Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
88/20.8T8FCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
COMPRA E VENDA VERBAL
REIVINDICAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º, 340.º, N.º 1, E 1311.º, N.º 2, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Incorre em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium, a autora que pede o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição do imóvel doze anos depois de o ter negociado verbalmente com os réus, tendo recebido a totalidade do preço respetivo, encontrando-se a contraparte, por isso, na posse do imóvel, onde fixou a sua residência, tendo vindo tal demandante a entregar aos réus o documento de cobrança do IMI, para serem eles a pagar o imposto, bem como a informá--los, mais tarde, de que não havia IMI a pagar, por ter ficado isenta do respetivo pagamento, e ainda, quando instada a outorgar a escritura pública de compra e venda, de que iria à conservatória do registo civil indagar se o marido já havia falecido, caso em que seria o seu filho a assinar a escritura de compra e venda.

II – Num tal caso, criada nos réus a confiança de que lhes não seria pedida a restituição do imóvel, apesar de não ter sido celebrada escritura de venda, aqueles pedidos excedem manifestamente os limites impostos pela boa-fé, sendo ilegítimos, pelo que também não assiste à autora, ocorrido consentimento, o direito de exigir aos réus qualquer quantia a título de frutos produzidos pelo prédio.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
Adjuntos: Catarina Gonçalves
Maria João Areias


Processo n.º 88/20.8T8FCR

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Rua ..., nº 1 em ... – ... – ..., ..., propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e sua esposa CC, residentes no Bairro ... – ... – ... – ..., pedindo a condenação dos réus:
a) A reconhecerem o direito de propriedade do sobre o seguinte prédio: casa térrea com cinco divisões, afecta a habitação sita no Bairro ..., na localidade e freguesia ..., com a área de 46m2, inscrita na matriz predial Urbana de ... sob o nº ...65º e descrita na C.R.P ... sob o nº ...05;
b) A restituírem a posse do mesmo aos autores com todos os frutos, valor da utilidade, € 400,00/mês, que produziu ou que possa vir a produzir na pendência da presente acção;
c) A desocuparem e reporem a situação anterior a ocupação e utilização havidas;
d) A absterem-se de qualquer acto lesivo do direito de propriedade dos autores sobre o referido prédio;
e) No pagamento de sanção pecuniária compulsória em valor não inferior a 50,00€/diários por cada dia de atraso na entrega/desocupação/reposição do prédio aos autores;
f)  No pagamento da quantia de 9 600,00€ a título de danos patrimoniais e da quantia de 1.500,00€ a cada um dos autores, a título de danos morais.

Para o efeito, depois de requerer a intervenção provocada do ex-cônjuge, DD, atenta a natureza do bem reivindicado, alegou em síntese:
· Que ela e o ex-cônjuge são donos e legítimos possuidores da casa térrea supra descrita;
· Que o filho deles, autores, permitiu aos réus a utilização para sua habitação do referido prédio tudo sem conhecimento e consentimento dos autores;
· Que os réus não são detentores de qualquer título, autorização ou consentimento que legitime a referida ocupação e utilização e que, advertidos pelos autores, para a sua não utilização e entrega do prédio em causa, há dois anos a esta parte, os réus referiram que tal propriedade lhe pertenceria e que continuariam a usá-la, recusando-se a sair da referida habitação e fazer a sua entrega aos seus legítimos donos e possuidores;
· Que ficaram impedidos, com a actuação dos réus, de utilizar a sua propriedade nomeadamente de a habitar e usar usufruindo das utilidades de habitação que a mesma proporciona em valor, equivalente ao de uma renda mensal no valor de €400,00 mensais ou seja 4.800,00 anuais, num valor global, até à presente data de 19.200,00€;
· Que também sofreram incómodos, nervosismo, agitação, causador de insónias e má disposição, danos morais que os mesmos computam, em valor não inferior a € 1.500,00 a favor de cada um dos autores.

Citados, os réus contestaram, por excepção e por impugnação, e deduziram reconvenção.

Na sua defesa arguiram a ilegitimidade da autora e sustentaram que eram eles os proprietários do imóvel em causa nos autos por o haverem comprado à autora há mais de 15 anos e por desde então o tem possuído pelo que, se outro título não tivessem, tê-lo-iam adquirido por usucapião.

Em reconvenção pediram condenação dos autores no reconhecimento de que eles réus eram os proprietários do prédio urbano acima descrito [sito no Bairro ..., na freguesia ..., Concelho ..., composto de casa térrea com cinco divisões, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a descrição número ...87, daquela freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...65, com a área total coberta de 46 metros quadrados, a confrontar do norte e poente com EE e do sul e nascente com rua com o valor patrimonial tributável de € 6 810,65] por o terem adquirido pelo valor global de 15 000,00 (quinze mil euros), valor recebido na íntegra pela aqui autora, e por via desse negócio serem os réus reconhecidos como únicos e legítimos possuidores e proprietários do sobredito prédio urbano.

Pediram ainda a condenação da autora como litigante de má fé em multa e indemnização a liquidar em execução de sentença.

A autora respondeu. Impugnou a alegação de que vendeu o prédio aos autores, bem como o recebimento de qualquer preço; alegou que sendo a venda um negócio formal, a falta de escritura pública acarretava a sua nulidade e que, não sendo ela a única titular do direito de propriedade sobre o imóvel, sempre se estaria perante uma venda de bens alheios, nula nos termos dos artigos 892.º e seguintes do Código Civil.

Pediu no final se julgasse improcedente a reconvenção e se condenassem os réus como litigantes de má-fé em multa e indemnização a favor dela, autora.

DD, ex-cônjuge da autora, foi admitido a intervir nos autos como parte principal ao lado da autora. Citado declarou que fazia seus os articulados da demandante.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu:
1. Absolver os réus BB e CC dos pedidos deduzidos contra si pelos autores AA e DD;
2. Julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus BB e CC e, em consequência, absolver os autores dos pedidos formulados;
3. Condenar a autora AA no incidente de litigância de má-fé no pagamento de uma multa, fixada em 3 (três) Unidades de Conta;
4. Absolver os réus do pedido de condenação como litigantes de má-fé.

O recurso

A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se declarasse a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, se revogasse a mesma, declarando-se os autores donos e legítimos possuidores do prédio em causa e restituindo-se o mesmo deduzido e, na contrapartida do preço pago, do proveito tido pelos réus em igual valor.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Encontrando-se inscrita no Registo Predial a aquisição a favor dos autores, desde 05-05-1994, deriva de tal facto a presunção do direito de propriedade nos titulares inscritos, os autores, por força das disposições conjugadas dos artigos 1259.º, 1260.º/2, 1268.º e 1294.º do C.C e 7.º do C.R.P e, não tendo tal presunção sido ilidida pelos réus deverá ser declarada o direito de propriedade nas pessoas destes;
2. Sendo a posse sobre o imóvel em causa titulada, 1259.º e 1260.º/2 do C.Civ., atendendo ao seu tempo de duração ( 1994- 2008, 14 anos), os A.A adquiriram também a propriedade por usucapião tendo em conta o disposto no artigo 1294.º do C. Civil, presunções também não ilididas pelos réus, pelo que também tal deveria e deverá ser declarado.
3. Assim que, quer pelo referido em ambas as anteriores conclusões, a propriedade do imóvel em causa deveria ser declarada a favor dos A.A, nos termos das citadas normas legais e dar-se como provado os factos declarados como não provados em em a) e também a sua aquisição por usucapião nos termos em 1 e 2 das presentes conclusões;
4. Uma aquisição, não titulada, conhecida a non domino pelo comprador, como é a dos autos, será sempre uma aquisição de má-fé, pois é feita com conhecimento da lesão do direito deste e terá um prazo de usucapião, o previsto no art.º 1296.º do Código Civil - 20 anos.
5. Por outro lado, quer por a alegada venda configurar em relação ao autor DD uma venda a non domino é a mesma nula nos termos do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 892.º, 287.º do Código Civil e tem por efeitos os prescritos nos Artigos 289º e 894.º do C. Civ., nulidade invocada e de conhecimento oficioso, que deveria e deverá ser declarada;
6. Ainda e também, a alegada venda será sempre nula por falta de forma nos termos do disposto nos artigos 875.º, 294.º do C. Civ, com os efeitos já vistos do art.º 289.º Código Civil nulidade também ela invocada e de conhecimento oficioso, que deveria e deverá ser declarada;
7. Como consequência de tal nulidade (289.º do Código Civil) resulta a restituição do recebido, no entanto, e como definido no artigo 894.º/2 C. Civ, ou seja, o preço aqui a restituir deverá ser deduzido no proveito tido pelo comprador em valor igual ao recebido que corresponderá a um valor mínimo não inferior ao de uma renda de 104.16€ /mensais durante doze anos;
8. Não litiga de má-fé quem alegando factos não os consegue provar, nem tal integra o conceito de má-fé consagrado no art.º 542.º C.P.C, pelo que se não justifica a condenação da autora nessa qualidade, devendo tal decisão ser revogada;
9. A Sentença em causa ao não apreciar os factos submetidos com a acção de reivindicação (1311.º Código Civil) ao seu escrutínio, alegados e que lhe competia apreciar oficiosamente, violou o disposto n.º 2, do artigo 608.º, do CPC, sendo causa de nulidade da sentença em causa, nos termos do disposto no artº 615º, nº1, al. d) até porque existe nos autos documento de prova plena, o Registo Predial, não posto em causa que implicava decisão sobre os mesmos, que ao não existir, constitui nulidade da sentença proferida que deverá ser declarada;
10. Até porque o fundamento da presente acção de reivindicação é o reconhecimento da propriedade e a consequente restituição da coisa objecto do mesmo, como definido no artigo 1311.º do Código Civil e a sentença ao não se pronunciar sobre tal pedido, a coisa não é uma coisa sem dono, tem de ter dono, é nula pois violou o nº 2, do artigo 608.º, do CPC, sendo causa de nulidade da sentença em causa, nos termos do disposto no art.º 615º, nº1, al. d);

Os réus não responderam ao recurso.

No despacho liminar o ora relator entendeu que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição do prédio eram susceptíveis de serem considerados abusivos à luz do artigo 334.º do Código Civil e da realidade julgada provada.

Em cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a questão.

Os réus, recorridos, alegaram que existe abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de comprometer ou prejudicar o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado, o que a autora fez no âmbito dos presentes autos.

A autora, recorrente, alegou:
· Que o que se encontrava em causa nos presentes autos era determinar se o suposto abuso de direito era impeditivo da declaração de nulidade do negócio (compra e venda) não formalizado por escritura pública ou sequer a sua arguição pela parte “abusadora”;
· Que, acompanhando a doutrina dominante, entendia que a A exigência legal de formalização por escritura pública da compra e venda de imóveis existia não só para assegurar a ponderação das partes, mas para outros fins e, entre eles, a segurança e a certeza acerca da situação da propriedade imobiliária e, assim sendo, a solução seria a de ilegitimidade de oposição, ou seja, a nulidade podia ser invocada por quem cometeu abuso de direito, mas ter essa pessoa a obrigação de indemnizar a outra parte;
· Que autora, por imperativo legal, era acompanhada pelo seu ex-marido, também autor;
· Que este, como ficou suficientemente demonstrado nos autos, não teve intervenção ou sequer mesmo conhecimento da venda e seus termos, nada tendo recebido, “estavam à espera da sua morte para fazer a escritura”;
· Que o mesmo invocou a nulidade da venda em causa e não foi dado como provado que tenha actuado com qualquer má-fé ou abuso do direito, pelo que sempre teria de proceder a apreciação da nulidade também por ele invocada;
· Para além de que, como ficou provado nos autos, a autora em boa verdade não recebeu sequer praticamente qualquer valor, quem recebeu as viaturas foi o filho, as despesas de oficina são do filho pois que a autora nunca teve qualquer veículo nem sequer poderia ter pois nunca possuiu habilitação legal para conduzir;
· Que a autora e sobretudo o autor, ex-marido, têm legitimidade para arguir a nulidade por falta de forma da compra e venda em causa, não se poderá nem deverá considerar o exercício legitimo de tal direito como abuso do direito;
· Que deverá ser a invocada nulidade por falta de forma ser apreciada e declarada, com as legais consequências.


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Objecto do recurso:

Antes de prosseguirmos, importa precisar o objecto do recurso. No requerimento com que o interpôs, a autora insurgiu-se contra a sentença proferida nos autos, o que era de interpretar, de acordo com o que prescreve o n.º 3 do artigo 635.º do CPC, no sentido de que ele abrangia tudo o que na parte dispositiva da sentença fosse desfavorável à recorrente. E a parte dispositiva da sentença, no que diz respeito à acção, é toda ela desfavorável à autora, visto que julgou improcedentes todos os pedidos por ela formulados.

Sucede que, nas conclusões do recurso, a recorrente não se pronunciou sobre a decisão de julgar improcedente o pedido de condenação dos réus no pagamento de sanção pecuniária compulsória nem sobre a de julgar improcedente o pedido de condenação deles no pagamento da quantia de 1.500,00€ a cada um dos autores, a título de danos morais.

Esta omissão de pronúncia sobre a decisão de improcedência destes pedidos é de interpretar como uma restrição tácita do objecto inicial do recurso, consentida pelo n.º 4 do artigo 635.º do CPC.

Em consequência, o objecto do recurso é constituído pela sentença na parte em que julgou improcedentes os restantes pedidos.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:
1. Saber se a sentença é nula por omissão de pronúncia;
2. Saber se a sentença é de revogar e de substituir por decisão com o seguinte sentido:
· Que declare que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio em questão nos autos;
· Que condene os réus a restituírem o prédio e que o preço que a autora está obrigada a restituir aos réus por efeito da nulidade da venda seja deduzido em igual valor do proveito tido pelos réus com a utilização da casa;
3. Saber se a sentença é de revogar na parte em que condenou a autora como litigante de má-fé.
4. Saber se o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição do prédio são ilegítimos por configurarem abuso de direito.

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Nulidade da sentença

Os recorrentes acusam a sentença de incorrer na causa de nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: a sentença não se pronunciou sobre questões que devia apreciar.

Segundo a recorrente, o tribunal a quo não se pronunciou sobre as seguintes questões:
· Sobre a nulidade da venda do prédio efectuada pela autora aos réus, quer por ela configurar, em relação ao autor DD, uma venda de bens alheios, nula nos termos dos artigos 892.º e 287.º do Código Civil, quer por ela ser nula por falta de forma nos termos do disposto nos artigos 75.º e 294.º e seguintes do Código Civil;
· Sobre o pedido de reconhecimento do direito de propriedade.

Apreciação do tribunal:

Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.

A nulidade de sentença ora em apreciação está directamente relacionada com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Apesar de nem a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC nem o n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma dizerem o que se deve entender por questões para efeitos de tais preceitos, a jurisprudência tem afirmado de modo constante que questões para tais efeitos são as pretensões deduzidas pelas partes e as excepções deduzidas por elas como meios de defesa e que fora do conceito de questões estão os argumentos de facto e de direito que sustentam as pretensões e excepções.

Segue-se do exposto que é dever do juiz pronunciar-se sobre todas as pretensões e sobre todos os meios de defesa deduzidos pelas partes, salvo se a pronúncia em relação a alguma ou algumas delas estiver prejudicada pela solução dada a outras.

Logo, a procedência da arguição de nulidade baseada em omissão de pronúncia pressupõe:
· Que a questão tenha sido suscitada pela parte ou que a lei imponha o conhecimento oficioso dela;
· Que o tribunal não se tenha pronunciado sobre ela;
· Que a pronúncia sobre ela não esteja prejudicada pela solução dada a outra ou outras questões.

No caso, é exacto que, apesar de negar que tenha vendido o prédio em questão aos réus, a autora alegou na réplica que tal venda seria nula por não ter observada a forma prescrita na lei e ainda por constituir venda de bens alheios, já que ela não era a única titula do direito de propriedade sobre os imóveis. E também é exacto que pediu o reconhecimento a seu favor do direito de propriedade sobre o prédio em questão nos autos.

Porém, já não é exacto que a sentença não tenha conhecido da questão da nulidade da venda por inobservância da forma legalmente prescrita e do pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor da autora.

Conheceu da invalidade formal da venda como o atesta o seguinte trecho da sentença: “Estando em causa uma simples compra e venda verbal, não formalizada, a mesma, considerando que tem por objecto negocial um imóvel, padeceria de um vício de forma (artigo 875.º do Código Civil), sancionado com a nulidade do negócio (artigo 220.º do Código Civil. Atente-se que esta nulidade poderá ser declarada oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do artigo 286.º do Código Civil, encontrando-se os seus efeitos discriminados no artigo 289.º do mesmo diploma)”.

Ao julgar improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor da autora, o juiz cumpriu o dever que lhe era imposto pela 1.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC. É certo que a sentença não reconheceu o direito de propriedade a favor de nenhum dos contendores, apesar de ambos se arrogarem proprietários do prédio. Sucede que o dever de resolver as questões suscitadas pelas partes não compreende a obrigação de as resolver em sentido favorável às mesmas. Tal dever é cumprido com a pronúncia do tribunal sobre elas. Ao julgar improcedente o pedido dos autores no sentido de serem reconhecidos como proprietários do prédio em questão nos autos, o tribunal cumpriu o dever que para si resultava da 1.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC. Questão diferente – e que contende com o mérito da causa - é a de saber se a autora é, como ela alega, titular do direito de propriedade sobre o prédio em questão nos autos.

Em relação à alegação de que a venda era nula por venda de bens alheios, é certo que o tribunal não conheceu dela, nem justificou a omissão pronúncia. Havia, no entanto, uma razão para não conhecer dela, concretamente: a decisão de julgar nula a venda por falta de forma prejudicava a resolução da questão de saber se tal negócio também era nulo por consistir na venda de um bem alheio.

Por todo o exposto, improcede a arguição de nulidade da sentença.


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Alteração da decisão de facto:

Antes de passarmos à discriminação dos factos julgados provados e não provados, importa apreciar uma questão suscitada no recurso como questão de facto, mas que na realidade o não é. Vejamos.

A recorrente, sob a alegação de que estava em condições de invocar, em seu benefício, não só a presunção derivada do registo de que era proprietária do prédio em questão nos autos, mas também a aquisição do mesmo por usucapião, sustentou que devia alterar-se a decisão de julgar não provado que os autores eram donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1) dos factos provados [alínea a) dos factos julgados não provados], no sentido de tal matéria passar a ser declarada provada.

Levada à letra, estamos perante impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Sucede que a matéria que a autora quer ver alterada, passando a ser julgada provada, é de direito, no sentido de que a sua afirmação há-de resultar da aplicação da lei aos factos julgados provados.

E sendo tal matéria de direito, o seu lugar não é nem entre os factos declarados provados nem entre os julgados não provados.   Na verdade, apesar de o Código de Processo Civil em vigor não conter uma norma como a do n.º 4 do artigo 646.º do CPC, segundo a qual tinham-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo [no sentido de tribunal que julga a matéria de facto] sobre questões de direito, é de afirmar esta solução no domínio do CPC, deduzindo-se a mesma do n.º 4 do artigo 607.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os julga não provados.

Pelo exposto, considera-se não escrita a decisão de julgar não provado que “os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1) dos factos provados”.

São igualmente de julgar não escritas por compreenderem também afirmações de direito os seguintes segmentos da decisão relativa à matéria de facto:
· O que julgou não provado que “os réus não são detentores de qualquer título que legitime a referida ocupação e utilização” [alínea e) dos factos julgados não provados];
· O que julgou provado que os réus desde há 12 anos, que são os “únicos e legítimos possuidores do sobredito prédio urbano” [parte final do ponto n.º 13 dos factos julgados provados].


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Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Provados:
1. Os autores adquiriram por compra e venda a FF e esposa GG, no ano de 1994 o seguinte prédio Urbano: Prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independentes, casa térrea com cinco divisões, afecta a habitação sita no Bairro ..., na localidade e freguesia ..., com a área de 46m2, inscrita na matriz predial Urbana de ... sob o nº ...65º e descrita na C.R.P ... sob o nº ...05.
2. À data da aquisição, a Autora era casada no regime da comunhão de bens adquiridos com DD.
3. Quando o filho dos Autores, HH adquiriu em data não concretamente apurada, mas situada em data anterior ao ano de 2008 uma habitação em ..., para si e para a sua mulher, a aqui A., já separada do pai daquele, foi residir com eles como a mãe desta, II, entretanto falecida.
4. O prédio urbano identificado em 1) ficou livre de pessoas e bens.
5. Os réus, no início de vida em conjunto procuraram ao tempo a aqui autora para a questionar sobre a possibilidade de poderem arrendar ou comprar a referida casa.
6. Os RR em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2008 acordaram com autora na sua compra, pelo montante global de € 15.000,00 (quinze mil euros).
7. A aqui autora, alegadamente, não havia ainda resolvido a sua situação marital e consequentes partilhas, acordou com os aqui réus, que os mesmos, de imediato, lhe entregariam, o que fizeram, como início de pagamento da quantia global de € 9.000,00 (nove mil euros), materializada na entrega de duas viaturas
8. Acordaram os réus com a aqui autora que procederiam, por si e em seu nome, e por conta do pagamento do referido imóvel, ao pagamento de duas dívidas que mantinha: - € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), ao empreiteiro JJ; - € 420,00 (quatrocentos e vinte euros), na Oficina de KK em .... acordando que o valor restante, € 4.080,00 (quatro mil e oitenta euros) seria pago em prestações.
9. Os aqui réus mantiveram um registo escrito das entregas que fizeram, sendo que numas ocasiões entregavam dinheiro à aqui autora, noutras ocasiões ao seu filho DD, e, ainda, em outras ocasiões, à irmã da autora, LL, sendo que algumas das entregas foram feitas pela mãe do aqui réu, MM
10. Após o pagamento global os aqui réus instaram a aqui autora por diversas vezes para que pudessem outorgar a escritura pública de compra e venda, nunca a mesma tendo negado o acto, mas também nunca o tendo concretizado.
11. Numa ocasião, e após novamente abordada pelos réus, a aqui autora retorquiu dizendo que iria à Conservatória do Registo Civil para indagar se o seu marido já havia falecido, caso em que seria o seu filho a assinar a escritura de compra e venda!
12. Os réus desde a sua aquisição, ou seja, desde há 12 anos, que possuem a referida habitação, sempre pagaram o Imposto Municipal sobre Imóveis que a autora lhes entregava para liquidar, só não o tendo feito nos últimos cinco anos, porquanto este lhes referiu tendo ficado isenta do pagamento do mesmo.
13. Os aqui réus, desde há 12 anos, que ocupam o imóvel descrito, de forma pacífica e pública, sem oposição de ninguém, nem mesmo da aqui autora, de forma ininterrupta, e exclusiva nele exercendo e praticando obras de benfeitorias, e outras que entenderam como necessárias.
14. O contrato definitivo de compra e venda do sobredito prédio urbano não se realizou única e exclusivamente devido ao incumprimento, reiterado, da aqui autora.

Não provados:
a) Que desde 1994 que os autores, permanecem na posse do referido prédio nele habitando, ou nele permitindo a habitação a terceiros, quer onerosa quer gratuitamente dele retirando todas as suas utilidades, por si ou interposta pessoa, aí fazendo sua vida, recebendo amigos e familiares e aí fazendo as suas refeições e pernoitando;
b) Que tal utilização e aproveitamento foi sempre feito à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de que tal prédio lhes pertence, pelo que se outro título os autores não tivessem sempre teriam adquirido tal direito de propriedade quer por sucessão quer na posse e também consequente usucapião quer na propriedade, o que invocam para todos os efeitos;
c) Que há algum tempo a esta parte, o filho dos autores AA permitiu aos réus a utilização para sua habitação do referido prédio tudo sem conhecimento e consentimento dos autores, o que motivou desavenças graves com esse mesmo filho, por tal ter permitido.
d) Que os réus não são detentores de qualquer autorização ou consentimento que legitime a referida ocupação e utilização.
e) Que os autores ficaram impedidos, com a actuação dos réus de utilizar a sua propriedade nomeadamente de a habitar e usar de usufruir da mesma e das utilidades de habitação que a mesma proporciona em valor, equivalente ao de uma renda mensal no valor de €4 00,00 mensais ou seja 4.800,00 anuais, num valor global, até à presente data de 19.200,00€;
f) Que os autores sofreram incómodos, nervosismo, agitação, causador de insónias e má disposição.
g) Que desde há mais de 15 anos que os réus residem no prédio identificado em 1)


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Descritos os factos, passemos à resolução das restantes questões.

Comecemos pela questão de saber se a decisão recorrida é de revogar e de substituir por decisão com o seguinte sentido:
1. Que declare os autores donos e legítimos possuidores do prédio em causa nos autos;
2. Que condene os réus a restituírem o prédio e o proveito que eles tiveram dele, deduzido em igual valor do preço pago.

A decisão sob recurso julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor dos autores com a seguinte justificação:
· Os réus eram os legítimos possuidores do prédio urbano por o terem comprado à autora há cerca de 12 anos;
· Que apesar de ser nula, por não ter observado a forma legalmente prescrita, a venda marcou o início do exercício possessório dos réus, que ganharam o efectivo domínio factual sobre a coisa e a consciência e a intenção de exercer esse domínio;
· Que não sendo os autores legítimos possuidores, ficava prejudicada a aquisição do direito de propriedade por usucapião;
· Que apesar de a aquisição do direito de propriedade estar registada a favor dos autores e de o este registo constituir presunção de que os autores eram os titulares do direito de propriedade sobre o prédio, a presunção estava ilidida pela posse dos réus sobre o prédio.

A improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade determinou a improcedência dos restantes pedidos.

A autora, ora recorrente, contestou a decisão com a seguinte linha argumentativa:
1. Encontrando-se inscrita no registo predial a aquisição a favor dos autores desde 05-05-1994, deriva de tal facto a presunção do direito de propriedade nos titulares inscritos, por força das disposições conjugadas dos artigos 1259.º, 1260.º/2, 1268.º e 1294.º do C.C e 7.º do C.R.P, não tendo tal presunção sido ilidida pelos réus;
2. Sendo a posse sobre o imóvel em causa titulada, 1259º e 1260/2 do C. Civil, atendendo ao seu tempo de duração (1994-2008, 14 anos), os autores adquiriram também a propriedade por usucapião tendo em conta o disposto no artigo 1294.º do C. Civil, presunções também não ilididas pelos réus.

Apreciação do tribunal:

Está provado que a autora adquiriu por compra a FF e esposa GG, no ano de 1994, o prédio urbano em questão nos autos. E está provado também, através da certidão da conservatória do registo predial junta aos autos, que a aquisição do prédio está registada a favor da autora desde 5 de Maio de 1994.

Aplicando a esta realidade o artigo 7.º do Código do Registo Predial, segundo o qual “o registo definitivo constituir presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”, é de presumir que o direito de propriedade sobre o prédio em questão nos autos existe e pertence à autora.

Visto que quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduza (n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil), estava a autora dispensada de provar o facto aquisitivo do direito de propriedade sobre o prédio em questão.

Cabia aos réus ilidirem tal presunção mediante prova em contrário (n.º 2 do artigo 350.º do CC), visto que o artigo 7.º do CRP não proibia tal prova. A prova em contrário implicava a demonstração de que os autores não eram os proprietários do prédio em questão ou porque nunca o foram ou porque, tendo-o sido, já haviam perdido tal qualidade.

Os réus procuraram ilidir a presunção, mediante a alegação de que eram eles os proprietários. Tal alegação não teve êxito. Em consequência, a sentença recorrida julgou improcedente a pretensão deles no sentido de lhes ser reconhecido o direito de propriedade. Decisão que transitou em julgado visto que contra ela não foi interposto recurso.

Segue-se do exposto que subsiste a favor da autora a presunção, derivada do registo, de que é a proprietária do prédio em questão. Presunção que, contrariamente ao afirmado na sentença, não foi infirmada pelo facto de os réus se terem tornado possuidores do prédio após a aquisição inválida dele à autora em 2008. Na verdade, embora o possuidor goze da titularidade do direito, esta presunção cede perante a presunção de propriedade fundada em registo anterior ao início da posse (n.º 1 do artigo 1268.º do Código Civil) e, no caso, enquanto a presunção derivada do registo de que beneficia a autora data de Maio de 1994, a posse dos réus sobre o prédio urbano só se iniciou em 2008.

Vista a questão do direito de propriedade, passemos à da restituição do prédio.

Segundo o n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei. Visto que os réus recusaram a restituição com a alegação de que eram eles os proprietários e que esta tese não foi acolhida, é bom de ver que não havia fundamento para recusar a restituição com base na propriedade do prédio.

Não obstante a autora, ora recorrente, beneficiar da presunção de que é proprietária do prédio e de os réus não terem ilido tal presunção, no entender deste tribunal é de manter a decisão de julgar improcedente a acção, uma vez que tanto o reconhecimento do direito de propriedade como o de restituição do prédio são abusivos à luz do artigo 334.º do Código Civil, na parte em que dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.

Observe-se que, contrariamente ao que alegou a recorrente quando se pronunciou sobre a questão do abuso do direito, o que está em causa não é saber se a arguição de nulidade da compra e venda é abusiva. Esta questão seria pertinente se o pedido de restituição do prédio tivesse como causa de pedir a nulidade da compra e venda e se a questão da restituição se colocasse por efeito declaração de nulidade de tal negócio (n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil), o que não sucede.

Como resulta do exposto acima, a autora, ora recorrente, invocou a nulidade da compra e venda, a título de defesa por excepção, contra o pedido reconvencional dos réus no sentido de serem reconhecidos proprietários do prédio com base na compra e venda. Sucede que esta pretensão foi julgada improcedente.

A questão da restituição do prédio coloca-se por este tribunal ter reconhecido a autora, ora recorrente, como proprietária do prédio em questão. Logo, como se assinalou no despacho liminar, o abuso de direito suscita-se em relação ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade e de restituição do prédio. 

Vejamos, pois as razões pelas quais entendemos que o exercício destes direitos é abusivo à luz do artigo 334.º do Código Civil.

Resulta deste preceito que o exercício de qualquer direito está sujeito a limites, os quais podem radicar na boa fé, nos bons costumes ou no fim social ou económico do próprio direito. Quando o titular exceder manifestamente tais limites o exercício é ilegítimo.

Apesar de não ser fácil estabelecer a fronteira entre o exercício legítimo e o ilegítimo de um direito e de afirmar que o titular excedeu manifestamente os respectivos limites, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a identificar uma pluralidade de acções que, sob o manto do exercício de um direito, atentam ostensivamente contra a boa fé, os bons costumes ou o fim económico e social de um direito.

Entre tais acções abusivas figuram aquelas que a doutrina designa por “venire contra factum proprium”. Nas palavras de Pedro Pais Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos trata-se do “… exercício posterior do direito em contradição com a prática passada reiterada e com frustração das expectativas legítimas e razoavelmente suscitadas na parte a quem o direito é oposto ou contra quem é exercido…” [Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, página 284].

Tomando como referência o que foi decidido em outras decisões judiciais, para que o exercício de um direito em contradição com a prática passada reiterada seja susceptível de cair nas malhas do abuso de direito é necessário que se verifiquem cumulativamente as seguintes circunstâncias: 
· A existência de um comportamento anterior do agente (factum proprium) que seja susceptível de criar uma situação objectiva de confiança;
· Que as condutas contraditórias sejam imputáveis ao agente;
· Que a pessoa atingida com o comportamento contraditório tenha confiado na situação criada pelo acto anterior;
· Que haja um investimento de confiança, traduzido no facto de tal pessoa tenha desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente;
· Que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano.

Citam-se em abono desta interpretação, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 12-02-2009, recurso n.º 09A073, acórdão proferido em 11-12-2012, no processo n.º 116/07.2TBMCN.P1.S1, acórdão proferido em 12-11-2013, no processo n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, acórdão proferido em 27-04-2017, no processo n.º 1192/12.1TVLSB.L1.S1., acórdão proferido em 7-03-2019, no processo n.º 499/14.8T8EVR.S1, acórdão proferido em 10-12-2019, no processo n.º 7571/17.0T8CBR.C1., todos publicados em www.dgsi.pt, e ainda acórdão do STJ n.º 14/2016, proferido em 5-07-2016, publicado no DR I série de 28 de Outubro de 2016.

Interpretado o artigo 334.º do Código Civil com o sentido e o alcance expostos, a propósito do exercício de um direito em termos contraditórios com o exercício anterior, é de afirmar que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição do imóvel caem nas malhas do preceito.

Em primeiro lugar, deparamos com comportamentos anteriores da autora susceptíveis de criar nos réus a confiança de que ela não pediria o reconhecimento do direito e a restituição do imóvel. Estão nesta situação o recebimento da totalidade do preço, a entrega aos réus do documento de cobrança do IMI para serem eles a pagar o imposto, e mais tarde, a informação aos réus de que não havia IMI a pagar por ela ter ficado isenta do pagamento e o facto de, numa ocasião em que foi instada a outorgar a escritura pública, ela ter afirmado que iria à Conservatória do Registo Civil para indagar se o marido já havia falecido, caso em que seria o seu filho a assinar a escritura de compra e venda.

Todos estes comportamentos apontam inequivocamente no sentido de que a autora não se considerava, depois de ter combinado com os réus a venda do prédio, a proprietária dele. Além de apontarem neste sentido são idóneos para criar nos réus a confiança de que lhes não seria pedida a restituição do imóvel.

Em segundo lugar, os réus investiram nesta confiança, passando a habitar o prédio urbano e a fazer dela a sua residência, o centro da sua vida e a realizar nele benfeitorias e outras obras que entenderam como necessárias.  

Ao pedir o reconhecimento direito e a restituição do prédio dozes anos depois de o ter entregado aos réus em cumprimento de um contrato de compra e venda verbal e de, durante tal período, ter dado, com o seu comportamento, sinais inequívocos de que já não se considerava a proprietária do prédio, a autora traiu a confiança que os réus legitimamente depositaram no seu anterior comportamento e agiu de forma manifesta desleal.

Daí que o pedido de reconhecimento do direito e o de restituição do prédio nas circunstâncias acima descritas excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, sendo, em consequência, ilegítimos, por aplicação do artigo 334.º do Código Civil.

Sendo ilegítimo o exercício destes direitos, não assiste à autora, ora recorrente, o direito de exigir aos réus qualquer quantia a título de frutos que o prédio produziu ou que pudesse vir a produzir na pendência da presente acção.

A propósito do pedido de restituição do prédio e do valor dos frutos importa dizer ainda o seguinte.

No recurso, a autora, ora recorrente, pediu a restituição do prédio “deduzido, na contrapartida do preço pago, do proveito tido pelos réus em igual valor”.

Esta pretensão tem como pressuposto a nulidade da venda. Com efeito, na 5.ª conclusão, a recorrente sustenta que a venda é nula por configurar, em relação ao autor DD uma venda de bens alheios. Na 6.ª afirma que a venda é ainda nula por falta de forma. E na 7.ª remata nos seguintes termos: “Como consequência de tal nulidade (289.º do C. Civ), resulta a restituição do recebido, no entanto e como definido no artigo 894./2 C. Civ, ou seja, o preço aqui a restituir deverá ser deduzido no proveito tido pelo comprador em valor igual ao recebido que corresponderá a um valor mínimo não inferior ao de uma renda de 104.16€/mensais durante doze anos”.

Isto é, na tese da recorrente, por efeito da declaração da nulidade da venda ela estaria obrigada a restituir o preço que recebeu. Porém, ao preço havia que deduzir o montante do proveito que os réus compradores tiraram do prédio e esse montante – sempre na tese da recorrente – era igual ao do preço. Por outras palavras, segundo a recorrente obrigação que impendia sobre ela de restituir o preço era compensada com a obrigação dos réus de lhe pagarem a ela o proveito que tiraram do prédio durante doze anos.

A pretensão da recorrente é de julgar improcedente. Na verdade, a pretensão de compensar a obrigação de restituição do preço em consequência da nulidade da venda com a obrigação de os réus de restituírem o proveito que retiraram do prédio configura um pedido novo diferente do que foi deduzido na petição e resulta do artigo 264.º do CPC que o pedido e a causa de pedir podem ser ampliados em sede de recurso desde que haja acordo das partes e, no caso, esse acordo não existe.

Contra a pretensão de os réus restituírem o proveito que tiraram do imóvel pode dizer-se ainda o seguinte. A pretensão da autora, ora recorrente, no sentido de os réus restituírem o proveito que tiraram do imóvel assentou na ocupação ilícita dele, sendo que, no caso, provou-se que os réus ocuparam-no com consentimento e autorização da autora, ou seja, ocuparam-no licitamente (n.º 1 do artigo 340.º do Código Civil).


*

Litigância de má-fé

A autora ora recorrente, impugnou, por último, a decisão que a condenou como litigante de má fé.

A condenação assentou no facto de a autora ter negado que vendera aos réus o prédio em causa nos autos, sabendo que tal correspondia à verdade.

A autora contesta a decisão com a seguinte linha argumentativa:
1. A venda foi julgada provada com base nos depoimentos de pessoas interessadas na questão, concretamente o filho e a nora dela, autora;
2. Em segundo lugar, a alegação da autora segundo a qual foi o filho dela autora quem vendeu a casa está indiciariamente demonstrada;
3. Que não tendo a autora conseguido provar os factos por ela alegados, ou seja, que quem vendeu o imóvel foi o seu filho não torna verdade que foi ela, autora, quem o vendeu, não existindo, por isso, alteração consciente dolosa dos factos, nem omissão de factos relevantes para a decisão;
4. Que independentemente de ter ou não vendido o imóvel, considerando as nulidades da venda, a decisão que se impunha era a declaração de nulidade com as respectivas consequências;
5. Que a autora actuou com consciência de ter razão.

Apreciação do tribunal:

O recurso é de julgar improcedente nesta parte.

Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, incorrer nalguma das condutas previstas nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC.

Para o caso interessa-nos a alínea b) na parte em que reputa de litigante de má-fé quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.

E interessa-nos este preceito porque, ao alegar na acção que o filho dela e do seu ex-cônjuge, DD, permitiu aos réus a utilização para sua habitação do referido prédio, sem conhecimento e consentimento dela, quando se provou que os réus habitam a casa com o consentimento dela por lha ter vendido verbalmente em 2008, a autora alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão judicial.

E esta alteração foi dolosa porque os factos que foram alterados e negados são factos pessoais.

Não merece, pois, qualquer censura a decisão de condenar a autora como litigante de má fé.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o facto de autora ter ficado vencido no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Coimbra, 9 de Novembro de 2022