«1ª - Face à matéria de facto dada com provada e não provada, merece o nosso reparo a decisão ora em recurso;

2ª - Já que existe uma contradição insanável entre a factualidade provada e vertida na al. D) e a factualidade dada como não provada e constante do ponto 1);

3ª - Ou seja, concretizando: ...dirigindo-se a B... , declarou em tom grave e sério que havia de matar a sua ex-mulher C... e que a seguir se matava a si;

4ª - Para logo a seguir dizer que ao proferir a expressão referida em D), o arguido se tenha dirigido à sua ex-mulher C... ;

5ª - O "busílis" parece estar no verbo "dirigir";

6ª - Isto é, se o mesmo significa que tem de haver um "tete a tete" entre o agente ameaçador e o destinatário da ameaça, o visado;

7ª - Ou antes e bem ao invés, bastando tão somente que o meio utilizado seja idóneo, adequado, a provocar tal resultado, prescindindo-se da presença do visado a ouvir a expressão, o que no caso concreto nem sucedeu;

8ª - Sufragamos a segunda posição.

9ª - Donde se entenda que o arguido praticou o crime por que foi absolvido, porquanto se entende que agiu o mesmo com dolo e que este tem de fazer parte da matéria de facto dada como provada;

10ª - Existe, por isso, na decisão ora em recurso o apontado vício do artº 410º nº 2-b) do CPPenal;

11ª - Tendo ainda sido feita má interpretação das normas dos art. 153º nº 1 e 155º nº 1-a), ambos do C.Penal».

3.

O recurso foi admitido.

O arguido respondeu, defendendo a manutenção do decidido pois que as palavras que ele proferiu, embora versassem sobre a ofendida, foram dirigidas a terceira pessoa.

Nesta Relação, o Exmº P.G.A. requereu a revogação da decisão.

Alega que se verifica erro notório na apreciação da prova, conforme alegado no recurso, considerando os factos constantes dos pontos C), D) e E) da matéria provada e o ponto do nº 2 dos factos não provados.

Alega, ainda, haver contradição insanável entre o facto da al. D) da matéria provada e o facto do ponto 1 dos factos não provado e as al. D) e E) e o ponto 2 da matéria não provada: o que releva para a norma é que a vítima tenha tido conhecimento da ameaça que lhe foi dirigida e, perante as palavras proferidas, não se percebe como é possível afirmar que o arguido não agiu com dolo.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

4.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.


*


FACTOS PROVADOS

5.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«A) O arguido A... foi casado com C... , casamento esse que foi dissolvido por divórcio decretado no dia 25 de Junho de 2013.

B) No âmbito de tal divórcio foi decidido que a casa de morada de família do ex-casal, sita em (...) , Guarda, ficou adjudicada à referida C... .

C) No dia 31 de Agosto de 2013, pelas 20:55, o arguido dirigiu-se à residência da sua ex-mulher, em (...) , Guarda, a fim de lavar o seu veículo automóvel no respetivo logradouro.

D) Nessas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido, dirigindo-se a B... , declarou em tom grave e sério que havia de matar a sua ex-mulher C... e que a seguir se matava a si próprio.

E) Desde a ocasião supra relatada e em consequência das palavras proferidas pelo arguido, C... , por as ter ouvido, sente medo e receia encontrar-se com o arguido, temendo que este concretize o mal que anunciou contra a sua vida.

F) O arguido encontra-se desempregado desde Junho de 2013 e desde então não aufere qualquer rendimento, vivendo de ajudas económicas alheias, sendo que anteriormente exercia em nome individual a profissão de comerciante de pneus, mediante o que auferia rendimentos sensivelmente equivalentes ao salário mínimo nacional.

G) O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

H) Em consequência de ter ouvido o arguido e demandado proferir a expressão que se dá como provada, a demandante C... receia pela sua vida, encontrando-se amedrontada com o facto de o arguido e demandado se poder aproximar de si e cumprir o que anunciou.

I) No decurso dos presentes autos, a demandante deslocou-se à GNR da Guarda, ao escritório da sua advogada e aos serviços do Ministério Público junto deste tribunal.

J) O arguido é conhecido junto da comunidade em geral como sendo pessoa de bem, respeitada, respeitadora, considerada, honesta e humilde».

6.

E foram julgados não provados quaisquer outros factos com relevância para a causa, nomeadamente:

«1) Ao proferir a expressão referida em D), o arguido se tenha dirigido à sua ex-mulher C... .

2) O arguido tenha agido consciente e livremente, com intenção e vontade concretizadas de atemorizar a sua ex-mulher, constrangendo-a na sua liberdade pessoal, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.

3) Após os factos, o arguido e demandado se tenha revelado cada vez mais perturbado e envie (ou continue a enviar) mensagens para o telemóvel da demandante que lhe causem angústia e consternação.

4) Os factos que se deram como provados tenham perturbado um filho da demandante e do demandado, em relação ao qual a demandante se tenha visto obrigada a procurar ajuda psicológica para tentar ultrapassar a situação.

5) Em consequência dos factos que se deram como provados, a demandante tenha deixado por uns dias de conviver com amigos, por não estar em condições físicas e psíquicas para conviver socialmente, e até no seu local de trabalho estando sobressaltada com receio de que o arguido aí a fosse procurar.

6) A demandante tenha despendido a quantia de €200,00 na realização das deslocações que se referem em H).

7) O arguido sempre tenha sido muito amigo do seu filho.

8) O arguido sempre tenha tido um comportamento moral e social exemplar, sempre tendo sido adverso a mentiras e calúnias».

7.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:

«Quanto aos factos constantes da acusação que se dão como provados, como sendo no essencial os constantes dos itens A) a D), o tribunal baseou a sua convicção desde logo nas declarações prestadas pelo próprio arguido, o qual os confessou na totalidade, com a excepção apenas de ter dito que se matava, afirmando nesta parte que não se lembra se o disse ou não.

De todo o modo, os depoimentos prestados pelas testemunhas B... , C... e D... , foram absolutamente claros e peremptórios no sentido de que o arguido proferiu também esta última expressão, demonstrando as testemunhas um conhecimento directo de tal facto, não tendo sido contrariadas por qualquer outro meio de prova (nem sequer directamente, como se viu, pelo arguido), e por isso se deu também essa expressão como provada.

Aqui chegados, haverá agora contudo que efectuar uma precisão relevante, e que é a seguinte: na acusação e no pedido de indemnização civil deduzido (que dá a acusação como pressuposta) alega-se que, ao afirmar que havia de matar a sua ex-mulher C... e que a seguir se matava a si próprio, o arguido se dirigiu (directamente) à sua aludida ex-mulher C... .

No entanto, tal alegação não corresponde à realidade. Conforme resultou de forma absolutamente clara e unânime de toda a prova produzida, ao proferir as aludidas palavras, o arguido não se dirigiu à sua ex-mulher C... , mas sim à testemunha B... . Era em conversa unicamente com esta última que o arguido se encontrava, e não com a sua ex-mulher, sendo certo que o arguido teve como única destinatária da sua mensagem a aludida B... , e não a sua ex-mulher. É certo que igualmente decorreu dos depoimentos das três testemunhas C... , B... e D... que a primeira destas (bem como a terceira) casualmente ouviram o arguido afirmar o que afirmou, mas ouviram enquanto se encontravam ocultas nas proximidades, e sem que o arguido sequer tivesse conhecimento da sua presença.

Foi assim com base em tais elementos que se deu como não provado que o arguido se tenha dirigido à sua ex-mulher C... , e antes como provado que se dirigiu à testemunha B... , conforme o próprio arguido o declarou em audiência e foi confirmado por toda a prova testemunhal produzida.

Aqui chegados, e ainda quanto à matéria constante da acusação, como se viu, demos como não provado que o arguido tenha agido consciente e livremente, com intenção e vontade concretizadas de atemorizar a sua ex-mulher, constrangendo-a na sua liberdade pessoal, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.

Na verdade, como mais uma vez resultou unânime de toda a prova produzida, a expressão verbal aqui em causa foi proferida pelo arguido dirigindo-se a uma terceira pessoa que não a sua ex-mulher e, tanto quanto sabemos, o arguido nem sequer sabia que a sua ex-mulher estaria casualmente nas proximidades a ouvir as suas palavras. Nenhuma prova produzida nos permite sustentar sequer que o arguido tivesse a intenção de que as palavras que proferiu chegassem ao conhecimento da sua ex-mulher e aqui demandante C... . Esse conhecimento acabou por se verificar, mas não por vontade ou sequer com a aquiescência do arguido.

Quanto aos factos constantes do pedido de indemnização (e ainda da acusação) que são referidos em E) e H), quanto ao medo, receio e angústia sentidos pela demandante, baseámos a nossa convicção nos depoimentos prestados, quer pela própria demandante, quer pelas demais testemunhas B... e D... a esse respeito e nesse sentido. Tais depoimentos mostraram-se claros e peremptórios quanto a estes factos, com conhecimento directo dos mesmos e sem que tenham sido contrariados por qualquer outro meio de prova.

Pensamos que será suficientemente óbvio que não existe aqui qualquer incompatibilidade ou contradição com quaisquer outros factos, nomeadamente que hajam sido dados como não provados, na medida em que, como já se foi dizendo, resultou da totalidade da prova testemunhal produzida que a demandante C... , por mera casualidade e por se encontrar oculta nas proximidades, acabou por ouvir a expressão proferida pelo arguido afirmando perante terceira pessoa que a haveria de matar, e por isso é a nosso ver natural que a demandante tenha passado objectivamente a sentir o medo, receio e angústia que se dão como provados.

Prosseguindo, quanto ao facto referido em J) no sentido de que o arguido é conhecido junto da comunidade em geral como sendo pessoa de bem, respeitada, respeitadora, considerada, honesta e humilde, não só as testemunhas por si arroladas E... e F... demonstraram um conhecimento suficiente a este respeito, como também não foram esses depoimentos contrariados por qualquer outro meio de prova. Aliás, até a própria testemunha D... (ex-sogra do arguido) referiu que o arguido nunca lhe faltou ao respeito e sempre foi um bom genro durante os cerca de 20 anos de casamento que manteve com a sua filha, embora tenha sido um mau pai e um mau marido.

Relativamente ao facto que se dá como provado sob o item I) no sentido de que no decurso dos presentes autos, a demandante se deslocou à GNR da Guarda, ao escritório da sua advogada e aos serviços do Ministério Público junto deste tribunal, o seu teor resulta do próprio processado nos autos. Já contudo não se demonstrou de todo que as deslocações em causa tenham importado para ademandante um dispêndio de uma quantia concreta de €200,00 (ou qualquer outra), na ausência de qualquer prova que o sustentasse.

Relativamente aos demais factos que foram dados como não provados sob os itens 3) a 5), 7) e 8), entendemos que pura e simplesmente não foi produzida prova minimamente suficiente e cabal a seu respeito, de forma a que o tribunal em consciência pudesse dar tais factos como provados. Simplesmente não resultaram das declarações do arguido (demandado), nem dos depoimentos prestados pela demandante ou por qualquer das demais testemunhas inquiridas, nem de qualquer da demais prova junta aos autos. Aliás, resultou até da prova testemunhal produzida que, após a ocorrência dos factos aqui em causa, o arguido não importunou a sua ex-mulher aqui demandante de qualquer forma minimamente relevante.

Por fim, quanto às condições pessoais e económicas do arguido, foi relevante o respectivo depoimento, não existindo elementos para dele duvidar nesta parte, e quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido, foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos».


*

DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação as questões a decidir respeitam à verificação dos vícios da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova, da al. b) e c) do nº 2 do art. 410º do C.P.P.


*

Como resulta, o tribunal recorrido deu como provado que «no dia 31 de Agosto de 2013, pelas 20:55, o arguido dirigiu-se à residência da sua ex-mulher, em (...) , Guarda, a fim de lavar o seu veículo automóvel no respetivo logradouro» e «nessas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido, dirigindo-se a B... , declarou em tom grave e sério que havia de matar a sua ex-mulher C... e que a seguir se matava a si próprio» (al. C) e D)).

Também julgou provado que em consequência deste episódio a ofendida «sente medo e receia encontrar-se com o arguido, temendo que este concretize o mal que anunciou contra a sua vida» (al. E)).

Por outro lado o tribunal julgou não provado que:

«1) Ao proferir a expressão referida em D), o arguido se tenha dirigido à sua ex-mulher C... .

2) O arguido tenha agido consciente e livremente, com intenção e vontade concretizadas de atemorizar a sua ex-mulher, constrangendo-a na sua liberdade pessoal, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal».

O motivo de dar como não provados os factos dos pontos 1) e 2) não resultou de não se ter feito prova dos factos mas, ao invés, do entendimento que o senhor juiz tem da norma que prevê e pune o crime em análise

Efectivamente, disse ele (e repetimos):

«… Aqui chegados, haverá agora contudo que efectuar uma precisão relevante, e que é a seguinte: na acusação e no pedido de indemnização civil deduzido … alega-se que, ao afirmar que havia de matar a sua ex-mulher C... e que a seguir se matava a si próprio, o arguido se dirigiu (directamente) à sua aludida ex-mulher …

No entanto, tal alegação não corresponde à realidade. Conforme resultou de forma absolutamente clara e unânime de toda a prova produzida, ao proferir as aludidas palavras, o arguido não se dirigiu à sua ex-mulher C... , mas sim à testemunha B... . Era em conversa unicamente com esta última que o arguido se encontrava, e não com a sua ex-mulher, sendo certo que o arguido teve como única destinatária da sua mensagem a aludida B... , e não a sua ex-mulher. É certo que igualmente decorreu dos depoimentos das três testemunhas C... , B... e D... que a primeira destas (bem como a terceira) casualmente ouviram o arguido afirmar o que afirmou, mas ouviram enquanto se encontravam ocultas nas proximidades, e sem que o arguido sequer tivesse conhecimento da sua presença.

Foi assim com base em tais elementos que se deu como não provado que o arguido se tenha dirigido à sua ex-mulher C... , e antes como provado que se dirigiu à testemunha B... , conforme o próprio arguido o declarou em audiência e foi confirmado por toda a prova testemunhal produzida.

Aqui chegados, e ainda quanto à matéria constante da acusação, como se viu, demos como não provado que o arguido tenha agido consciente e livremente, com intenção e vontade concretizadas de atemorizar a sua ex-mulher, constrangendo-a na sua liberdade pessoal, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.

Na verdade, como mais uma vez resultou unânime de toda a prova produzida, a expressão verbal aqui em causa foi proferida pelo arguido dirigindo-se a uma terceira pessoa que não a sua ex-mulher e, tanto quanto sabemos, o arguido nem sequer sabia que a sua ex-mulher estaria casualmente nas proximidades a ouvir as suas palavras. Nenhuma prova produzida nos permite sustentar sequer que o arguido tivesse a intenção de que as palavras que proferiu chegassem ao conhecimento da sua ex-mulher e aqui demandante C... . Esse conhecimento acabou por se verificar, mas não por vontade ou sequer com a aquiescência do arguido …».


*

Nos termos do nº 1 do art. 153º do Código Penal «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».

E nos termos do art. 155º, nº 1, al. a), do mesmo diploma, quando com os factos referidos se ameace com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos «o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154º».

 Recorde-se que o acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/2013, de 20/3 de Março, fixou jurisprudência no sentido de que «a ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no nº 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º».

Como se costuma dizer sobre o crime de ameaça ele tutela a autodeterminação, pois que quando alguém deixa de fazer o que, naturalmente, fazia, deixa de ir aonde ia, queria ir, precisava de ir, por medo de que a ameaça que alguém lhe dirigiu seja concretizada é a autodeterminação que é atingida.

Sobre as características do tipo apontam-se-lhe três: que a ameaça configure um mal, que esse mal seja futuro, isto é, que não esteja em execução, e que a sua ocorrência dependa da vontade do agente.

A decisão recorrida acrescentou um outro elemento ao crime: que ele seja cometido perante a pessoa ameaçada. Para esta só haverá crime se a ameaça for proferida perante e dirigida à pessoa ameaçada.

Entendemos que este elemento não integra os pressupostos do crime, porque não figura na norma, que diz apenas que «quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime …» comete um crime de ameaça.

O que é essencial é que a ameaça chegue ao conhecimento da pessoa ameaçada, porque se não chegar obviamente que não há crime porque a pessoa que se pretendia ameaçar não teve conhecimento da ameaça.

E o conhecimento da ameaça pode chegar por qualquer meio, nomeadamente pelo relato de terceiros: «O conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo desta é elemento integrante do tipo objectivo do ilícito de ameaça … sendo irrelevante a forma utilizada pelo agente ameaçador … indispensável é que, para o preenchimento do tipo, que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário … Que o agente faça a ameaça directa e pessoalmente, que utilize um meio … ou que se sirva de interposta pessoa é, portanto, irrelevante» [1].

Neste mesmo sentido esta relação já decidiu que o sujeito passivo tem que ter conhecimento da ameaça: «o conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo dela é elemento integrante do tipo objectivo do ilícito da ameaça ("ameaçar outra pessoa"), isto é, é indispensável para o preenchimento do tipo, que ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário …» [2].

Finalmente, se o agente verbalizou, a ameaça perante terceiros, se a deu a conhecer é que o agente não quisesse que a vítima soubesse dessa ameaça (podemos especular que não queria para que a vítima não tomasse cautelas), pois que se a ameaça chegar ao conhecimento da vítima, mesmo sem a vontade do agente, o crime consuma-se.

Resulta, portanto, que há contradição insanável entre os pontos das al. C), D) e E) da matéria assente e o facto constante do ponto 2) dos factos não provados, resultante de um erro de direito pois a sentença entendeu a norma do art. 153º do Código Penal como exigindo que a ameaça fosse feita para a vítima, ao invés de dirigida à vítima. Daí toda a explicação avançada.

Pelo exposto verificam-se os vícios invocados e, em consequência disso, altera-se a decisão da matéria de facto passando para o elenco dos factos provados o ponto 2) dos factos não provados, que surgirá logo após o ponto D) e com a menção D1) e com a seguinte redacção:

«D1) O arguido agiu consciente e livremente, com intenção e vontade concretizadas de atemorizar a sua ex-mulher, constrangendo-a na sua liberdade pessoal, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal».


*

O arguido foi acusado da prática de um crime de ameaça agravada, dos art. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, punível com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

Diz o art. 40º, nº 1 e 2, do Código Penal, que as finalidades das sanções penais, cujo limite é a culpa do agente, são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

À defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva, reporta-se a prevenção geral positiva ou de integração, que é a finalidade primeira da pena, no quadro da moldura penal abstracta. Depois, a sua fixação estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.

            Partindo destas considerações gerais os art. 70º e segs. do Código Penal estabelecem as regras da escolha e medida da pena.

Nos termos do nº 1 do art. 71º «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

Acrescenta o nº 2 que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.

            Portanto, temos a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, ou seja, as exigências de prevenção geral positiva e dentro desta as necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente surge a culpa, que indica o limite máximo da pena [3].

           

Como se vê, na fixação da pena há parâmetros de análise vinculativos, que o julgador tem que considerar, porém ele goza de alguma margem de liberdade nessa apreciação e, por isso, é que é impossível encontrar uma pena inequívoca para um qualquer concreto ilícito.

            No caso o crime é punível com pena de prisão ou pena de multa.

            Não podemos esquecer que os crimes relacionados com relações conjugais, para conjugais ou de namoro estão a tornar-se, na sociedade portuguesa, uma verdadeira questão de ordem pública.

            Para além disso no caso o arguido verbalizou aquilo que se tornou tristemente corrente: ameaçar matar e a seguir suicidar-se.

            E tudo isto com ar grave e sério.

            Por isso afastamos a pena pecuniária, pois ela é desadequada ao crime e ao alarme que a sociedade portuguesa anda a viver actualmente.

            Relativamente à prisão, quando o crime é agravado, como é o caso, a pena vai até aos 2 anos.

            Está provado que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais e que é tido na comunidade em geral como sendo pessoa de bem, respeitada, respeitadora, considerada, honesta e humilde.

            Assim, e tudo visto, aplicamos ao arguido A... a pena de 8 meses de prisão pela prática de um crime de ameaça, dos art. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal.

            No entanto, porque não resulta a necessidade da sua execução, o tribunal decide suspender a sua execução, pelo período de 1 ano, suspensão esta que fica sujeita às seguintes condições:
- o arguido não pode entrar, sob qualquer pretexto, na residência ou no logradouro da residência da ofendida, a menos que seja convidado a fazê-lo por ela;

- o arguido não telefonar nem enviar mensagens à ofendida, seja a que pretexto for.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e no provimento do recurso, decide-se:

I – alterar a decisão da matéria de facto, passando para o elenco dos factos provados o facto constante do ponto 2) dos factos não provados, que surgirá logo após o ponto D) com a menção de D1) e com a seguinte redacção:

«D1) O arguido agiu consciente e livremente, com intenção e vontade concretizadas de atemorizar a sua ex-mulher, constrangendo-a na sua liberdade pessoal, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal»;

II – condenar o arguido A... a pena de 8 meses de prisão pela prática de um crime de ameaça, dos art. 153º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do Código Penal;

III – suspender a execução da pena aplicada pelo período de 1 ano, sujeita às seguintes condições:
- o arguido não pode entrar, sob qualquer pretexto, na residência ou no logradouro da residência da ofendida, a menos que seja convidado por ela a fazê-lo;

- o arguido não pode telefonar nem enviar mensagens à ofendida, seja a que pretexto for.

Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 2015-05-20

(Olga Maurício - relatora)

(Luís Teixeira - adjunto)


[1] Comentário ao art. 153º, a pág. 562 do Comentário Conimbricense do Código Penal, 2ª ed.
[2]Acórdão de 12-12-2001, processo 2880/2001, relatado pelo sr.desembargador Barreto do Carmo.
[3] Anabela Rodrigues, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, pág. 147 e segs.