Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
765/11.4TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CASO JULGADO
REQUISITOS
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO , 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 493.º, 1 E 2; 494.º, I); 498.º, N.º 2 DO CPC
Sumário: 1. O caso julgado integra hoje uma excepção dilatória, isto é, uma circunstância que "obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa", dando lugar à absolvição da instância – artigos 494.º, al.ª i) e 493.º, n°s l e 2 do CPC.

2. Constitui pressuposto formal básico da excepção a chamada tríplice identidade entre as causas, quanto aos sujeitos, efeito jurídico visado (pedido) e facto jurídico-fundamento (causa de pedir), nos moldes definidos nos quatro números do artigo 498.º do CPC.

3. Não é possível autonomizar o caso julgado - excepção e a autoridade do caso julgado- como duas figuras essencialmente distintas, pelo que o caso julgado não pode impor a sua força e autoridade independentemente das três identidades mencionadas no artigo 498.° do CPC.

4. Por conseguinte, não há que prescindir da identidade de partes para a declaração da autoridade do caso julgado decorrente de um decisão precedente e transitada, com fundamento na mesma causa de pedir e no mesmo pedido.

5. A qualidade jurídica da parte é o critério decisivo de que o julgador tem de partir para aferir da respectiva identidade, como uma das premissas de que depende a procedência do caso julgado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... LDA fez instaurar no 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra B...e marido C..., alegando, em suma:

Em 22 de Outubro de 2003, D... , sócio gerente da A., actuando em representação desta, embora isso não tenha sido declarado no documento, celebrou com os RR. um contrato promessa tendo por objecto a venda aos mesmos de dois apartamentos da A., cujo pagamento seria feito, além do mais, pela entrega de um prédio urbano de cave, rés-do- chão e 1º andar, propriedade dos RR.; uma vez que esse prédio estava apenas licenciado para habitação, e à A. interessava o licenciamento do rés-do-chão para a actividade de café e restaurante, que aliás já ali se desenvolvia, a pedido da A., a R. B... requereu à Câmara Municipal respectiva a emissão da correspondente licença de utilização; tendo a Câmara condicionado a concessão de tal licença à realização de um conjunto de obras, estas foram realizadas, vindo a ser   emitida a pretendida licença, e ainda uma certidão que viabilizava a constituição da propriedade horizontal com a afectação de uma fracção a comércio e outra a habitação; obtidos estes documentos, ainda em 2007, a A. marcou, por três vezes, dia, hora e cartório notarial para os RR. outorgarem a escritura de constituição da propriedade horizontal e compra e venda, a que os mesmos nunca compareceram; só em carta enviada à A. já 2008 os RR. se lembraram de invocar o não cancelamento de uma hipoteca sobre os apartamentos da A., motivo com base no qual vieram a propor uma acção contra D... no 1º Juízo do T. de Castelo Branco; nessa acção, o aí demandado reconveio, pedindo, além do mais, a condenação dos ali AA. e aqui RR. no pagamento das obras efectuadas e por si custeadas no prédio respectivo; no entanto, por sentença já transitada, e por força da parcial procedência da reconvenção, foram os ora RR. absolvidos do pedido de condenação no pagamento de tais obras - embora condenados a restituir as fracções prometidas - além de ter sido reconhecido que o incumprimento do contrato-promessa lhes era exclusivamente imputável; que aquele D...só “formulou esse pedido nessa acção porque confundiu, mais uma vez a sua pessoa e a da sua sociedade”; na verdade, as obras para licenciamento do rés-do-chão para comércio tiveram o acordo de A. e RR., e foram integralmente executadas e custeadas pela A., que igualmente suportou todas as despesas com a emissão da licença; que tais obras tiveram por objecto evitar a deterioração do prédio, que se achava degradado, aumentando-lhe o valor e capacidade de utilização, não sendo possível o seu levantamento; que só assim agiu por estar convicta de que o imóvel viria ao seu domínio, face ao contrato prometido e à posse em que foi investida; que com tais obras a A. despendeu em materiais e mão-de-obra a importância total de € 39.661,73, tendo direito a receber o valor acrescido do imóvel.

Remata, pedindo que se declare que a A. realizou obras necessárias no prédio dos RR., na expectativa fundada que iria ser dona do prédio identificado no art.º 4º desta petição inicial; que o valor dessas obras é de € 39.661,73; que se condenem os RR. a pagar-lhe essa quantia, acrescida de juros à taxa anual de 4% desde a citação até integral pagamento.

Contestaram os Réus, excepcionando o caso julgado formado pelo trânsito em julgado da sentença proferida na acção nº 2110/08.7TBCTB que correu termos no 1º Juízo do mesmo Tribunal, por haver entre essa acção e a agora intentada identidade de causa de pedir, de pedido e, sob a ponto de vista substancial, de sujeitos ou partes, e, bem assim, a ilegitimidade dos RR. No mais, defenderam-se por impugnação.

Terminam com a procedência das excepções, ou, assim não se entendendo, com a improcedência da acção e absolvição do pedido.

A A. replicou, sustentando a improcedência das excepções e concluindo como na petição.

No despacho saneador, após se declarar procedente a invocada excepção de caso julgado na sua vertente positiva, absolveram-se os Réus da instância, nos termos dos art.ºs 493, nº 2 e 494, alínea i), ambos do CPC.

Inconformada, deste veredicto interpôs a Autora recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

                                                                              *  

São os seguintes os pressupostos de facto a ter em consideração ma apreciação do recurso:

A - Conforme certidão junta a fls. 263 e seguintes, pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco correu termos a acção nº 2110/08.7TBCTB, em que foram Autores os agora Réus C... e mulher B... e Réu D....

B -  A causa de pedir aí formulada pelos AA. foi integrada pela celebração de um contrato promessa de compra e venda, datado de 22 de Outubro de 2003 - que coincide e se identifica com o que também se acha junto a fls. 48 dos presentes autos - e pelo incumprimento do mesmo, imputado ao aí Réu D..., que nele intervém como 1º contratante, figurando o aí A. marido como 2º contratante.

C - Nessa acção o R. D..., em reconvenção, requerendo que se declarasse o incumprimento do contrato imputável aos aí AA,, deduziu igualmente sob o nº 4 o seguinte pedido:

“Devem os AA. ser condenados a pagar ao R. de benfeitorias realizadas por este na casa daqueles a quantia de € 55.500,00”.

D - Na sentença proferida na dita acção julgou-se parcialmente procedente a reconvenção, declarou-se o incumprimento do contrato promessa imputável ao A., decretou-se a resolução do dito contrato e perdido o sinal de € 20.000.00, a favor do R., condenando-se os AA. a restituir ao R. os dois apartamentos deste identificados na acção. No restante, ficou a reconvenção implicitamente julgada improcedente.

E - Esta sentença transitou em julgado.

                                                                               *

A apelação.

A A. A... Lda fecha a sua alegação com oito conclusões em que se limita a questionar a falta de um elemento para a procedência da excepção do caso julgado: a da inexistência - ou, pelo menos, a dúvida sobre a existência - de identidade das partes em ambas as acções, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 

Não houve contra-alegação dos apelados.

Cumpre decidir.

Na decisão ora recorrida, citando-se Lebre de Freitas[1], aderiu-se ao entendimento de que para a vertente positiva do caso julgado, ou seja, a chamada autoridade do caso julgado, não seria necessária a constatação da presença simultânea da identidade de causa de pedir, pedido e sujeitos, identidades que o art.º 498 do CPC apenas exigiria tendo em vista a função negativa ou paralisante da excepção do caso julgado.

Defrontando o que se passou na vertente acção e na acção nº 2110/08, afirma-se no veredicto ora recorrido que se “a causa de pedir que serve de fundamento a uma ou outra acção e o pedido (reconvencional) são os mesmos - contrato promessa de compra e venda e valor das benfeitorias realizadas no prédio objecto de tal contrato - contudo os sujeitos processuais não são totalmente coincidentes pelo que fica aqui afastada a função negativa do caso julgado acima exposta.”

Posteriormente, veio o Sr. Juiz a concluir que, apesar de nesta acção a A. sociedade alegar a posse do prédio dos RR., a necessidade de realização das benfeitorias para efeito de licenciamento camarário, o seu valor e descrição, e a expectativa de vir a adquirir a propriedade respectiva, “ao contrário do que alegara na outra acção”(a acção nº 2110/08.7TBCTB), os pressupostos da indemnizabilidade de tais obras estavam já definitivamente apreciados nesse precedente litígio.

Desta forma, teve-se por bem prescindir da aferição da identidade entre os sujeitos processuais de uma e outra acção, sob o ponto de vista da qualidade jurídica, identidade que se encontra prevista no nº 2 do art.º 498 do CPC.

É neste ponto que incide a questão do recurso, não se mostrando, portanto, aqui polemizada a identidade de causas de pedir e de pedidos (reproduzindo o da presente acção a parte do pedido reconvencional da acção nº 2110 que aí foi julgada improcedente).

Antes de avançar, impõe-se que se diga - de resto em harmonia com o que por este colectivo já foi decidido - que não perfilhamos a tese de que a vertente positiva do caso julgado, a denominada autoridade do caso julgado, abdique das três identidades do art.º 498 do CPC.

Vejamos.

O caso julgado integra hoje uma excepção dilatória, isto é, uma circunstância que "obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa", dando lugar à absolvição da instância – art.°s 494, al.ª i) e 493, n°s l e 2 do CPC[2].

Como se explicita no n° 2 do art.° 497 do CPC, o fim da excepção do caso julgado é o de evitar a reprodução ou contradição de uma dada decisão transitada em julgado.

Constitui pressuposto formal básico da excepção a chamada tríplice identidade entre as causas, quanto aos sujeitos, efeito jurídico visado (pedido) e facto jurídico-fundamento (causa de pedir), nos moldes definidos nos quatro números do art.° 498 do CPC.

Ao lado da excepção do caso julgado, propriamente dita, costuma falar-se da figura da autoridade do caso julgado.

Já o Professor ALBERTO DOS REIS ensinava (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pp. 92/93) que não é possível autonomizar o caso julgado - excepção e a autoridade do caso julgado como duas figuras essencialmente distintas, pelo que estaria errado quem entendesse que «o caso julgado pode impor a sua força e autoridade, independentemente das três identidades mencionadas no art. 502°» (actual 498.°).

O que acontece, segundo a lição do eminente professor, é que «o caso julgado exerce duas funções: - a) uma função positiva; e b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade...a função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado. Mas quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades».

Ou seja, o caso julgado - excepção e a autoridade do caso julgado mais não representam do que duas faces da mesma moeda, apesar de ambas essas manifestações repousarem na tríplice enunciação do art.º 498 do CPC. No entanto, a excepção só existe para defesa da autoridade de um certo caso julgado.

Por conseguinte, não há que prescindir da identidade de partes para a declaração da autoridade do caso julgado decorrente de um decisão precedente e transitada, com fundamento na mesma causa de pedir e no mesmo pedido.

No caso vertente, não cremos que, na realidade, e sob qualquer ângulo de análise, se possa asseverar que o Reconvinte na precedente acção nº 2110/08 - a pessoa singular D... - se possa identificar do ponto de vista da identidade física ou jurídica com a Autora na presente acção - a sociedade A... Lda.

Com efeito, o Réu na acção nº 2110/08 é D..., que aí é demandado - sendo também reconvinte - pelos aí Autores C... e B..., por força da sua vinculação no contrato promessa de 22 de Outubro de 2003 (o mesmo que se discute nesta acção e se acha junto sob fotocópia a fls. 48 dos presentes autos).

O Réu-reconvinte nessa acção nº 2110/08, D..., aparece aí como promitente vendedor de dois imóveis, sem invocar qualquer representação, para além desta não se encontrar referida no contrato promessa. Assim, é perfeitamente inequívoco que o negócio ali questionado surge desenhado de tal forma que só podia ter-se como sido celebrado pelo dito D... por sua única conta e no seu pessoal interesse.

Visando certamente desligar-se do julgamento proferido naquela acção nº 2110/08, a agora Autora A... Lda alega na presente acção que, sendo aquele D... e sua mulher, à data da outorga do contrato, os seus únicos sócios gerentes, o mesmo D... “actuava confundindo o individual e o colectivo” (art.º 7º da p.i), “Não diferenciava a sua intervenção negocial como representante da sociedade da sua intervenção como pessoa singular” (art.º 8º da p.i), “Fazia-o sem quaisquer intenções e com ignorância das possíveis consequências dessa duplicidade” (art.º 9º da m. peça), razão pela qual, no contrato promessa, “o D... interveio em representação da ora A., embora tal facto não conste do mesmo” (art.º 12 da m. peça).

Conjugando a natureza e conteúdo desta alegação com a circunstância de a procuração outorgada pela Autora na presente acção a favor do i. mandatário que a representa vir subscrita pelo mesmo D... (cfr. fls. 36) somos conduzidos a reconhecer que o surgimento da pessoa colectiva A... Lda nesta segunda acção só se pode compreender como um mecanismo gizado por aquela pessoa singular para contornar os efeitos do julgamento já produzido na acção nº 2110/08 quanto à questão das benfeitorias alegadamente efectuadas no prédio dos ora Réus.

A actuação daquele D..., como sócio gerente da pessoa colectiva agora autora, enquadra-se claramente naquilo que tem sido classificado como abuso da personalidade colectiva, e que, sem embargo de não dispor de um previsão legal específica, a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo ser susceptível de permitir a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva e o seu levantamento, em homenagem ao pilar fundamental do ordenamento jurídico que é a boa fé[3].

Não obstante, tem a doutrina alertado para a circunstância de a desconsideração da personalidade colectiva dever apenas ser usada como o derradeiro e residual factor de correcção, apenas ali onde isso se justificar, por carência de instrumentos normativos que possam repor ou punir o abuso da separação de pessoas e patrimónios[4].

Ou seja, o levantamento é tão só um remédio supletivo, não dispensando a exaustiva análise e ponderação de todos os meios legais de reacção ao abuso da personalidade colectiva.

Se essa ponderação revelar a desnecessidade do levantamento da personalidade para o alcance de uma solução conforme à justiça, o aplicador deve socorrer-se da adequada funcionalidade das normas ao seu dispor.          

Ora é esta justamente a hipótese com que nos deparamos nesta acção.

A qualidade jurídica da parte é o critério decisivo de que o julgador tem de partir para aferir da respectiva identidade, como uma das premissas de que depende a procedência do caso julgado.

E se o legislador teve o cuidado de no nº 2 do art.º 498 do CPC explicitar que o ponto de vista relevante era tão só o da qualidade jurídica das partes é porque quis pôr de lado o critério mais imediato, não só da sua qualidade na relação processual, como da denominação ou identificação formal, física ou jurídica.

Também querendo dizer que, de algum modo, desvalorizou a comparação da identidade a partir da designação das partes em face do nome ou da personalidade jurídica com que elas se apresentam nas duas causas.

Importa trazer aqui a lição de Alberto dos Reis[5] sob o verdadeiro significado da expressão “sob o ponto de vista da qualidade jurídica”:

“As partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. O que conta, pois, para o efeito da identidade jurídica, é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial (…)”.  

Qualidade jurídica equivale a posição jurídica.

E quem não é titular da concreta relação controvertida colocada em juízo, assim o verá declarado, seja por via da ilegitimidade, seja por via da improcedência da acção.

Sucede que a qualidade ou posição jurídica da A. nesta acção, perante a relação material em discussão, não é diversa da que foi assumida pelo seu sócio gerente D... na acção nº 2110/08.

Nas duas causas, este D... e a sociedade aqui A. apresentam-se sempre como outorgantes promitentes no contrato promessa celebrado com C... em 22 de Outubro de 2003.

Significando a qualidade jurídica uma determinada posição do sujeito processual na relação material controvertida configurada na acção, a posição da A. na presente acção é absolutamente idêntica à do seu sócio gerente D... na acção anterior. Ambos se arrogam a posição ou qualidade de promitentes no mesmo contrato em que interveio o aqui R. C..., e ambos se reclamam credores do valor das benfeitorias que dizem ter realizado por virtude do mesmo contrato. Consequentemente, a qualidade jurídica com a qual o Réu no processo nº 2110/08 se apresentou a pedir a condenação dos aí AA. no pagamento das benfeitorias é exactamente coincidente com a da Autora sociedade neste processo, apesar de, estranhamente - ou talvez não - esta vir agora aduzir que aquele “confundiu” a sua intervenção a título pessoal com a do ente societário e que no contrato promessa de 22 de Outubro de 2003 o aludido D... “interveio em representação da A., embora tal facto não conste do mesmo” (sem que esse facto tivesse integrado a arquitectura da anterior acção).

Dir-se-á que se não vê como verosímil a existência da aludida “confusão”, dado que a relação material respeitava a um contrato promessa reduzido a escrito, em que os sujeitos estavam precisa e devidamente identificados quanto às esferas jurídicas em que os efeitos do negócio se reflectiriam.

Mas mesmo que se admita que o seu sócio-gerente D... “confundiu” o título em que interveio no contrato promessa, e, que podendo ter invocado esse facto na anterior acção, por erro, imprudência, ou outro motivo, o não fez, está a sociedade agora Autora a aceitar que a relação controvertida aqui discutida é a mesma e que os seus titulares são os que já ficaram definidos. A conduta do sócio-gerente da A. no contrato promessa e na dita acção nº 2110 pode ter sido contrária aos seus deveres como representante da sociedade A. mas isso pertencerá, eventualmente, a uma outra relação controvertível, que não é seguramente discutível nestes autos.

De sorte que a decisão proferida e transitada na acção nº 2110 se não pode deixar de impor à ora Autora sociedade, por com ela ter quedado plenamente estabilizada e definida a relação controvertida resultante do contrato promessa invocado, e, bem assim, inteiramente determinados os respectivos titulares.

Em suma, a decisão recorrida é de manter, ainda que por fundamentos não coincidentes.

                         

                                                             

Pelo exposto, na improcedência da apelação, e por fundamentos não inteiramente coincidentes, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins     


[1] Sem fornecer a localização rigorosa da afirmação atribuída a este conhecido processualista, louva-se também a decisão impugnada no Acórdão desta Relação de 21/10/97, in CJ, Ano XXII, Tomo 1, p. 24.
[2][2] Desde a reforma introduzida pelo DL n° 329-A/95 de 12/12, em cujo preâmbulo se apresenta como elemento clarificador, "de acordo com a doutrina desde sempre sustentada pelo Prof. Castro Mendes", a qualificação do caso julgado como verdadeira excepção dilatória.
[3] Referem Armando Manuel Triunfante e Luís de Lemos Triunfante, no estudo publicado nº 9 da Revista Julgar (ed. da A.S.J.P., Coimbra Ed.,), a páginas 131 e seguintes, sob a epígrafe “Desconsideração da Personalidade Jurídica - Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial”, citando Menezes Cordeiro em “O levantamento da personalidade colectiva no direito civil”, Almedina, Coimbra, 2000, p. 152, que a construção com base doutrinal e jurisprudencial deste conceito nasceu como reacção a “situações que ferem a consciência jurídica dominante” exprimindo “‘o exercício inadmissível de posições jurídicas’”.
Como exemplos de recentes posições jurisprudenciais que têm acolhido o levantamento da personalidade, podem consultar-se, no site www.dgsi.jstj.pt., os Acórdãos do STJ de 12/05 de 2011, relatado pelo Cons. João Bernardo no p. 280/07.0.0TBVGA.C1.S1 e de 10/01/2012, relatado pelo Cons. Salazar Casanova, no p. 434/1999.I.I., S1. No primeiro dos arestos referidos a figura da desconsideração da personalidade colectiva surge justificada nos seguintes moldes:
“Como é sabido, o ordenamento jurídico acolhe, a par das pessoas singulares, as pessoas colectivas. Comporta, assim, no seu seio, novos entes dotados de personalidade jurídica. Desta personalidade jurídica emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos e, inerentemente, além do mais, a distinção entre as pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa colectiva e esta. Os direitos e as obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros. Veio-se, porém, ao longo do tempo, a constatar que casos havia em que o conceder à linha demarcadora um valor absoluto não seriam de admitir. Paulatinamente, doutrina e jurisprudência anglo-americanas e alemãs, foram construindo a figura – que cremos ainda em forte evolução – da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas ou, porque, de longe, reportada a maior parte das vezes a sociedades comerciais, a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades”.
A clivagem na doutrina manifesta-se essencialmente entre aqueles - nos quais parece enfileirar Menezes Cordeiro, na obra citada, e Brito Correia, Direito Comercial, Lisboa, 1989, 2º V., p. 244  - que subsumem a figura a uma mera categoria de abuso do direito, passível de ser directamente coberta pelo art.º 334 do CC - e outros - como será o caso mencionado no acima referido Ac. do STJ de 10/01/2012, de Ana Morais Antunes, pela orientação plasmada no seu estudo “O abuso da personalidade jurídica colectiva do Direito das Sociedades Comerciais”, in “Novas Tendências da Responsabilidade Civil”, 2007- que procuram ver na mesma o embrião de um instituto do futuro direito positivo.     
[4] Como defendem A. Manuel Triunfante e Luís L. Triunfante, ob. e ed., citadas, p. 141, “atendendo ao seu carácter subsidiário, a desconsideração deve sempre ceder na presença de outro preceito, norma ou instituto que responda inteiramente ao problema”.
[5] CPC Anotado, 3ª ed., 1981, p. 101 e seguintes.