Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE INSOLVENTE PRESO EM CUMPRIMENTO DE PENA INDEFERIMENTO LIMINAR DEVERES DE INFORMAÇÃO E DE COLABORAÇÃO CULPA | ||
Data do Acordão: | 10/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 236.º, 237.º, 238.º, N.º 1, AL.ª G), E 239.º, N.º 1, DO CIRE | ||
Sumário: | I – O facto de o insolvente se encontrar detido em cumprimento de pena, ainda que seja previsível que os rendimentos de que possa vir a auferir através de trabalho remunerado, não lhe permitirão dispor de qualquer rendimento a ceder, tal não pode constituir um obstáculo à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
2. A omissão, no requerimento inicial de apresentação à insolvência, da existência do direito a ½ indiviso relativamente a dois prédios rústicos, direitos estes (adquiridos por doação) que nem sequer foram apreendidos para a massa, pelo facto não apresentarem qualquer valor/económico, não integra violação com culpa grave dos deveres de informação e de colaboração, a que se reporta a al. g) do nº1 do art. 238º CIRE. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Maria João Areias 1º Adjunto: Chandra Garcias 2º Adjunto: Paulo Correia
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I – RELATÓRIO AA apresentou-se à insolvência, formulando pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante. Declarada a insolvência do devedor, no Relatório apresentado ao abrigo do artigo 155.º do CIRE, o Administrador de Insolvência disse nada ter a opor a tal pedido de exoneração. Notificados, nenhum dos credores se opôs à concessão inicial de exoneração do passivo restante ou por qualquer modo se pronunciou. Pelo juiz a quo foi proferido despacho a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente. * Inconformado com tal decisão, o insolvente, dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões: (…). * Dispensados os vistos legais, nos termos do nº 4 do artigo 657º CPC, há que decidir. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, nº4, e 639º, do Novo Código de Processo Civil, as questões a decidir, são as seguintes: 1. Se a circunstância de o insolvente se encontrar em cumprimento de pena de prisão inviabiliza ou retira qualquer valor ao compromisso apresentado pelo devedor de que cumpre os requisitos e se dispõem a observar todas as condições exigidas nos arts. 237º e ss. do CIRE, importando o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. 2. Se o facto de, no requerimento de apresentação à insolvência, não ter relacionado os direitos de que era titular, declarando não ser proprietário ou detentor de quaisquer bens, constituiu motivo de indeferimento liminar previsto na al. g) do nº1 do art. 238º do CIRE. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO A. Matéria de Facto Na decisão recorrida, foram tidos por assentes os seguintes factos, com interesse para a decisão em apreço: 1. AA nasceu no dia ../../1979, é natural da freguesia e concelho ..., é solteiro e do respetivo assento de nascimento e dos autos não consta qualquer averbamento ou informação de que já beneficiou da exoneração do passivo restante (certidão junta com o requerimento de 30-11-2023); 2. Apresentou-se à insolvência em 23 de novembro de 2023; 3. Declarou que preenche todos os requisitos do pedido de exoneração do passivo restante e que se compromete a observar todas as condições exigidas nos artigos 237.º e seguintes do CIRE (art. 36.º da p.i.). 4. Na petição inicial o insolvente declarou que não é proprietário ou detentor de “um qualquer bem, móvel ou imóvel” e não apresentou relação de bens e direitos nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º (art.º 4.º da p.i.). 5. Com a petição inicial, o insolvente apresentou a seguinte relação de credores: 5.1. Fazenda Nacional, com um crédito no valor de €2.858,71, vencido em 17 de dezembro de 2021; 5.2. A..., Lda., com um crédito no valor de €12.386,60, vencido em 22 de setembro de 2023; 5.3. Ministério Público, com um crédito no valor de €329.000,00, vencido em 27 de fevereiro de 2023; 5.4. Ministério Público, com um crédito no valor de €2.580,60, vencido em 10 de outubro de 2022; 5.5. Tribunal Constitucional – Ministério Público, com um crédito no valor de €714, vencido em 30 de janeiro de 2023 (relação de credores junta com a p.i.). 6. Com a petição inicial, o insolvente apresentou a seguinte relação de processos: (…) 7. Por acórdão de 29-10-2020, transitado em julgado em 26-05-2022, proferido no processo n.º 40/14... do Juízo Central Criminal de Viseu, Juiz ..., do Tribunal Judicial daComarca de Viseu, o insolvente foi condenado, pela prática, em co-autoria, de: 7.1. dez crimes de lenocínio, p. e p. pelo art. 169.º, n.º 1 do Código Penal, praticados em 04-10-2014, 06-12-2014, 11-05-2015, 18-07-2015, 12-12-2015, 16-11-2015, 28-10-2016, 23-02-2017, 10-02-2016 e 07-11-2018, nas penas parcelares de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes; 7.2. dez crimes de auxílio à Imigração Ilegal, p. e p. pelo art. 183.º, n.º 2 do Decreto -Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, consumados em 04-10-2014, 06-12-2014, 11-04-2015, 28-10- 2016 [nesta data 3 deles], 10-02-2018 [nesta data 3 deles] e 07-11-2018, nas penas parcelares de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. 8. Foi também condenado no processo comum coletivo n.º 1520/16...., que correu termos no Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz ..., por acórdão de 09-12-2019 transitado em julgado em 26-05-2022, pela prática em autoria material e concurso efetivo, de: 8.1. um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do Decreto - Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro por referência às tabelas I - A e I - B anexas a tal diploma, praticado entre meados de 2016 e 06-09-2017 e 14-10-2017, na pena de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão; 8.2. um crime de tráfico e mediação de armas p. e p. pelo art. 87.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, praticado em data não apurada de 2016, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) anos de prisão. 9. Na sequência da realização do cúmulo jurídico das penas mencionadas nos artigos 7.º e 8.º, o insolvente foi condenado na pena única de 8 anos e 9 meses de prisão, tendo, por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-09-2023, sido julgado improcedente o recurso interposto pelo insolvente, mantendo-se a decisão recorrida (acórdão junto com a p.i – “129677470 Outro”). 10. No processo n.º 40/14..., foi declarada perdida a favor do Estado a quantia global de €329.000,00 euros (trezentos e vinte e nove mil euros) e o insolvente foi condenado a pagar este montante (acórdão junto com a p.i – “129677471 Outro”). 11. O insolvente iniciou o cumprimento da pena de 8 anos e 9 meses de prisão em 06-07-2022, e atingirá o(s): - Termo da pena em 4 de abril 2031; - Meio da pena em 19 de novembro de 2026; - Dois terços da pena em 4 de maio de 2028; - Cinco sextos da pena em 19 de outubro de 2029 (informação junta aos autos em 12-03-2024). 12. Do registo criminal do insolvente não consta qualquer condenação pela prática dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal (CRC junto aos autos em 09-02-2024). 13. O Sr. administrador da Insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos junta ao apenso A em 30-01-2024, que não foi impugnada, cujo teor se dá por reproduzido, tendo: 13.1. reconhecido os seguintes créditos: 13.1.1. Autoridade Tributária e Aduaneira, crédito no valor total de €7.309,93, relativo a IUC, custas de tribunais, taxas de portagens, coimas e custas; 13.1.2. Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Distrital ..., crédito no valor total de €554,87, relativo a contribuições para segurança social como trabalhador independente; 13.1.3. Banco 1... – Sucursal em Portugal, crédito no valor total de €348,87, relativo a contrato de crédito n.º ...40 (cartão de crédito ...). 13.2. não reconhecido os seguintes créditos: 13.2.1. A..., Unipessoal, Lda., crédito no valor de €12.386,60, tendo declarado que não foi possível apurar a existência do referido crédito; 13.2.2. Ministério Público, crédito no valor de €332.294,60, tendo declarado que não foi possível apurar a existência do referido crédito (requerimento de 30-01-2024 do apenso A). 14. Anteriormente à prisão, o insolvente residia alternadamente, com os seus pais, na residência destes e na residência da mãe do seu filho, estudante e com 15 anos de idade (relatório do A.I.). 15. No inventário a que se refere o artigo 153.º do CIRE, foram indicados os seguintes direitos: Verba um: ½ do prédio rústico – terra de pastagem, com área total de 700 m2, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...34 e inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo n.º ...23, da freguesia ..., concelho ..., com o valor patrimonial de €0,23; Verba dois: ½ do prédio rústico - pinhal, com área total de 570 m2, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...35 e inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo n.º ...37, da freguesia ..., concelho ..., com o valor patrimonial de €4,55 (inventário junto com o relatório de 26-01-2024). 16. A aquisição dos direitos mencionados no artigo anterior foi registada a favor do agora insolvente pela Ap. ...26 de 03-02-2012, por doação, e foram penhorados em 20-03-2023 no processo n.º 40/14.... (documentos juntos aos autos em 05-02-2024). 17. O Sr. administrador da insolvência, sem oposição dos credores e do insolvente, pronunciou-se no sentido de que os direitos mencionados no artigo 15.º “não apresentam qualquer valor económico / comercial” (requerimento de 28-03-2024). 18. O único rendimento que o insolvente recebe no estabelecimento prisional é o valor mensal entre €50,00 a €70,00 (requerimentos de 03-04-2024 e 18-05-2024). * 1. Se a circunstância de o insolvente se encontrar em cumprimento de pena de prisão inviabiliza ou retira qualquer valor ao compromisso apresentado pelo devedor de que cumpre os requisitos e se dispõem a observar todas as condições exigidas nos arts. 237º e ss. do CIRE, importando o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante O insolvente apresentou-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, acompanhado da declaração a que reporta o nº3 do artigo 236º do CIRE, de que preenche todos os requisitos exigíveis e se compromete a observar todas as condições exigidas nos artigos 237º e segs. do CIRE. O tribunal recorrido, considerando que, “por força do cumprimento da pena de prisão, a que o insolvente foi condenado, não pode exercer de forma plena uma profissão remunerada e está limitado na procura de qualquer profissão, por outro lado, não poderá entregar o rendimento disponível aos credores, salvo se tal for autorizado nos termos do n.º 3 do artigo 46º do CEPMPL o que não está dependente apenas da sua vontade”, conclui que, apesar da declaração efetuada, o insolvente não reúne os requisitos para observar todas as condições exigidas 236.º, n.º 3), constituindo causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Insurge-se o Apelante contra o decidido, com as seguintes ordens de razões: 1. devendo ser assegurado ao recluso, de acordo com as ofertas disponíveis, trabalho em unidades produtivas de natureza empresarial, tendo em conta as suas aptidões, capacidades, preparação e preferências, sem prejuízo do acesso ao ensino e à formação profissional e da participação nos programas referidos no capítulo seguinte (art. 41.º, n.º 3) e que é devida remuneração equitativa pelo trabalho prestado (art.º 41.º, n.º 5 da Lei n.º 115/2009, 2. não é pelo facto de o insolvente eventualmente acabar por não receber valor superior ao salário mínimo nacional, que determinará o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante. 3. é de admitir a possibilidade do indeferimento liminar ainda que se afigure previsível que o devedor não venha a dispor de qualquer para ceder durante os três anos seguintes ao encerramento do processo de insolvência. 4. os fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração, enunciados no nº 1 do art. 238º do CIRE, são taxativos – os motivos de recusa da exoneração que acrescem aos enunciados enquanto motivo de indeferimento liminar, mormente os estabelecidos na alínea a) do nº 1 do art. 243º do CIRE não podem, em rigor, ver antecipada a sua aferição para o momento da prolação do despacho inicial. Cumpre decidir, desde já, adiantando ser de dar razão ao Apelante. Surgindo a Lei 9/2022, de 11 de janeiro, na sequência da necessidade de transposição da Diretiva Comunitária (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, na aplicação do instituto da exoneração do passivo restante, haverá que ter presente a configuração que lhe é dada por aquilo que a Diretiva designa de “perdão de dívidas”. A Diretiva apresenta como um dos seus objetivos o de assegurar a possibilidade de os empresários honestos insolventes ou sobreendividados beneficiarem de um perdão, permitindo desta forma a efetivação de uma real e verdadeira segunda oportunidade[1]. Traduzindo-se a exoneração do passivo restante num beneficio exclusivo do devedor, se a compressão do benefício dos credores é vista como sacrificável em nome de um bem maior – justificada pelo interesse na rápida integração do devedor na vida económica, na diminuição de situações geradoras de economia paralela, rápida definição da (in)cobrabilidade dos créditos, o interesse do próprio devedor e dos seus credores futuros em termos de segurança jurídica – resulta igualmente da constatação de que “a manutenção da exigibilidade do passivo não redunda na satisfação final de qualquer interesse relevante dos credores, atenta a inexistência de qualquer chance séria de estes poderem vir a recuperar qualquer parte dos seus créditos[2]”. É a esta luz que e tendo em conta esta ponderação de interesses que se responderá à questão de saber se a previsibilidade de inexistência de rendimentos poderá constituir, ou não, causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. O despacho liminar a que se refere o nº1 do artigo 239º do CIRE, destina-se a aferir da existência de condições mínimas para aceitar o requerimento contendo o pedido de exoneração do passivo restante, sendo que, o juízo de mérito em causa não é sobre a concessão ou não da exoneração (análise que só será efetuada passados três anos, no final do período da cessão), mas, em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada[3]. O despacho inicial não representa qualquer decisão relativamente à concessão da exoneração do passivo restante, mas apenas a passagem a uma nova fase processual, denominada período de cessão, onde o devedor é sujeito a determinadas exigências durante três anos, findos os quais o juiz tomará decisão final sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º)[4]. Nesta fase processual, a decisão a proferir não passa pela aferição do preenchimento dos pressupostos para a concessão do beneficio da exoneração do passivo restante, mas, tão só, um “despacho inicial” (artigo 239º, nº1), que afere as condições de admissibilidade do próprio pedido, no âmbito do qual, o juiz verificará a ocorrência de alguma das circunstâncias previstas nas als. a) a g), do nº1 do artigo 238º do CIRE, que importam a rejeição liminar do pedido. Englobando tais alíneas, fundamentos de natureza processual [alínea a)] – pedido apresentado fora de prazo – e de natureza substantiva ou material, relacionados com o comportamento do devedor, se ao nível dos pressupostos processuais poderemos configurar a existência de outros fundamentos de indeferimento liminar [por ex., ilegitimidade para a formulação do pedido, incompatibilidade com um plano de insolvência – art. 237º, al. c)], é de entender-se como taxativo o elenco de causas substantivas de indeferimento liminar constantes das als. b) a g)[5]. Por outro lado, a lei apenas menciona que, a existir disponibilidade de rendimento, este deverá ser cedido ao fiduciário. Constituindo uma das obrigações que o artigo 239º faz recair sobre o insolvente durante o período da cessão precisamente o “procurar diligentemente uma profissão remunerada, quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto” (nº4, alínea b)), daí se retira que, o facto de se encontrar desempregado ou a inexistência de rendimentos, durante o período da cessão, por si só, não constituiu motivo para recusa a final da concessão do benefício, quanto mais, do seu indeferimento liminar. A jurisprudência e a doutrina têm-se pronunciado no sentido de que, não obstante a exoneração implicar a cessão do rendimento disponível, a ausência de rendimento no momento em que se apresenta à insolvência ou posteriormente, não deve ser considerada fundamento de indeferimento liminar[6]. Dentro de tal linha de entendimento, Letícia Marques Costa, questionando-se sobre o caso de não se afigurar previsível que o devedor venha a dispor de qualquer rendimento durante o período da cessão, conclui que, “no âmbito do despacho inicial de exoneração, o valor diminuto ou a inexistência de rendimento disponível não poderá constituir facto impeditivo de o devedor requerer e ver ser admitido o pedido de exoneração[7]”. Não constituirá motivo de indeferimento liminar, como, nem sequer importará necessariamente a exclusão do benefício a final. Como salienta Gonçalo Gama Lobo, “pode suceder de acordo com a regra de determinação do nº3 do art. 239º que não haja qualquer rendimento disponível; mas pode nem existir ab initio, qualquer rendimento porque, por ex., o insolvente está desempregado e não reúne as condições necessárias à concessão de benefícios sociais. (…) Na verdade, estando em causa a tutela do interesse do devedor e da comunidade em reintegrar aquele na vida económica, como dissemos supra, não fará sentido vedar o acesso ao benefício da exoneração do passivo restante a quem mais dele carece, em nome de uma suposta defesa dos credores[8]”. Não se encontrando previsto em qualquer parte do diploma, como causa seja de indeferimento liminar, seja de cessação antecipada, seja de não concessão ou ainda de revogação da exoneração do passivo restante, a não obtenção de um determinado resultado final para os credores fruto da maior ou menor satisfação dos seus créditos, “a ausência, atual ou futura, de rendimento disponível do devedor, só determinam a exclusão do beneficio quando tal circunstância for motivada por uma comportamento censurável daquele[9]”. No despacho inicial, o mérito está em aferir o preenchimento dos requisitos substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que lhe seja dada uma nova oportunidade, exigindo-se um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, pela honestidade, pela boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência[10]. As causas substantivas de rejeição do pedido destinam-se a avaliar o seu comportamento passado e presente, destinando-se a afastar os devedores de má-fé, aqueles que contribuíram de forma consciente e censurável para gerar ou agravar o seu sobreendividamento, ficando excluída qualquer apreciação ou juízo de prognose acerca da capacidade do insolvente de auferir rendimentos suficientes (do trabalho ou outros) para ceder ao fiduciário. Como tal, o facto de o insolvente se encontrar detido em cumprimento de pena, ainda que seja previsível que os rendimentos de que possa vir a auferir através de trabalho remunerado, não lhe permitirão dispor de qualquer rendimento a ceder, tal não pode constituir um obstáculo à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Por outro lado, como se afirma no Acórdão do TRG, relativamente a uma situação semelhante, “(…) a reclusão a que se mostra coercivamente submetido o insolvente apelante, não permite concluir, como de forma tão perentória se faz na decisão recorrida, a impossibilidade prática de exercício de trabalho remunerado. (…)Tanto o exercício quanto a procura ativa e diligente de atividade laboral não é impedida pelo cumprimento da pena de prisão – pelo contrário, o ordenamento jurídico expressamente estabelece a possibilidade dos reclusos exercerem atividade laboral remunerada (equitativamente), não se encontrando razões válidas para que a remuneração não possa ter como destino finalidade adstrita à satisfação dos direitos dos credores (como cremos resultar do nº3 do art. 46º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei nº 115/2009, de 12/10). Com efeito, segundo o nº2 do artigo 44º do CEPMPL, “Deve ser assegurado ao recluso, de acordo com as ofertas disponíveis, trabalho em unidades produtivas de natureza empresarial, tendo em conta as suas aptidões, capacidades, preparação e preferências”, sendo-lhe “devida remuneração equitativa pelo trabalho prestado” (nº5). Concluindo, o facto de o insolvente se encontrar preso em cumprimento de pena, situação em que previsivelmente permanecerá durante o período de três anos da cessão, não constituiu motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. * 2. Se o facto de, no requerimento de apresentação à insolvência, não ter relacionado os direitos de que era titular, declarando não ser proprietário ou detentor de quaisquer bens, integra o motivo de indeferimento liminar previsto na al. g) do nº1 do art. 238º do CIRE. A decisão recorrida, considerando que o insolvente não relacionou os direitos mencionados no artigo 15º dos factos provados e declarou que não era proprietário ou detentor de qualquer bem, concluiu que o mesmo atuou, pelo menos com culpa grave, já que só uma pessoa especialmente descuidada e desatenta é que poderia incorrer na omissão em que incorreu o insolvente. Em consequência, concluiu que “o insolvente violou, pelo menos, com culpa grave, o dever de informação, o que também determina o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos da al. g), do nº1, do artigo 238º”. Insurge-se o Apelante contra o decidido, com fundamento em que, se é certo que, na petição inicial, por lapso momentâneo, não relacionou os bens, de tal omissão não decorreu qualquer benefício para o Recorrente ou prejuízo para os credores, tratando-se de dois direitos sem qualquer valor comercial. Cumpre apreciar. Também aqui é de dar razão ao apelante. Segundo o nº1, al. g), do artigo 238º, o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se “O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente código, no decurso do processo de insolvência”. * IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, devendo o tribunal a quo, caso a tal nada obste, proferir despacho inicial nos termos do n.º 2 do art.º 239.º do CIRE. Sem custas. Coimbra, 08 de outubro de 2024 (…).
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