Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MÁRIO RODRIGUES DA SILVA | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO DE SEGURO IDENTIFICAÇÃO DO LOCAL DE RISCO | ||
Data do Acordão: | 06/13/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 7.º; 10.º; 11.º E 16.º DO DL 446/85, DE 25/10 ARTIGOS 37.º; 45.º, 1 E 151.º, A) E D), DA LCS ARTIGOS 12.º, A); 18.º, A) E B); 24.º, 1 A 3; 25.º E 26.º DO RJCS ARTIGOS 236.º; 237.º; 238.º; 342.º, 2; 364.º, 1; 405.º E 762.º, 2, DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I- O nosso ordenamento jurídico não reconhece uma noção de contrato de seguro, todavia, a doutrina tem definido este negócio jurídico como “o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto. II- O contrato de seguro é essencialmente regulado pelas estipulações constantes da respetiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, e posteriores alterações do diploma em causa. III- A interpretação do contrato de seguro tem por base as normas legais dos artigos 236º a 238º do Código Civil, os princípios decorrentes da boa fé contratual (art.º 762º nº 2, do CC), e o disposto no DL nº446/85 de 25/10 (LCCG), quanto à parte do clausulado (ou todo ele) que possa revestir a natureza de cláusulas contratuais gerais. IV- Para a identificação do local de risco de um contrato de seguro de danos (multirriscos habitação) assume importância a referência aos bens seguros, designadamente como constam da proposta subscrita pelo tomador do seguro, pelo que a não sinalização na proposta de qualquer anexo cujo conteúdo se pretendia segurar, leva á conclusão, na perspetiva de um declaratário normal, que está apenas em causa a habitação do autor e respetivo recheio. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra RELATÓRIO AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €36.724,90, acrescida de juros à taxa legal desde 28-12-2021, até efetivo e integral pagamento. Alegou para tanto e em síntese: -O autor é dono e legitimo possuidor de uma moradia sita na Rua ..., ..., ..., ..., inscrita na matriz sob o Art.º ...56º da União das Freguesias .... -O prédio do autor tem edificada a moradia, sua habitação e respetivo anexo para arrumos. -O autor celebrou com a ré seguro de responsabilidade civil, ramos reais, daquele imóvel, que entre outros, cobre os danos provocados por tempestades, inundações, incêndio, mediante a apólice nº ...79. -No dia 30 novembro 2019, pelas 05:00 horas deflagrou um incêndio no anexo que serve de arrumos e guarda da caldeira de aquecimento da moradia. -O incêndio danificou, queimou o telhado, telhas e vigas, a rede de eletricidade, máquina de aquecimento, mesas e cadeiras, que se encontravam no referido anexo. -A ré, por carta datada de 21-02-2020, declinou qualquer responsabilidade de reparação dos danos provocados pelo incêndio, alegando “que os danos verificados foram num seguro anexo construído ao lado da habitação segura, e com entrada independente, não estando seguro…”. Atento os danos, para a sua reparação é necessário: -Limpeza da área ardida no valor de €2.800,00 -Construção de cobertura no valor de €9.800,00 -Colocação de rede elétrica nova no valor de €5.670,00. -Fornecimento e colocação máquinas de aquecimento nova no valor de €3.600,00 -Pintura de moradia no valor de €4.900,00 -Mesas e cadeiras no valor de €890,00. -tudo no valor global de 27.660,00€, acrescido de IVA, ou seja 34.021,80€, A ré contestou, defendendo em síntese que os danos reclamados pelo autor, alegadamente verificados no anexo autónomo e independente da fração segura, não se encontram cobertos pelos riscos assumidos pela ora contestante no âmbito da apólice de seguro em vigor. O autor respondeu à exceção deduzida na contestação. Por despacho proferido em sede de audiência final foi admitida a redução do pedido requerida pelo autor, para o montante de €31.724,90. Realizou-se audiência de julgamento e na sequência da qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: Condena-se a réu a pagar ao autor: a) A quantia necessária para a limpeza da área ardida, a construção da cobertura do anexo, a colocação de rede elétrica nova no anexo, a pintura da parede da casa comum ao anexo, a reparação da máquina de aquecimento e o restauro de uma mesa e dois bancos, a liquidar em incidente ulterior; b) Juros de mora civis, desde a data da citação para a presente ação declarativa (26/01/2022) até integral pagamento. B) Absolve-se a ré do restante pedido. Custas processuais pelo autor e pela ré, na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em metade para cada uma das partes (sem prejuízo do rateio definitivo no âmbito do incidente de liquidação). Registe e notifique.” O autor interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: “A) A Ré, ora Recorrente, vem interpor o presente recurso por entender que a decisão proferida sobre a inclusão do anexo nas garantias da apólice não poderá ter provimento, atenta a prova documental levada aos autos, razão pela qual não se conforma com a condenação de valores de condenação, a arbitrar em incidente posterior B) Em 22/01/2015, o Autor celebrou com a Ré o acordo titulado pela apólice n.º ...79, do ramo “Multirriscos Habitação”, tendo como objeto(s) seguro(s) “edifício e recheio” e local de risco “R. ..., ...- ...”, abrangendo, entre outras, a cobertura Incêndio, ação mecânica de queda de raio e explosão. C) A proposta de seguro que o Autor submeteu tem subjacente um formulário disponibilizado pela Ré, constando do “questionário técnico” da proposta de seguro, o Autor assinalou a seguinte opção, quanto à construção e cobertura do edifício a segurar ou onde se encontra o recheio a segurar: Materiais incombustíveis com placas de betão entre os pisos e entre estes e a cobertura; Materiais incombustíveis sem placas de betão entre os pisos e entre estes e a cobertura; Outro tipo de construção e cobertura. Indicar qual: __________________; D) bens e eletrodomésticos da casa, bem como maquinaria que se encontra na cave.”; E) O prédio identificado na alínea A) tem edificada uma moradia feita em tijolo e cimento, sendo os pisos separados por placas em betão e um anexo fechado, construído em madeira, sem placa de betão com a cobertura, ligado à casa, sendo a parede da casa comum ao anexo, servindo este anexo de arrumos e tem instalada a caldeira de aquecimento que serve a moradia, com acesso independente da habitação; F) No dia 30 Novembro 2019, pelas 05:00 horas deflagrou um incêndio no anexo tendo resultado deste a destruição da estrutura em madeira de que era feito, com o colapso da cobertura, por força da queda das telhas de cerâmica que a formavam, para além de ter sido queimada a rede de eletricidade e uma máquina de aquecimento que se encontravam naquele anexo e causou a queda da cobertura sobre uma mesa e dois bancos; G) Por carta datada de 21/02/2020, a Ré declinou responsabilidade de reparação dos danos provocados pelo incêndio, alegando “que os danos verificados foram num anexo construído ao lado da habitação segura, e com entrada independente, não estando seguro…”; H) Ao contrário do alegado pelo Autor, não ficou demonstrado que o formulário apresentado pela Ré, ora Recorrente, denominado como Proposta de Seguro, tem a resposta já predefinida, destinando o proponente, neste caso, o Autor, a apenas colocar uma cruz na hipótese de construção e cobertura do edifício a segurar ou onde se encontra o recheio a segurar em que se enquadra o seu caso; I) É, pois, possível ao Proponente/Tomador de Seguro, neste caso o Autor, indicar as especificidades do caso concreto; J) Também não foi considerado provado, ao contrário do alegado pelo Autor, que na apólice, a Ré considere primeiro risco quando as paredes e/ou placas de separação entre pisos são mais de 50% construídas em materiais incombustíveis, nem que esta tenha instruído o mediador para efetuar o seguro e jamais excluir os anexos ou sequer ter de os indicar na proposta de seguro; K) Consta da Proposta de Seguro e das Condições Particulares da apólice, que o contrato de seguro celebrado entre o Autor e a Ré, ora Recorrente, tem por objecto o edifício sito na Rua ..., ..., em ..., para além do recheio que se encontrava naquele edifício, conforme manifestado pelo próprio no momento da celebração da proposta de seguro; L) Resulta evidente que, da participação de sinistro e, bem assim, da averiguação realizada, resulta evidente que o incêndio deflagrou num anexo à fracção segura, tendo este anexo a sua construção formada por madeira, sem placa de betão com a cobertura e sem acesso directo a partir do edifício/moradia seguro(a), sem qualquer ligação ao edifício/moradia seguro(a), e com acesso independente e autónomo relativamente a este; A definição de “Recheio” constante do artigo 1º. das Condições Gerais da apólice apenas poderá ter enquadramento quando espelhado na respectiva Proposta de Seguro e seja intenção das partes no momento da celebração da apólice, o que não ocorreu com o Autor porquanto este não transmitiu, em momento algum as características reais e exactas do que pretende agora ver enquadrado no âmbito da apólice de seguro que foi celebrada; M) Para a definição dos riscos da cobertura de incêndio, é de todo relevante a indicação do tipo de construção e cobertura do edifício que se pretende segurar e dos bens onde se encontra o recheio, constando expresso do artigo 13º. das Condições gerais da apólice, “1. São obrigações do Tomador so seguro e/ou do Segurado: a) antes da celebração do contrato de seguro, declarar com exactidão ao Segurador, todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pelo Segurador; b) quando o Segurador fornecer um questionário para apreciação e análise do risco, tal não dispensa o Tomador do seguro ou o Segurado da obrigação referida na alínea anterior relativamente às ciscunstâncias que naquele não se encontrem contempladas.”; N) Esta indicação terá tradução directa no risco que a Ré, ora Recorrente, assume e respectivo prémio de seguro pago pelo Autor, sendo que, resulta evidente que, quanto maior for o risco a segurar, maior será o prémio de seguro pago pelo Tomador do seguro ou Segurado, neste caso o Autor; O) Desta forma, considera a Ré, ora Recorrente que o anexo ao edifício/moradia seguro(a) não poderá ser considerado como coberto pela apólice de seguro celebrada entre o Autor e a Ré, ora Recorrente; P) Donde, a sentença proferida deve ser revogada e ser proferida nova decisão que considere o anexo onde deflagrou o incêndio como não coberto no âmbito da apólice de seguro, assim absolvendo a Ré, ora Recorrente, do pedido contra si formulado, com as legais consequências. Termos em que, e nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao recurso e ser alterada a matéria de facto que suporta a decisão recorrida no sentido exposto, substituindo-a por outra que absolva a Ré, ora Recorrente, do pedido formulado pelo Autor”. A recorrida apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões: “a) A D. Sentença recorrida não merece qualquer reparo, antes pelo contrário é uma sentença bem fundamentada e claro exemplo de Justiça. b) A Recorrente entende que um anexo não faz parte do objecto seguro, o que no nosso entender não merece provimento. c) O objecto de recurso é o edifício sito na Rua..., .... d) No caso a que se reportam os autos o “anexo” é parte integrante da própria casa / moradia, pois, e) a parede da moradia é comum ao “anexo”, e f) é nesta parede que tem instalada, aplicada a própria tubagem e electricidade do sistema de aquecimento. g) Logo o sistema de aquecimento é parte integrante da moradia, h) serve como é evidente a própria moradia, casa, i) assim, também por este motivo ter-se-á de concluir de forma clara e evidente que aquele aquecimento instalado no “anexo” é parte integrante da casa e logo é objecto de seguro. j) Sem conceder, sempre se dirá também que além do mais o objecto do seguro inclui a moradia e eventuais anexos, conforme prevê as condições gerais do seguro, art.º 1.º que considera recheio – composto de bens móveis… existentes na habitação segura e respectivos anexos fechados. l) Assim, de forma clara e objetiva a Recorrente considera os anexos como objecto do seguro. m) Também as novas condições gerais do seguro incluem de forma expressa na definição de edifício, que considera que os anexos fazem parte do mesmo pelo que são objecto do seguro. n) Ainda, por outro lado qualquer cidadão ao celebrar um contrato de seguro da sua moradia entende ser incluído no seu objeto os anexos. o) É do conhecimento geral, que as casas, e então nas aldeias, como no caso, têm construídos sempre anexos, como garagens, churrasqueiras ou sistema de aquecimento. p) Ora, sendo o sistema de aquecimento um dos fatores de risco de incêndio, é óbvio que qualquer cidadão ao celebrar o seguro pretende precaver o seu caso, como tal pensa, julga que inclui no objecto do seguro esse anexo no qual está instalado os fatores de risco. q) A interpretação do contrato deve-se fazer no sentido que um declaratório normal entenda como o objecto do mesmo. r) Mas, mais é esta a posição, interpretação que um declaratório normal pode entender, conforme art.º 7.º, 10.º e 11.º do DL 446/85 de 25 Outubro. s) Além do mais, como se refere na D. Sentença o contrato de seguro é um contrato de adesão, como melhor consta da fundamentação da D. Sentença, que aqui se dá por integralmente reproduzida. t) Razão porque ter-se-ia de interpretar que o anexo faz parte do objecto seguro. u) O recorrido agiu de boa fé ao celebrar o seguro, v) nem lhe era exigível outra conduta. x) Ao contrário, a Recorrente bem sabendo da realidade, e se pretendesse excluir do seguro de uma moradia os seus anexos, devia evidenciar bem tal exclusão, o que não fez, pelo que ter-se-á de considerar incluídos no risco os anexos. z) Constata-se também que os anexos fazem parte de moradia, não tem autonomia, aa) pelo que, como se disse, qualquer cidadão considera legitimamente que fazem parte da sua moradia, sob pena de agir em erro. ab) Ao excluir os anexos do seguro, e nomeadamente como no caso, onde se inclui o sistema de aquecimento da moradia, seria excluír uma das principais fontes de risco, ou seja, seria celebrar um seguro sem eficácia real ou prática, o que é manifestamente abuso de direito. ac) A D. Sentença proferida está bem fundamentada de facto e de direito, ad) razão porque a D. Sentença recorrida se deve manter na integra. Termos em que, com o Douto suprimento de V. Exa, deve ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a D. Sentença recorrida.” O recurso foi admitido. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
OBJETO DO RECURSO Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se o anexo onde ocorreu o sinistro estava coberto pelo contrato de seguro.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO Na sentença recorrida foi fixada a matéria de facto da seguinte forma: “a) Factos provados 2. Estão ainda garantidos pelo risco de incêndio os danos diretamente causados aos bens seguros em consequência dos meios empregues para o combater, calor fumo ou vapor resultantes imediatamente de incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente ou praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão de qualquer dos factos atrás previstos” [artigo 15.º da contestação]. D) O artigo 88.º das condições contratuais tem o seguinte teor: “A obrigação do Segurador vence-se decorridos 30 dias sobre a data do apuramento dos factos a que se refere o Art.º 19.º destas Condições Gerais” [artigo 15.º da petição inicial]. E) A proposta de seguro que o autor submeteu tem subjacente um formulário disponibilizado pela ré [artigo 3.º da resposta]. F) No questionário técnico da proposta de seguro, o autor: a) assinalou a seguinte opção, quanto à construção e cobertura do edifício a segurar ou onde se encontra o recheio a segurar: X Materiais incombustíveis com placas de betão entre os pisos e entre estes e a placa Materiais incombustíveis sem placas de betão entre os pisos e entre estes e a placa Outro tipo de construção e cobertura. Indicar qual:________________ b) escreveu, nas indicações eventuais, "No recheio estão incluídos os bens e eletrodomésticos da casa, bem como maquinaria que se encontra na cave.” [artigos 3.º e 11.º da contestação). G) O prédio identificado na alínea A) tem edificada uma moradia feita em tijolo e cimento, sendo os pisos separados por placas em betão [artigos 2.º da petição inicial e 2.º da resposta). H) E um anexo fechado construído em madeira, sem placa de betão com a cobertura, ligado à casa, sendo a parede da casa comum ao anexo [artigos 2.º da petição inicial, 10.º e 12.º da resposta]. I) O anexo serve de arrumos e tem instalada a caldeira de aquecimento que serve a moradia [artigos 4.º e 9.º da petição inicial e 11.º da resposta]. J) O anexo tem acesso independente da habitação [artigo 12.º da contestação]. K) No dia 30 novembro 2019, pelas 05:00 horas deflagrou um incêndio no anexo [artigo 4.º da petição inicial]. L) Do incêndio resultou a destruição da estrutura em madeira de que era feito o anexo, com o colapso da cobertura, por força da queda das telhas de cerâmica que a formavam [artigo 9.º da contestação]. M) O incêndio queimou a rede de eletricidade e uma máquina de aquecimento que se encontravam no anexo e causou a queda da cobertura do anexo sobre uma mesa e dois bancos [artigo 6.º da petição inicial, ressalvando o ponto 4 dos factos não provados]. N) Em consequência do incêndio, é necessária a limpeza da área ardida, a construção da cobertura do anexo, a colocação de rede elétrica nova no anexo, a pintura da parede da casa comum ao anexo, a reparação da máquina de aquecimento e o restauro de uma mesa e dois bancos [artigo 14.º da petição inicial, ressalvando o ponto 5 dos factos não provados]. O) Por carta datada de 21/02/2020, a ré declinou responsabilidade de reparação dos danos provocados pelo incêndio, alegando “que os danos verificados foram num anexo construído ao lado da habitação segura, e com entrada independente, não estando seguro…” [artigo 7.º da petição inicial]. b) Factos não provados 1. O formulário tem a resposta já predefinida, destinando o proponente a apenas colocar uma cruz na hipótese de construção e cobertura do edifício a segurar ou onde se encontra o recheio a segurar em que se enquadra o seu caso [artigo 4.º da resposta]. 2. Na apólice, a ré considera primeiro risco quando as paredes e/ou placas de separação entre pisos são mais de 50% construídas em materiais incombustíveis [artigo 6.º da resposta]. 3. O mediador foi instruído pela ré para efetuar o seguro e jamais excluir os anexos ou sequer ter de os indicar na proposta de seguro [artigo 14.º da resposta]. 4. O incêndio queimou mesas e cadeiras que se encontravam no anexo [artigo 6.º da petição inicial, ressalvando o conteúdo da alínea M) dos factos provados]. 5. Para a reparação da moradia e anexo são necessários €2.800,00, para limpeza da área ardida, €9.800,00, para construção de cobertura, €5.670,00, para colocação de rede elétrica nova, €3.600,00, para fornecimento e colocação de máquina de aquecimento nova, €4.900,00, para pintura de moradia e €890,00, para aquisição de mesas e cadeiras, no valor global de €27.660,00, acrescido de IVA [artigo 14.º da petição inicial, ressalvando o conteúdo da alínea N) dos factos provados]. Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, não se reproduzindo a matéria de direito, conclusiva, repetida, irrelevante ou que se traduz na aceitação ou impugnação (ainda que motivada) dos factos relevantes alegados pela contraparte, nem se transcrevendo os factos instrumentais (atendíveis na motivação da decisão da matéria de facto) [artigos 5.º, 8.º, 10.º a 13.º e 16.º a 20.º da petição inicial, 1.º, 5.º a 8.º, 10.º, 14.º e 16.º a 26° da contestação e 1.º, 5.º, 7.º a 9.º, 13.º e 15.º da resposta].
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Como acima se referiu a única questão a decidir consiste em saber se o anexo onde deflagrou o incêndio estava coberto pelo contrato de seguro Vejamos a argumentação do Tribunal recorrido a este propósito: “As partes divergem quanto ao enquadramento do sinistro nas cláusulas que preveem os riscos cobertos pelo contrato de seguro, considerando o local de ocorrência do incêndio e a definição do local de risco no contrato de seguro que celebraram Tendo o contrato sido celebrado com recurso à inserção de cláusulas contratuais gerais (por terem sido pré-estabelecidas unilateralmente pelo predisponente para uma generalidade de contratos, ou de pessoas a sua interpretação obedece às regras gerais dos artigos 236. ° a 238.º do Código Civil, com as especificidades dos artigos 7. °, 10. ° e 11. ° Decreto Lei n.º 446/85, de 25 de outubro. A regra de interpretação das declarações de vontade que integram o negócio jurídico é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal (alguém medianamente instruído, diligente e capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações negociais em causa foram produzidas) colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (sem prejuízo de se interpretar a declaração acordo com a vontade real do declarante, se o declaratário a conhecer) (cf. artigo 236.º, n.º 1 do Código Civil). Nos negócios jurídicos formais é ainda necessário que o sentido objetivo correspondente à impressão do destinatário esteja expresso, ainda que de forma imperfeita, nos próprios termos do documento que representa a declaração formalizada (sem prejuízo, também aqui, de valer esse sentido se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (cf. artigo 238.º, nºs 1 e 2 do Código Civil). As cláusulas contratuais gerais devem ser interpretadas e integradas dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam e, quando ambíguas, têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente (cf. artigos 10.º e 11.º do Decreto Lei n.º 446/85, de 25 de outubro). O local do risco foi identificado pelo autor na proposta de seguro, mediante o preenchimento do formulário fornecido e previamente elaborado pela seguradora, tendo feito constar do mesmo a respetiva morada – R. ..., ...- ... – que abrange tanto a moradia do autor, como o respetivo anexo. No que concerne à identificação do objeto/valor a segurar, o referido formulário apenas possibilita ao proponente que assinale as respetivas opções predefinidas, nomeadamente, aquelas que foram marcadas pelo autor, com a descrição “Edifício/Parte de edifício (incluindo as partes comuns)” e “Recheio de habitação (tudo o que constitui e é próprio de recheio de habitação)”, com indicação, para a primeira opção, do valor de reconstrução e, para a segunda, do valor de substituição. Essa informação foi transposta para a apólice de seguro, que menciona, como Unidades de Risco “Edifício” e “Recheio”, e, em ambos os casos, como Local de Risco, a “R. ..., ...- ...”. A identificação do local de risco é congruente com a inclusão no mesmo do anexo onde se verificou o incêndio. Na verdade, nem a apólice nem as condições contratuais contêm a definição de edifício, para efeito de delimitação do âmbito da cobertura do seguro. No entanto, o artigo 1.º das condições contratuais define “Recheio como o conjunto de bens móveis, também designados por conteúdo, existente na habitação segura e respetivos anexos fechados”. Tendo presentes os critérios de interpretação das declarações de vontade dos contraentes, extrai-se dessa definição – preestabelecida, de forma rígida, pela seguradora, e destinada a uma generalidade de contratos – que o recheio tanto abrange os bens móveis existentes na habitação segura como nos respetivos anexos fechados. Neste sentido, é a própria seguradora que, no âmbito do contrato de seguro, assume a conexão entre a habitação e os anexos para efeito da definição do objeto dos riscos cobertos, não se afigurando admissível uma interpretação que sustentasse a conclusão de que a cobertura contratada abrange num local de risco, um edifício (circunscrito à habitação) e respetivo recheio e ainda o recheio de um distinto, autónomo e excluído local de risco (um anexo). Aliás, o campo do questionário técnico que a ré invoca refere, inequivocamente, o edifício a segurar ou onde se encontra o recheio a segurar, não admitindo que, o mesmo contrato, se refira, simultaneamente, a dois edifícios (um edifício a segurar e outro onde se encontra o recheio a segurar). Acresce que, na proposta contratual, na apólice e nas condições contratuais a seguradora utilizou diferentes conceitos, donde se infere que cada um se refira a uma realidade também distinta (ou teria usado sempre a mesma expressão para designar a mesma realidade). Assim, se a proposta e a apólice mencionam o edifício como unidade de risco e objeto a segurar, a definição de recheio refere habitação segura e respetivos anexos fechados. Por sua vez, em várias cláusulas condições contratuais alude-se a imóvel (designadamente, os artigos 1.º, 9.º e 11.º). Nestas circunstâncias, um declaratário normal – neste caso, um “tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos– colocado na posição do autor, consideraria que o imóvel ou edifício a que se reporta a previsão contratual de cobertura do risco de incêndio abrange quer a habitação, quer os respetivos anexos fechados (sendo que, a subsistir alguma dúvida – que não ocorre, face aos termos em que a própria seguradora, unilateralmente, elaborou o texto previamente impresso da proposta contratual, da apólice e das condições contratuais – sempre prevaleceria o sentido mais favorável ao aderente). O teor manuscrito incluído nas indicações eventuais quanto à inclusão de determinados bens no recheio não se mostra relevante, na medida em que nem sequer permite excluir do recheio quaisquer outros bens móveis existentes na habitação segura e respetivos anexos fechados – na medida em que apenas reforça o conteúdo da cobertura conformada pela própria seguradora a esse respeito, não viabilizado qualquer exclusão contratual, mediante uma interpretação a contrario daquela indicação, além do mais, suscetível de contradizer o conteúdo expresso da apólice e das suas condições contratuais – e, muito menos, subverte os conceitos de edifício e de local de risco. Também não contende com essa conclusão a conduta do autor ao assinalar no questionário técnico a hipótese materiais incombustíveis com placas de betão entre os pisos e entre estes e a cobertura. Desde logo, por ter sido a própria seguradora a conformar, unilateralmente, o âmbito do contrato, de modo a que o conceito de edifício inclua a habitação e os respetivos anexos fechados. Mas, ainda que o formulário não permitisse a colocação de uma cruz na hipótese de construção e cobertura do edifício a segurar ou onde se encontra o recheio a segurar, mas também que outro tipo de construção e cobertura fosse identificado, a forma como essa questão está redigida sugere que a opção é singular, implicando a sinalização do (único) tipo de material relativo ao anexo a exclusão de outras opções, nomeadamente, a que foi assinalada e que se coaduna com a habitação segura. Sendo dúbia a pretensão da seguradora quando assim definiu a questão que incluiu no questionário técnico, obstaculizando uma resposta que para si fosse completa e inequívoca, apenas a ela se poderá imputar a divergência interpretativa que, para ela mesma, daí pudesse emergir. De qualquer forma, impõe-se ao segurador que preste todos os esclarecimentos exigíveis e informe o tomador do seguro das condições do contrato, nomeadamente, do âmbito do risco que se propõe cobrir e das exclusões e limitações de cobertura (cf. artigo 18.º, als. a) e b) do Regime Jurídico do Contrato de Seguro). Aliás, as condições contratuais do contrato reproduzem expressamente esse direito do tomador de seguro e/ou do segurado (cf. respetivo artigo 12.º, al. a)). Naturalmente, também o tomador de seguro e/ou do segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, aplicando-se esse dever também a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito, como o contrato também especifica (cf. artigo 24.º, n. 1 e 2 do Regime Jurídico e artigo 13.º, n.º 1, als. a) e b) das condições contratuais). Todavia, o segurador que tenha aceitado o contrato não pode prevalecer-se da omissão de resposta a pergunta do questionário, de resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos ou de incoerência ou contradição evidentes nas respostas ao questionário, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem (cf. artigo 24.º, n.º 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro). Nesta perspetiva, caso a seguradora não considerasse abrangido no edifício os anexos fechados da habitação (como se extrai dos termos em que elaborou a proposta, a apólice e as condições contratuais), também não poderia o tomador do seguro ser responsabilizado por uma omissão de informar, relativamente à composição do edifício, quando aquela, pelo questionário que elaborou, teria abdicado de obter tal informação, designadamente, quanto à existência e composição de anexos. De todo o modo, não tendo a sinalização da referida opção no questionário técnico a virtualidade de adulterar a cobertura do risco prevista no contrato ou sequer de prevalecer sobre os critérios interpretativos do âmbito dessa cobertura, uma eventual inexatidão ou omissão relevantes para efeito de aferição do cumprimento do dever de declaração do risco, por parte do autor, apenas teria os efeitos previstos no Regime Jurídico do Contrato de Seguro (cujas normas relevantes são também reproduzidas no contrato celebrado entre as partes). Sem prejuízo de a ré não ter invocado na contestação qualquer desses efeitos previstos nos artigos 25.º e 26.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, também não alegou quaisquer factos que sustentem um eventual incumprimento culposo do dever de declaração do risco e possibilitem apurar o respetivo grau de censurabilidade, sendo que, na ausência de culpa, a conduta do autor seria juridicamente irrelevante. Na verdade, as expressões omissão e inexatidão são neutras quanto ao estado subjetivo do declarante, nada revelando quanto ao seu grau de censurabilidade, a qual é qualificada pela junção dos adjetivos doloso ou negligente constantes dos referidos artigos 25.º e 26.º. Assim, não tendo a ré invocado sequer qualquer violação da declaração inicial do risco por parte do autor, tendo em vista a aplicação de algum dos regimes estabelecidos nesses preceitos legais (aludindo apenas à resposta dada pelo mesmo no questionário técnico como argumento para concluir que o evento ocorrido não está abrangido pela cobertura do risco prevista no contrato) – o que sempre impediria a sua aplicação nesta ação –, também não se verificariam os pressupostos factuais e normativos para esse efeito (nomeadamente, pela omissão da alegação de factos que permitissem qualificar a conduta do autos como dolosa ou negligente, recaindo sobre aquela o ónus de provar o erro, a sua relevância e a existência do dolo ou negligência e, quanto a esta, ainda a prova do requisito de causalidade entre o facto relativamente ao qual houve omissões ou inexatidões negligentes e a verificação ou consequências do sinistro (– cf. artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil e o Preâmbulo e os artigos 35.º, n.º 3 e 26.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de abril). Nestes termos, o confronto entre a ocorrência do dia 30/11/2019 (tal como se descreve nos factos provados) e o conteúdo da apólice e das cláusulas do contrato revela uma coincidência entre o risco coberto de incêndio (enquanto previsão abstrata do evento) e o sinistro (enquanto realização e concretização desse evento) ((sem que tenha sido demonstrada – ou sequer invocada – a verificação de qualquer cláusula de exclusão do risco). Estando provada a ocorrência do facto que desencadeia a garantia contratual de cobertura do risco, e não tendo sido provada qualquer circunstância que exclua essa cobertura, recai sobre a ré o dever de realizar a prestação convencionada”. Vejamos: Reportando-nos aos factos provados, constatamos que o autor celebrou com a ré um contrato de seguro. O nosso ordenamento jurídico não reconhece uma noção de contrato de seguro, todavia, a doutrina tem definido este negócio jurídico como “o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto[1]. É essencialmente regulado pelas estipulações constantes da respetiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril. “Trata-se de um tipo de contrato consensual, porque se realiza por via do simples acordo das partes, e formal, porque o segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador de seguro, sendo que, muito embora se trate de um contrato de adesão, na medida em que as cláusulas gerais são elaboradas sem prévia negociação individual e a cujos termos o segurado (ou tomador de seguro) se terá de subordinar, nada obsta a que se aplique a regra geral do regime contratual, que é o da autonomia da vontade, segundo o qual as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos (artigo 405º do Código Civil), exceto se colidir com normas de natureza imperativa, quer relativa quer absoluta”[2]. Como sabemos, na fixação do conteúdo de qualquer negócio jurídico interessa, antes do mais, analisar os termos do acordo que os respectivos outorgantes firmaram ao abrigo da liberdade contratual ditada pelo art.º 405º do Código Civil, termos esses que, no contrato de seguro, reiteramos, terão de constar da respectiva apólice, posto que, esta exigência legal de documento, sublinhamos, constitui elemento do contrato, isto é, formalidade ad substantiam (art.º 364º n.º 1 do Código Civil)[3]. O artigo 37º da LCS, sob a epígrafe “Texto da apólice” estabelece: “1 - A apólice inclui todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis. 2 - Da apólice devem constar, no mínimo, os seguintes elementos: a) A designação de «apólice» e a identificação completa dos documentos que a compõem; b) A identificação, incluindo o número de identificação fiscal, e o domicílio das partes, bem como, justificando-se, os dados do segurado, do beneficiário e do representante do segurador para efeito de sinistros; c) A natureza do seguro; d) Os riscos cobertos; e) O âmbito territorial e temporal do contrato; f) Os direitos e obrigações das partes, assim como do segurado e do beneficiário; g) O capital seguro ou o modo da sua determinação; h) O prémio ou a fórmula do respetivo cálculo; i) O início de vigência do contrato, com indicação de dia e hora, e a sua duração; j) O conteúdo da prestação do segurador em caso de sinistro ou o modo de o determinar; l) A lei aplicável ao contrato e as condições de arbitragem. 3 - A apólice deve incluir, ainda, escritas em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes: a) As cláusulas que estabeleçam causas de invalidade, de prorrogação, de suspensão ou de cessação do contrato por iniciativa de qualquer das partes; b) As cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação; c) As cláusulas que imponham ao tomador do seguro ou ao beneficiário deveres de aviso dependentes de prazo. 4 - Sem prejuízo do disposto quanto ao dever de entregar a apólice e da responsabilidade a que haja lugar, a violação do disposto nos números anteriores dá ao tomador do seguro o direito de resolver o contrato nos termos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 23.º e, a qualquer momento, de exigir a correção da apólice.” O contrato em causa nos autos consta da apólice, respetivas condições gerais, especiais e particulares bem como, para efeitos de interpretação dos documentos probatórios, também da proposta de seguro junta aos autos; estes documentos encontram-se, em parte, transcritos no elenco dos factos provados. “A interpretação do contrato tem por base as normas legais dos arts 236º a 238º CCiv, os princípios decorrentes da boa fé contratual (art.º 762º nº2 CCiv), e o disposto no DL nº 446/85 de 25/10, quanto à parte do clausulado (ou todo ele) que possa revestir a natureza de cláusulas contratuais gerais. Do art.º 236º cit., extrai-se que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Todavia, porque se trata, no caso, de um negócio formal, o art.º 238º vem restringir os termos do art.º 236º, estipulando que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. Trata-se da usualmente designada doutrina da impressão do destinatário, reconduzível ao âmbito do princípio da proteção da confiança, impondo ao declarante um ónus de clareza na manifestação do seu pensamento, desde forma se concedendo primazia ao ponto de vista do destinatário da declaração, a partir de quem tal declaração deve ser focada (Prof. Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente, pg. 206). Todavia, a lei não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário, significando o entendimento subjetivo deste, mas apenas concede relevância ao sentido que apreenderia o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário – a pessoa com capacidade, razoabilidade, conhecimento e diligência medianos (ut Prof. P. Mota Pinto, op. cit., pg. 208). Enquanto cláusulas contratuais gerais, regendo as normas do DL nº 486/85 cit., as regras gerais já apontadas de interpretação e integração dos negócios jurídicos são levadas em conta, no contexto de cada contrato singular em que se incluam –art.º 10º. As cláusulas ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real –art.º 11º nº 1, na dúvida prevalecendo o sentido mais favorável ao aderente –nº 2. São nulas as cláusulas contrárias à boa fé –art.º 16º”[4]. Como refere Menezes Leitão[5] “a interpretação e integração das cláusulas contratuais gerais é sujeita a regras especiais, desfavoráveis a quem as predispõe, já que embora lhe sejam aplicáveis as regras gerais relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, a lei determina que a sua interpretação e integração tem que ocorrer no contexto de cada contrato singular em que se incluam, o qual pode alterar o objetivo de quem procedeu à sua preparação. Por outro lado, para a interpretação das cláusulas contratuais gerais é irrelevante a intenção do seu predisponente, já que o seu sentido é determinado com base no critério do contraente indeterminado que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, esclarecendo-se ainda que na dúvida prevalece o sentido mais favorável ao aderente”. Vertendo agora para o caso concreto. O recorrente sustenta que o anexo onde o incêndio deflagrou não estava coberto pelo contrato de seguro em causa nos presentes autos. Recordemos os factos dados como provados mais relevantes para a apreciação desta questão. A) Em 22/01/2015, o autor celebrou com a ré o acordo titulado pela apólice n.º ...79, do ramo “Multirriscos Habitação”, tendo como objeto(s) seguro(s) “edifício e recheio” e local de risco “R. ..., ...-...”, abrangendo, entre outras, a cobertura Incêndio, ação mecânica de queda de raio e explosão. B) O artigo 1.º das condições contratuais tem o seguinte teor: “(…) Recheio – conjunto de bens móveis, também designados por conteúdo, existente na habitação segura e respetivos anexos fechados. (…) E) A proposta de seguro que o autor submeteu tem subjacente um formulário disponibilizado pela ré. F) No questionário técnico da proposta de seguro, o autor: a) assinalou a seguinte opção, quanto à construção e cobertura do edifício a segurar ou onde se encontra o recheio a segurar: X Materiais incombustíveis com placas de betão entre os pisos e entre estes e a placa Materiais incombustíveis sem placas de betão entre os pisos e entre estes e a placa Outro tipo de construção e cobertura. Indicar qual:________________ b) escreveu, nas indicações eventuais, "No recheio estão incluídos os bens e eletrodomésticos da casa, bem como maquinaria que se encontra na cave.” [artigos 3.º e 11.º da contestação). G) O prédio identificado na alínea A) tem edificada uma moradia feita em tijolo e cimento, sendo os pisos separados por placas em betão H) E um anexo fechado construído em madeira, sem placa de betão com a cobertura, ligado à casa, sendo a parede da casa comum ao anexo. I) O anexo serve de arrumos e tem instalada a caldeira de aquecimento que serve a moradia. J) O anexo tem acesso independente da habitação K) No dia 30 novembro 2019, pelas 05:00 horas deflagrou um incêndio no anexo. O contrato celebrado tem por objeto as perdas e danos resultantes de um risco coberto, sofridas num/por um imóvel afeto à habitação do autor e bem assim os danos ao recheio daquela habitação[6]. “A lei não estabelece qualquer hierarquia entre as referidas condições, mas a própria lógica gerais» especiais» particulares, refletindo uma progressiva aproximação a um contrato em concreto, evidencia a regra segundo a qual as cláusulas especificadamente acordadas prevalecem sobre quaisquer cláusulas contratuais gerais (art.º 7º, primeira parte, do Decreto-Lei nº 446/85); ao que acresce não poderem as condições especiais e particulares modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado (art.º 45º, nº 1). O âmbito territorial corresponderá, nos seguros de coisas, à localização dos bens imóveis ou ao lugar em que os objetos mobiliários segurados se acharem colocados ou armazenados (art.º 151º, als. a) e d)”[7]. A interpretação da identificação do local do risco (na apólice e proposta que a antecedeu) terá que ser feita com referência aos bens seguros, pelo que a não sinalização na proposta da existência de qualquer anexo, leva à conclusão, na perspetiva de um declaratário normal estar em causa apenas a habitação do autor e respetivo recheio. No local do risco identificou-se o prédio do autor apenas pelo lugar da respetiva localização, quando é certo estar em causa um seguro multirriscos direcionado à proteção do lar/da dimensão habitacional Analisada a proposta da cobertura do risco verifica-se que do objeto a segurar consta edifício e recheio de habitação, com indicação dos valores de construção de 140.000.00 e 22.000,00, respetivamente. Importa realçar que o autor, na proposta de seguro de seguro fez constar a referência expressa de que “No recheio estão incluídos os bens e electrodomésticos da casa, bem como maquinaria que se encontra na cave” sem que tivesse alertado para a existência de um anexo, construído e com cobertura constituída por materiais combustíveis, e no qual se encontrava também instalada a caldeira de aquecimento que servia o edifício/moradia seguro(a). Não nos parece assim de acolher, do ponto de vista do declaratário normal, a tese segundo a qual o local de risco abrange para além da habitação e do recheio da habitação o anexo e o recheio respetivo[8]. Em suma: o anexo onde deflagrou o incêndio não se encontra coberto no âmbito da apólice de seguro celebrado entre o autor e a ré e como tal a ação tem de improceder, com a consequente absolvição da ré do pedido. A presente apelação tem, pois, de proceder, com a consequente revogação da sentença recorrida. (…)
DECISÃO Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida, substituindo-se esta por uma decisão que julga improcedente a ação e absolve a ré do pedido. Custas pelo autor na 1ª instância e no recurso, atendendo ao seu vencimento- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC. Coimbra, 13 de junho de 2023 Mário Rodrigues da Silva- relator Cristina Neves- adjunta Teresa Albuquerque- adjunta Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original ([1]) Neste sentido, José Vasques, Contrato de Seguro, p. 94 ([2]) Ac. do TRP, de 3-02-2020, proc. 14380/16.2T8PRT.P2, relator Nelson Fernandes, www.dgsi. ([3]) Ac. do STJ, de 25-10-2018, proc. 82/15.0T8ALJ.G1.S2, relator Oliveira Abreu, www.dgsi.pt. ([4]) Ac. do TRP, de 10-02-2016, proc. 886/12.6TBFLG.P1, relator Vieira e Cunha, www.dgsi.pt. ([5]) Direito das Obrigações, vol. I, 14ª ed., p. 34. ([6]) Cf. artigo 2º das condições contratuais, com a epígrafe “Objeto do contrato” estipula: “O presente contrato garante, nos termos estabelecidos nas respetivas coberturas, as indemnizações devidas por: a) Danos nos bens móveis e ou imóveis designados nas condições particulares e destinados exclusivamente a habitação. ([7]) José Vasques, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Pedro Romano Martinez e outros, 2016- 3ª Edição, Anotação ao artigo 37º, p. 219. ([8]) Cf. neste sentido, o citado Ac. do TRP, de 10-02-2016 que seguimos de perto. |