Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
140/17.7T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
FACTO CONTROVERTIDO
USUCAPIÃO
EXCEPÇÃO
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - F.FOZ - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 266, 571, 607 CPC, 1251, 1259, 1260, 1261, 1262, 1287, 1296 CC
Sumário: I- Para efeitos do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, cumpre tem em consideração que o facto controvertido que integra uma das hipóteses factuais em disputa, caso tenha existido, é explicável e é explicável através de outros factos anteriores, que o «causaram» e que valem como provas da sua existência.

É explicável devido ao facto da realidade física e social obedecer a uma estrutura nomológica (regida por leis), causal-determinista no primeiro caso e teleológica (dirigida a um fim, o qual permite compreender a ação humana) no segundo.

Como todo o facto que existiu é explicável, logicamente, o facto afirmado que que não existiu não é explicável e, por isso, não obtém corroboração em outros factos, quer sejam anteriores, contemporâneos ou posteriores.

II- Tendo em consideração que a reconvenção é facultativa (n.º 1 do artigo 266.º do CPC), a invocação pelos Réus, enquanto herdeiros da usucapiente, da aquisição do direito de propriedade sobre uma parcela de terreno através da usucapião, parcela essa que integrou um certo prédio rústico propriedade da Autora, pode ser invocada por via de exceção.

Decisão Texto Integral:








I. Relatório

a) A Autora demandou os Réus com o fim de obter a condenação destes nos seguintes pedidos:

- Reconhecerem o direito de compropriedade da Autora relativamente ao prédio a que corresponde o artigo rústico 5552 da freguesia de (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º 2178/ (...) , em toda a sua extensão;

- Declarar-se que a ocupação da parcela do prédio que os Réus vêm a fazer, contra a vontade das suas legítimas proprietárias, é um atentado ao direito de propriedade destas, ordenando-se a restituição a estas da posse da parcela de terreno ocupada pelos Réus.

- Condenarem-se os Réus a não entrarem no referido imóvel, abstendo-se de praticar atos que impeçam ou dificultem o acesso, rega, cultivo e colheita dos produtos que a Autora ou as restantes comproprietárias ali pretendam plantar.

- Condenarem-se ainda os Réus a não impedirem o acesso por parte da Autora à benfeitoria – ordenha – e demais construções existentes no prédio, incluindo ao poço, para extração e utilização da sua água e que igualmente pertence ao prédio e já ali existia antes das partilhas operadas por óbito dos pais de ambas as partes, abstendo-se se servirem das mesmas.

Alega que o prédio lhe pertence em compropriedade, com a irmã M (…), por o terem adquirido na partilha da herança por óbito de seu pai e que os Réus, seus irmãos, o ocupam desde que faleceu a mãe da Autora e dos Réus.

Os Réus contestaram pugnando pela improcedência da ação, porquanto, segundo eles, a área em questão corresponde ao artigo matricial urbano 1495 da freguesia de (...) e foi adjudicado no inventário em questão à mãe da Autora e dos Réus e não à Autora e à irmã M (…), não tendo estas últimas praticado alguma vez atos de posse sobre tal prédio, ao invés da mãe de uns e outras que exerceu atos de posse e adquiriu a respetiva propriedade por usucapião.

Ou seja, a Autora alega que a parcela de terreno em disputa faz parte do artigo matricial rústico n.º 5552 da freguesia de (...) e os Réus sustentam que tal parcela foi retirada a este prédio e corresponde hoje ao artigo matricial urbano 1495, da freguesia de (...) , que pertenceu à falecida mãe de Autora e Réus.

Procedeu-se a julgamento e no final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto julgo a presente acção intentada por F (…) contra J (…) e A (…), totalmente procedente e em consequência, condeno os RR a:

a) Reconhecerem o direito de compropriedade da A. relativamente ao prédio a que corresponde o artigo 5552 rústico da freguesia de (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º 2178/ (...) , em toda a sua extensão;

b) Restituírem à AA, na qualidade de comproprietária a parcela de terreno que estão a ocupar;

c) Condena-se os RR. a não entrarem no referido imóvel, abstendo-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o uso do mesmo e o acesso as construções nele existentes.

Custas pelos RR.».

b) É desta decisão que vem interposto o recurso por parte dos Réus, cujas conclusões são as seguintes:

«1. Dos Pontos 27 e 28 dos Factos Provados resulta inequivocamente que a A e sua irmã dividiram o terreno que lhes foi adjudicado no Inventário por óbito de seu pai - 314 do Art. rústico n.º 5552 da Freguesia de (...) - cabendo a A. a parcela "B" e a sua irmã M (…) a parcela "C", melhor identificadas no croqui junto aos autos pela A com a sua Douta PI.

Assim, os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 dos factos provados devem reportar-se expressamente a essas parcelas, e não à parcela "D" que não lhes foi adjudicada.

2. Quando no ponto 23 dos factos provados se deu como assente que em outubro de 1986 o R A (...) celebrou um contrato de arrendamento desse mesmo prédio com M (…), deveria ter-se consignado que o objeto desse contrato eram as parcelas "B" e "C".

É que, refere a A. na sua Douta PI, que a parcela "B" tem a área de 1 034 metros quadrados e a parcela "C" tem a área de 1191 metros quadrados.

Ora do referido contrato de arrendamento feito ao A (…) consta a área de 2160 metros quadrados, área até inferior à soma da área das parcelas "B" e "C" que é de 2225 metros quadrados.

Ora como poderia estar englobada no referido contrato a parcela "D"?

3. Deveria ter sido dado como provado que a Dona P (…) celebrou um contrato de arrendamento com o R A(…), tendo como objeto a ordenha e os terrenos adjacentes - a parcela "D".

Encontra-se junto à contestação apresentada nos Autos, um Doc. - Doc. nº 1 ­que conjugado com os depoimentos dos RR e da testemunha M (…)de onde facilmente se conclui a existência do contrato.

O R J (…) refere que o seu irmão A(…)pagava a sua mãe 10 contos de renda e a testemunha M (…) a dada altura do seu depoimento referiu que a parte arrendada era a parte de cima - a parcela "D" - que tinha a ordenha e a terra.

Ora sendo a M (…) e a A proprietárias da parcela "D" porque é que só arrendaram ao A velino a área de 2160 metros quadrados, a área correspondente à soma da área das parcelas "B" e "C".

4. Deveria ter sido dado como provado que na parcela "D" a P (…) por lá impediu a passagem, entrando em conflito com proprietários de prédios vizinhos.

5. A testemunha M (…) confirmou a existência da queixa por si apresentada no dia 22 de fevereiro de 2012 contra o R A (…) e alguns amigos, que se encontravam na parcela "D", deveria assim a Sentença ora Recorrida ter dado como provado o lugar da ocorrência dos factos - a parcela "D" - e que a M (…) expressamente referiu que o terreno fazia parte de uma herança dos diversos irmãos ainda não partilhada.

Ora, se o terreno faz parte de uma herança de diversos irmãos ainda não partilhada, como podem A e sua irmã ser proprietárias desse terreno?

6. Resulta assim claramente provado nos Autos que na parcela "D" a D (…)praticou inúmeros atos, utilizando a seu belo prazer, cedendo-a a título oneroso e gratuito, nela prolongando um muro em toda a sua confrontação poente, autorizando o A (…) a nela construir um telheiro e um anexo para animais, vedando-a com rede metálica, nela colocando um portão na entrada, aí tendo animais, etc., etc.

7. A Douta Sentença deveria ter dado como provado que a Dona P (…)praticou esses atos na firme convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno melhor identificada sobre a letra D do croqui junto aos autos pela A com a sua Douta PI.

8. Não foram valorados os depoimentos da A e sua irmã nem os documentos juntos aos Autos no que concerne ao Processo de interdição da Dona P (…) Assim a A e a Testemunha M (…) acompanharam o referido processo, consultaram os documentos, tendo até a Testemunha M (..) referido e subscrito as certidões dos prédios acabando por neles apor a área da ordenha ­2254 metros quadrados - quando não poderia ignorar que a ordenha não teria essa área e que a mesma corresponderia à área da mesma e do terreno adjacente - a parcela "D" que à data já se encontrava perfeitamente demarcada e delimitada.

9. Não valorou a Douta Sentença o Modelo 129 junto dos autos e a área dele constante. Do depoimento nos autos prestado pela A e sua irmã, as mesmas referem que foi a sua mãe que fez as partilhas e que os filhos concordaram com tudo. Que a sua mãe seria incapaz de prejudicar os filhos. Ora sabendo que a parcela "D" seria propriedade dos seus filhos porque iria a Dona P (…) inscrever essa área na Repartição de Finanças em seu nome?

10. Foi dado como não provado nos autos que a parcela D não era utilizada pela A e a sua irmã.

Assim e dado tudo o exposto no que concerne à utilização dessa parcela e ao modo como foi utilizado pela Dona P(…) à evidência se prova que A e a sua irmã não são proprietárias dessa parcela ilidindo-se assim a presunção do Art. 7.º do Código do Registo Predial com o decidido Art. 350.º, n.º 1 e 2 do Código Civil.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e revogar-se a sentença recorrida, na medida do presente recurso, só assim se fazendo a necessária e inteira Justiça».

c) Contra-alegou a Autora, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.

Concluiu deste modo:

«I- No inventário por óbito do pai das partes ficou bem expresso que 3/4 da verba n.º 14, artigo rústico 5552 da freguesia de (...) , foi adjudicado à Recorrida e a sua irmã.

II- Trata-se de um documento autêntico e que não foi impugnado pelo que faz prova plena.

III - Assim como faz prova plena que apenas a ordenha - verba n.º 15 do inventário - foi adjudicada à mãe dos aqui partes.

IV- Ordenha que foi edificada em 1976, conforme resulta nomeadamente do docs. n.º 11 e 13 juntos com a p.i. - Proc. Camarário n° 725/1976.

V- Ou seja, muito antes daquela parcela onde se insere a ordenha ter sido separada das restantes pela estrada que conduz à ETAR.

VI- Não tem assim qualquer sentido afirmar-se que a parcela "D" do croqui e que faz parte integrante do art. 5552 não lhes foi adjudicada.

VII - Relativamente à questão das áreas e tal como atrás ficou demonstrado, as mesmas não são fiáveis, pelo que não· podem conduzir a qualquer conclusão que inverta a Decisão recorrida.

VIII - Da matéria dada como provada resulta que a aqui Recorrida também utilizava a parcela D - ponto 20 dos factos provados.

IX - Recorde-se que todos assentiram em que a mãe cuidava de todos os prédios da Recorrida, facto dado como provado no ponto 22.

X- Ficou provado que o prédio é delimitado conforme consta no croqui com a linha vermelha - ponto 14 da douta sentença- facto e documento que não foi impugnado pelos Recorrentes.

XI - Dos documentos juntos pela Recorrida na resposta dada à junção dos documentos juntos pelos Recorrentes, a fls. 85 v, consta expressamente um requerimento apresentado no processo de interdição, no qual se informava que a ordenha não podia ser registada, pois fora uma benfeitoria edificada em terreno alheio.

XIl- Certamente que se a dita parcela D não estivesse contida no artigo rústico 5552, aquando da apresentação da relação de bens pela falecida mãe das partes no inventário aberto por óbito de seu marido, teria relacionado o chão do prédio onde edificaram a ordenha, o que não fez.

XIII- Ora dúvidas não podem restar que se trata de um único prédio, conforme consta da relação de bens apresentada pela falecida mãe de Recorrentes e Recorrida no inventário - verbas 14 e 15 - com iguais confrontações.

XIV - Sem área que permita o seu fraccionamento.

XV-Só pode perder a qualidade de parte componente de um prédio rústico, ganhar identidade como coisa autónoma, e ser, em conformidade, objeto de um direito de propriedade diverso daquele que incide sobre o prédio mãe, se a respetiva área e a área remanescente observarem a unidade de cultura fixada para cada zona do País.

XVI- E a dita ordenha não retira a qualificação de prédio rústico onde foi edificada, pois trata-se de um imóvel de apoio à actividade agrícola e que está em vias de ser demolida, conforme consta da prova documental junta aos presentes autos.

XVII-Por fim cumpre referir que tal como consta da sentença, a Recorrida beneficia da presunção do registo e os Recorrentes não peticionaram o reconhecimento da propriedade da parcela em litígio a favor da herança, pelo que não poderia sentenciar-se nesse sentido.

Nestes termos e nos mais de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado improcedente, não devendo ter provimento, pelos motivos acima aludidos, devendo manter-se a Decisão proferida pela primeira instância, assim se fazendo Justiça!».

II. Objeto do recurso.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – O primeiro conjunto de questões que o recurso coloca respeita à impugnação da matéria de facto.

a) Pretendem que se faça constar dos factos provados 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 que estes factos se referem só às parcelas «C» e «B» mencionadas no mesmo croqui junto com a petição, mas não à parcela «B» também identificada nesse croqui.

b) No que respeita ao facto provada 23, onde se deu como assente que em outubro de 1986 o réu A (…) celebrou um contrato de arrendamento desse mesmo prédio com M (…), pretendem que conste que o objeto desse contrato foram as parcelas "B" e "C" identificadas no mesmo croqui.

c) Pretendem que seja declarado provado um facto que é este:

«Que a Dona P (…) celebrou um contrato de arrendamento com o réu A(…)tendo como objeto a ordenha e os terrenos adjacentes - a parcela "D"».

d) Pretendem que seja declarado provado outro facto, que é este:

«A Dona P(…) impediu a passagem pela parcela "D", entrando em conflito com proprietários de prédios vizinhos».

e) Pretendem também que seja declarado provado que os factos referidos no facto provado 61 ocorreram na parcela "D", e que M (…) expressamente referiu que o terreno fazia parte de uma herança dos diversos irmãos ainda não partilhada».

f) Pretendem que seja declarado provado o seguinte:

«Que a Dona P (…) cedeu a parcela "D" a título oneroso e gratuito; que prolongou nela um muro em toda a sua confrontação poente; que autorizou o réu A(…) a construir nela um telheiro e um anexo para animais; que a vedou com rede metálica; que colocou nela um portão na entrada, aí tendo animais.

g) Por fim, pretendem que seja declarado provado o seguinte:

«Que a Dona P (…) praticou estes atos na firme convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno».

2 – Em segundo lugar, argumentam que dos factos provados resulta que a Autora e irmã não são proprietárias da parcela identificada na petição como ocupada pelos Réus, ilidindo-se assim a presunção estabelecida no artigo 7.º do Código do Registo Predial, o que implica a revogação da decisão e improcedência da ação. 

III. Fundamentação

A) Impugnação da matéria de facto.

1 – Vejamos se deve constar dos factos provados 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 que estes se referem só às parcelas «C» e «B» mencionadas no croqui junto com a petição, mas não à parcela «D» também identificada nesse croqui.

A resposta a esta questão é negativa, pela seguinte razão:

Tal como os factos 1 a 7 se encontram redigidos, o seu texto é compatível com a hipótese do prédio do artigo matricial rústico n.º 5552 integrar a parcela D, assim como é compatível com a hipótese de não integrar a parcela D.

Por outro lado, se se decidisse ao nível dos factos que a parcela «D» não integrava o prédio do artigo matricial rústico n.º 5552 ficava automaticamente resolvida a questão de direito colocada nos autos, o que mostra que a pretendida alteração da matéria de facto não é uma questão de natureza factual, mas jurídica.

Por isso, saber se a parcela «D» integra ou não o prédio do artigo matricial 5552 é uma questão de direito e não uma questão de facto e daí que, por esta razão, por não ser questão de facto, esta questão não possa ser decidida ao nível da matéria de facto, pelo que improcede liminarmente a impugnação deduzida.

2 – Passando ao facto provado 23, onde se deu como assente que em outubro de 1986 o réu A(…) celebrou um contrato de arrendamento desse mesmo prédio com M (…)

Os requerentes pretendem que conste do mesmo que o objeto desse contrato foram as parcelas "B" e "C" identificadas no mesmo croqui.

Não procede esta pretensão, nestes exatos termos, porque não é isso que consta do contrato.

Mas procede no sentido de que o facto provado 23 não reproduz o contrato.

O contrato diz que «O primeiro outorgante é proprietário de um prédio rústico inscrito (…), sob o artigo 5552…».

É isto que deve constar do facto provado 23, que ficará com esta redação:

«23º Em Outubro de 1986 o R. A(…) celebrou um contrato de arrendamento com a comproprietária M (…), tendo por objeto o prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo 5552».

3 – Os recorrentes pretendem que seja declarado provado um facto que é este: «Que a Dona P (…) celebrou um contrato de arrendamento com o réu A (…) tendo como objeto a ordenha e os terrenos adjacentes - a parcela "D"».

Não procede esta pretensão.

Os recorrentes invocam o documento n.º 1 junto com a contestação, mas este documento não faz referência a qualquer contrato de arrendamento, mas sim a uma venda de gado e a um empréstimo (?) de um pinhal.

Por outro lado, o depoimento do próprio Réu J (…) e de uma testemunha M (…) afiguram-se insuficientes, por constituírem uma base precária, para formar a convicção de que tal facto teve ocorrência histórica.

4 – Os recorrentes pretendem ainda que seja declarado provado outro facto, que é este: «A Dona P (…) impediu a passagem pela parcela "D", entrando em conflito com proprietários de prédios vizinhos».

Este facto não tem relevância, porquanto é compatível quer com um animus de proprietário, quer com um animus de detentor precário.

Por esta razão não se despende atividade processual com a sua análise.

5 – Os recorrentes pretendem também que seja declarado provado que os factos referidos no facto provado 61 ocorreram na parcela "D", e que M (…)expressamente referiu que o terreno fazia parte de uma herança dos diversos irmãos ainda não partilhada».

Esta factualidade tem natureza instrumental e nada acrescenta aos factos provados 34 e 35 onde já se afirma tendo em conta a referida parcela «D» que a mãe da Autora, da referida M (…)e dos Réus passou a utilizar esta parcela «D» explorando-a, melhorando-a, zelando pela sua conservação, pagando a respetiva contribuição, cedendo-a a título gratuito e oneroso, dela retirando os respetivos frutos, nela praticando todos os atos próprios de um proprietário.

Por esta razão não se despende atividade processual com a sua análise.

6 – Pretendem que seja declarado provado o seguinte:

«Que a Dona P (…) cedeu a parcela "D" a título oneroso e gratuito; que prolongou nela um muro em toda a sua confrontação poente; que autorizou o réu A (...) a construir nela um telheiro e um anexo para animais; que a vedou com rede metálica; que colocou nela um portão na entrada, aí tendo animais.

Não se analisará esta matéria por desnecessidade.

Já consta do facto provado n.º 35, que não foi impugnado, o seguinte:

«35- Explorando-o, melhorando-o, zelando pela sua conservação, pagando a respetiva contribuição, cedendo-o a título gratuito e oneroso, dele retirando os respetivos frutos, enfim nele praticando todos os atos próprios de um verdadeiro proprietário».

Por conseguinte, a nova factualidade, embora mais concretizadora, nada acrescentaria de útil aos factos já declarados provados.

7 – Pretendem os Recorrentes, por fim, que seja declarado provado o seguinte:

«Que a Dona P (…) praticou estes atos na firme convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno».

Assiste-lhes razão nesta parte, pelo seguinte:

Em primeiro lugar, cumpre referir que contrapondo-se duas versões acerca dos factos, que mutuamente se excluem, como é o caso dos autos, só uma das versões pôde ter existido, pois a realidade física (e a jurídica que lhe corresponde) é só uma em cada momento histórico.

Por isso ou a parcela «D» em causa foi considerada por M (…) como um prédio próprio, que lhe foi adjudicado na partilha da herança do seu marido e pai de autora e réus, tratando-se da verba n.º 15 desse inventário, ou então sabia que essa parcela «D» fazia parte do prédio do artigo matricial n.º 5552 adjudicado no mesmo inventário às suas filhas, a autora e a irmã M (…), como verba n.º 14, possuindo-a ela, por isso, a título precário, em nome das referidas duas filhas ou, numa terceira hipótese, possuiu-a a título precário e a dada altura inverteu título da posse a passou a possuir em nome próprio.

Acresce que todo o facto controvertido que integra uma das hipóteses factuais em disputa, caso tenha existido, é explicável e é explicável através de outros factos anteriores, que o «causaram», digamos, e que valem como provas da sua existência.

E é explicável devido ao facto da realidade física e social obedecer a uma estrutura nomológica (regida por leis), causal-determinista no primeiro caso e teleológica (dirigida a um fim, o qual permite compreender a ação humana) no segundo.

Como todo o facto que existiu é explicável, logicamente, o facto afirmado que que não existiu não é explicável e, por isso, não obtém corroboração em outros factos, quer sejam anteriores, contemporâneos ou posteriores.

Por outro lado, o facto controvertido que efetivamente existiu produziu, em regra, outros factos que são seus resultados ou consequências.

Um facto que não tenha existido não só não é explicável, como não podem existir provas de onde se infira a sua existência. Se, porventura, forem apresentadas provas que aparentam corroborá-lo, então, ou não correspondem à realidade ou, se correspondem, a corroboração insere-se num processo de explicação necessariamente parcial e aparente que será refutado em globo por outras provas.

Por outro lado, um facto que tenha existido é sempre adequado a obter múltiplas corroborações e é fértil, no sentido de ser apto a produzir, a partir da sua matéria factual, novas conjeturas sobre outros factos probatórios não conhecidos que o corroborarão, não sendo refutável, salvo por ignorância de todas as circunstâncias factuais em que esteve inserido.

A corroboração existe quando um facto probatório faça parte de um processo causal ou teleológico (neste caso, se se tratar de ações humanas), no âmbito do qual seja possível estabelecer uma ligação entre o facto a provar e o facto probatório e vice-versa.

Vejamos então a questão à luz destes parâmetros.

A favor da hipótese da parcela «D» pertencer ao prédio rústico n.º 5552 temos o facto, sobre o qual há consenso, de que, efetivamente, em vida do pai da Autora e dos Réus, antes do inventário, portanto, a parcela «D» integrava o terreno do artigo matricial rústico n.º 5552 e este prédio foi levado ao dito inventário sob a verba n.º 14 da «descrição de bens» e adjudicado em compropriedade, na proporção de ¾, à autora e à sua irmã M (…)

E também é consensual que o prédio em causa já estava dividido fisicamente e que a parcela «D» integrava os mencionados ¾ indivisos.

Mas é o único dado probatório relevante.

Em sentido oposto, temos o facto de no mesmo inventário ter sido criada uma verba na «descrição de bens» desse inventário, com o n.º 15, descrita como «Um barracão destinado a ordenha, para vacas leiteiras», relevando a circunstância de tal verba surgir identificada com as mesmas confrontações da verba 14.

Esta verba foi aí adjudicada a M (…), mãe da Autora e dos Réus.

Outra circunstância com algum relevo reside no valor de 1.150.000$00 atribuído à verba 15 em comparação com o valor atribuído à verba 14, de apenas 10.215$00.

Esta diferença de valor indicia, mas de modo fraco, porque se desconhece, à data, o real valor da ordenha, que a verba n.º 15 não seria composta só pelas edificações, mas também por terreno.

Além disso, verifica-se que a referida «Descrição de bens» é datada de 2 de junho de 1982 e que M (…), em 13 de janeiro de 1982, apresentou (cfr. fls. 20 verso e 21) um impresso, designado por «modelo 129», através do qual pediu, no serviço de finanças, a inscrição na matriz, como prédio urbano, do barracão destinado a ordenha de vacas leiteiras e currais para gado, com uma divisão ampla.

Este requerimento veio a dar lugar ao prédio urbano com o artigo matricial 1495 da freguesia de (...) , composto por sala de ordenha, receção de leite e telheiro, com a superfície coberta de 109 m2, dependência com 120 m2 e logradouro com 2025 m2.

Verifica-se, por conseguinte, da parte de M (…), uma inequívoca intencionalidade de se colocar perante esse bem, isto é, o barracão de ordena e logradouro, como dona, pelo menos desde 13 de janeiro de 1982.

Concluiu-se por esta intencionalidade própria de quem se afirma proprietário, porque se não fosse essa a rela postura intencional de M (…) não podia ter existido o facto provado 33, ou seja, o pedido feito ao serviço de finanças para formação de um novo prédio, prédio esse que uns meses depois surgiu na «Descrição de bens» do inventário (e certamente já constava da respetiva «Relação de bens»).

Tal postura de proprietária por parte de M (…) manifestou-se também quando esta, em 1 de janeiro de 1988, arrendou este prédio (artigo 1495) à Cooperativa Agrícola da (...) .

Esta factualidade aponta, pois, inequivocamente no sentido de M (…) se considerou a si mesma como proprietária de tal prédio e não como mera possuidora em nome das filhas, como possuidora de uma porção de terreno pertencente ao prédio do artigo matricial rústico 5552 adjudicado no mesmo inventário às suas filhas.

E é para esta intencionalidade (de proprietária) que apontam os factos provados 34 e 35 não impugnados, onde se declara que «34- Com efeito, desde a data em que lhe foi adjudicada no inventário a que se procedeu por óbito do seu marido, que a M (…) passou a deter o prédio – artigo urbano 1495º da Freguesia de (...) .

35- Explorando-o, melhorando-o, zelando pela sua conservação, pagando a respetiva contribuição, cedendo-o a título gratuito e oneroso, dele retirando os respetivos frutos, enfim nele praticando todos os atos próprios de um verdadeiro proprietário».

Face ao exposto, a convicção do tribunal tem de se formar no sentido de que «M (…) praticou estes atos na firme convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno».

Porque, repete-se, só esta postura anímica explica a existência do pedido que ela fez ao serviço de Finanças, no sentido de criar um novo prédio e de o ter mais tarde arrendado.

Esta postura que fica relatada afasta a hipótese da realização da benfeitoria alvitrada pela Autora, pois a sua mãe não se limitou a autonomizar as construções, mas também um logradouro com mais de 2000 m2, sendo certo ainda que os factos indicam – facto provado 8 – que a ordenha já existia à data do inventário, não se tratando de algo construído apenas pela mãe da Autora.

Acrescentar-se-á, pelo exposto, ao facto provado 35, o segmento «na convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno».

B) 1. Matéria de facto – Factos provados

1- Por inventário orfanológico ocorrido por óbito do pai da aqui A. e dos RR., foi adjudicado àquela e a sua irmã M (…), três quartas partes de um prédio rústico sito em (...) , composto de terra de cultura com um poço, inscrito na matriz rústica da freguesia de (...) sob o artigo 5552 (verba nº 14 do inventário), descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) sob a ficha 2178/ (...) , e inscrito e favor da AA e da sua irmã.

2- Não obstante tratar-se de um prédio indiviso, na realidade, desde sempre, ou seja, desde que seus falecidos pais o adquiriram, que o mesmo está na realidade bem delimitado com os restantes comproprietários, os quais vêm cultivando uma parcela bem definida e, a aqui A. e sua irmã, por si e anteriormente, seus pais, a parte restante, como se de dois prédios distintos se tratassem.

3- Na parte que lhes coube, a A. e sua irmã dele retiram todas as suas utilidades e praticam todos os demais atos que competem aos proprietários, nomeadamente, vigiam-no, nele semeiam e fazem seus os proveitos, e ali também a A. manteve animais, nomeadamente ovelhas, pelo que sempre agiram em relação ao dito prédio como proprietárias que efetivamente são.

4- E fazem-no há mais de 20 e 30 anos, por si e antepossuidores que legalmente representam.

5- À vista de toda a gente.

6- Sem oposição de quem quer que seja.

7- E na firme convicção de que tais atos materiais de posse foram e são por elas levados a cabo no exercício do seu direito de propriedade sobre tal prédio, ou seja, sem lesarem interesses e direitos de terceiros.

8- Numa parte do dito prédio, os pais das aqui partes tinham edificado um barracão destinado a ordenha, correspondente à verba n.º 15 do doc. n.º 1 junto, que ficou adjudicado à cônjuge meeira, pois a mesma, à época, ali explorava uma ordenha mecânica.

9- Após o óbito de sua mãe, ocorrido em 4/8/2010, foi interposto inventário judicial para partilha dos bens desta, o qual corre seus termos por este Tribunal com o n.º 286/12.8TBFIG.

10- No aludido inventário, o interessado J (…) reclamou a fls. 86 e ss. concluindo pela falta de relacionamento do artigo 1495 da freguesia de (...) .

11- A cabeça de casal pugnou pelo indeferimento da reclamação apresentada, por tal prédio não pertencer à inventariada, mas sim a si e à interessada F (…) por corresponder ao prédio rustico sob o art.º 5552, que lhes foi adjudicado no inventario por óbito de J (…)

12- Sobre tal matéria, foi proferida decisão no seguinte teor: «() A decisão desta questão, no âmbito do inventário, atenta a sua complexidade, com as limitações probatórias previstas, implica, a nosso ver, uma redução das garantias das partes.

Pelo exposto, nos termos e pelos fundamentos supra referidos, decide-se remeter os interessados para os meios comuns quanto à questão suscitada na reclamação de fls. 86 e ss., mantendo-se a relação de bens apresentada nos autos, sem inclusão do referido artigo urbano 1495, da freguesia de (...) ».

13- Desde a interposição do inventário que os RR. ocuparam parte do dito imóvel, incluindo a ordenha, e nele vêm atuando como donos do mesmo.

14- O prédio rústico encontra-se delimitado a vermelho no croqui junto como doc. 5.

15- O prédio é hoje atravessado por uma estrada, feita pelas entidades públicas para acesso à ETAR que é onde culmina, para a qual os proprietários dos vários prédios contribuíram, incluindo os pais da A. e RR.

16- A parcela delimitada a verde, designada pela letra A, é cultivada pela comproprietária M (…)

17- A parcela designada pela letra B, é cultivada pela aqui A.

18- A parcela designada pela letra C, é cultivada pela irmã e comproprietária M (…).

19- A parcela designada pela letra D após o falecimento da mãe dos aqui partes, foi ocupada pelos RR.

20- Em tal parcela a A. detinha ovelhas, que foram por diversas vezes soltas pelos RR., mediante a abertura dos portões que ali existiam, até que foram definitivamente soltas do terreno no dia 3/10/2012. Já no decurso do inventário por óbito da mãe, os RR. também fecharam ainda a casa do poço, vedando-lhe o acesso ao mesmo.

21- O denominado barracão destinado a ordenha e indicada em 1 do croqui junto, foi matricialmente criado pela falecida mãe da A., já após o inventário por óbito do seu pai, no qual fora descrito como omisso na matriz, através da entrega do modelo 129 na Repartição de Finanças, dando assim origem a um artigo matricial urbano,

22- A mãe da AA cultivou e utilizou durante alguns anos as parcelas da A.

23- Em outubro de 1986, o R. A (...) celebrou um contrato de arrendamento com a comproprietária M (..), tendo por objeto o prédio rústico inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo 5552».

24- Por carta datada de 10.12.20015 a Câmara Municipal da (...) notificou a AA M (…) da “intenção de ser ordenada a demolição dos edifícios construídos sem a devida licença administrativa, bem como à limpeza de toda a envolvente, no prazo de 120 dias a contar do dia seguinte à receção do presente oficio, conforme vistoria realizada no dia 15/09/2015. () Mais se adverte que em caso de incumprimento poderá a Camara Municipal tomar posse administrativa do imóvel por execução imediata da demolição às expensas dos co-proprietários”.

25- A dita demolição está orçada em 8.577,12€, acrescido do IVA em vigor.

26- A A. foi notificada pela Câmara Municipal, que o R.  (…), anda a desenvolver diligências junto do Município, com vista à restauração da ordenha, conforme oficio junto como doc. 13 a fls. 27 e cujo conteúdo se dá por reproduzido.

27- No inventário orfanológico a que se procedeu por óbito do pai da A e dos RR, foi adjudicado à A e à sua irmã M (…), em comum 3/4 do prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de (...) sob o artigo 5532º.

28- A A. e a sua irmã dividiram o terreno, que lhes foi adjudicado, em duas parcelas, cabendo a esta a parcela “B”, melhor identificada no croquis que a mesma juntou aos autos, e à sua irmã M (…) a parcela “C”, também identificada no mesmo croqui.

29- Nessas duas parcelas de terreno praticaram os atos que bem entenderam, utilizando-as em proveito próprio.

30- No mesmo inventário, sob a verba n.º 15 da relação de bens, foi relacionado um prédio – barracão destinado à ordenha – que foi adjudicado a M (...) , mãe da A e dos RR.

31- Encontra-se esse prédio identificado sob a letra “D” do croqui junto aos autos pela A.

32- No referido inventário foi apresentada a relação de bens, foram atribuídos valores aos prédios, foi elaborado o mapa de partilha, o mesmo foi posto em reclamação e a sentença homologatória da partilha foi proferida a 13.02.1982, tendo transitado em julgado.

33- Na sequência da apresentação por M (…) no dia 13 de janeiro de 1982, do modelo 129 na Repartição de Finanças da (...) , onde pediu a inscrição do prédio na matriz, foi atribuído um artigo matricial – artigo urbano 1495.º da Freguesia de (...) .

34- Com efeito, desde a data em que lhe foi adjudicada no inventário a que se procedeu por óbito do seu marido, que a M (…) passou a deter o prédio – artigo urbano 1495º da Freguesia de (...) .

35- Explorando-o, melhorando-o, zelando pela sua conservação, pagando a respetiva contribuição, cedendo-o a título gratuito e oneroso, dele retirando os respetivos frutos, enfim nele praticando todos os atos próprios de um verdadeiro proprietário, na convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno.

36- Na confrontação Poente do prédio existia um muro divisório. A M (…)prolongou-o em toda a sua extensão dessa confrontação com a construção de um muro de tijolo.

37- Na parte da frente do prédio que confronta com uma estrada pública, alcatroada, construiu um muro, colocou rede e um portão de ferro.

38- Vedou o restante prédio com rede metálica.

39- Aí criou vacas, porcos, borregos, cabras, alguns desses animais para consumo próprio e outros para venda.

40- Autorizou o RR A (...) a ampliar a construção existente, tendo o R A (...) construído um telheiro e um anexo para os animais.

41- Arrendou-o no dia 01.01.1988 à Cooperativa Agrícola da (...) .

42- Suportou todas as despesas tidas com os serviços e materiais necessários para as obras de ampliação, conservação e vedação do prédio,

43- Chegando, inclusivamente, a pô-lo à venda,

44- Quando surgia algum problema relacionado com o prédio era a M (…)que se encarregava de o resolver.

45- O que aconteceu aquando da construção do muro junto à estrada, na parte da frente do prédio, em que houve necessidade de resolver algumas questões relativas à legalidade da construção, junto da Junta de Freguesia de (...) .

46- Os animais que criava permaneciam durante o dia no terreno adjacente às edificações.

47- Todos esses atos atrás referidos foram praticados de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, designadamente dos proprietários dos prédios vizinhos e moradores da povoação,

48- E incidiram sobre o prédio inscrito na matriz urbana de Freguesia de (...) sob o artigo urbano 1495.º e melhor identificado sob a letra “D” do croqui junto aos autos pela A,

49- Sem a sua oposição nem de sua irmã M (…)

50- Que nesse prédio não tiveram qualquer intervenção, nunca o semearam ou cultivaram, muito menos se comportaram como proprietárias do mesmo.

51- Após a morte da M (…) continuou a posse a ser exercida pelos seus sucessores.

52- O R. A (...) reside no local.

53- O R. J (…)semeou lá alguns produtos hortícolas e colocou aí gansos.

54- No dia 4 de março de 2004 deu entrada no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, ação de interdição por anomalia psíquica em que foi requerida M (…) e que correu termos pelo 1.º Juízo do referido Tribunal com o n.º 501/04.1TBFIG

55- Foi proferida sentença em 16 de novembro de 2004 que procedeu, tendo transitado em julgado, ficando como tutora da interdita sua filha M (…) e fazendo parte do Conselho de família, a ora A e V (…)

56- A fls. 64 do referido processo a tutora nomeada apresentou a relação de bens da interdita onde a fls. 69 e sob a verba n.º 2 consta “uma sala de ordenha, uma sala de receção de leite e telheiro, com a superfície coberta de 120m2 e logradouro com 2052m2, inscrita na matriz predial urbana da Freguesia de (...) sob o artigo 1495.º.

57- A fls. 71 do mesmo processo refere que «não se encontram descritos nem inscritos os prédios que a minha mãe possui e cuja declaração entreguei».

58- E a fls. 72 indica como possuidora do referido prédio a M (…)

59- E no requerimento de fls. 81 apresentado nos autos refere que os prédios que sua mãe possui e que lhe foram adjudicados no inventário, a que se procedeu por óbito do seu marido, não se encontram registados na conservatória porque o registo não é obrigatório e que a interdita não o registou por falta de meios económicos. Igualmente refere que os mesmos podem ser transmitidos, se necessário

60- E, igualmente, aquando da apresentação na Repartição de Finanças da (...) do imposto de selo por óbito de M (…) relacionou, como sendo propriedade da mesma, o artigo urbano 1495º da Freguesia de (...) (Doc. n.º 5).

61- E no ano de 2012 a mesma M (…), irmã da A e dos RR apresentou queixa contra o R A (…)e contra P (…) e S (…)por no dia 22.02.2013, pelas 18h00, terem causado estragos numa casa de arrumos num terreno que faz parte da herança dos diversos irmãos, ainda não partilhada.

62- O R J (…) na parcela designada pela letra D, colocou gansos e semeou algumas espécies hortícolas, o R A(…) aí habita e a A ou sua irmã aí tiveram uma roulotte.

2. Matéria de facto – Factos não provados

- A área das parcelas B) e C)

-A parcela designada pela letra D era utilizada pela aqui A. e pela sua irmã, assim como as construções ali existentes.

- A mãe das aqui partes nunca atuou no prédio rústico como proprietária do mesmo, pois sempre respeitou a partilha feita no inventário.

- Só após a morte da mãe de todos é que os RR. se arrogam proprietários da aludida parcela designada pela letra D,

- A mãe dos AA e RR arrendou o artigo urbano n.º 1495 por € 50,00 mensais ao R, A (...) .

- Não procedeu à venda por desacordo de verbas com o comprador.

- Entrou em conflito com proprietários de prédios vizinhos que pretendiam passar pelo prédio alegando que sobre o mesmo estava constituída uma servidão de passagem.

- Acabando por constituir mandatário, suportando os respetivos honorários.

- E impedir a passagem pelo prédio com a colocação no local de um portão.

- Foi a M (…) que suportou, até à data da sua morte, todas as despesas referentes ao prédio, nomeadamente com a eletricidade, contribuição autárquica e conservação do mesmo.

- O montante da renda era 10 000$00, sendo que quando a M (…) dava dinheiro aos filhos o quinhão do R A (...) era entre outras quantias, preenchido com o dinheiro referente a esse arrendamento.

c) Apreciação da restante questão objeto do recurso

1 - Os recorrentes argumentam que dos factos provados resulta que a Autora e irmã não são proprietárias da parcela aqui em disputa, encontrando-se ilidida a presunção estabelecida no artigo 7.º do Código do Registo Predial, o que implica a revogação da decisão e improcedência da ação. 

Sobre esta questão cumpre começar por referir o seguinte:

A Autora afirma que é comproprietária, juntamente com a testemunha e sua irmã M (…), da parcela de terreno identificada nos factos provados pela letra «D», porquanto esta parcela integra o prédio do artigo matricial rústico 5552.

Os Réus sustentam que a referida parcela «D» corresponde ao artigo matricial urbano 1495, pertencente à herança de M (…), ainda não partilhada, mãe de autora e réus, sendo, portanto, um prédio distinto do prédio do artigo matricial 5552 que a Autora afirma ser seu, afirmação que e os Réus não contestam.

Verifica-se, por conseguinte, que provando os Réus que a parcela «D» não pertence ao prédio da autora, os Réus não poderão ser condenados naqueles pedidos que a Autora lhes dirige e daí que os Réus possam, porque são herdeiros ([1]) de M (…), invocar a posse e a usucapião da referida parcela «D» por parte desta.

2 - Vejamos então se a parcela «D» é um prédio diverso do prédio do artigo matricial rústico 5552 e se o mesmo pertence à herança de M (…)a, por se ter radicado neste património, pela via da aquisição por usucapião.

Verifica-se que a parcela «D» integra em termos matriciais e físicos o prédio urbano do artigo matricial 1495 da freguesia de (...) .

Porém, isso não exclui que se possa afirmar que a parcela «D» também pertencer em termos matriciais ao prédio rústico do artigo matricial n.º 5552.

Estamos apenas no domínio das afirmações feitas com base no teor das matrizes.

Com efeito, pode existir em termos documentais uma duplicação de artigos matriciais tendo por objeto a mesma porção de terreno ou então uma certa porção de terreno pode matricialmente integrar dois prédios distintos

Mas, em termos substanciais, isto é, jurídicos, esta duplicidade já não é possível, pois uma porção de terreno não pode, ao mesmo tempo, ser objeto do direito de propriedade exclusiva de dois sujeitos diferentes: ou é de um ou é de outro, ou integra o artigo matricial urbano 1495 ou o rústico 5552.

Consta dos factos provados 27 a 35 (não foram objeto de impugnação) o seguinte:

Que no inventário orfanológico a que se procedeu por óbito do pai da autora e dos réus foi adjudicado à autora e à sua irmã M (…), em comum, a verba n.º 14 da relação de bens, isto é, 3/4 do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de (...) sob o artigo 5532.

Que no mesmo inventário, sob a verba n.º 15 da relação de bens, foi relacionado um prédio – um barracão destinado à ordenha – que foi adjudicado a M (…), mãe da autora e dos réus, encontrando-se esta verba n.º 15 identificada sob a letra «D» no croqui junto aos autos pela autora, prédio este que desde então passou a ser detido por M (…), explorando-o, melhorando-o, zelando pela sua conservação, pagando a respetiva contribuição, cedendo-o a título gratuito e oneroso, dele retirando os respetivos frutos, enfim nele praticando todos os atos próprios de um verdadeiro proprietário.

Que, mais tarde, no dia 13 de janeiro de 1982, M (…) apresentou na Repartição de Finanças da (...) , um requerimento (o «Modelo 129») através do qual pediu a inscrição na matriz dessa verba n.º 15, a parcela «D», pedido que foi deferido, tendo sido atribuído a essa parcela o artigo matricial urbano 1495 da Freguesia de (...) .

Que a partir da adjudicação no inventário a mãe da autora e dos réus passou a deter o prédio do artigo urbano 1495 da freguesia de (...) – explorando-o, melhorando-o, zelando pela sua conservação, pagando a respetiva contribuição, cedendo-o a título gratuito e oneroso, dele retirando os respetivos frutos, enfim nele praticando todos os atos próprios de um verdadeiro proprietário, na convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno.

Acrescendo (factos 47 a 50) que todos esses atos foram praticados de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, designadamente dos proprietários dos prédios vizinhos e moradores da povoação, sem a sua oposição nem de sua irmã M (...) , pessoas que nesse prédio não tiveram qualquer intervenção, nunca o semearam ou cultivaram, muito menos se comportaram como proprietárias do mesmo.

Face a estes factos verifica-se que desde 13 de fevereiro de 1982, data da sentença homologatória da partilha feita no referido inventário, que transitou em julgado (facto provado 32), M (…) passou a relacionar-se com o terreno da parcela «D», como proprietária, com postura relevante para efeitos de posse adequada à aquisição do respetivo direito, pois passou a ter a posse material do mesmo, acompanhada da intencionalidade própria do proprietário («…na convicção de que os levava a cabo no exercício do direito de propriedade sobre essa parcela de terreno - facto provado 35), portanto com animus de proprietária, com exclusão de outrem (artigo 1251.º do CC); de modo ostensivo, público, à vista de todos (artigo 1262.º do CC) e sem oposição de terceiros (artigo 1261.º, n.º 1 do CC) - factos 47 a 50.

Posse esta que se presume de boa fé, porquanto foi adquirida com base na partilha efetuada no inventário atrás referido – artigos 1259.º e 1260.º, n.º 2, ambos do CC.

A respeito da escritura de partilhas valer como justo título, o Prof. Antunes Varela referiu que «…a escritura de partilhas ou o negócio de divisão de coisa comum não convertem em titulada uma posse que anteriormente não o seja. Quando, porém, a partilha, a divisão ou inventário recaiam sobre direitos devidamente titulados a favor da comunhão, esses negócios constituirão justo título em relação à aquisição da fracção, da quota ou do objecto concretamente adjudicado a cada consorte» ([2]).

No caso, verifica-se que nenhuma das partes alega, e os factos não indiciam sequer, que a posse do inventariado (pai da Autora e dos réus) não fosse titulada, pelo que a partilha feita no inventário transmitiu também uma posse titulada aos herdeiros.

Esta posse com estas características conduz à aquisição do direito através do instituto da usucapião passados 15 anos, como determinam os artigos 1287.º e 1296.º, ambos do Código Civil.

Ou seja, o prazo para a aquisição da propriedade da parcela «D», artigo matricial 1495.º completou-se em 13 de fevereiro de 1997.

Verifica-se que os Réus invocaram a aquisição do direito de propriedade por parte da sua progenitora através do instituto da usucapião.

Mas não deduziram reconvenção.

Porém, a dedução da reconvenção é facultativa ([3]), ou seja, não é obrigatória, no sentido de só desse modo se poder fazer valer a existência de um direito.

É o que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 266.º do CPC onde se determina que «O réu pode, em reconvenção…», o que significa que não existe uma obrigatoriedade.

O reconhecimento de um direito incompatível com o pedido formulado na ação também pode ser feito por via de exceção.

A exceção, como resulta do disposto no n.º 2, 2.ª parte, do artigo 571.º do CPC consiste na alegação de «…factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido».

Neste sentido, pronunciou-se o STJ em acórdão de 15-02-1977, publicado no BMJ n.º 264 (1977), pág. 186, de cujo sumário consta «Constitui defesa por excepção a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião, não carecendo, portanto, de ser formulado pedido reconvencional do reconhecimento desse direito» ([4])http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif.

Deste modo, a invocação da aquisição do direito de propriedade por via da usucapião, sendo procedente, impede a procedência da ação que consista na pretensão de ver reconhecido o direito de propriedade sobre o mesmo prédio com base, por exemplo, na presunção resultante do registo predial, porquanto a aquisição por usucapião é uma aquisição originária que se impõe ao direito de propriedade registado e transmissões daí derivadas.

Aqui chegados, é de concluir que foi ilidia a presunção do direito de propriedade resultante do artigo 7.º do Código de Registo Predial, que beneficiava a Autora.

Com efeito, provou-se, como se viu, a aquisição do direito de propriedade da referida parcela por parte da mãe da Autora e dos Réus.

Recorde-se que a usucapião é um modo de aquisição originária do direito, porquanto não se funda geneticamente na relação jurídica que se encontra registada, sendo autónoma em relação a ela.

Nestes casos, nas palavras do Prof. Manuel de Andrade, «O direito do adquirente não se filia no do titular anterior. Não depende dele nem da sua existência nem na sua extensão. Não foi adquirido por causa desse direito, mas apesar dele» ([5]).

Aliás, no caso dos autos, nem se poderá falar propriamente da ilisão da presunção do direito de propriedade resultante do artigo 7.º do Código de Registo Predial, porquanto resulta dos factos provados que existiu uma separação e autonomização da parcela «D» em relação ao prédio primitivo do artigo matricial rústico 5552, formando-se um novo prédio, o artigo matricial urbano 1495, ambos da freguesia de (...) .

Ou seja, a presunção relativa ao direito de propriedade existe, sucede apenas que que o prédio do artigo matricial rústico 5552, da freguesia de (...) , não tem a extensão que a Autora lhe atribui, isto é, não compreende a área autonomizada que deu origem ao artigo matricial urbano 1495, da mesma freguesia.

Concluindo-se assim, é concluir, no essencial, pela improcedência da ação, pelo que cumpre revogar a sentença recorrida e absolver os Réus dos pedidos de acordo com aquilo que acabada de ser concluído.

Ou seja, manter-se-á a decisão no que respeita à declaração do direito de propriedade sobre o prédio o artigo 5552 rústico da freguesia de (...) , mas interpretando esta declaração no contexto da decisão, sem incluir, portanto, a área do prédio do artigo matricial urbano 1495

Por conseguinte, mantém-se a alínea «a)» da sentença, mas não as alíneas «b)» e «c)» [b) Restituírem à AA, na qualidade de comproprietária a parcela de terreno que estão a ocupar;

c) Condena-se os RR. a não entrarem no referido imóvel, abstendo-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o uso do mesmo e o acesso as construções nele existentes].

Como se disse, a ação improcede no essencial, pois o pedido de reconhecimento da propriedade relativamente ao prédio do artigo matricial 5552 é instrumental e não é contestado pelos Réus, os quais contestaram apenas a extensão física do mesmo.

Sendo assim, as custas ficam todas a cargo da Autora.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se o dispositivo da sentença recorrida que figura nas suas alíneas «b)» e «c)», absolvendo-se os Réus dos pedidos correspondentes a estas alíneas, mantendo-se apenas a alínea «a)» desse dispositivo, interpretada nos termos expostos na fundamentação do presente acórdão.

Custas pela Autora.


*

Coimbra, 18 de dezembro de 2019

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo


[1] Nos termos do artigo 2024.º do Código Civil, «Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam».

Como referiram Pires de Lima/Antunes Varela, «A forma como o artigo 2024.º retrata a sucessão mortis causa, dizendo que os sucessores são chamados à titularidade das relações patrimoniais da pessoa falecida, visa significar, de modo ainda mais impressivo do que fazem os autores que consideram a sucessão como uma transmissão ou transferência de bens (de direitos e obrigações), que há uma relação de verdadeira identidade entre as relações anteriormente encabeçadas na pessoa falecida e aquelas de que passa a ser titular o seu sucessor na área dos interesses abrangidos pelo epicentro do fenómeno sucessório.

As relações jurídicas, após a morte do seu titular, continuam a ser as mesmas, quer a lei dizer no seu retrato ontológico do fenómeno; o que muda é o sujeito – e apenas o sujeito – delas» - Código Civil Anotado, Vol. VI. Coimbra Editora 1998, pág. 5.


[2] Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 120, pág. 159, coluna da direita.
[3] É esta a tradição processual. Ver Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º (1946), Coimbra editora, pág. 97.

[4] Consultável em www.dgsi. pt, sob o n.º 066349.


[5] Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II. Coimbra, 1987, pág. 15. Isto implica que quando o novo direito é registado, emergente da usucapião, ocorra uma cisão no trato sucessivo anteriormente estabelecido, iniciando-se um novo trato, uma nova cadeia de transmissões, a partir do usucapiente.