Relator: Fonte Ramos
1.º Adjunto: Vítor Amaral
2.º Adjunto: João Moreira do Carmo
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I. AA intentou a presente ação declarativa comum contra A..., S. A., pedindo que esta seja condenada «a reparar o veículo propriedade do A., que se encontra aparcado na oficina de BB (...) assumindo o pagamento; ou entregar ao A. a quantia necessária para a reparação do mesmo, cujo valor é o constante da peritagem/orçamento de 10 829,97€ (...)», bem como a pagar «a quantia de 750€, pela desvalorização comercial, por se tratar de veículo embatido; a quantia diária de 1,50€, mais IVA a título de parqueamento da viatura sinistrada, e que na presente data ascende a 280,44€; a quantia diária de 50€, a título de indemnização pela privação da fruição, uso e disposição do seu veículo, e que na presente data ascende a 7.600€; o montante diário de 1,50€ mais IVA e 50€, a título de parqueamento e privação do uso, respetivamente, até integral reparação do automóvel do A. ou efetivo pagamento da indemnização pecuniária peticionada; os juros de mora, contabilizados à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral pagamento».
Alegou, em síntese, que, a 27.10.2021, ocorreu um acidente de viação, que lhe originou danos cobertos pela apólice do contrato de seguro celebrado entre as partes.
A Ré contestou, referindo, nomeadamente: releva apenas a parte facultativa da apólice quanto à condição especial “choque, colisão ou capotamento”; nos termos acordados, foi atribuído “veículo de substituição” e o sinistro regularizado como “perda total”. Concluiu pela improcedência da ação.
Foi proferido despacho saneador que firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 03.3.2023, julgou a ação parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar ao A. o valor de € 8 400, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do restante pedido.
Inconformada, a Ré apelou formulando as seguintes conclusões:
1ª - Na presente ação e tal como bem foi considerado na sentença recorrida a cobertura que constitui causa de pedir é a de "choque, colisão ou capotamento, oficinas recomendadas" (condição especial 170).
2ª - Estamos pois perante a parte facultativa da apólice, "dado que se trata da celebração de um negócio jurídico que não é imposto, a sua celebração constitui simplesmente a manifestação do exercício da liberdade contratual que, a cada pessoa é reconhecida”.
3ª - Segundo a definição dada pelo contrato de seguro a que o A. aderiu livremente, o sinistro resultou em perda total do veículo seguro; havendo perda total a indemnização é fixada em dinheiro.
4ª - Contrariamente ao decidido na sentença recorrida o capital seguro é o limite máximo a ter em consideração (v. art.º 138º da Lei do Contrato de Seguro - DL 72/2008, de 16.4).
5ª - Na verdade, foi alegado e dado como provado, que à data do sinistro, em virtude da atualização do capital seguro, este era de € 13 153,90, fixado nos termos do DL 214/97, de 16.8.
6ª - Portanto, a recorrente só responde com base neste valor seguro, e não com base noutro valor superior, não seguro, como foi o de € 16 000, considerado pela Mm.ª Juíza a quo por recurso, segundo ela, à equidade e sem fundamento em qualquer matéria de facto.
7ª - Deduzida a franquia de 10 % constante do n.º 5 da condição especial 170 sobre o capital seguro e o valor do salvado de € 7 600 temos uma indemnização de € 4 238,50.
8ª - Não se entendendo que a franquia é de 10 %, terá que se considerar que pelo menos é de 2 % e neste caso a indemnização será de € 5 290,82.
9ª - Pelo que a Mm.ª Juíza ao fixar o capital em € 16 000, contrariamente ao que foi contratado e ao não deduzir a franquia, incorreu em lapso manifesto que urge corrigir, fixando-se a indemnização em € 4 238,50 no caso de se considerar correta a franquia de 10 % ou em € 5 290,82, se se considerar que a franquia é de 2 %.
10ª - Os juros só são devidos a partir do momento em que o crédito se tornar líquido, pois ao caso não se aplica a possibilidade de haver juros a partir da citação, pois não se está perante um caso de responsabilidade civil por facto ilícito ou pelo risco.
11ª - Foi violado – além do mais – o disposto no art.º 138º do DL 72/2008, de 16.4 (Lei do Contrato de Seguro – na medida em que o capital seguro era de € 13 153,90 e na sentença fez-se tábua rasa deste valor e considerou-se outro, não alegado e em parte alguma provado) de € 16 000. Bem como o disposto no art.º 805º, n.º 3 do Código Civil (CC) que impõe que se estivesse perante um caso de responsabilidade civil por facto ilícito ou pelo risco e não estamos.
O A. não respondeu.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, apenas, o montante da prestação (capital e juros) devida pelo dano produzido e coberto.
*
II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos
1) O A. exerce as funções de responsável de infraestruturas elétricas, em ....
2) A Ré dedica-se à atividade seguradora, tendo em 04.01.2022, por fusão, incorporado a O..., S. A. (doravante C.ª O...).
3) O A. e a C.ª O... celebraram um contrato de seguro contra todos os riscos para o veículo com matrícula ..-VO-.., tendo sido atribuído à apólice o n.º ...38.
4) Neste contrato, previam-se, além da responsabilidade civil obrigatória, danos próprios, choque, colisão ou capotamento até € 18 550[1], com franquia de 2 % do capital seguro.
5) No passado dia 27.10.2021, cerca das 18.55 horas, na EN ...11, na rotunda do ..., em ..., ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, marca ..., modelo ...08, matrícula ..-VO-.., propriedade do A., conduzido por CC, e o veículo ..., modelo ..., matrícula ..-OH-.., propriedade de S..., S. A., conduzido por DD.
6) Os veículos circulavam na EN ...11, sentido ... – ..., com destino a ..., seguindo o veículo ... imediatamente à frente do veículo do A., preparando-se para entrar na rotunda do ....
7) A condutora do veículo do A. não se apercebeu que o veículo ... quase parou na entrada da rotunda e, por isso, embateu na traseira deste.
8) Na sequência do acidente, a condutora do veículo propriedade do A. assumiu, no imediato, a responsabilidade pela ocorrência do sinistro, por ter embatido inadvertidamente na traseira do outro veículo sinistrado.
9) O acidente ocorreu num local quase plano, com boa visibilidade e em que o pavimento estava em bom estado de conservação.
10) A sociedade C.ª O..., incorporada pela Ré, procedeu ao pagamento dos prejuízos sofridos pela viatura ..-OH-...
11) Em consequência do sinistro, a frente, tablier e as partes laterais esquerda e direita do veículo do A. ficaram amolgadas.
12) Ocorreram, ainda, danos mecânicos e nos radiadores.
13) Naquela sequência, o veículo deixou de andar, uma vez que o sistema de segurança não lho permite.
14) Assim, só após a respetiva reparação será possível voltar a utilizar.
15) O sinistro foi participado à Ré entre o acidente e o dia 28.10.2021.
16) A C.ª O... realizou a peritagem para reparação da viatura num valor estimado, sem desmontagem, de € 10 916.
17) Por carta de 22.11.2021, a O... comunicou aquele resultado ao A. e propôs uma indemnização de € 4 238,51, correspondente ao capital seguro de € 13 153,90, deduzido o valor da franquia de € 1 315,39, a que acresceria o valor do salvado de € 7 600.
18) Além disso, informou que teria de proceder à regularização da ocorrência como perda total.
19) O veículo do A. nunca havia sofrido qualquer acidente.
20) As suas revisões e manutenções haviam sido efetuadas em oficinas da marca ou por esta autorizadas.
21) Aquele veículo, à data do acidente, encontrava-se em perfeitas condições de conservação.
22) O veículo foi adquirido novo há cerca de 3 anos, por cerca de € 20 000.
23) O veículo encontra-se imobilizado desde a data do sinistro.
24) Está aparcado na oficina sita na EN ...35, Rua ..., ..., propriedade de BB, à razão de € 1.50€/dia, mais IVA.
25) Este valor já foi fixado tendo em conta o tempo que o veículo já está parado.
26) Até ao momento, o valor do aparcamento já devido ainda não foi cobrado pela oficina.
27) No âmbito do seu trabalho, o A. necessita do seu veículo para se deslocar diariamente por toda a zona centro do país.
28) O A. carece, ainda, do seu veículo para as deslocações do dia-a-dia com a esposa, familiares e amigos.
29) O custo diário de uma viatura de aluguer, no mercado, de categoria idêntica à do A., importa um montante não inferior a € 50.
30) A data da primeira matrícula do veículo é de 15.10.2018.
31) À data do acidente, o valor venal de mercado do veículo era de € 13 550.
32) No âmbito do contrato de seguro celebrado entre o A. e a Ré, aquele contratou as seguintes condições especiais para danos no seu próprio veículo: 030 – incêndio, raio ou explosão; 040 – quebra isolada de vidros; 050 – furto ou roubo; 060 – fenómenos da natureza; 070 – atos de vandalismo; 110 – veículo de substituição; 140 – assistência em viagem; 150 – proteção jurídica; 160 – ocupantes de viatura; 170 – Choque, Colisão ou Capotamento - Oficinas recomendadas.[2]
33) Na Condição Especial 110 – Veículo de Substituição prevê-se:
a. Quando seja contratada, a presente Condição Especial garante ao Segurado, em caso de privação forçada do uso do veículo seguro em consequência de sinistro cujos danos sejam garantidos pelas coberturas efetivamente contratadas, de responsabilidade civil ou de danos próprios do veículo seguro, a utilização de um veículo de aluguer ligeiro de passageiros, de classe equivalente à do veículo seguro e até ao limite de 2000 c.c. de cilindrada, por um período máximo de 30 dias e por anuidade; / (…) / 3. Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Particulares, a privação de uso conta-se: (…) / b) em caso de danos que determinem impossibilidade imediata de circulação, a partir do dia da participação do sinistro e termina na data da conclusão da reparação efetiva ou no terceiro dia útil posterior ao da comunicação ao Segurado da verificação da perda total.
34) A Ré facultou ao A. um veículo de substituição desde a data em que este o solicitou até 25.11.2021.
35) No âmbito do contrato de seguro facultativo celebrado entre as partes estabeleceram-se as seguintes definições: 1. Valor seguro do veículo: corresponde ao valor em novo do veículo atualizado em conformidade com o critério de desvalorização acordado; 2. Capital seguro: para efeitos das coberturas “Choque, Colisão ou Capotamento”, “Incêndio, Raio ou Explosão”, “Furto ou Roubo”, “Atos de Violência” e “Fenómenos da Natureza”, o capital seguro corresponde ao valor seguro do veículo, acrescido do valor seguro dos extras, sempre que discriminados e valorizado na apólices; 3. Perda total: considera-se o veículo em situação de perda total, quando se verifique uma das seguintes situações: a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total; b) Se constate que a reparação seja materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afetadas as suas condições de segurança; c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
36) O capital seguro à data do acidente, aplicada a atualização prevista no contrato de seguro, era de € 13 153,90.
37) Na Condição Especial 170 – «Choque, Colisão ou Capotamento Oficinas Recomendadas» prevê-se que: 1. Para efeitos da presente Condição Especial considera-se: CHOQUE: o embate do veículo contra qualquer corpo fixo ou sofrido por aquele quando imobilizado. COLISÃO: o embate do veículo em movimento contra qualquer outro corpo em movimento. CAPOTAMENTO: o acidente em que o veículo perca a sua posição normal e não resulta de Choque ou Colisão. REDE DE OFICINAS RECOMENDADAS DO SEGURADOR: o conjunto de oficinas, selecionadas segundo critérios técnicos, de capacidade, instalações e infraestruturas tecnológicas, com as quais o Segurador possui acordos para a realização de reparações, realizadas ao abrigo da presente cobertura. 2. Quando seja contratada, a presente Condição Especial garante ao Segurado, nos termos constantes das Condições Particulares, o ressarcimento pelos danos causados ao veículo seguro em virtude de Choque, Colisão ou Capotamento, observando-se o regime previsto nos números seguintes. 3. (…) nos sinistros abrangidos pela presente Condição Especial, em que seja necessária e possível a reparação do veículo seguro, será a mesma realizada exclusivamente em oficina integrante da Rede de Oficinas Recomendadas do Segurador. 4. (…). 5. Se, em caso de sinistro abrangido pela presente Condição Especial, o Segurado vier a não optar pela realização da reparação do veículo seguro numa oficina integrante da Rede de Oficinas Recomendadas do Segurador, o valor da franquia constante das Condições Particulares da Apólice duplicará, aplicando-se sempre um valor mínimo de 10 % sobre o valor seguro do veículo à data do sinistro.
38) O A. respondeu à carta referida em 17) mediante missiva datada de 25.11.2021, redigida pelo Exmo. Mandatário que o representa nos presentes autos, através da qual transmitiu não aceitar o proposto na carta da Ré e aguardar que, em 8 dias, lhe fosse paga a quantia de € 10 916 mais o salvado.
39) Por e-mail de 09.12.2021, a Ré comunicou que se encontrava a analisar a contraproposta e pediu que o A. aguardasse novo contacto da sua parte.
40) Por e-mail de 21.01.2022, o A., através do seu mandatário, questionou se já havia da parte da Ré algum desenvolvimento quanto à contenda.
41) Por carta de 08.02.2022, a Ré transmitiu que não aceitava a contraproposta e reiterou o valor de indemnização já informado de € 4 238,51.
2. E deu como não provado:
a) Quanto ao valor do aparcamento do veículo, por insuficiência de meios do A., foi fixado que o respetivo vencimento será na data do pagamento da totalidade das indemnizações pela Ré.
b) Atualmente, o valor de mercado de um veículo com as características do veículo do A. situa-se no intervalo entre € 14 477 e € 16 187.
c) Optando-se pela reparação do veículo, mesmo em oficina credenciada, o valor comercial daquele diminuirá, atento o sinistro sofrido, cerca de € 750.
3. Cumpre apreciar e decidir.
O contrato de seguro é a convenção através da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado) a assumir um risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.[3]
4. Dado o momento em que os factos em causa tiveram lugar, na fixação/interpretação do conteúdo do contrato de seguro em apreço atender-se-á, designadamente, ao disposto na respetiva apólice (art.º 37º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro/RJCS/ Lei do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4), e - na interpretação das cláusulas de limitação do risco assumido - à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais/LCCG (DL n.º 446/85, de 25.10, aplicável aos contratos de seguro, pelo menos desde a alteração introduzida pelo DL n.º 220/95, de 31.10; cf., ainda, o art.º 3º do RJCS).
Estabelece o art.º 4º do RJCS que às questões sobre contratos de seguro não reguladas no presente regime nem em diplomas especiais aplicam-se, subsidiariamente, as correspondentes disposições da lei comercial e da lei civil, sem prejuízo do disposto no regime jurídico de acesso e exercício da actividade seguradora.
As condições da apólice do seguro (estipulações/cláusulas) podem e devem ser objeto de interpretação, como quaisquer outras declarações de vontade e, de resto, tratando-se (além do mais) de cláusulas contratuais gerais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam (art.º 10º do DL n.º 446/85, de 25.10).
Na interpretação das suas cláusulas, vale o regime geral do Código Civil (art.ºs 236º e seguintes, do CC), com as especificidades decorrentes dos art.ºs 7º, 10º e 11º da LCCG e do citado RJCS.[4]
5. Sob o título II (“Seguro de Danos”), preceitua o RJCS que o seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais (art.º 123º).
Na respetiva “Secção III - Princípio indemnizatório”, estabelece-se, ainda:
- A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro (art.º 128º);
- O objeto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer (art.º 129º);
- No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro (art.º 130º, n.º 1) e o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro (inclusive, pela privação de uso do bem) se assim for convencionado (n.ºs 2 e 3);
- Sem prejuízo do disposto no artigo 128º e no n.º 1 do artigo 130º, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado (art.º 131º, n.º 1);
- No seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros (art.º 137º);
- O seguro de responsabilidade civil garante a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado (art.º 138º, n.º 1); salvo convenção em contrário, o dano a atender para efeito do princípio indemnizatório é o disposto na lei geral (n.º 2).
6. A presente impugnação ficou circunscrita à questão do valor da prestação devida pela “perda do veículo” e cômputo dos respetivos juros moratórios.
Na sentença sob recurso, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo entendeu:
- As partes celebraram um contrato de seguro automóvel híbrido, pois contempla a vertente do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (art.º 4º, n.º 1, do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) e uma vertente de seguro facultativo, convencionando que determinados riscos relativos ao próprio veículo seriam seguros, nomeadamente em caso de choque, colisão ou capotamento (Condição Especial 170).
- À data do acidente, o valor de mercado do veículo era de € 13 550; a estimativa de reparação, sem desmontagem, era de € 10 916; o valor do salvado é de € 7 600. Somando estes dois valores temos um valor superior em mais de 136 % do valor de mercado do veículo à data do acidente, o que faz com que o caso se integre no conceito de perda total previsto nas definições do contrato de seguro.
- À luz do convencionado, o dano a ser ressarcido é a perda do veículo, e não a reparação do mesmo.
- Atento o disposto nos art.ºs 562º e 566º, do CC, e considerando que, in casu, a indemnização terá de corresponder a um valor monetário, tal valor não é o do valor venal da viatura à data do acidente (valor de mercado), mas o valor de uso da viatura, pois é este o verdadeiro dano numa perda total - o que custará ao tomador do seguro substitui-lo por outro, de características semelhantes.
- Não provado o valor de aquisição de veículo semelhante ao do A., por recurso à equidade, considerando que o veículo à data tinha um valor de cerca de € 15 000 e que se encontrava em boas condições, crê-se adequado fixar que a aquisição de um veículo semelhante custaria não menos de € 16 000.
- Deduzido o valor do salvado, a Ré deverá pagar o valor de € 8 400, acrescido de juros civis de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento (art.ºs 805º, n.º 1 e 806º, n.ºs 1 e 2, do CC).
7. O DL n.º 214/97, de 16.8, que instituiu regras destinadas a garantir uma efetiva proteção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo[5], prevê, nomeadamente, a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, correspondente à eventualidade de perda total, que seja calculada com base nesse valor (art.ºs 2º e 4º).[6]
Embora nas palavras do preâmbulo do diploma o sistema introduzido visasse garantir a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total, o diploma não instituiu a regra de que, em caso de perda total, a indemnização tinha como medida o valor seguro. Com efeito, percorrendo os preceitos do diploma, o único que contém uma disposição relativa à determinação do valor da indemnização em caso de perda total do veículo é o art.º 3º[7]. Os restantes preceitos respondem a questões diferentes. Assim: a) o art.º 2º impõe à seguradora o dever de alterar automaticamente o valor seguro dos veículos de acordo com a tabela referida no art.º 4º e o de ajustar o prémio à desvalorização do valor seguro; b) o art.º 8º dispõe sobre os elementos que devem constar dos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros e sobre deveres de informação a cargo da seguradora[8]; c) o art.º 9º dispõe sobre as consequências da violação dos deveres de informação.
Sucede que o art.º 3º - que prevê a determinação do valor da indemnização em caso de perda total do veículo - vale apenas para a hipótese aí prevista. E essa hipótese é a de a seguradora não ter cumprido os deveres que lhe são impostos pelo art.º 2º, concretamente não ter cumprido o dever de alterar automaticamente o valor seguro do veículo de acordo com a tabela referida no art.º 4º e o dever de ajustar o prémio à desvalorização do valor seguro, cobrando, em consequência, prémios por um valor que exceda o que resultava do cumprimento de tais deveres.
Para esta hipótese o artigo enuncia a seguinte solução relativa à determinação da indemnização: em caso de sinistro, a seguradora responde com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.
Fora da dita hipótese, a solução já não é aplicável, como se refere no seguinte excerto do preâmbulo do diploma: “As consequências previstas para o incumprimento deste regime legal não colidem com o princípio do indemnizatório, que mantém plena aplicabilidade nos casos de normalidade contratual”. Isto é, nos casos de “normalidade contratual” - que são aqueles em que seguradora cumpre o regime da desvalorização automática do valor seguro - já não é aplicável, em caso de sinistro, o regime do art.º 3º do DL n.º 214/97, de 16.8, que reveste natureza sancionatória.[9]
Em tais casos, a indemnização devida pela seguradora é regulada pelas estipulações da apólice que não sejam proibidas pela lei, pelas regras constantes do RJCS e pelas que decorrem da lei geral.
Assim resulta da combinação do art.º 2º com o art.º 11º do RJCS.[10] [11]
8. Na situação em análise, verificou-se a perda total do veículo ..-VO-.. e o contrato de seguro compreendia a cobertura facultativa relativa a choque, colisão e capotamento, ao abrigo da qual, em princípio, seriam indemnizáveis os danos sofridos pelo A..
Não se discute que entre as partes foi celebrado e estava em vigor na data do sinistro um contrato de seguro de danos que, além das coberturas obrigatórias (seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), incluía também coberturas facultativas.
Importa determinar o montante do pagamento contratualmente devido pela Ré/seguradora, no âmbito de responsabilidade contratual fundada num seguro facultativo (“danos próprios”), submetido às regras contratuais convencionadas pelas partes.
9. Decorre dos autos que a Ré cumpriu o regime da desvalorização automática do valor seguro, aplicando-se, pois, à regulação da indemnização as normas dos art.ºs 128º, 130º, n.º 1[12] e 131º, n.º 1, do RJCS.
Da sua aplicação à factualidade provada [cf., sobretudo, II. 1. 2), 4), 16), 17), 18), 23), 31), 35), 36) e 37), supra], porque as partes acordaram na concretização do valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização (art.º 131º, n.º 1, do RJCS - acordo atendível se o valor acordado não for manifestamente infundado[13]), resulta que o valor da prestação devida ao A. pela perda total do veículo deve ser fixado em € 5 290,82 [€ 13 153,90 (capital seguro ao tempo do sinistro, tendo a viatura, nessa data, um valor comercial de € 13 550[14]) – (13 153,90 x 0,02[15] + € 7 600)].
Esta a quantia devida pela “perda total” da viatura, atento o descrito circunstancialismo, o âmbito da mencionada cobertura facultativa (“danos próprios”) e o referido quadro jurídico.
10. Relativamente à condenação em juros moratórios, afigura-se que a sentença recorrida não merece censura - juros de mora, à taxa legal, desde a citação -, pela simples razão de que, sendo esse o pedido formulado nos autos [não baseado no disposto nos art.ºs 102º e 104º do RJCS – cf. art.º 609º, n.º 1, do CPC], as partes não se entenderam quanto ao valor a pagar e a Ré apresentara proposta de liquidação de montante inferior à prestação contratual devida [cf. II. 1. 17) e 38) a 41), supra].
Assim, será de atender ao regime da indemnização decorrente da mora do devedor prevista nos art.ºs 804º, n.º 1, 805º, n.ºs 1 e 3, 1ª parte, e 806º, n.ºs 1 e 2, do CC, aplicando-se a taxa de 4 % ao ano (Portaria n.º 291/2003, de 08.4), sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxas supletivas legais que venham a vigorar.
11. Procedem, desta forma, parcialmente, as “conclusões” da alegação de recurso.
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III. Pelo exposto, na parcial procedência da apelação e revogando/substituindo nessa medida a decisão recorrida, condena-se a Ré a pagar ao A. a quantia de € 5 290,82 (cinco mil duzentos e noventa euros e oitenta e dois cêntimos), mantendo-se no mais o aí decidido.
As custas serão suportadas pelo A. e pela Ré, respetivamente, na proporção de 73 % e 27 % (ação) e de 1/15 e 14/15 (recurso).
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12.7.2023
[1] Capital seguro à data do início da apólice (anuidade de 28.02.2019 a 28.02.2020); existe lapso, porquanto (então) limitado ao montante de € 18 500 – cf. documento de fls. 11 verso e seguintes.
[2] Condição especial “170” indicada por extenso - cf. documento junto aos autos (fls. 70).
[3] Vide, entre outros, Pedro Romano Martinez, Contratos Comerciais, Principia, 2006, pág. 73 e José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 20, e os acórdãos do STJ de 02.10.1997 e 10.12.1997 in CJ-STJ, ano V, 3, págs. 45 e 158.
E estabelece agora o art.º 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4: “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
[4] Vide Pedro Romano Martinez, ob. cit., pág. 80.
[5] Cf. o respetivo art.º 1º: “institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros”.
[6] Preceitua-se:
- O valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4º, sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro (art.º 2º).
- As empresas de seguros que contratem as coberturas previstas no artigo 1º devem elaborar a tabela de desvalorizações periódicas automáticas a que se refere o artigo 2º para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, incluindo, necessariamente, como referências, o ano ou o valor da aquisição em novo, ou ambos, sem prejuízo do disposto no número seguinte (art.º 4º, n.º 1).
[7] Que estabelece: “A cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.”
[8] Que assim reza: Sem prejuízo das demais regras sobre informação contratual previstas no DL 176/95, de 26 de Junho, nos contratos a que se refere o artigo 1º devem constar os seguintes elementos: a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, bem como os critérios da sua atualização anual e a respetiva tabela de desvalorização; b) O prémio devido (n.º 1). A empresa de seguros deve anualmente, até 30 dias antes da data de vencimento do contrato, comunicar por escrito ao tomador os seguintes elementos relativos ao próximo período contratual: a) O valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total; b) O prémio devido (n.º 2).
[9] Sobre esta problemática, cf., de entre vários, os acórdãos da RG de 11.7.2013-processo 2135/12.8TBBRG.G1 e 26.9.2019-processo 314/18.3T8FAF.G1, da RC de 07.11.2017-processo 131/16.5T8SAT.C1 [constando do sumário: «1. Da conjugação do disposto nos art.ºs 3º, 4º e 8º, n.º 2, do DL 214/97, de 16.8, retira-se que no âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for atualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, nem for comunicada essa atualização ao tomador do seguro, as seguradoras ficam constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.»] e da RL de 18.4.2013-processo 2212/09.2TBACB.L1-2 [com o sumário: «I. Ao tomador de seguro cabe a alegação e o ónus da prova da verificação do risco coberto. À seguradora cabe a alegação e o ónus da prova da verificação de uma cláusula de exclusão do risco (como facto impeditivo do direito daquele – art.º 342/2 do CC). II. Quando o valor do interesse seguro for um valor declarado, a questão do sobresseguro (valor real inferior ao valor declarado) será resolvida através da aplicação do princípio indemnizatório (pagando a seguradora, em caso de sinistro, apenas o valor real: art.ºs 435 do CCom e 132 e 128, ambos da LCS). III. Quando o valor do interesse seguro tiver sido acordado, não se aplica o princípio indemnizatório (que aliás não será um princípio de ordem pública), excepto se o valor acordado for manifestamente infundado. IV. Em qualquer dos casos, o princípio indemnizatório deve ser “entendido em termos materiais”, ou seja, o que interessa não é o valor venal ou de mercado do bem, mas sim o valor de substituição. V. O ónus de alegação e prova do valor real (de substituição) do bem cabe às seguradoras. VI. Embora para que haja um valor acordado não baste a aceitação da proposta do tomador pela seguradora, a situação normal, ao menos no seguro automóvel facultativo, será a de o valor seguro ser um valor acordado. VII. As seguradoras não podem, sob pena de abuso de direito (art.º 334 do CC) na modalidade do ´venire contra factum proprium`, opor aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobreindemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art.º 227 do CC).»] e 22.11.2018-processos 18262/17.2T8LSB.L1-2, publicados no “site” da dgsi.
No sentido de que esta disposição (art.º 3º do DL n.º 214/97), de clara feição sancionatória, constitui uma derrogação ao “princípio indemnizatório” dos art.ºs 128º e seguintes do RJCS, cf., ainda, o acórdão do STJ de 03.5.2023-processo 4280/21.0T8VIS.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Normativos que estabelecem o seguinte:
- As normas estabelecidas no presente regime aplicam-se aos contratos de seguro com regimes especiais constantes de outros diplomas, desde que não sejam incompatíveis com esses regimes (art.º 2º).
- O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral (art.º 11º).
[11] Cf. acórdão da RC de 12.02.2019-processo 2923/14.0TBLRA.C1 [seguido de perto no presente ponto, que conclui: «I - No domínio dos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas de danos próprios sofridos pelos veículos seguros, em caso de sinistro, a seguradora responde com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro se não tiver cumprido os deveres que lhe são impostos pelo art.º 2º do DL n.º 214/97, de 16.8. II - Se tiver cumprido tais deveres, em caso de sinistro (perda total do veículo em consequência de furto), a indemnização devida pela seguradora é regulada pelas estipulações da apólice que não sejam proibidas pela lei, pelas regras constantes do regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4 [Lei do contrato de seguro] e pelas que decorrem da lei geral.»], publicado no “site” da dgsi.
[12] No âmbito do n.º 1 do art.º 130º do RJCS, o valor do interesse seguro “… varia consoante o objeto seguro e a modalidade em causa: relativamente às coisas destinadas à venda relevará, em princípio o valor venal, ou de venda. Mas o valor de uso pode também ser tido em conta relativamente a coisa que o segurado não destine a venda e que normalmente se traduz no valor necessário à sua reconstituição” - vide A. Costa Oliveira, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2011, 2ª Edição, Almedina, pág. 443 (sublinhado nosso).
[13] Veja-se que não vemos questionada a razoável correspondência do valor (inicialmente) acordado ao valor real, depois sujeito à atualização automática segundo as tabelas de desvalorização referidas no DL 214/97 - cf., por exemplo, o cit. acórdão do STJ de 03.5.2023-processo 4280/21.0T8VIS.C1.S1, e, com relevância para o caso vertente, II. 1. 4) e 17), supra e art.ºs 2º e 4º do DL n.º 214/97, de 16.8.
Sobre esta problemática, cf. ainda, por exemplo, o acórdão do STJ de 26.01.2021-processo 3652/17.9T8LSB.L1.S1 [concluindo-se: «I - O DL n.º 214/97, de 16.8, não foi revogado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4. II - No seguro de danos próprios, em caso de perda total de viatura, a indemnização a pagar pela seguradora deverá corresponder ao valor seguro constante da apólice, se o evento tiver ocorrido no decurso da primeira anuidade.»], publicado no “site da dgsi.
[14] Cf., ainda, os factos não provados aludidos em II. 2. alíneas b) e c), supra.
[15] Sem cuidar da questão da validade da correspondente cláusula, os elementos disponíveis são insuficientes para concluir que o A. não optou pela realização da reparação do veículo seguro numa oficina integrante da Rede de Oficinas Recomendadas do Segurador - cf. II.1. 23) e 37), supra.