Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
670/19.6T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
TIPO OBJECTIVO
TIPO SUBJECTIVO
Data do Acordão: 12/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 348º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – Traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem, sendo que a consequência lógica deste entendimento consiste em considerar como indispensável que na acusação pública constem os factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam concluir com segurança que o arguido tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar.

II – Constando da acusação pública que o agente «quis não entregar» tais documentos para que foi intimado, e tendo-se dado esse facto como provado, tal bastará para perfectibilizar o elemento da referida posse ou disponibilidade dos documentos na sua esfera, pois quem «quer não entregar documentos» só os pode ter em mãos ou tê-los na sua directa disponibilidade.

III – Quem sabe que, ao não entregar documentos, após uma notificação por entidade idónea, pode incorrer em responsabilidade criminal pelo crime de desobediência, assim sabendo que violava ordem regular, sabendo ainda que devia obediência à mesma, sempre agindo de forma deliberada, livre e consciente e com conhecimento do carácter criminoso da sua omissão, só pode ter indubitavelmente compreendido a ordem e os comandos que lhe foram transmitidos.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:
            I - RELATÓRIO
           
1. A SENTENÇA RECORRIDA

No processo comum singular n.º 670/19.6T9LRA do Juízo Local Criminal de Leiria – Juiz 1 -, por sentença datada de 9 de Junho de 2021, foi decidido, na parte relevante para a sorte deste recurso: 
· a)- Condenar o arguido A. pela prática, em autoria material, em 1 de Maio de 2017, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (doravante CP), na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos);
· b)- Condenar A., LDª, pela prática, a 1 de Maio de 2017, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do CP, com reporte ao artigo 11º, n.º 2 do mesmo código, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros).

            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido A. recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1. «O Tribunal, no entender do recorrente, incorreu em erro de julgamento pois que, os factos narrados na acusação e dados como provados não são suficientes à sua condenação.

2. Os factos dados como provados impunham decisão contrária à proferida pelo Tribunal e impunham que o arguido fosse absolvido do crime de desobediência, por não se mostrarem verificados os elementos objetivos do tipo.

3. O crime de desobediência, por o agente ter omitido uma conduta imperada, pressupõe a prova de que estava em condições de cumprir a ordem dada, sendo requisito da condenação que conste da acusação que, no prazo que lhe foi concedido, tinha os documentos em seu poder, ou algum facto de que resulte que podia dispor dos documentos para efetuar a entrega.

4. Ora, não vinha imputado, não se provou, nem resulta dos provados, que o recorrente tivesse os documentos em seu poder, nem que os tivesse aquando da ordem, nem mesmo que os tivesse durante o período fixado para a entrega.

5. Do mesmo modo que, não vinha imputado, não se provou, nem resulta dos provados, que os podia entregar e que apenas não o fez porque não quis.

6. Como se disse, nada consta alegado que permita concluir que o arguido tinha os documentos em seu poder ou que deles dispunha.

7. E não basta, a prova de que o arguido não entregou os documentos, sem mais. Sendo necessário que se tivesse provado que os tinha em seu poder ou, pelo menos, algum facto de que inevitavelmente resultasse que podia dispor deles para efetuar a entrega.

8. Não resultou, pois, provado que os tivesse nem que deles pudesse dispor, nem tal imputação resulta, minimamente, na acusação pública deduzida.

9. Tal “facto” não consta da acusação e tinha de constar, pois a ela compete a alegação e prova de todos os elementos constitutivos do crime e não contendo os factos suficientes para a condenação do arguido, não pode o tribunal alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação, aquela deveria conter (e não contém) a «narração» de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido da pena.

10. Ora, como se disse, do texto da acusação não resulta explícito, nem implícito, que o arguido tinha os documentos em seu poder aquando da ordem para a entrega, ou durante o período fixado para a entrega.

11. Tanto mais que, se mostra irrelevante que na sentença se tenha considerado «não provado» que em abril de 2017 o veículo já não pertencia à sociedade arguida, por ter sido vendido à sociedade (…), pois que tal não exclui outras possíveis explicações para o arguido não ter os documentos em seu poder.

12. Assim, por consistir a desobediência na omissão de um comportamento, tinha de constar da acusação factos que permitissem o juízo de que o arguido estava em condições de não omitir a conduta que lhe foi ordenada.

13. Concretamente, a alegação de que tinha os documentos em seu poder, ou acesso a eles, para os entregar.

14. E esta insuficiência da acusação na narração de factos, não pode ser colmatada pela imputação genérica dos factos relativos aos elementos subjetivos do crime, antes pressupunha, a prova prévia dos factos que preenchem os elementos objetivos do crime, o que não sucedeu.

15. Verifica-se, assim, impossibilidade legal de indagação pelo tribunal recorrido da matéria de facto omissa, essencial para descoberta da verdade material e boa decisão da causa.

16. Por assim ser, por se tratar de facto essencial à condenação, que não foi sequer alegado, impõe-se a absolvição do recorrente, o que deve ser declarado com as legais consequências.

17.O Tribunal fez uma errada interpretação do art. 348º do CP.

18. Do mesmo modo, não resultou dos factos dados como provados, e não vinha imputado na acusação, que o arguido tenha compreendido o teor daquela notificação e da advertência, facto essencial à verificação do crime do art.348º n. º1 e à condenação do arguido.

19. Também nesta parte, por não se verificar facto essencial à condenação, impõe-se a absolvição do arguido pelo crime de desobediência em que foi condenado, o que deve ser declarado».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, defendendo o sentenciado.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se a fls 456, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.
*************

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, p. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, p.113].
             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Desta forma, muito embora o recorrente invoque e nominalize que apenas recorre da matéria de DIREITO, a verdade é que insinua, ao longo de toda a sua peça recursória, a existência de um alegado «erro de julgamento» que mais não é do que um dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP, mais concretamente, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [alínea a) de tal preceito].
Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Há algum vício de insuficiência para a decisão da matéria dada como provada?
a. Era necessário alegar e provar que o arguido tinha os seus documentos em seu poder?
b. Em caso afirmativo, provou-se tal circunstância?
c. Era necessário alegar e provar que o arguido compreendeu o teor da notificação que lhe foi feita e a cominação com a prática de um crime de desobediência?
d. Em caso afirmativo, provou-se tal compreensão?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):

«Factos Provados (apenas colocaremos os 13 primeiros factos pois os outros não relevam para o mérito deste recurso pois não está a causa directamente a decisão sobre a medida da pena aplicada, assente que o recorrente pede apenas a sua absolvição):

1. Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo do Trabalho de Leiria, Juiz 2, os autos de execução comum (custas, multa coima), com o nº 1092/16.6T9LRA, em que são exequente o Ministério Público e executada a sociedade arguida “A., Lda.”,
2. No âmbito desse processo executivo, para efeitos de efectivação da penhora, e em cumprimento do solicitado naqueles autos, a GNR de Guimarães, no dia 20 de Abril de 2017, procedeu a apreensão do veículo de matrícula (…), tendo sido constituído fiel depositário o arguido A.,
3. E, notificou-o, na qualidade de representante legal da sociedade arguida, e enquanto fiel depositário do veículo, de que devia apresentar ao agente de execução, no prazo de 10 dias, os documentos referentes à viatura de matrícula (…), sob a cominação de, não o fazendo, incorrer em crime de desobediência qualificada, nos termos do artigo 348º nº 2 do Código Penal, conjugado com o artigo 16º nº 2 do Decreto-Lei nº 54/75, de 12/12,
4. Sendo que, no dia 3 de Maio de 2017, foi efectuado o registo da penhora do identificado veículo,
5. Porém, o arguido, por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, não procedeu à entrega dos documentos no âmbito da execução da penhora do veículo, nem apresentou qualquer justificação para o incumprimento do determinado,
6. Pelo que, na sequência do despacho judicial proferido em 24 de Outubro de 2018, foi o arguido novamente notificado, na qualidade de fiel depositário, para no prazo de 10 dias, efectuar a entrega dos documentos relativos ao veículo penhorado, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal,
7. Não obstante, no âmbito da mencionada penhora, o arguido continuou sem efectuar a entrega dos documentos, não apresentando qualquer justificação.
8. O arguido, por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, sabia que ao não entregar os documentos poderia incorrer em responsabilidade criminal, pela prática de um crime de desobediência qualificada,
9. Sabia que violava ordem que regularmente lhe havia sido transmitida e comunicada e provinha de autoridade competente, no exercício das suas funções,
10. E que devia obediência à ordem que lhe tinha sido notificada,
11. Não obstante, quis não entregar os referidos documentos, nas referidas condições,
12. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente,
13. Bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida pela lei penal
14. (…)».

2.2. Quanto a FACTOS NÃO PROVADOS, temos dois, oriundos da Contestação do recorrente:

1. Em Abril de 2017, o veículo (…) já não pertencia à sociedade arguida.
2. Por ter sido vendido à sociedade (…) nos últimos dias do ano de 2016.

2.3. Motivou-se a matéria dada como provada e não provada da seguinte forma (transcrição):

(…).
            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. DOS VÍCIOS DA MATÉRIA DE FACTO

3.1.1. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias:
- a da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada (O QUE NÃO É O NOSSO CASO – cfr. artigo 431º do CPP;
- e, se for o caso, a dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Olhando para a peça do recurso, é claro que o recorrente não seguiu este caminho, não tendo invocado qualquer autêntico «erro de julgamento» que justifique a audição das gravações do julgamento – apenas e só invoca que não deveria ter sido condenado pois não existem factos provados suficientes para tal.
Se assim é, caímos no campo dos vícios - de conhecimento oficioso até – do artigo 410º, n.º 2 do CPP.
Nesta 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, n.º 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.

3.1.2. Quais são os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP?
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[1].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[2].
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[3].

3.1.3. Repete-se: embora o recorrente alegue que apenas quer recorrer da matéria de DIREITO e que houve erro de julgamento (duas imprecisões processuais, face ao que, de facto, acaba por articular e concluir no seu recurso), o que na verdade vem suscitar é a falta de factos que considera essenciais à sua condenação, o que nos reconduz para o vício do artigo 410º, n.º 2, alínea a) do CPP.
Entende o recorrente que os factos narrados na acusação e dados como provados não são suficientes para a sua condenação.
E que factos são esses?
Vejamos.

3.1.3.1. O primeiro consubstancia-se no seguinte:
«Não vinha alegado e não ficou provado que o arguido tinha os documentos do veículo na sua posse aquando das ordens que recebeu para os entregar» (lógica do recurso).
Deixa-se escrito na motivação que:
«Não vinha imputado, não se provou, nem resulta dos provados, que o arguido podia entregar os aludidos documentos, apenas não o tendo efectuado porque não quis».
Seria necessário provar-se que o arguido tinha os documentos na sua posse.
Completamente de acordo, aliás com base nos dois arestos do Tribunal da Guimarães citados no recurso – também nós concordamos que:
1º- O tipo objectivo do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº1, al. b), do CPP, consiste no não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ao destinatário e provenientes de autoridade ou funcionário competente, estando o agente previamente advertido de que o não acatamento dessa ordem acarreta para si responsabilidade criminal.
2º- Assim, o crime consuma-se com a omissão do acto cuja prática foi ordenada.
3º- Para o integral preenchimento do tipo objectivo de ilícito é indispensável que a ordem seja susceptível de ser cumprida pelo seu destinatário, ou seja, in casu, que o arguido tivesse a possibilidade de entregar os documentos, por os ter na sua posse ou disponibilidade sobre eles, pois que só essa circunstância torna exigível que actuasse em conformidade com a determinação que lhe foi dirigida, o que tem de ser factualmente alegado na respectiva acusação e, obviamente, provado em audiência de julgamento.
Também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/5/2017, relatado por Jorge Gonçalves (Pº 2509/15.2T9ALM.L1-5), conclui que «para a condenação pelo crime de desobediência pela falta de entrega do título de condução, no prazo do artigo 69.º, n.º3, do Código Penal, não basta a prova de que o arguido não entregou o seu título de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, exigindo-se a prova de que o arguido tinha o dito título de condução em seu poder e podia efectuar a respectiva entrega dentro daquele prazo»[4].
Finalmente, o acórdão da Relação de Guimarães, datado de 12/1/2015 (Pº 2162/12.5TABRG.G2) decidiu que, traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime p. e p no artº 348º, nº 1, al. b), do CP, quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem, adiantando ainda que não constando da acusação pública factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam com segurança concluir que o arguido tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar, impõe-se a absolvição da recorrente do ilícito em causa.
De facto, só desobedece quem, tendo na sua mão ou na sua disponibilidade os documentos intimados, os não entrega após a legítima ordem recebida.
Já Monsieur de La Palisse (ou Palice, conforme os gostos) o diria.
No entanto, diremos que constam dos autos todos os elementos para se poder concluir que o arguido os tinha na sua disponibilidade ou posse, exactamente porque foi dado como provado o facto n.º 11 (não obstante saber que devia fazer a entrega dos documentos em causa, quis não entregá-los).
Querer não entregar é saber que o pode fazer.
Esse facto consta da acusação e consta do rol de factos provados, parecendo-nos, sem grande esforço interpretativo, que ele bastará para que, de forma implícita – senão mesmo explícita –, se possa dizer que o tribunal concluiu que o arguido tinha os documentos na sua posse ou disponibilidade, não os querendo entregar.
Tal significa que foi alegado no libelo acusatório[5], explicita ou implicitamente, que o arguido tinha os documentos em seu poder quando lhe foi dada a ordem para a entrega, ou durante o período estipulado para o efeito, não faltando a alegação de facto que consubstancia o elemento típico objectivo do crime de desobediência.
Não se diz só que ele não entregou os documentos sabendo que os devia entregar na sequência de uma ordem legítima, omissão essa geradora de ilicitude.
Não, diz-se mais[6].
Diz-se, sem sombra de qualquer dúvida, que ele, não obstante tudo isso saber, decidiu, quis não entregá-los, sendo lógico que só se pode não querer entregar algo que se tenha na nossa disponibilidade.
Se não fosse assim, ter-se-ia de escrever que, apesar de saber da obrigação que sobre si pendia, não podia fazer tal entrega.
Aqui, nos autos, intimado duas vezes, decidiu este homem, podendo, não acatar a ordem dada.
É isso que quer dizer a frase «O arguido quis não entregar os referidos documentos» do facto n.º 11.
De alguém que não tem os documentos em causa na sua mão ou disponibilidade, não se diz que «quis não entregar os documentos», antes devendo dizer-se que «não pôde entregar os documentos».
Note-se que em todos os arestos acima mencionados falta este facto, concordando-se que não se retiraria tal conclusão somente dos factos 8, 9, 10, 12 e 13 (o seu dolo)
Num dos acórdãos de Guimarães deixa-se escrito:
«A apontada insuficiência da acusação na narração de factos, não pode ser colmatada ou substituída pela imputação genérica dos factos relativos aos elementos subjetivos do crime. A prova de que o arguido atuou “bem sabendo que com a sua conduta incorria em responsabilidade criminal”, pressupõe, naturalmente, a prova prévia dos factos que preenchem os elementos objetivos do crime».
Só que no nosso processo temos algo mais, precisamente, o facto n.º 11, dado como assente (e imodificável pois o arguido não faz qualquer impugnação da matéria de facto à luz dos artigos 412º, 3 e 4 do CPP, tendo-se tal facto por provado e bem provado).
Como tal, não é verdade o que se deixa escrito na motivação, ou seja, que «não vinha imputado, não se provou, nem resulta dos provados, que o arguido podia entregar os aludidos documentos, apenas não o tendo efectuado porque não quis».
Na realidade, e ao contrário do que se defende em recurso, deu-se como provado que ele não entregou os documentos porque não quis (facto 11).
Portanto:
Traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem, sendo que a consequência lógica deste entendimento consiste em considerar como indispensável que na acusação pública constem os factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam concluir com segurança que o arguido tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar.
No nosso caso, o facto n.º 11 é mais do que uma alusão implícita a tal disponibilidade na esfera dominial do arguido, aliás na sequência de um despacho de arquivamento em que se decidiu não acusar o arguido pelo crime de descaminho por se ter concluído «não resultarem indícios suficientes de que o fiel depositário do veículo apreendido e penhorado, arguido A., tenha removido ou retirado os documentos do veículo da alçada do poder público, ou que tenha praticado qualquer outro acto previsto no citado preceito legal» (cfr. arquivamento prévio à acusação pública dos autos).
Tudo em consonância com a factualidade dada como não provada – ou seja, não se provou que o arguido tenha vendido o veículo a terceiros.
Como tal, não lhes tendo dado descaminho, não os tendo vendido a terceiros conjuntamente com o veículo, e dando-se como provado que ele QUIS não entregar os documentos em causa, a conclusão é só uma, na maior das lógicas humanas e jurídicas – ele tinha os documentos consigo. 
É verdade que é irrelevante (para a condenação) que na sentença se tenha considerado «não provado» que o veículo tinha sido vendido a terceiros, pois concorda-se que a “não prova” da venda não exclui outras hipotéticas explicações para o arguido não ter os documentos em seu poder (tê-los perdido ou oferecido, por exemplo).
Contudo, aqui provou-se algo mais – que ele não os quis entregar. E quem decide – dando voz a uma inequívoca vontade dada como provada e, como tal, inatacável face à forma como se decidiu recorrer nestes autos (cfr. facto n.º 11) - não entregar documentos, só os pode ter em mãos ou tê-los na sua directa disponibilidade.
Quem os não tem em mãos não pode querer não entregá-los – nessa situação, não pode entregá-los.
Diga-se ainda que as versões do arguido nestes autos têm variado, o que retira muita credibilidade à sua postura processual.
Em contestação, alega que vendeu o veículo a terceiros.
Em audiência (constando tal da motivação), disse que «não procedeu à entrega dos documentos porquanto, à data da apreensão, o veículo já não trabalhava há 2 ou 3 anos e já tinha sido para abate por se encontrar com o “motor queimado”, pelo que já não tinha necessariamente seguro activo» (versão que também não convenceu a Exmª Juíza a quo).
Já em recurso, defende apenas que não tinha consigo os documentos, fazendo um malabarismo jurídico para fugir de uma condenação que se tem por absolutamente justa.
Queremos muito mais do que uma mera justiça formal – queremos, qual nirvana, atingir a plena justiça material, a qual, nesta situação, só se atinge com a conclusão de que este homem desobedeceu intencionalmente a uma ordem legítima para entregar documentos, como podia e devia, sendo dolosa a sua recusa.
Por conseguinte, e porque face à matéria de facto apurada descrita, a conduta do arguido é idónea a preencher na sua plenitude a tipicidade objectiva do imputado crime de desobediência, impõe-se, do ponto de vista jurídico, a sua condenação pela prática desse crime, perfeitamente perfectibilizado.
Recorde-se que este tipo de ilícito compreende, como elemento objectivo, a falta à obediência devida de
· uma ordem ou mandado;
· legalidade formal e substancial dessa ordem ou mandado;
· competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
· regularidade da sua comunicação ao destinatário;
· uma cominação não legal mas expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b);
· o conhecimento pelo agente dessa ordem.
Faltar à obediência devida não constitui, só por si, facto criminalmente punível, exigindo-se, para além disso, que a fonte de onde emana essa ordem ou mandado seja uma disposição legal que comine a sua punição ou, na falta desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar tal ordem ou mandado [no nosso caso, a alínea b) do artigo 348º do CP e os factos 3 e 6].
«No que tange ao elemento subjectivo do tipo, este crime é um crime doloso, o mesmo é dizer que, para a sua verificação se exige o dolo, em qualquer das suas modalidades enunciadas no art.º 14.º, do Código Penal (directo, necessário ou eventual), que se preenche sempre que “o agente não cumpre, de modo voluntário e consciente, uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionários competentes» (cfr. Acórdão desta Relação de 23/5/2012, no Pº 569/10.1TATNV.C1).
Tudo isto se perfectibiliza no comportamento do arguido, pessoa aliás que já até conheceu uma condenação por desobediência em 2013 (facto 19, iii), não podendo, pois, dizer-se que ignora o que tal significa.
Sem necessidade de mais considerações, resta a este Tribunal improceder esta argumentação do recurso, entendendo que não estamos perante qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada ou perante a omissão de um facto que seja constitutivo do crime em apreço.

3.1.3.2. O segundo facto omisso consubstancia-se no seguinte:
«Não se deu como provado que o arguido compreendeu o teor da notificação feita e da advertência com a cominação legal» (lógica do recurso).
Era necessário alegar e provar que o arguido compreendeu o teor da notificação que lhe foi feita e a cominação com a prática de um crime de desobediência?
Claro que sim.
E provou-se tal compreensão?
Claro que sim da leitura lógica dos factos n.ºs 8, 9, 10, 11, 12 e 13 tidos por provados e assentes em definitivo pelo facto de não se ter aqui feito qualquer impugnação da matéria da facto, com apelo à prova gravada, nos termos do artigo 412º, 3 e 4 do CPP, e não padecendo tal factualidade de qualquer um dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP.
O tribunal motivou-se assim:
«No que concerne aos factos subjectivos, não subsiste qualquer dúvida no sentido de que o arguido ficou ciente da ordem transmitida para entrega dos documentos e da cominação em caso de omissão e, em consequência, que representou necessariamente o resultado ilícito decorrente da omissão de entrega dos documentos (desobediência à ordem que lhe havia sido transmitida), não se vislumbrando qualquer outro desiderato que não o intencional. Não podendo, outrossim, deixar de ter consciência da ilicitude da sua conduta».

A atitude do arguido foi dolosa – quem sabe que, ao não entregar aqueles documentos, após uma notificação por entidade idónea, pode incorrer em responsabilidade criminal pelo crime de desobediência (e houve até duas notificações – factos 3, 6 e 8), assim sabendo que violava ordem regular (facto 9), sabendo ainda que devia obediência à mesma (facto 10), sempre agindo de forma deliberada, livre e consciente (facto 12) e com conhecimento do carácter criminoso da sua omissão (facto 13), só pode significar que compreendeu a ordem e os comandos que lhe foram transmitidos.
É essa a definição do DOLO.
E do seu DOLO que é directo.
Sabemos que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
Ora, quanto à estrutura do dolo, é ponto pacífico que o mesmo é composto por um
elemento cognitivo ou intelectual
e por um elemento volitivo.
Nas expressivas palavras de Teresa Pizarro Beleza, “basicamente..., dolo corresponde ao conhecimento e à vontade de praticar um certo acto que é tipificado na lei como crime”.
 Vejamos cada um dos referidos elementos, não esquecendo o ensinamento de Fernanda Palma, segundo o qual: “...a distinção entre um elemento intelectual e um elemento volitivo torna-se, fundamentalmente, uma distinção para efeitos de análise. Na conduta intencional, não há qualquer separação entre o estado cognitivo e a volição, que seja, realmente, vivida pelos agentes”.
Vejamos, pois, em primeiro lugar, o mencionado conhecimento - o elemento cognitivo ou intelectual do dolo.
Para se poder dizer que o agente actuou dolosamente, tem de se poder dizer que o agente conhecia os elementos objectivos essenciais do tipo que a sua conduta, objectivamente, preenche.
Ora, esses elementos objectivos essenciais (ou seja, os elementos que definem o tipo) podem ser descritivos ou normativos, isto é, podem ser elementos correspondentes a conceitos da linguagem comum, vulgar, corrente (por oposição à linguagem jurídica - stricto sensu), ou elementos correspondentes a conceitos da linguagem jurídica (stricto sensu).
Para além do elemento cognitivo ou intelectual do dolo, ou seja, para além do conhecimento da realidade objectiva (lato sensu) que interessa ao tipo, é comum identificar e tratar no dolo uma dimensão de vontade, o chamado elemento volitivo do dolo, elemento este que se traduz na vontade de realizar uma certa conduta e/ou de obter um certo resultado.
Ou seja:
Também ninguém ignora que a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo.
O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável.
O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber:
· dolo directo – a intenção de realizar o facto;
· dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta e
· dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.            
Diga-se que, segundo esta doutrina tradicional do crime, sufragada por Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento cognitivo ou intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por Figueiredo Dias[7], este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.
Mais se diga que a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto e que, ao nível do processo, esta exigência satisfaz-se com a prova e, consequentemente, com a menção no elenco dos factos provados, do conhecimento do agente da ilicitude da sua conduta, seja pela fórmula habitual, e algo conclusiva de, «bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», seja por qualquer outra forma que descreva com objectividade este facto da vida interior do agente.
O que não pode acontecer é ter-se por praticado o crime sem a prova da consciência da ilicitude.
No nosso caso, tudo bate certo e tudo está dado como provado, inexistindo também nesta parte qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada.

3.2. Se assim é, então o acto do arguido em não entregar os documentos do veículo em causa, depois de ser intimado para o efeito, até por duas vezes, assente o seu inegável dolo directo (não posto em causa pois este recurso não invoca qualquer verdadeiro «erro de julgamento» que legitime a que este tribunal de recurso lance mão do artigo 412º, n.º 3 e 4 do CPP, considerando-se, pois, bem fixada e definitiva a matéria de facto dada como provada e não provada), praticou, objectiva e subjectivamente, um crime de desobediência (não qualificada, mas simples, conforme elucidativa explicação feita pela Exmª Juíza a quo na sua sentença, não colocada em causa neste recurso), p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b) do CP, tendo sido adequada e justamente punido pelo tribunal recorrido (a medida da sua pena também não foi directamente questionada pelo recorrente, nem sequer em termos de pedido subsidiário).

3.3. Em sumário da nossa decisão:
1º- Traduzindo-se a desobediência na omissão de um comportamento, só pode praticar o crime quem reúna as condições reais de não omitir essa conduta e de cumprir a ordem, sendo que a consequência lógica deste entendimento consiste em considerar como indispensável que na acusação pública constem os factos ou eventos da vida real que, pelo menos de uma forma implícita, permitam concluir com segurança que o arguido tinha em seu poder ou dispunha do acesso aos documentos que devia entregar.
2º- Constando da acusação pública que o agente «quis não entregar» tais documentos para que foi intimado, e tendo-se dado tal facto como provado, tal bastará para perfectibilizar o elemento da referida posse ou disponibilidade dos documentos na sua esfera, pois quem «quer não entregar documentos» só os pode ter em mãos ou tê-los na sua directa disponibilidade.
3º- Quem sabe que, ao não entregar documentos, após uma notificação por entidade idónea, pode incorrer em responsabilidade criminal pelo crime de desobediência, assim sabendo que violava ordem regular, sabendo ainda que devia obediência à mesma, sempre agindo de forma deliberada, livre e consciente e com conhecimento do carácter criminoso da sua omissão, só pode ter indubitavelmente compreendido a ordem e os comandos que lhe foram transmitidos.

3.4. Se assim é, naufraga em absoluto este recurso, só havendo que confirmar a sentença recorrida.
 
III – DISPOSITIVO       

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a bem elaborada sentença recorrida.

Coimbra,
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94.º, n.º2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)
 
Paulo Guerra (relator)

Alexandra Guiné (adjunta)


[1] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340.º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[2] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[3] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (n.º 1 do artigo 163.º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º] divergir-se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[4] Neste caso, provou-se que, à data do trânsito em julgado da sentença condenatória, o arguido não tinha ao seu dispor o título de condução para o poder entregar nos referidos 10 dias, já que o mesmo estava, então, na mesma Instância Local de Almada, Secção Criminal, J3, à ordem de outro processo, para cumprimento de outra proibição de conduzir, só tendo sido esse título devolvido ao arguido mais tarde.
Como tal, só se podia justificar esta absolvição decretada e validada pela Relação de Lisboa.
[5] Caso não houvesse esse facto, há quem opine que não estaríamos no domínio do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [art. 410º, nº2, al. a), do CPP], porquanto se verificaria impossibilidade legal de indagação pelo tribunal recorrido da matéria de facto omissa, essencial para descoberta da verdade material e boa decisão da causa [o tribunal não deixou de investigar tal facto; tal cognoscibilidade estava-lhe legalmente vedada por não constar da acusação que delimita o objecto do processo].
[6] Também nós somos partidários da ideia de que a «narração» dos factos feita na acusação não deve deixar margem para dúvidas sobre os factos ou incidências processuais a que se refere, devendo evitar-se o uso de meras fórmulas genéricas e tabelioas que, de tão abrangentes, nada concretizam. Contudo, neste caso, para além do dolo, o MP entendeu dizer algo mais que tem muito de objectivo – o arguido quis não entregar os documentos.
[7] Para este autor, nosso Mestre em Coimbra, para afirmar o dolo, não basta que haja conhecimento das circunstâncias do facto e vontade de realizar o facto; para ele, esse conhecimento está sempre acompanhado por uma consciência ética que vai permitir ao agente resolver o problema da ilicitude do seu comportamento. Ou seja, para afirmarmos o dolo, no entender de Figueiredo Dias, para além de termos de provar os elementos objectivos, que o agente conhecia e a vontade de realizar o facto típico, há ainda que provar uma atitude pessoal do agente contrária ao dever jurídico-penal.
As vozes discordantes desta teoria fundamentam-se no facto de se entender que esta atitude do agente face à ordem jurídica é um elemento comum ao dolo e à negligência, não devendo ser analisado ao nível do tipo mas da culpa.