Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB | ||
Descritores: | ESTUPEFACIENTES CULTIVO | ||
Data do Acordão: | 11/23/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE PORTO DE MÓS - 2º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART.º 40º, DO D.L. N.º 15/93, DE 22/01 | ||
Sumário: | O simples facto de o arguido ter cuidado das plantas de cannabis, regando-as, constitui só por si um acto de cultivo de plantas estupefacientes, sendo que “cultivar” não se confunde com os actos de plantar ou semear, termos que têm o seu alcance limitado a um acto específico, o de colocar as plantas na terra para que cresçam ou lançar as sementes ao solo para que germinem. | ||
Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO:
Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença absolvendo o arguido A... do crime de cultivo de substâncias estupefacientes p. p. pelo art. 40º, nºs 1 e 2, do DL nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões: 1º . O tribunal a quo, julgou incorrectamente, em nosso entender, os factos incisos na acusação pública, a saber: “Em data não concretamente apurada do ano de 2008, o arguido, A... plantou, para seu consumo, 45 (quarenta e cinco) pés de cannabis, com o peso de 638,200 gr., num pinhal situado próximo da sua residência, na localidade de …, em Porto de Mós. O arguido cuidou do crescimento das referidas plantas, regando e tratando das mesmas. O arguido agiu de forma deliberada, livre, consciente. Actuou com intenção de cultivar as referidas plantas de cannabis, o que logrou concretizar, bem sabendo que as referidas plantas se tratavam de produto estupefaciente. Determinou-se à adopção do comportamento descrito, apesar de saber que o mesmo era proibido e punido por lei penal”. 2º. Todavia, deveria o tribunal recorrido ter julgado provados tais factos, na medida em que o depoimento das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, B... e C…, militares da GNR, impõem conclusões diversas das retiradas pelo tribunal a quo. 3º. Tais depoimentos, conjugados com as regras da experiência comum, eram suficientes para decidir a matéria de facto em sentido oposto ao decidido. 4º. Também o relatório pericial junto a fls. 122 dos autos era suficiente para dar como provado que a quantidade de produto estupefaciente apreendido (folhas de cannabis) era de 638,200 gr. 5º. Caso assim se não entendesse - poder-se-á dizer que a quantidade de produto estupefaciente em causa é incompatível com o mero consumo pessoal - sempre restaria a conclusão lógica que tal produto se destinaria ao tráfico. Também, neste caso, se nos afigura que não haveria dúvidas em afirmar que o arguido era detentor do referido produto estupefaciente. Também nesta situação deveria ter havido lugar a prolação de despacho, nos termos do disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal. 6º. Pelo exposto, modificando a douta decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, no sentido de julgar provada toda a matéria de facto constante da acusação, condenando, em consequência, o arguido A... pelo crime de que vinha acusado, farão V. Exªs (…) Justiça.
Não houve resposta. Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a questão a apreciar em primeira linha é a de saber se face à prova produzida em audiência deveriam ter sido considerados provados os factos da acusação que na sentença se tiveram como não provados, condenando-se o arguido pelo crime que lhe havia sido imputado na acusação.
* *
II - FUNDAMENTAÇÃO:
Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos: 1.) – No dia 28 de Julho de 2008, o arguido cuidou do crescimento das plantas de Cannabis, plantadas num pinhal situado próximo da sua residência, na localidade de …, em Porto de Mós, regando-as; 2.) – Presentemente o arguido encontra-se desempregado; 3.) – O arguido possui diversos antecedentes criminais, designadamente: pela prática, em 23/06/89, de um crime de consumo de estupefaciente, tendo sido punido com a pena de 45 dias de prisão, substituída por multa; pela prática, em 16/02/91, de um crime de roubo, punido com a pena de 05 anos e 09 meses de prisão; pela prática, em 07/02/91, de um crime de furto qualificado, punido com a pena de 20 meses de prisão; em cumulo jurídico, no âmbito do proc. nº 84/91, na pena de 07 anos de prisão; em cumulo jurídico, no âmbito do proc. nº 105/91, na pena de 11 anos de prisão; pela prática, em 02/91, de um crime de furto qualificado, na pena de 14 anos de prisão; em cumulo jurídico, no âmbito dos procs. nºs 58/91- Alcobaça, 880/91 – Pombal, 43/91-Leiria, 261/91-Alenquer, na pena de 18 anos de prisão; pela prática, 23/02/2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 06 meses de prisão; pela prática, 13/02/2008, de um crime de condução sem habilitação legal, punido com 04 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, sujeita a regime de prova.
Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte: Não se provaram os seguintes factos: a) - Em data não concretamente apurada no ano de 2008, o arguido A... plantou, para seu consumo, 45 (quarenta e cinco) pés de Cannabis, com o peso de 638,200 gramas, num pinhal situado próximo da sua residência, na localidade de …, em Porto de Mós; b) - O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente; c) - Actuou com intenção de cultivar as referidas plantas de Cannabis, o que logrou concretizar, bem sabendo que as referidas plantas se tratavam de produto estupefaciente; d) - Determinou-se à adopção do comportamento supra descrito, apesar de saber que o mesmo era proibido e punido por lei penal;
A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos: O Tribunal fundou a sua convicção na análise critica da prova produzida e examinada em audiência de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum como impõe o art. 127º do Código de Processo Penal e como, doravante se passa a explicitar. Primeiramente, face à ausência do arguido, não foi possível obter a sua versão dos factos em apreço. Do restante cotejo da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente dos depoimentos dos agentes de autoridade B… e C… só foi possível apurar que no âmbito de uma acção de fiscalização, motivada por uma denúncia dando conta da existência de uma plantação de Cannabis, os mesmos procederam a uma vigilância ao local, no dia 28/07/08, tendo, então, detectado o arguido a dirigir-se à mencionada plantação com um bidão de água na mão. E não obstante não terem presenciado o arguido a regar a plantação de Cannabis, o certo é que passados alguns minutos verificaram que o solo se encontrava húmido. De igual modo procederam no dia seguinte e quando o arguido se deslocava novamente para o local em questão, procederam à sua identificação e detenção. Com efeito, verifica-se que os agentes de autoridade não puderam ou não conseguiram visualizar o arguido a regar as plantas, mas também não detectaram qualquer outro vestígio ou artigo ligado ao cultivo ou consumo de Cannabis, nem mesmo após a realização de busca à habitação daquele foi possível apurar qualquer substância, produto estupefaciente ou elemento probatório capaz de indiciar o arguido com o cultivo ou o consumo deste tipo de substância psicotrópica. De resto mais nenhuma diligência foi efectuada com a virtualidade de determinar o concreto proprietário das plantas ou do terreno onde as mesmas se encontravam plantadas. Ora, aqui chegados, cabe salientar que tais elementos probatórios afiguram-se-nos insuficientes para a condenação do arguido pelos factos de que vem acusado. Na verdade, estes elementos probatórios, ainda que individual e indirectamente analisados, só permitem revelar, quanto muito, que o arguido no dia 28/07/08 regou/tratou das referidas plantas de Cannabis, porém mostram-se insuficientes para que possamos afirmar que o mesmo procedeu ao seu cultivo, para posterior consumo individual. Antes nos colocam perante a dúvida... Dúvida acerca do relato dos factos conforme descritos na acusação, dúvidas quanto ao autor/produtor da plantação de Cannabis e destino da mesma. Por outro lado, não tratou a acusação, como devia, de apurar o grau de pureza e de substância proibida efectivamente contida nos 45 pés de Cannabis apreendidos. E por isso se fez funcionar um dos princípios fundamentais do processo penal português em matéria de prova: o principio in dubio pro reo que, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação expresso no art.º 32º, n.º 2 da Constituição da Republica Portuguesa, impõe que um non liquet na questão da prova tenha de ser sempre valorado a favor do arguido. Como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 12 de Outubro de 2000, existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação, ninguém pode ser condenado com base nesse facto. A absolvição por falta de prova, em todos os casos de persistência de dúvida no espírito do tribunal, não é consequência de qualquer ónus de prova mas sim da intervenção do princípio in dubio pro reo (Lições policopiadas de Direito Processual Penal do Prof. Figueiredo Dias coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, Universidade de Coimbra). De acordo com os ensinamentos da doutrina a dúvida tem de ser insanável, razoável e objectivável. As presentes dúvidas são insanáveis pois a sua ultrapassagem dependeria fundamentalmente da existência de confissão expressa ou prova bastante, coerente e presencial, o que manifestamente não ocorreu no caso em apreço. Também são dúvidas razoáveis pois, como já se evidenciou, a prova produzida é conciliável com a verdade contrária. E são objectiváveis e não arbitrárias ou discricionárias nos termos supra expostos. Assim sendo, o tribunal deu como não provados os factos acima descritos. Atendeu-se ainda no teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 181 a 194, registo fotográfico de fls. 8, 9 e 62 a 65, bem como, no teor do relatório final da busca domiciliária levada a cabo à habitação identificada a fls. 56 dos autos.
* *
As questões suscitadas nos presentes autos são de facto e de direito, posto que o recorrente pretende em primeira linha a alteração da matéria de facto provada, abrindo caminho para a condenação do arguido pelo crime de cultivo de substâncias estupefacientes. Contudo, ainda que o recorrente pretenda impugnar a matéria de facto por recurso à prova gravada, questionando o sentido da valoração da prova efectuada pelo tribunal recorrido, certo é que não impugnou o provado nos termos legalmente previstos. Na verdade, entendendo verificar-se divergência entre o que na sentença recorrida se teve como provado e aquilo que deveria ter sido dado como assente, deveria o recorrente interessado na respectiva impugnação observar o que pertinentemente dispõe o art. 412º. Na parte que agora importa considerar dispõe esse artigo: 1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. 2 – Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda: (…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; (…) 4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…) 6 – No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. Por seu turno, o art. 364º, nº 2, dispõe que quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração. Resulta claramente da economia das normas em apreço, para além do mais e no que agora interessa considerar, o seguinte: - As conclusões devem traduzir um resumo das razões do pedido; - Delas deverá constar a indicação dos concretos pontos de facto – correspondentes à matéria provada ou não provada – que o recorrente considera incorrectamente julgados; - E deverá ainda constar a indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; - Esta última indicação deverá ser feita por referência ao consignado na acta e com indicação das passagens que justificam o alegado. É por referência ao consignado na acta que o recorrente deverá fazer a especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, indicando ainda, concretamente, as passagens em que se funda a impugnação. Não obstante, o recorrente não observou o condicionalismo legalmente previsto, indicando as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, estas, por referência ao consignado na acta e com indicação das passagens que justificam o alegado. Ora, se as conclusões do recurso, acima transcritas (que servem, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso [1], operando a vinculação temática do tribunal superior e definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem), não cumprem as exigências legais relativas à impugnação da matéria de facto, certo é que também na motivação o recorrente não procedeu às indicações a que estava obrigado para validamente impugnar o julgamento de facto. Se a omissão se limitasse às conclusões, o vício do recurso seria sanável mediante convite para aperfeiçoamento, nos termos do art. 417º, nº 3. Não assim quando o vício vem da própria motivação, já que esta é inalterável, não podendo as conclusões exceder os limites definidos por aquela.
Subsiste, ainda assim, o dever de fiscalização oficiosa dos vícios enumerados nas alíneas do nº 2 do art. 410º do CPP, tendo-se presente, no entanto, que aqueles vícios terão que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O primeiro desses vícios é o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a)), que se traduz numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu, vício que se verifica quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada [2]. O vício referido na al. b) é o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão. A al. c) contempla o erro notório na apreciação da prova, vício que “existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente, por não passar despercebido ao comum dos observadores, uma conclusão sobre o significado da prova, contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito dos factos relevantes para a decisão de direito” [3]. Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, é manifesto não se verificarem os vícios previstos nas als. a) e b) do nº 2 do art. 410º do CPP. Já no que concerne ao vício previsto na al. c), não temos dúvidas em afirmar que a valoração da prova ficou aquém do que era consentido no caso. O tribunal ateve-se ao que resultava directamente dos meios de prova produzidos em audiência, sem que se tenha servido de todos os meios que lhe são facultados pela lei para estabelecer a sequência lógica dos factos naturalísticos que não foram objecto de prova directa. No caso vertente, as máximas da experiência evidenciam o desajustamento da dúvida invocada pelo julgador para afastar os factos que teve como não provados. Ainda que se compreenda a posição assumida pelo tribunal recorrido, não poderemos com ela concordar. Claro que a falta de uma certeza absoluta e a nobre preocupação de não prejudicar o arguido conduzem muitas vezes o julgador a uma dúvida quase cartesiana, que em última análise se resolve a favor do arguido por funcionamento do princípio “in dubio por reo”. Assim sucedeu, aliás, no caso vertente, em que a decisão recorrida se refugiou no “in dubio…” sem, contudo, equacionar o recurso à presunção judicial que os demais factos provados impunham. A parte final do nº 2 do art. 374º do CPP impõe o “…exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. A conjugação desta norma com o disposto no art. 127º do mesmo diploma desenha o modo de fixação da matéria de facto, levando a que o provado se ofereça como o resultado depurado dos meios de prova produzidos em audiência ou levados aos autos nos termos legais (documentos, depoimentos para memória futura, perícias, relatórios) [4]. Não podendo esse produto final resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente, em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos, mas também deduzindo dos factos conhecidos os factos desconhecidos que não são ou não podem ser objecto de prova directa. Na verdade, a certeza judiciária subjacente ao provado não tem necessariamente que se alicerçar numa prova directa e inequívoca, podendo afirmar-se através de uma presunção judicial, inserida no processo de formação da livre convicção do julgador. Não há que confundir prova por presunção com presunção de culpa. Esta última, está totalmente arredada do processo penal. Já aquela, tem pleno cabimento no processo de formação do juízo de facto, visto serem admissíveis em processo penal as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º do CPP), aí incluídas as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil), sem que daí resulte prejuízo para o princípio da livre apreciação da prova. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa. A intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado. Desde que as máximas da experiência (a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas: - Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação); - Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria – desconhecida – de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido); - Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede).
Regressando uma vez mais ao concreto caso dos autos, a questão que se deverá desde logo colocar no que tange à avaliação do provado é a de saber se fará sentido, face aos factos que se tiveram como assentes, considerar como não provado o facto de o arguido ter plantado para seu consumo os 45 pés de cannabis que vieram a ser aprendidos, sabido que deles cuidou, regando-os (melhor dizendo, sabido que os “cultivou”, como adiante se verá). Essas plantas não são de geração espontânea nem são espécies autóctones, não crescem livremente na natureza em Portugal, pelo que alguém as terá plantado. Quem o terá feito? Assente mediante prova testemunhal que as plantas se encontravam num pinhal próximo da residência do arguido e que este cuidou do seu crescimento, regando-as, é óbvio que teremos que considerar que o arguido tinha interesse no seu crescimento com vista à sua ulterior colheita, assim como teremos que considerar também que tinha plena consciência de que se tratava de produto estupefaciente (facto que a primeira instância não considerou provado), pois não é de crer que se entretivesse a regar as referidas plantas sem saber do que se tratava. Dir-se-á que outras hipóteses seriam conjecturáveis, como a de o arguido cuidar daquelas plantas no interesse de outrem. Claro que é uma hipótese abstractamente possível; mas será razoável considerá-la com foros de seriedade no circunstancialismo apurado? Parece-nos manifesto que não, não estando o tribunal recorrido obrigado a considerar hipóteses que não encontrem na prova produzida qualquer vestígio de possibilidade, ainda que remota, em oposição ao que com linearidade resultava da prova produzida. Repetimos uma vez mais, à semelhança do que vimos afirmando num sem-número de acórdãos já relatados, que o julgamento não procura atingir uma certeza absoluta e irrefutável, uma verdade plena e inabalável. Tal como a dúvida relevante em processo penal não é a dúvida absoluta, antes se afirmando como dúvida metódica e racional, fundada na razoabilidade das situações da vida e na impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de um determinado facto, também a certeza judiciária não é uma certeza contra todas as possibilidades, mas uma certeza lógica e racional, fundada num equilibrado sentido da vida e da normalidade das situações. Ora, se por um lado não colhe o argumento da inadmissibilidade da prova por presunção – já explicámos como e em que termos essa prova é admissível e o que está aqui em causa é a presunção judicial firmada em factos provados – por outro, não colhe o argumento da violação do princípio in dubio pro reo, que in casu é desmentido pela força da evidência, obstando também ao tratamento de favor que decorreria do in dubio…. Como se refere no Ac. do STJ de 08/11/2007 [5], “…«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal». Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (repete-se: «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador»). Palavras que pela sua pertinência e adequação ao caso se reproduzem sem outros comentários que não sejam os que permitem evidenciar a justeza da conclusão atingida por presunção e a verter em matéria de facto, de que as plantas em causa, cuidadas pelo arguido, foram por ele plantadas e por ele seriam utilizadas em seu proveito pois que não há nos autos nem resulta da prova produzida em audiência o mais pequeno indício que permita equacionar como razoável uma qualquer outra hipótese, susceptível de obrigar à consideração do princípio “in dubio pro reu”. De resto, o simples facto alcançado através da prova testemunhal – o facto de o arguido ter cuidado das plantas de cannabis, regando-as – constitui só por si um acto de cultivo de plantas estupefacientes. “Cultivar” não se confunde com os actos de plantar ou semear, termos que têm o seu alcance limitado a um acto específico, o de colocar as plantas na terra para que cresçam ou lançar as sementes ao solo para que germinem. Cultivar é o acto de “fertilizar pelo trabalho (a terra); fazer na terra os trabalhos para que ela produza vegetais” (Grande Dicionário da Língua Portuguesa); “tratar (a terra), revirando-a, regando-a, etc.” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa), pelo que o simples facto de o arguido regar as plantas se traduz já num acto de cultivo. Dir-se-á, então, que subsiste a questão da destinação daquelas plantas. Ainda que assente nos termos mencionados que a cannabis foi plantada pelo arguido, nada se teria provado quanto à sua destinação. Seriam para consumo próprio ou destinar-se-iam à cedência a terceiros? Este é um daqueles casos “em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu uma infracção, seja ela em definitivo qual for (…). Nestes casos ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos”[6]. Esta determinação alternativa dos factos constitui uma excepção ao funcionamento do princípio in dubio pro reo, sem que, no entanto, a determinação alternativa possa funcionar em desfavor do arguido, havendo assim que considerar que se destinavam a consumo próprio, por ser a vertente que mais o favorece (como adverte Figueiredo Dias, ob. e loc. citados, a comprovação alternativa não constitui um problema de direito adjectivo, mas verdadeiramente um problema de direito penal, a pressupor a interpretação da norma em que se funda).
Constando do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão de 1ª instância, pode a decisão daquele tribunal sobre a matéria de facto ser modificada em recurso [art. 431º, proémio e al.a)]. Nesta medida, consideram-se como provados todos os factos que a decisão recorrida considerou como não provados. E assim, a decisão de facto passará a contar ainda como provados, para além dos enumerados em 1ª instância, com os seguintes factos: a) - Em data não concretamente apurada no ano de 2008, o arguido A... plantou, para seu consumo, 45 (quarenta e cinco) pés de Cannabis, com o peso de 638,200 gramas, num pinhal situado próximo da sua residência, na localidade de …, em Porto de Mós; b) - O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente; c) - Actuou com intenção de cultivar as referidas plantas de Cannabis, o que logrou concretizar, bem sabendo que as referidas plantas se tratavam de produto estupefaciente; d) - Determinou-se à adopção do comportamento supra descrito, apesar de saber que o mesmo era proibido e punido por lei penal.
Consequentemente, a matéria de facto provada preenche a tipicidade do crime previsto no art. 40º, nº 1, da Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, norma revogada pela Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, excepto no que tange ao cultivo. O referido art. 40º tem o seguinte teor (entre parêntesis indica-se o texto que deve considerar-se revogado): 1 - Quem (consumir ou), para o seu consumo, cultivar (, adquirir ou detiver) plantas (, substâncias ou preparações) compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. 2 - Se a quantidade de plantas (, substâncias ou preparações) cultivada (, detida ou adquirida) pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias. 3 - No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena. É pertinente, no entanto, a objecção colocada em 1ª instância segundo a qual “…não tratou a acusação, como devia, de apurar o grau de pureza e de substância proibida efectivamente contida nos 45 pés de cannabis apreendidos”. Se é certo que consta dos autos, a fls. 122, exame de polícia científica (toxicologia) que determinou a quantidade de cannabis em presença, apesar de se tratar de produto que é normalmente consumido após simples secagem e prensagem, considerando que o limite quantitativo máximo de cada dose individual média diária de cannabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas) é de 2,5g [valor indicado com base na variação do conteúdo médio do THC existente nos produtos da cannabis considerando uma concentração média de 2% (cfr. nº 9 da Portaria 94/96, de 26 de Março e respectivo mapa anexo)], 0,5g no caso da resina e de 0,25g no caso do óleo de cannabis e que o exame se limitou a determinar o peso total das plantas apreendidas, sem discriminar o peso das folhas e sumidades floridas ou frutificadas, da resina ou do óleo, assim como não determinou o grau de pureza, a comprovação alternativa dos factos a que antes nos referimos obriga à consideração apenas da tipicidade prevista no nº 1 do art. 40º da Lei nº 15/93, sendo punível com pena de multa até 30 dias (tratamento resultante da consideração já algo exacerbada do princípio do favor reu, já que manifestamente está excedido o necessário para o consumo médio durante três dias e não repugnaria verdadeiramente admitir o enquadramento no nº 2 do art. 40º).
Posto isto, entremos na determinação da pena concreta. Por expressa remissão do nº 1 do art. 47º do Código Penal [7], o critério de fixação da pena de multa é o previsto no nº 1 do art. 71º, donde resulta a necessidade de recurso aos dois vectores fundamentais aí apontados - a culpa do agente e as exigências de prevenção - com ponderação ainda de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a seu favor ou contra ele, tendo-se ainda presente que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art. 40º, nºs 1 e 2). À culpa é cometida a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena. A prevenção geral (dita de integração) fornece uma moldura de prevenção cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e no mínimo, fornecida pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Por seu turno, à prevenção especial cabe a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida função, isto é, dentro da moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização [8]. Revertendo ao caso concreto, há que ter presente que o dolo se revelou como directo e que o grau de ilicitude não excede a mediania. Os antecedentes criminais do arguido evidenciam fortíssimas exigências de prevenção especial, sendo igualmente elevadas as exigências de prevenção geral de dissuasão. A pena ajustada ao caso, delimitada pela culpa e pelas exigências de prevenção, nos termos expostos, situa-se nos 27 dias de multa. Provou-se que o arguido está desempregado, revelando-se ajustada uma taxa diária de 7 € (sete euros).
* *
III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados concede-se parcial provimento ao recurso e revoga-se a sentença recorrida, condenando-se o arguido pela autoria material de um crime de cultivo de plantas estupefacientes para consumo p. p. pelo art. 40º, nº 1, da Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 27 (vinte e sete) dias de multa à taxa diária de 7,00 (sete euros). Sem custas nesta instância, fixando-se as devidas pelo arguido em primeira instância em 3 UC.
* *
Jorge Miranda Jacob (Relator) Maria Pilar de Oliveira
[5] - Disponível em http://www.dgsi.jstj, doc. nº SJ200711080031645 |