Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CRISTINA BRANCO | ||
Descritores: | CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO/RAI POR PARTE DO ASSISTENTE ACUSAÇÃO ALTERNATIVA OBJECTO DO PROCESSO REJEIÇÃO DO RAI CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DO RAI | ||
Data do Acordão: | 11/08/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 170.º E 177.º, N.º 1, ALÍNEA C), DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 283.º, N.º 3, ALÍNEA B), 286.º, N.º 1, 287.º, N.ºS 2 E 3, E 309.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P. | ||
Sumário: | I – Uma palmada ou um apalpão no rabo integra o crime de importunação sexual. II – O requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente consubstancia uma acusação alternativa, pelo que tem que conter os factos concretos susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado. III – No caso de o requerimento para abertura da instrução não conter tal factualidade, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do n.º 3 do artigo 287.º do C.P.P. IV – Contendo o RAI factos que integram os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado, a circunstância de se apresentar eivado de matéria conclusiva, de juízos de valor, confuso, com desordenada arrumação dos factos e dos meios de prova e considerações jurídicas intercaladas na narração dos factos, não constitui fundamento de rejeição, até porque não está sujeito a formalidades especiais. V – Nada impede que tais falhas, ou outras que se entenda existirem, sejam supridas mediante convite ao aperfeiçoamento deste segmento do RAI, uma vez que esse convite só não poderá ter lugar quando ele «for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido». | ||
Decisão Texto Integral: | Relator: Cristina Pego Branco 1º Adjunto:José Eduardo Martins 2º Adjunto: Isabel Valongo …
I. Relatório 1. …, na sequência de queixa apresentada por «…», representada pelo seu Presidente, …, contra …, pela prática de factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática de crimes de maus-tratos e de importunação sexual, o Ministério Público proferiu o despacho de arquivamento … por entender, …, não se terem apurado «comportamentos concretos que possam sustentar a indiciação de que estamos perante o apontado crime de importunação sexual ou outro» e mostrarem-se «esgotadas as diligências investigatórias possíveis e pertinentes». 2. …, admitido a intervir nos autos como assistente em representação de …, requereu a abertura da instrução, … 3. … a Senhora Juiz … rejeitou o requerimento para abertura da instrução, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, por inadmissibilidade legal da instrução. 4. Não se conformando com tal decisão, interpôs o assistente o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): 5. O recurso foi admitido, por despacho de 02-06-2023 (Ref. Citius 103983197). 6. O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta … 7. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, … … * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso … a única questão suscitada é a de saber se o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente cumpre os requisitos exigidos pelos arts. 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), ambos do CPP, como sustenta o recorrente, ou não, como se considerou no despacho recorrido como fundamento para a sua rejeição. * 2. Da decisão recorrida É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição): * 3. Da análise dos fundamentos do recurso …
A instrução, que é uma das fases preliminares do processo, de carácter facultativo, visa a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito, ou seja, da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, do CPP). De acordo com o disposto no art. 287.º do CPP, a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento (n.º 1) e «o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, …, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º» (n.º 2). E o n.º 3 do art. 283.º do CPP estabelece que a acusação contém, sob pena de nulidade: …
Ou seja, porque, no caso de o requerente ser o assistente, o requerimento para abertura de instrução consubstancia uma acusação alternativa que irá ser sujeita a comprovação judicial, impõe-se que no mesmo se defina o seu objecto de uma forma clara e suficientemente rigorosa que permita a organização da defesa. Esta exigência deriva da estrutura acusatória do processo penal, segundo a qual a actividade do tribunal se encontra delimitada pelo objecto fixado na acusação (princípio da vinculação temática), com vista a salvaguardar as garantias de defesa do arguido (designadamente o princípio do contraditório) que, por essa forma, fica resguardado contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e pode preparar a sua defesa em conformidade com o mesmo. Encontrando-se o juiz de instrução limitado, na pronúncia, aos factos que tenham sido descritos na acusação deduzida ou no requerimento do assistente para abertura de instrução, pois que o art. 309.º, n.º 1, do CPP comina com a sanção de nulidade a decisão instrutória na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial daqueles, necessário se torna que, in casu, o assistente alegue todos os factos concretos susceptíveis de integrar os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime que entende ter o arguido preenchido com o seu comportamento, pois que se dele não constarem, a sua posterior adição sempre constituirá uma alteração substancial dos factos, que a lei não permite (cf. art. 1.º, al. f), do CPP). Assim, se da análise do requerimento para abertura da instrução se verificar que o assistente não cumpriu o ónus que sobre ele recai, de descrever com clareza a factualidade da qual resulta que o arguido cometeu determinado ilícito criminal, assim delimitando o objecto do processo, permitindo o exercício do direito de defesa por parte daquele e fornecendo ao tribunal os elementos sobre os quais terá de proferir um juízo de suficiência ou insuficiência de indícios de verificação dos pressupostos da punição, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do n.º 3 do art. 287.º do CPP[1]. Será à luz destas considerações que analisaremos o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente.
Conforme resulta de uma síntese útil do despacho recorrido, as deficiências apontadas ao RAI reportam-se unicamente à ausência de narração dos «elementos de natureza subjectiva necessários à verificação do crime imputado», que é, in casu, o de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170.º do CP, agravado nos termos do art. 177.º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma. … Transcreveremos, por isso, para melhor apreciação da questão, os artigos desse articulado que o recorrente identifica como relevantes para o efeito:
Examinando tal requerimento de abertura de instrução, não podemos deixar de concluir que, embora não esteja formulado com exemplar rigor jurídico-penal para um articulado que deve equivaler (em termos materiais) a uma verdadeira acusação, satisfaz ainda assim as mínimas exigências processuais, contendo todos os elementos a que alude o art. 283.º n.º 3, do CPP, designadamente os mencionados na sua al. b). Na verdade, para além de … aludir aos elementos de prova constantes do inquérito, analisando-os e referindo o que deles entende resultar demonstrado, de formular um juízo crítico relativamente ao despacho de arquivamento e de, a final, indicar as diligências de prova que entende deverem ter lugar na fase de instrução e as disposições legais aplicáveis, o assistente fez ali constar factos que, a serem provados, poderão integrar a prática do crime de importunação sexual agravado, tipificado nos arts. 170.º e 177.º, n.º 1, al. c), ambos do CP. Assim, tendo presentes os elementos típicos do crime de importunação sexual, constituído o respectivo objectivo, na modalidade de acção de importunação que no caso releva, pelo toque no corpo da vítima, in casu, por uma palmada ou apalpão no rabo da …, que foi constrangida a suportar esse contacto físico, de conotação sexual, desde logo pelo factor surpresa, que impede qualquer reacção susceptível de o evitar, e bastando-se o preenchimento dos elementos subjectivos com o dolo genérico, sob qualquer das suas formas, verifica-se que os artigos citados contêm a descrição fáctica do comportamento do arguido, incluindo a sua delimitação espacial e temporal, bem como as circunstâncias atinentes à ofendida que relevam para a imputada agravante, deles decorrendo também a vontade, por parte do arguido, de praticar tal acto, sabendo da ilicitude e relevância penal da sua conduta. …
Acompanhando esta análise, acrescentaremos apenas, fazendo apelo ao AFJ n.º 1/2015[2], também citado no despacho recorrido, «a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual). A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS. Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).» Mas essa fórmula (v.g., agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei), sendo embora a habitual, não é sacramental, bastando que na acusação ou no RAI, enquanto “acusação alternativa”, se mostre completa a imputação criminosa, designadamente, no que ora importa, quanto aos factos que consubstanciam o tipo subjectivo. O RAI aqui em apreço, apesar de não conter a referida fórmula, não é omisso quanto aos elementos constitutivos do dolo, constando dos seus arts. 3.º a 6.º, a consciência e vontade do arguido de praticar determinado acto integrador do tipo objectivo, bem sabendo da ilicitude penal da sua conduta, ou seja, vêm aí referidos os elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito).
É certo que este articulado se apresenta eivado de matéria conclusiva e de juízos de valor, e, em particular, algo confuso e desordenado, pelas considerações jurídicas intercaladas na narração dos factos … e pela deslocada indicação de meios de prova, que deveria ter sido relegada para o final. Trata-se, contudo, de incorrecções que … só por si, não constituem fundamento de rejeição, como também o não constitui a circunstância de um RAI pecar por alguma desordenação ou deficiente arrumação dos factos e meios de prova, uma vez que, de acordo com o disposto no art. 287.º, n.º 2, do CPP, não está sujeito a formalidades especiais. E nada impede que tais falhas (ou outras que se entenda existirem) sejam supridas mediante convite ao aperfeiçoamento deste segmento do RAI, uma vez que, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/2005, do STJ, de 12-05-2005[3], esse convite só não poderá ter lugar quando esse requerimento «for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido». O que verdadeiramente importa é que a leitura do articulado em causa permita a um leitor de mediana compreensão apreender sem esforço quem é o arguido e quais os factos concretos que lhe são imputados, situados, tanto quanto possível, no espaço e no tempo. … do conjunto da narração efectuada no RAI podem efectivamente extrair-se os elementos objectivos e subjectivos do ilícito em causa, bem como a respectiva qualificação jurídico-penal, em termos de poder configurar, materialmente, uma acusação, desde que, como dissemos, dela sejam retiradas os excertos que encerram matéria conclusiva, considerações jurídicas e juízos de valor e remetida a referência a meios de prova para o final do requerimento. Ou seja, é de concluir que, …, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente contém todos os elementos a que aludem as als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 283.º do CPP, permitindo que o arguido tenha uma clara percepção dos factos e ilícito imputados e possa organizar a sua defesa, assim se salvaguardando a estrutura acusatória do processo penal. Não se verificando causa que determine a inadmissibilidade legal da instrução, procede, deste modo, a pretensão do recorrente, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que declare aberta a instrução, ordenando as diligências que forem entendidas como pertinentes e a oportuna realização do debate instrutório. Por todo o exposto, improcede o recurso, sendo de manter na íntegra a decisão recorrida. * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso interposto pelo assistente, …, e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que declare aberta a instrução e ordene as diligências que entenda pertinentes e a oportuna realização de debate instrutório. Sem tributação (art. 515.º do CPP, a contrario sensu). * * Coimbra, 08-11-2023
[1] Cf., a este propósito, os Acs. do STJ de 07-05-2008, Proc. n.º 4551/07 - 3.ª, de 12-03-2009, Proc. n.º 3168/08 - 5.ª, de 13-01-2011, Proc. n.º 3/09.0YGLSB.S1 - 5.ª, de 11-12-2012, Proc. n.º 36/11.6YFLSB.S1 - 5.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos; e de 22-10-2020, Proc. n.º 2938/18.0T9PTM.S1 - 5.ª, de 22-04-2021, Proc. n.º 35/20.7TREVR.S1 - 5.ª, e de 02-12-2021, Proc. n.º 40/20.3TRPRT - 3.ª, todos in www.dgsi.pt. |