Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | DIREITO DE PROPRIEDADE COMPRA E VENDA VERBAL REIVINDICAÇÃO ABUSO DO DIREITO | ||
Data do Acordão: | 11/09/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 334.º, 340.º, N.º 1, E 1311.º, N.º 2, TODOS DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I – Incorre em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium, a autora que pede o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição do imóvel doze anos depois de o ter negociado verbalmente com os réus, tendo recebido a totalidade do preço respetivo, encontrando-se a contraparte, por isso, na posse do imóvel, onde fixou a sua residência, tendo vindo tal demandante a entregar aos réus o documento de cobrança do IMI, para serem eles a pagar o imposto, bem como a informá--los, mais tarde, de que não havia IMI a pagar, por ter ficado isenta do respetivo pagamento, e ainda, quando instada a outorgar a escritura pública de compra e venda, de que iria à conservatória do registo civil indagar se o marido já havia falecido, caso em que seria o seu filho a assinar a escritura de compra e venda.
II – Num tal caso, criada nos réus a confiança de que lhes não seria pedida a restituição do imóvel, apesar de não ter sido celebrada escritura de venda, aqueles pedidos excedem manifestamente os limites impostos pela boa-fé, sendo ilegítimos, pelo que também não assiste à autora, ocorrido consentimento, o direito de exigir aos réus qualquer quantia a título de frutos produzidos pelo prédio. | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Emídio Francisco Santos Adjuntos: Catarina Gonçalves Maria João Areias Processo n.º 88/20.8T8FCR Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra AA, residente na Rua ..., nº 1 em ... – ... – ..., ..., propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e sua esposa CC, residentes no Bairro ... – ... – ... – ..., pedindo a condenação dos réus: Para o efeito, depois de requerer a intervenção provocada do ex-cônjuge, DD, atenta a natureza do bem reivindicado, alegou em síntese: Citados, os réus contestaram, por excepção e por impugnação, e deduziram reconvenção. Na sua defesa arguiram a ilegitimidade da autora e sustentaram que eram eles os proprietários do imóvel em causa nos autos por o haverem comprado à autora há mais de 15 anos e por desde então o tem possuído pelo que, se outro título não tivessem, tê-lo-iam adquirido por usucapião. Em reconvenção pediram condenação dos autores no reconhecimento de que eles réus eram os proprietários do prédio urbano acima descrito [sito no Bairro ..., na freguesia ..., Concelho ..., composto de casa térrea com cinco divisões, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a descrição número ...87, daquela freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...65, com a área total coberta de 46 metros quadrados, a confrontar do norte e poente com EE e do sul e nascente com rua com o valor patrimonial tributável de € 6 810,65] por o terem adquirido pelo valor global de 15 000,00 (quinze mil euros), valor recebido na íntegra pela aqui autora, e por via desse negócio serem os réus reconhecidos como únicos e legítimos possuidores e proprietários do sobredito prédio urbano. Pediram ainda a condenação da autora como litigante de má fé em multa e indemnização a liquidar em execução de sentença. A autora respondeu. Impugnou a alegação de que vendeu o prédio aos autores, bem como o recebimento de qualquer preço; alegou que sendo a venda um negócio formal, a falta de escritura pública acarretava a sua nulidade e que, não sendo ela a única titular do direito de propriedade sobre o imóvel, sempre se estaria perante uma venda de bens alheios, nula nos termos dos artigos 892.º e seguintes do Código Civil. Pediu no final se julgasse improcedente a reconvenção e se condenassem os réus como litigantes de má-fé em multa e indemnização a favor dela, autora. DD, ex-cônjuge da autora, foi admitido a intervir nos autos como parte principal ao lado da autora. Citado declarou que fazia seus os articulados da demandante. O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu: O recurso A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se declarasse a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, se revogasse a mesma, declarando-se os autores donos e legítimos possuidores do prédio em causa e restituindo-se o mesmo deduzido e, na contrapartida do preço pago, do proveito tido pelos réus em igual valor. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: Os réus não responderam ao recurso. No despacho liminar o ora relator entendeu que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição do prédio eram susceptíveis de serem considerados abusivos à luz do artigo 334.º do Código Civil e da realidade julgada provada. Em cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a questão. Os réus, recorridos, alegaram que existe abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de comprometer ou prejudicar o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado, o que a autora fez no âmbito dos presentes autos. A autora, recorrente, alegou: * Objecto do recurso: Antes de prosseguirmos, importa precisar o objecto do recurso. No requerimento com que o interpôs, a autora insurgiu-se contra a sentença proferida nos autos, o que era de interpretar, de acordo com o que prescreve o n.º 3 do artigo 635.º do CPC, no sentido de que ele abrangia tudo o que na parte dispositiva da sentença fosse desfavorável à recorrente. E a parte dispositiva da sentença, no que diz respeito à acção, é toda ela desfavorável à autora, visto que julgou improcedentes todos os pedidos por ela formulados. Sucede que, nas conclusões do recurso, a recorrente não se pronunciou sobre a decisão de julgar improcedente o pedido de condenação dos réus no pagamento de sanção pecuniária compulsória nem sobre a de julgar improcedente o pedido de condenação deles no pagamento da quantia de 1.500,00€ a cada um dos autores, a título de danos morais. Esta omissão de pronúncia sobre a decisão de improcedência destes pedidos é de interpretar como uma restrição tácita do objecto inicial do recurso, consentida pelo n.º 4 do artigo 635.º do CPC. Em consequência, o objecto do recurso é constituído pela sentença na parte em que julgou improcedentes os restantes pedidos. * Síntese das questões suscitadas pelo recurso: 1. Saber se a sentença é nula por omissão de pronúncia; 2. Saber se a sentença é de revogar e de substituir por decisão com o seguinte sentido: · Que declare que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio em questão nos autos; · Que condene os réus a restituírem o prédio e que o preço que a autora está obrigada a restituir aos réus por efeito da nulidade da venda seja deduzido em igual valor do proveito tido pelos réus com a utilização da casa; 3. Saber se a sentença é de revogar na parte em que condenou a autora como litigante de má-fé. 4. Saber se o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição do prédio são ilegítimos por configurarem abuso de direito. * Nulidade da sentença Os recorrentes acusam a sentença de incorrer na causa de nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: a sentença não se pronunciou sobre questões que devia apreciar. Segundo a recorrente, o tribunal a quo não se pronunciou sobre as seguintes questões: Apreciação do tribunal: Este fundamento do recurso é de julgar improcedente. A nulidade de sentença ora em apreciação está directamente relacionada com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Apesar de nem a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC nem o n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma dizerem o que se deve entender por questões para efeitos de tais preceitos, a jurisprudência tem afirmado de modo constante que questões para tais efeitos são as pretensões deduzidas pelas partes e as excepções deduzidas por elas como meios de defesa e que fora do conceito de questões estão os argumentos de facto e de direito que sustentam as pretensões e excepções. Segue-se do exposto que é dever do juiz pronunciar-se sobre todas as pretensões e sobre todos os meios de defesa deduzidos pelas partes, salvo se a pronúncia em relação a alguma ou algumas delas estiver prejudicada pela solução dada a outras. Logo, a procedência da arguição de nulidade baseada em omissão de pronúncia pressupõe: No caso, é exacto que, apesar de negar que tenha vendido o prédio em questão aos réus, a autora alegou na réplica que tal venda seria nula por não ter observada a forma prescrita na lei e ainda por constituir venda de bens alheios, já que ela não era a única titula do direito de propriedade sobre os imóveis. E também é exacto que pediu o reconhecimento a seu favor do direito de propriedade sobre o prédio em questão nos autos. Porém, já não é exacto que a sentença não tenha conhecido da questão da nulidade da venda por inobservância da forma legalmente prescrita e do pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor da autora. Conheceu da invalidade formal da venda como o atesta o seguinte trecho da sentença: “Estando em causa uma simples compra e venda verbal, não formalizada, a mesma, considerando que tem por objecto negocial um imóvel, padeceria de um vício de forma (artigo 875.º do Código Civil), sancionado com a nulidade do negócio (artigo 220.º do Código Civil. Atente-se que esta nulidade poderá ser declarada oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do artigo 286.º do Código Civil, encontrando-se os seus efeitos discriminados no artigo 289.º do mesmo diploma)”. Ao julgar improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor da autora, o juiz cumpriu o dever que lhe era imposto pela 1.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC. É certo que a sentença não reconheceu o direito de propriedade a favor de nenhum dos contendores, apesar de ambos se arrogarem proprietários do prédio. Sucede que o dever de resolver as questões suscitadas pelas partes não compreende a obrigação de as resolver em sentido favorável às mesmas. Tal dever é cumprido com a pronúncia do tribunal sobre elas. Ao julgar improcedente o pedido dos autores no sentido de serem reconhecidos como proprietários do prédio em questão nos autos, o tribunal cumpriu o dever que para si resultava da 1.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC. Questão diferente – e que contende com o mérito da causa - é a de saber se a autora é, como ela alega, titular do direito de propriedade sobre o prédio em questão nos autos. Em relação à alegação de que a venda era nula por venda de bens alheios, é certo que o tribunal não conheceu dela, nem justificou a omissão pronúncia. Havia, no entanto, uma razão para não conhecer dela, concretamente: a decisão de julgar nula a venda por falta de forma prejudicava a resolução da questão de saber se tal negócio também era nulo por consistir na venda de um bem alheio. Por todo o exposto, improcede a arguição de nulidade da sentença. * Alteração da decisão de facto: Antes de passarmos à discriminação dos factos julgados provados e não provados, importa apreciar uma questão suscitada no recurso como questão de facto, mas que na realidade o não é. Vejamos. A recorrente, sob a alegação de que estava em condições de invocar, em seu benefício, não só a presunção derivada do registo de que era proprietária do prédio em questão nos autos, mas também a aquisição do mesmo por usucapião, sustentou que devia alterar-se a decisão de julgar não provado que os autores eram donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1) dos factos provados [alínea a) dos factos julgados não provados], no sentido de tal matéria passar a ser declarada provada. Levada à letra, estamos perante impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Sucede que a matéria que a autora quer ver alterada, passando a ser julgada provada, é de direito, no sentido de que a sua afirmação há-de resultar da aplicação da lei aos factos julgados provados. E sendo tal matéria de direito, o seu lugar não é nem entre os factos declarados provados nem entre os julgados não provados. Na verdade, apesar de o Código de Processo Civil em vigor não conter uma norma como a do n.º 4 do artigo 646.º do CPC, segundo a qual tinham-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo [no sentido de tribunal que julga a matéria de facto] sobre questões de direito, é de afirmar esta solução no domínio do CPC, deduzindo-se a mesma do n.º 4 do artigo 607.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os julga não provados. Pelo exposto, considera-se não escrita a decisão de julgar não provado que “os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1) dos factos provados”. São igualmente de julgar não escritas por compreenderem também afirmações de direito os seguintes segmentos da decisão relativa à matéria de facto: * Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos: Provados: Não provados: * Descritos os factos, passemos à resolução das restantes questões. Comecemos pela questão de saber se a decisão recorrida é de revogar e de substituir por decisão com o seguinte sentido: A decisão sob recurso julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor dos autores com a seguinte justificação: A improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade determinou a improcedência dos restantes pedidos. A autora, ora recorrente, contestou a decisão com a seguinte linha argumentativa: Apreciação do tribunal: Está provado que a autora adquiriu por compra a FF e esposa GG, no ano de 1994, o prédio urbano em questão nos autos. E está provado também, através da certidão da conservatória do registo predial junta aos autos, que a aquisição do prédio está registada a favor da autora desde 5 de Maio de 1994. Aplicando a esta realidade o artigo 7.º do Código do Registo Predial, segundo o qual “o registo definitivo constituir presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define”, é de presumir que o direito de propriedade sobre o prédio em questão nos autos existe e pertence à autora. Visto que quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduza (n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil), estava a autora dispensada de provar o facto aquisitivo do direito de propriedade sobre o prédio em questão. Cabia aos réus ilidirem tal presunção mediante prova em contrário (n.º 2 do artigo 350.º do CC), visto que o artigo 7.º do CRP não proibia tal prova. A prova em contrário implicava a demonstração de que os autores não eram os proprietários do prédio em questão ou porque nunca o foram ou porque, tendo-o sido, já haviam perdido tal qualidade. Os réus procuraram ilidir a presunção, mediante a alegação de que eram eles os proprietários. Tal alegação não teve êxito. Em consequência, a sentença recorrida julgou improcedente a pretensão deles no sentido de lhes ser reconhecido o direito de propriedade. Decisão que transitou em julgado visto que contra ela não foi interposto recurso. Segue-se do exposto que subsiste a favor da autora a presunção, derivada do registo, de que é a proprietária do prédio em questão. Presunção que, contrariamente ao afirmado na sentença, não foi infirmada pelo facto de os réus se terem tornado possuidores do prédio após a aquisição inválida dele à autora em 2008. Na verdade, embora o possuidor goze da titularidade do direito, esta presunção cede perante a presunção de propriedade fundada em registo anterior ao início da posse (n.º 1 do artigo 1268.º do Código Civil) e, no caso, enquanto a presunção derivada do registo de que beneficia a autora data de Maio de 1994, a posse dos réus sobre o prédio urbano só se iniciou em 2008. Vista a questão do direito de propriedade, passemos à da restituição do prédio. Segundo o n.º 2 do artigo 1311.º do Código Civil, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei. Visto que os réus recusaram a restituição com a alegação de que eram eles os proprietários e que esta tese não foi acolhida, é bom de ver que não havia fundamento para recusar a restituição com base na propriedade do prédio. Não obstante a autora, ora recorrente, beneficiar da presunção de que é proprietária do prédio e de os réus não terem ilido tal presunção, no entender deste tribunal é de manter a decisão de julgar improcedente a acção, uma vez que tanto o reconhecimento do direito de propriedade como o de restituição do prédio são abusivos à luz do artigo 334.º do Código Civil, na parte em que dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé. Observe-se que, contrariamente ao que alegou a recorrente quando se pronunciou sobre a questão do abuso do direito, o que está em causa não é saber se a arguição de nulidade da compra e venda é abusiva. Esta questão seria pertinente se o pedido de restituição do prédio tivesse como causa de pedir a nulidade da compra e venda e se a questão da restituição se colocasse por efeito declaração de nulidade de tal negócio (n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil), o que não sucede. Como resulta do exposto acima, a autora, ora recorrente, invocou a nulidade da compra e venda, a título de defesa por excepção, contra o pedido reconvencional dos réus no sentido de serem reconhecidos proprietários do prédio com base na compra e venda. Sucede que esta pretensão foi julgada improcedente. A questão da restituição do prédio coloca-se por este tribunal ter reconhecido a autora, ora recorrente, como proprietária do prédio em questão. Logo, como se assinalou no despacho liminar, o abuso de direito suscita-se em relação ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade e de restituição do prédio. Vejamos, pois as razões pelas quais entendemos que o exercício destes direitos é abusivo à luz do artigo 334.º do Código Civil. Resulta deste preceito que o exercício de qualquer direito está sujeito a limites, os quais podem radicar na boa fé, nos bons costumes ou no fim social ou económico do próprio direito. Quando o titular exceder manifestamente tais limites o exercício é ilegítimo. Apesar de não ser fácil estabelecer a fronteira entre o exercício legítimo e o ilegítimo de um direito e de afirmar que o titular excedeu manifestamente os respectivos limites, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a identificar uma pluralidade de acções que, sob o manto do exercício de um direito, atentam ostensivamente contra a boa fé, os bons costumes ou o fim económico e social de um direito. Entre tais acções abusivas figuram aquelas que a doutrina designa por “venire contra factum proprium”. Nas palavras de Pedro Pais Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos trata-se do “… exercício posterior do direito em contradição com a prática passada reiterada e com frustração das expectativas legítimas e razoavelmente suscitadas na parte a quem o direito é oposto ou contra quem é exercido…” [Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, página 284]. Tomando como referência o que foi decidido em outras decisões judiciais, para que o exercício de um direito em contradição com a prática passada reiterada seja susceptível de cair nas malhas do abuso de direito é necessário que se verifiquem cumulativamente as seguintes circunstâncias: Citam-se em abono desta interpretação, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 12-02-2009, recurso n.º 09A073, acórdão proferido em 11-12-2012, no processo n.º 116/07.2TBMCN.P1.S1, acórdão proferido em 12-11-2013, no processo n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, acórdão proferido em 27-04-2017, no processo n.º 1192/12.1TVLSB.L1.S1., acórdão proferido em 7-03-2019, no processo n.º 499/14.8T8EVR.S1, acórdão proferido em 10-12-2019, no processo n.º 7571/17.0T8CBR.C1., todos publicados em www.dgsi.pt, e ainda acórdão do STJ n.º 14/2016, proferido em 5-07-2016, publicado no DR I série de 28 de Outubro de 2016. Interpretado o artigo 334.º do Código Civil com o sentido e o alcance expostos, a propósito do exercício de um direito em termos contraditórios com o exercício anterior, é de afirmar que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição do imóvel caem nas malhas do preceito. Em primeiro lugar, deparamos com comportamentos anteriores da autora susceptíveis de criar nos réus a confiança de que ela não pediria o reconhecimento do direito e a restituição do imóvel. Estão nesta situação o recebimento da totalidade do preço, a entrega aos réus do documento de cobrança do IMI para serem eles a pagar o imposto, e mais tarde, a informação aos réus de que não havia IMI a pagar por ela ter ficado isenta do pagamento e o facto de, numa ocasião em que foi instada a outorgar a escritura pública, ela ter afirmado que iria à Conservatória do Registo Civil para indagar se o marido já havia falecido, caso em que seria o seu filho a assinar a escritura de compra e venda. Todos estes comportamentos apontam inequivocamente no sentido de que a autora não se considerava, depois de ter combinado com os réus a venda do prédio, a proprietária dele. Além de apontarem neste sentido são idóneos para criar nos réus a confiança de que lhes não seria pedida a restituição do imóvel. Em segundo lugar, os réus investiram nesta confiança, passando a habitar o prédio urbano e a fazer dela a sua residência, o centro da sua vida e a realizar nele benfeitorias e outras obras que entenderam como necessárias. Ao pedir o reconhecimento direito e a restituição do prédio dozes anos depois de o ter entregado aos réus em cumprimento de um contrato de compra e venda verbal e de, durante tal período, ter dado, com o seu comportamento, sinais inequívocos de que já não se considerava a proprietária do prédio, a autora traiu a confiança que os réus legitimamente depositaram no seu anterior comportamento e agiu de forma manifesta desleal. Daí que o pedido de reconhecimento do direito e o de restituição do prédio nas circunstâncias acima descritas excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé, sendo, em consequência, ilegítimos, por aplicação do artigo 334.º do Código Civil. Sendo ilegítimo o exercício destes direitos, não assiste à autora, ora recorrente, o direito de exigir aos réus qualquer quantia a título de frutos que o prédio produziu ou que pudesse vir a produzir na pendência da presente acção. A propósito do pedido de restituição do prédio e do valor dos frutos importa dizer ainda o seguinte. No recurso, a autora, ora recorrente, pediu a restituição do prédio “deduzido, na contrapartida do preço pago, do proveito tido pelos réus em igual valor”. Esta pretensão tem como pressuposto a nulidade da venda. Com efeito, na 5.ª conclusão, a recorrente sustenta que a venda é nula por configurar, em relação ao autor DD uma venda de bens alheios. Na 6.ª afirma que a venda é ainda nula por falta de forma. E na 7.ª remata nos seguintes termos: “Como consequência de tal nulidade (289.º do C. Civ), resulta a restituição do recebido, no entanto e como definido no artigo 894./2 C. Civ, ou seja, o preço aqui a restituir deverá ser deduzido no proveito tido pelo comprador em valor igual ao recebido que corresponderá a um valor mínimo não inferior ao de uma renda de 104.16€/mensais durante doze anos”. Isto é, na tese da recorrente, por efeito da declaração da nulidade da venda ela estaria obrigada a restituir o preço que recebeu. Porém, ao preço havia que deduzir o montante do proveito que os réus compradores tiraram do prédio e esse montante – sempre na tese da recorrente – era igual ao do preço. Por outras palavras, segundo a recorrente obrigação que impendia sobre ela de restituir o preço era compensada com a obrigação dos réus de lhe pagarem a ela o proveito que tiraram do prédio durante doze anos. A pretensão da recorrente é de julgar improcedente. Na verdade, a pretensão de compensar a obrigação de restituição do preço em consequência da nulidade da venda com a obrigação de os réus de restituírem o proveito que retiraram do prédio configura um pedido novo diferente do que foi deduzido na petição e resulta do artigo 264.º do CPC que o pedido e a causa de pedir podem ser ampliados em sede de recurso desde que haja acordo das partes e, no caso, esse acordo não existe. Contra a pretensão de os réus restituírem o proveito que tiraram do imóvel pode dizer-se ainda o seguinte. A pretensão da autora, ora recorrente, no sentido de os réus restituírem o proveito que tiraram do imóvel assentou na ocupação ilícita dele, sendo que, no caso, provou-se que os réus ocuparam-no com consentimento e autorização da autora, ou seja, ocuparam-no licitamente (n.º 1 do artigo 340.º do Código Civil). * Litigância de má-fé A autora ora recorrente, impugnou, por último, a decisão que a condenou como litigante de má fé. A condenação assentou no facto de a autora ter negado que vendera aos réus o prédio em causa nos autos, sabendo que tal correspondia à verdade. A autora contesta a decisão com a seguinte linha argumentativa: Apreciação do tribunal: O recurso é de julgar improcedente nesta parte. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, incorrer nalguma das condutas previstas nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC. Para o caso interessa-nos a alínea b) na parte em que reputa de litigante de má-fé quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa. E interessa-nos este preceito porque, ao alegar na acção que o filho dela e do seu ex-cônjuge, DD, permitiu aos réus a utilização para sua habitação do referido prédio, sem conhecimento e consentimento dela, quando se provou que os réus habitam a casa com o consentimento dela por lha ter vendido verbalmente em 2008, a autora alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão judicial. E esta alteração foi dolosa porque os factos que foram alterados e negados são factos pessoais. Não merece, pois, qualquer censura a decisão de condenar a autora como litigante de má fé. * Decisão: Julga-se procedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida. * Responsabilidade quanto a custas: Considerando o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o facto de autora ter ficado vencido no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas. Coimbra, 9 de Novembro de 2022
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