Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/18.2ECBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: USURPAÇÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
MÚSICA DIFUNDIDA ATRAVÉS DE SISTEMA DE AMPLIAÇÃO DE SOM
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 149.º, N.º 2, 195.º E 197.º, DO CÓDIGO DO DIREITO DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS
Sumário: A difusão de música, em estabelecimento comercial, através de altifalantes (para ampliação do som), provinda de um canal de televisão especializado na vertente musical, por se inserir apenas no domínio da mera “recepção”, que não no da “recriação”, não carece de autorização do autor da “obra” em causa e, consequentemente, não integra a prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195.º e 197.º do Código do Direitos de Autor e dos Direitos Conexos.
Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

A., assistente nos autos, veio interpor recurso da decisão proferida pela Mmª Juiz de Instrução de não pronúncia da arguida B., pela prática do crime de usurpação previsto pelo artigo 195º, n.º 1, por referência ao artigo 184º, n.º 2, e punível pelo artigo 197º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).

São as seguintes as conclusões da motivação de recurso:

1. O presente recurso foi interposto pela Assistente A., da douta decisão, proferida a 19.06.2018 que não pronunciou a arguida B. pela prática do crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195° e 197° do CDADC.

2. O recurso merece - com o devido respeito - inteiro provimento, pois que a decisão da Mmª Juiz a quo, não foi, na perspetiva da mesma, e com o devido respeito, a mais acertada.

3. Desde logo, porque a decisão da Mmª Juiz a quo, contida na douta decisão recorrida, teve (na ótica da Assistente) por base uma errada interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis em face da factualidade apurada, Pois, contrariamente ao que é sustentado na douta decisão recorrida resultaram verificados e comprovadamente preenchidos, nos autos a quo, todos os elementos do tipo incriminador.

4. Na realidade, dos factos apurados resulta que no dia 25 de fevereiro de 2018, no estabelecimento denominado “Bar (…)”, cuja exploração cabe à arguida, estavam a ser executados publicamente fonogramas, através de um projetor direcionado para uma tela e sintonizado no canal de televisão “VHl Shuffle”, cuja difusão era ampliada por altifalantes, sem que a arguida possuísse qualquer autorização dos produtores de fonogramas/videogramas ou dos seus representantes, designadamente da ora assistente A., através da licença denominada “Passmusica”, para proceder a tal execução ou comunicação pública.

5. Pelo que nos encontramos perante uma comunicação que extravasa o âmbito da simples receção efetuada num contexto individual, privado ou familiar.

6. O regime dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos foi consolidado a nível internacional por um conjunto de tratados internacionais, cujas disposições foram sendo incorporadas no seio do direito da União.

7. O qual se foi densificando quer a nível legislativo (nomeadamente através de diretivas comunitárias) quer a nível jurisprudencial (decisões do TJUE e nacionais).

8. De tal modo que a norma criada pelo legislador da União e interpretada pelo TJUE passa a ser de aplicação obrigatória nos Estados Membros, cabendo ao legislador e julgador nacional harmonizar (quer normativa, quer jurisprudencialmente) a mesma com norma interna e respetiva interpretação ou pelo contrário, revogar a norma interna contrária.

9. Assim sendo, a jurisprudência firmada pelo TJUE assume assim no direito comunitário, a natureza de precedente para os Tribunais do Estados Membros no que concerne à interpretação dos conceitos jurídicos do direito da União, como sendo o de "público" e "comunicação pública" no âmbito dos direitos de autor e direitos conexos.

10. Na realidade, sobretudo a partir de 2006, o TJUE em diversos arrestos jurisprudenciais, foi densificando de forma consistente e unitária tais conceitos tendo como base três princípios estruturantes, como sejam: assegurar um padrão de alto nível de proteção dos direitos de autor e conexos, harmonizar a nível comunitário dos conceitos constantes das Diretivas e serem os mesmos interpretados à luz dos conceitos equivalentes constantes das normas internacionais (v.g. Convenção de Roma e WPPT).

11. Circunstância essa que, não só foi reafirmada pelo TJUE em momento posterior ao Acórdão do STJ n° 15/2013, como também tendo-o (enquanto elemento integrante do ordenamento jurídico nacional sobre tal matéria) em consideração direta e imediata na apreciação de um caso português apresentado, ao mesmo, a título prejudicial, pela SPA (Despacho SPA, datado de 14 de Julho de 2015), no qual, uma vez mais (e daí já por mero despacho), se sufraga integralmente, os critérios que densificaram de forma consistente e unitária tais conceitos.

12. Constituindo assim direito europeu unificado, integrará tal conceito a ação do operador [utilizador (conceito este, igualmente, harmonizado comunitariamente)] - proprietário e/ou explorador de um hotel, bar, café, restaurante, spa, entre outros - que dá, simplesmente, acesso, aos seus clientes, a uma emissão radiodifundida que contém uma obra protegida, sendo que estes apenas desfrutam da mesma por força da intervenção daquele.

13. Que a coloca à disposição de um público novo - um público diferente do público visado pelo ato de comunicação originária da obra, ou seja, os utilizadores diretos, isto é, detentores dos aparelhos de receção que, individualmente ou na sua esfera privada ou familiar captam as emissões - não presente no local de onde provêm as comunicações, que não estejam presentes no local em que tem origem a comunicação, o mesmo é dizer, que não se encontrem em contacto físico e direto com o ator ou executante dessas obras.

14. Sendo o conceito de "público", aquele que visa um número indeterminado de pessoas (telespectadores potenciais) de molde a tomar a obra acessível às pessoas em geral e não a pessoas específicas, pertences a um grupo privado (familiar) ou tendencialmente fechado e imutável.

15. Mostrando-se relevante, quer os efeitos cumulativos que resultam da disponibilização das obras a destinatários potenciais, nomeadamente a indeterminação das pessoas que têm acesso à mesma obra, paralela e sucessivamente.

16. Bem como, embora não decisivo, a suscetibilidade daquele operador económico transmitir tais obras radiodifundidas com fim lucrativo de modo a repercutir na frequência do estabelecimento (essa transmissão é suscetível de atrair clientes, alvos do utilizador e, por outro lado, recetivos, de uma maneira ou de outra, à sua comunicação) e, finalmente, nos resultados económicos da sua atividade.

17. Devendo entender-se o conceito de «comunicação» como visando toda e qualquer transmissão de obras protegidas, independentemente do meio ou procedimento técnico utilizados,

18. Daí decorrendo para o utilizador a obrigação de solicitar a devida autorização e de liquidar uma remuneração equitativa pela comunicação dessa obra e/ou prestação (fonograma/videograma) aos titulares do direito de autor e conexos, a qual acresce à paga pelo radiodifusor.

19. Efetivamente, tendo em conta o Princípio basilar e fundamental do direito jus autoral da independência das formas de exploração (a adoção de qualquer delas pelo titular dos direitos de autor e conexos não prejudica a adoção das restantes pelo mesmo, carecendo de autorização e devendo ser remunerado por cada utilização diferente que da mesma seja feita por parte de terceiros), temos que o direito de autorização e subsequente remuneração devida ao titular do direito de autor e conexo, pela radiodifusão ou colocação à disposição da obra/prestação é independente e autónomo (não abrange) do direito do mesmo pela comunicação/execução ao público dessa obra/prestação, mormente via televisão.

20. Pois bem, encontrando-se os Tribunais apenas sujeitos à Lei, os mesmos, nos litígios devem aferir da conformidade constitucional das normas aplicáveis, e bem assim, verificar a sua conformidade com todas as normas a que elas devem sujeitar-se (normas internacionais, europeias, legais).

21. Quer as normas emanadas de tratados internacionais (regularmente ratificados ou aprovados) como as decorrentes da União Europeia, possuem dignidade constitucional, prevalecendo sobre as normas internas de cada Estado-Membro.

22. Atento a importância do direito comunitário, expresso no "princípio do primado do direito da União Europeia" o legislador nacional, não só deverá adequar a sua atuação com os objetivos assumidos naquele, bem como, deverão as normas internas ser lidas e interpretadas à luz das diretivas transpostas, assim como, com os demais instrumentos de direito da União Europeia, tudo com vista a assegurar a interpretação uniforme daquele direito em todos os Estados-Membros.

23. Do mesmo modo, as decisões jurisdicionais do Tribunal de Justiça [TJUE] constituem um adquirido comunitário que deve ser respeitado obrigatoriamente em todo o espaço europeu, nomeadamente, pelos Tribunais dos Estados Membros, aos quais não se encontra na sua faculdade não o adotarem e aplicarem (podendo contudo, em caso de dúvida de aplicação ao litígio concreto, suscitar um pedido de apreciação pelo TJUE, através do mecanismo do reenvio prejudicial).

24. O que ocorre no caso nacional no âmbito do qual, a decisão proferida pelo TJUE (Despacho SPA, de 14.07.2015), aplicável à ordem jurídica nacional e posterior ao Ac. STJ n° 15/2013, constituiu, sem sombra de dúvidas, um precedente normativo a ter em conta por todos os demais Tribunais nacionais na análise e decisão de questões contrário ou discrepante do direito da União, bem como, incompatível com o direito comunitário de origem jurisprudencial (as quais contudo sempre teriam de ser resolvidas a favor deste último), no que a estas matérias se refere.

30. Pelo que, em face da factualidade apurada nos autos, bem assim, da interpretação dos conceitos jurídicos supra aludidos, a que, com o devido respeito e s.m.o., a Mmª Juiz a quo., se encontrava obrigada a seguir, mostra-se claro que, in casu, estamos perante uma circunstância fáctica que integra, sem margem para dúvidas o conceito de comunicação pública de fonogramas/videogramas musicais.

31. Circunstância esta tanto mais premente e evidente atenta a clarificação que o próprio legislador nacional [em momento posterior ao Acórdão do STJ, n° 15/2013 no âmbito do diploma sobre a regulamentação das entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos (Lei 16/2015, de 14 de Abril)] fez sobre a correta interpretação de tais conceitos.

32. Assim sendo, com o entendimento explanado na sentença proferida (baseado, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n° 15/2013), a Mmª Juiz a quo., com o devido respeito e s.m.o., contraria, frontalmente, a interpretação (sentido, alcance e objetivo) das normas internacionais e comunitárias sobre esta questão, aplicáveis ao nosso país e às quais este se encontra vinculado, bem como, a interpretação conforme com as mesmas que das disposições nacionais, insertas, no CDADC, se terá de fazer.

33. Desrespeitando (e mutatis mutandis, o Acórdão do STJ citado), como devido respeito, que é muito, e s.m.o., um adquirido comunitário quer a nível legislativo, quer a nível jurisprudencial, violando assim, o "princípio do primado do direito europeu".

34. Deste modo, tendo atribuído o legislador nacional, aos produtores fonográficos/videográficos, entre outros, o direito de autorizar (ou proibir) a execução/comunicação pública dos fonogramas/videogramas por eles produzidos e editados.

35. A execução/comunicação pública sem tal autorização deverá ser considerada uma utilização não autorizada de tais fonogramas/videogramas, o que desde logo, implica a violação do disposto no artigo 184°.2 CDADC e preencherá, como se referiu, o tipo criminal de usurpação (artigo 195° CDADC).

36. Considerando tudo o exposto, e o mais que, doutamente, será suprido, a decisão recorrida violou, por erro de interpretação e de aplicação, nomeadamente o disposto nos artigos o disposto nos artigos 108°.2, 184°, 195°, 197° do Código do Direito do Autor e dos Direitos Conexos, bem como, o artigo 3°.1 da Diretiva 2001/29.

Nestes termos, e com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser dado inteiro provimento ao presente recurso, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por douto acórdão, em que, acolhendo-se as razões supra invocadas pela ora apelante pronuncie a arguida pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido nos termos do disposto nos artigos 195° e 197° do CDADC.


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Respondeu a arguida, defendendo que o recurso deve ser julgado improcedente.

Também a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluiu pela improcedência do recurso, tendo rematado a sua resposta nos seguintes termos:

“1. A decisão recorrida efetuou uma correta ponderação da prova reunida nos autos, entendendo-se igualmente que se não indicia que a arguida tenha agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que necessitava de autorização, e que tivesse consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

2. Não existe fundamento para o afastamento da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ nº 15/2013, de 16.12., não se vislumbrando novos argumentos relevantes, nem uma “notória alteração das conceções doutrinais e/ou jurisprudenciais”.

3. Sendo inquestionável que tal jurisprudência está em oposição com a interpretação que o TJUE tem vindo a fazer sobre o conceito de “comunicação ao público”, tal foi já considerado pelo dito Acórdão, que faz referência aos acórdãos do TJUE proferidos nos processos C-403/08 e C-429/08, bem como no C-162/10.

4. E em data posterior a 16.12.2013, foram proferidos diversos Acórdãos que concluem no mesmo sentido daquele, citando-se a título de exemplo os Acórdãos de 20.01.2016, de 22.02.2017 e de 28.06.2017, todos do Tribunal da Relação de Coimbra.

5. Atendendo à especificidade da situação em causa nos autos, tem aqui aplicação a jurisprudência fixada, considerando, como se refere na decisão recorrida, que nos autos até está em causa um radio, portanto um “minus” em relação à televisão, aparelho a que se reporta o Acórdão.

6. Numa situação como a indiciada não se verifica uma reutilização da obra, mas uma mera receção e a ampliação do som difundido pelas colunas não altera essa utilização, nada acrescenta ou inova; a transmissão efetuada não carece de autorização, pelo que a conduta da arguida não integra o crime de usurpação, p. p. pelos artigos 195º e 197º do CDADC, desde logo por se não verificar o elemento objetivo.

7. Não havendo qualquer recusa na aplicação da diretiva 2001/29/CE, nem violação do princípio do primado, antes se tratando de interpretações diferentes daquela diretiva comunitária por parte do TJUE e dos tribunais nacionais, de que se salienta o STJ com o Acórdão nº 15/2013.

8. Perante a prova produzida, está igualmente afastado o elemento subjetivo do referido tipo de ilícito; sendo de admitir, perante “a complexidade do quadro jurídico-penal e jurisdicional” em que nos movemos e a ampla divulgação do Acórdão nº 15/2013, que a arguida não soubesse que necessitava de autorização por parte dos titulares dos direitos conexos e que não soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9. Concluindo-se que se não indicia que a arguida tenha agido com dolo, em qualquer das modalidades a que alude o artigo 14º do Código Penal, mas antes que agiu da forma descrita porque estava convicta de que o poderia fazer.

10. Mais entendemos não ser possível concluir por uma atuação negligente por parte da arguida, pois que perante os factos apurados, a complexidade da questão, as divergências doutrinais e jurisprudenciais e a ampla divulgação do Acórdão nº 15/2013, entendemos não se indiciar a violação do dever objetivo de cuidado.

11. Nada permite concluir que a arguida não tenha diligenciado por informar-se e munir-se das licenças necessárias, admitindo-se que o tenha feito e que se tenha louvado nos entendimentos a que vimos fazendo referência; não atuando, pois, de forma leviana ou descuidada, nem sendo a sua conduta censurável.

12. Quanto ao disposto no artigo 36º da Lei 26/2015, afigura-se que em nada invalida a fundamentação da decisão recorrida, porquanto aos factos em análise nos autos é de aplicar a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ nº 15/2013; não estando aqui em causa uma reutilização da obra radiodifundida não é necessária a obtenção de autorização dos titulares dos direitos conexos.

13. Pelo exposto, entendemos que bem decidiu a Exma. Senhora Juiz e que o despacho recorrido não violou qualquer norma, pelo que deverá ser mantido na íntegra.”

Nesta instância também o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II – FUNDAMENTAÇÃO

Vejamos como a Mmª Juiz a quo fundamentou a sua decisão de não pronúncia:

 “ Vem a assistente A. requerer a abertura de instrução em virtude de não concordar com o despacho de arquivamento proferido nos autos, pugnando pela pronúncia da arguida B. por um crime de usurpação, previsto pelo artigo 195.º, n.º1, por referência ao artigo 184.º n.º2, e punível pelo artigo 197.º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Em síntese, alega que a utilização de música gravada e/ou vídeos musicais em espaços públicos, com ou sem fins comerciais, constitui uma forma de execução/comunicação pública, sendo que tal comunicação pública de música gravada pode ser directa, a partir de fonograma/videograma original, ou indirecta (por exemplo, a execução pública a partir de uma emissão de rádio, televisão ou internet), para efeito de ambientação musical de um qualquer espaço público ou aberto ao público, e que, assim sendo, a utilização de música levada a cabo no “(…) Bar” configura uma execução/comunicação pública, não autorizada nem licenciada, de fonogramas/videogramas musicais (cuja gestão pertence à assistente) que incorporam prestações artísticas e obras literário-musicais, que estavam a ser transmitidas pelo canal de televisão “VH1”, pelo que, a ausência de autorização dos produtores e pagamento da respectiva remuneração a estes e aos artistas viola o disposto no artigo 184.º n.ºs 2 e 3 do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).

Mais alega que os produtores fonográficos/videográficos gozam do direito exclusivo de autorizar toda e qualquer colocação à disposição do público dos seus fonogramas/videogramas, e que o facto das músicas executadas/comunicadas no estabelecimento da arguida provirem da televisão (canal especializado em música) tal não deixa de constituir comunicação ao público ou execução pública (artigos 178.º n.º2 e 184.º n.º2 do CDADC).

Acrescenta ainda que, o legislador nacional distinguiu a necessidade de autorização do produtor para a radiodifusão da sua obra e a necessidade de autorização para a comunicação ao público da mesma.

Alega ainda, como fundamento da discordância da interpretação e aplicação do Direito realizada no âmbito do despacho de arquivamento, que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem vindo a densificar o conceito de comunicação pública resultante de transmissão de uma obra radiodifundida aos clientes de um estabelecimento através de rádio ou ecrã de televisão.

A assistente alega que decorre para o utilizador a obrigação de obter prévia autorização e de liquidar uma remuneração equitativa pela comunicação dessa obra e/ou prestação (fonograma/videograma) aos titulares do direito de autor e conexos, a qual acresce à paga pelo radiodifusor.


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Realizaram-se as diligências instrutórias requeridas que se consideraram relevantes para a descoberta da verdade.

Realizou-se o debate instrutório com observância do legal formalismo.


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O Tribunal é competente.

Não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.


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Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 286.º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, determina o artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

Assim, a função da presente instrução é a de apreciar se nos autos existem indícios da prática pela arguida do crime que lhe é imputado pela assistente que sejam suficientes para a submeter a julgamento.

Face ao disposto nos artigos 283.º, n.º2 e 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.

Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.

Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura.

Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.


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Pugna a assistente pela pronúncia da arguida por um crime de usurpação, previsto pelo artigo 195.º, n.º1, por referência ao artigo 184.º n.º2, e punível pelo artigo 197.º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Nos termos do artigo 195.º n.º1 do CDADC “comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código”.

À data da prática dos factos, o artigo 184º do mesmo diploma legal tinha a seguinte redacção:

1 - Carecem de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a reprodução, directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, e a distribuição ao público de cópias dos mesmos, bem como a respectiva importação ou exportação.

2 - Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará ao produtor e aos artistas intérpretes ou executantes uma remuneração equitativa, que será dividida entre eles em partes iguais, salvo acordo em contrário.

Porém, foi alterado pelo Decreto-lei nº 100/2017 de 23.8, tendo passado a ter a seguinte redacção:

1. Assiste ao produtor do fonograma ou do videograma o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

a) A reprodução, direta ou indireta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, do fonograma ou do videograma;

b) A distribuição ao público de cópias dos fonogramas ou videogramas, a exibição cinematográfica de videogramas bem como a respetiva importação ou exportação;

c) A colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, dos fonogramas ou dos videogramas para que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido;

d) Qualquer utilização do fonograma ou videograma em obra diferente;

e) A comunicação ao público, de fonogramas e videogramas, incluindo a difusão por qualquer meio e a execução pública direta ou indireta, em local público, na aceção do n.º 3 do artigo 149.º”.

2 - (Revogado.)

3 - “Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador tem de pagar, como contrapartida da autorização prevista na alínea e) do n.º 1, uma remuneração equitativa e única, a dividir entre o produtor e os artistas, intérpretes ou executantes em partes iguais, salvo acordo em contrário.”

A punição deste tipo legal de crime encontra-se prevista no artigo 197.º do mesmo Código, de acordo com o qual “1 - Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.

2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias. (…)

O crime de usurpação tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica.

“O crime de usurpação de obra artística visa proteger a obra - obra, como criação intelectual, no caso, do domínio artístico e exteriorizada em CD (art. 1º, nº 1 do CDADC) - bem como o "complexo de direitos que constituem o direito de autor (José Branco, Leis Penais Extravagantes, Org. José Pinto de Albuquerque e José Branco, II, p. 248).

Como o tribunal constitucional tem afirmado, "a protecção da propriedade intelectual apresenta um carácter fundamental nas sociedades actuais. A ela se ligam considerações respeitantes ao desenvolvimento e progresso humano, muitas vezes em concorrência com valores de protecção dos direitos da personalidade, dos direitos patrimoniais dos criadores e, até, exigências de segurança dos consumidores". Trata-se de um "bem jurídico dotado de especial significado", de reconhecida "relevância ao nível constitucional como ao nível internacional e europeu", com necessidade de tutela face ao aumento significativo de violações à propriedade intelectual).

A par dos direitos morais, protegem-se os direitos patrimoniais do autor.

Como titular do direito exclusivo de exploração da obra, o autor é afectado pela divulgação daquela à sua revelia, ou seja, sem a sua autorização. E a divulgação não autorizada integra crime” – cfr. Ac. da RE de 19.3.2013, in jusnet.pt.

Os elementos constitutivos do tipo objectivo do crime de usurpação são:

- Que o agente, sem autorização do autor, do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilize uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas no código;

- Que o agente divulgue ou publique, abusivamente, uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo autor ou não destinada à divulgação ou publicação, mesmo que identifique a respectiva autoria;

- Que o agente colija ou compile obras publicadas ou inéditas, sem autorização do autor;

- Que o agente, estando autorizado a usar obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceda os limites da autorização, com excepção dos casos previstos no código.

Relativamente ao tipo subjectivo, importa considerar o dolo, enquanto conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.


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Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito, como em sede de instrução.

No auto de denúncia de fls. 5 e seguintes consta que no interior do estabelecimento da arguida se encontrava em execução pública, através de altifalantes, música ambiente, sendo que se encontravam no local cerca de 20 a 30 clientes. A arguida esclareceu que a fonte dos fonogramas era a emissão em directo do canal “VH1 Shuffle”, sem que o mesmo estivesse a ser visionado pelo público, portanto apenas estavam a difundir o som, tendo sido ligado um projector, o qual estava direccionado para uma tela por forma a demonstrar a fonte da música ambiente. Consta ainda que, seguidamente, foram solicitadas as autorizações de direitos de autor e direitos conexos para a execução pública e a colocação à disposição do público da música em questão, tendo a arguida mostrado à ASAE um documento da Sociedade Portuguesa de Autores para efeitos de autorização administrativa por parte dos representantes dos autores, e que em relação aos representantes dos direitos conexos não tinha consigo a autorização da “Passmusica”, uma vez que estava em negociação para um acordo de pagamento faseado com a referida sociedade, afirmando que não sabia esclarecer se tal acordo validava a existência de licença para o dia da inspecção, uma vez que ainda não tinha efectuado o pagamento relativamente à mensalidade acordada por dificuldades financeiras.

A fls. 6 encontram-se fotografias dos vários altifalantes usados para a difusão musical, bem como da tela onde foi projectada a emissão do canal televisivo.

A fls. 9 constata-se que em 28-02-2018 a arguida deu entrada na ASAE de comprovativo da existência de licença provisória para fonograma, válida de 26-02-2018 até 20-03-2018, que lhe foi concedida pela “Passmusica”; factura de fls. 12, emitida pela mesma entidade, datada de 26-02-2018, relativa a fonograma e a direitos conexos com a sua utilização, no montante de 575,14 Euros, e comprovativos do pagamento do valor de 143,79 Euros, efectuado no dia 25-02-2018, pelas 18:25 horas, conforme resulta de fls. 13 e 17.

A fls. 20 encontra-se e-mail enviado pela “Passmusica” à ASAE, no âmbito do qual aquela entidade informa esta última que o estabelecimento da arguida “(…) Bar” não se encontrava licenciado/autorizado no dia 25-02-2018 por produtores e artistas representados sob a marca “Passmusica”, para proceder à execução pública de música gravada constante do repertório entregue à sua gestão.


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Foram estes os únicos indícios recolhidos nos autos que cumpre analisar.

Em face dos indícios revelados nos presentes autos, cumpre analisar se os mesmos consubstanciam a prática de um crime de usurpação.

Ora vejamos, no interior do estabelecimento da arguida, onde se encontravam cerca de 20 a 30 clientes, encontrava-se em execução pública, através de altifalantes, música ambiente. A arguida esclareceu que a fonte dos fonogramas era a emissão em directo do canal “VH1 Shuffle”, sem que o mesmo estivesse a ser visionado pelo público, portanto apenas estavam a difundir o som, tendo sido ligado um projector o qual estava direccionado para uma tela por forma a demonstrar a fonte da música ambiente.

Mais resulta indiciado que o estabelecimento da arguida “(…) Bar” não se encontrava licenciado/autorizado no dia 25-02-2018, por produtores e artistas representados sob a marca “Passmusica”, para proceder à execução pública de música gravada constante do repertório entregue à sua gestão.

A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça manifestou a sua posição em Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 15/2013, acessível em www.dgsi.pt, de acordo com o qual “A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149.º, 195.º e 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos;”.

Para fundamentar a decisão de fixar a jurisprudência neste sentido, o Supremo Tribunal de Justiça, interpretando os artigos 68.º n.º2 alínea e), 149.º, 176.º e 155.º do CDADC, propôs-se responder às seguintes questões “A comunicação da obra radiodifundida por altifalante ou instrumento análogo depende, pois, de autorização e confere ao autor da obra direito a uma remuneração. Mas que se deve entender por comunicação? Trata-se necessariamente de uma modalidade de utilização da obra diferente das previstas no n.º 1 (transmissão e retransmissão). Na radiodifusão, como vimos, a comunicação direta entre o organismo emissor e o público recetor está prevista no n.º 1 do artigo 149.º, bem como a relação mediada por retransmissor. A situação prevista no n.º 2 terá, pois, de ser diferente. E é diferente desde logo pelas características do lugar onde é realizada a receção: lugar público. Mas será que a mera receção em lugar público integrará a previsão do n.º 3, envolvendo o dever de autorização por parte do autor da obra? A audição/visionamento de estações de televisão em cafés, restaurantes, bares, e outros tipos de estabelecimentos abertos ao público em geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter autorização dos autores das obras transmitidas?”

Para resposta ao problema avança que é necessário proceder à distinção entre recepção e comunicação, referindo que “A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite-se (radiodifunde-se) para o recetor. Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149.º Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito da receção. É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo 149.º Este preceito tem de reportar-se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração. Essa nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria.” O que acrescenta não ser o caso “…da mera receção em cafés ou bares abertos à generalidade das pessoas, sem obrigação de pagamento de entrada, estabelecimentos que representam tradicionalmente lugares de convivência ou reunião, sobretudo nos meios pequenos, mas não só neles, nos quais a captação de programas televisivos pode funcionar ocasionalmente como chamariz especial, mas normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atrativo.”

Conclui que “…haverá reutilização da obra se foram empregues meios técnicos que recriem de qualquer forma a difusão da obra, produzindo um espetáculo diferente do que é radiodifundido. Compreende -se que em tais condições, e só nelas, haja a obrigação de pagar uma nova remuneração ao autor. Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção, ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o disposto no n.º 2 do artigo 149.º”.

Mais concretamente sobre as colunas utilizadas, tal como acontece no caso em apreço, reforça o Supremo Tribunal de Justiça que “As colunas não produziam portanto qualquer função nova, o que elas faziam era ampliar e distribuir o som que o televisor já difundia por todo o espaço do estabelecimento. A função delas era apenas a de melhorar a captação do som. Assim, a instalação das colunas nada acrescentava ou alterava à emissão televisiva. Nenhuma recriação do programa transmitido era produzida. Insiste-se: o que as colunas permitiam era a melhoria da captação do som. Daí que a situação se enquadre inteiramente no plano da receção da radiodifusão.”

Por outro lado, não se pode deixar de considerar o entendimento que tem vindo a ser adoptado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em auxílio da interpretação sobre o conceito de «comunicação ao público», na acepção do artigo 3.°, n.º1, da Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, (relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação), sobre o qual avança que o mesmo deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão de obras radiodifundidas através de um ecrã de televisão e de altifalantes aos clientes (cfr. acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 4 de Outubro de 2011 - Football Association Premier League Ltd., no âmbito dos processos apensos C-403/08 e C-429/08 acessível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30dda3c5fa3a67464409ba479168cbaa0581.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxyNchn0?text=&docid=110361&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=328719)

Sobre a difusão de obras num café-restaurante através de um aparelho de rádio ligado a colunas pronunciou-se ainda o Tribunal de Justiça da União Europeia, no mesmo sentido de que o conceito de «comunicação ao público», na acepção do referido artigo 3.°, n.º1 “…deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de um aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico‑literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento.” (cfr. Despacho do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), de 14 de Julho de 2015, no âmbito do processo n.ºC-151/15, acessível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=165973&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=331980).

O referido artigo 3.º n.º1 (com a epígrafe, Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material) da Directiva 2001/29/CE tem a seguinte redacção: “Os Estados-Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná-las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.”

Em face do exposto, não ignoramos a existência ou sequer se pretende recusar a aplicação da mencionada Directiva.

Para além do mais tal Directiva foi transposta para a ordem jurídica nacional pela Lei nº50/2004, de 24 de Agosto, que deu nova redacção a várias disposições do CDADC, entre elas, as dos artigos 68.º, 178.º e 184º.

Resulta assim evidente a manifesta oposição entre a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº15/2013 e a interpretação que o TJUE tem vindo a fazer sobre o conceito de «comunicação ao público».

Mais importa salientar que o Tribunal tem conhecimento que o acórdão uniformizador de jurisprudência não constitui jurisprudência obrigatória (cfr. artigo 445.º n.º 3 do Código de Processo Penal); contudo, entende que as considerações e respectivas conclusões nele vertidas são suficientemente claras e com elas se concorda na íntegra.

Neste mesmo sentido vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/6/2017, no âmbito do processo n.º24/15.3PFVIS.C1; de 14/10/2015, no âmbito do processo n.º35/12.0PFVIS.C1 e de 20/01/2016, no âmbito do processo n.º36/13.1PFVIS.C1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Também o Tribunal de Justiça da União Europeia aponta no sentido de não ser unanime a posição por si abraçada, uma vez que no âmbito do acórdão ITV Broadcasting, no âmbito do processo n.ºC-607/11, acessível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62011CJ0607, nomeadamente no parágrafo 28, de acordo com o qual não constitui uma "comunicação" na acepção do artigo 3.º n.º1 da Directiva 2001/29 um mero meio técnico para garantir ou melhorar a transmissão de origem na zona de cobertura.

E não se venha dizer que as colunas ligadas à televisão ou ao rádio não são um mero meio técnico para melhorar a transmissão, pois se assim for, em resolução de tal discussão sempre encontraremos resposta no supra mencionado acórdão de fixação de jurisprudência.

Importa considerar que de acordo com o disposto no artigo 445.º, n.º3 do Código de Processo Penal, a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada na decisão.

Contudo, a fundamentação da divergência tem que ir para além da comum fundamentação da decisão penal, devendo suportar-se em argumento novo, relevante e não ponderado, na notória alteração das concepções doutrinais e/ou jurisprudenciais ou na modificação da composição do Tribunal Supremo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1202 e Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1591).

Acontece, porém, que consideramos não existir um novo argumento que imponha o afastamento da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nem constatamos uma evolução doutrinal ou jurisprudencial quanto aos argumentos utilizados, que determine uma decisão diferente do acórdão uniformizador, quer pela data, ainda próxima, em que o mesmo foi proferido, quer pela circunstância de nele serem expressamente referidas decisões do TJUE contrárias, como sejam os acórdãos proferidos nos processos nºs 403/08 e 429/08.

Assim, a prova produzida no decurso do inquérito e da instrução revela-se manifestamente insuficiente para indiciar os elementos típicos do crime imputado à arguida

Dos indícios existentes não resulta uma possibilidade razoável de à arguida vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou medida de segurança. Não se pode concluir que exista uma probabilidade de futura condenação da arguida pelo crime de usurpação. Aliás, se a arguida fosse submetida a julgamento muito provavelmente seria absolvida.

A ser assim, deve ser proferido despacho de não pronúncia da arguida.


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Nestes termos e sem necessidade de tecer mais considerações, decide-se proferir despacho de não pronúncia da arguida R (...) pelo crime de usurpação, previsto no artigo 195.º, n.º1, por referência ao artigo 184.º n.º2 (vigente à data da prática dos factos), e punível pelo artigo 197.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, que lhe foi imputado pela assistente (…).”

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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada e a decidir, consiste em saber se, face aos factos que constam do auto de notícia e se encontram suficientemente indiciados, deveria a arguida ser pronunciada pela prática do crime de usurpação previsto no artigo 195º, n.º 1, por referência ao artigo 184º, n.º 2, e punido pelo artigo 197º, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).


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A assistente notificada do despacho que, nos termos do art. 277º do CPP, determinou o arquivamento dos autos, requereu a abertura de instrução, visando a pronúncia da arguida pela prática do aludido crime de usurpação.

Como refere o despacho recorrido, os únicos indícios recolhidos nos autos são:

“No auto de denúncia de fls. 5 e seguintes consta que no interior do estabelecimento da arguida se encontrava em execução pública, através de altifalantes, música ambiente, sendo que se encontravam no local cerca de 20 a 30 clientes. A arguida esclareceu que a fonte dos fonogramas era a emissão em directo do canal “VH1 Shuffle”, sem que o mesmo estivesse a ser visionado pelo público, portanto apenas estavam a difundir o som, tendo sido ligado um projector, o qual estava direccionado para uma tela por forma a demonstrar a fonte da música ambiente. Consta ainda que, seguidamente, foram solicitadas as autorizações de direitos de autor e direitos conexos para a execução pública e a colocação à disposição do público da música em questão, tendo a arguida mostrado à ASAE um documento da Sociedade Portuguesa de Autores para efeitos de autorização administrativa por parte dos representantes dos autores, e que em relação aos representantes dos direitos conexos não tinha consigo a autorização da “Passmusica”, uma vez que estava em negociação para um acordo de pagamento faseado com a referida sociedade, afirmando que não sabia esclarecer se tal acordo validava a existência de licença para o dia da inspecção, uma vez que ainda não tinha efectuado o pagamento relativamente à mensalidade acordada por dificuldades financeiras.

A fls. 6 encontram-se fotografias dos vários altifalantes usados para a difusão musical, bem como da tela onde foi projectada a emissão do canal televisivo.

A fls. 9 constata-se que em 28-02-2018 a arguida deu entrada na ASAE de comprovativo da existência de licença provisória para fonograma, válida de 26-02-2018 até 20-03-2018, que lhe foi concedida pela “Passmusica”; factura de fls. 12, emitida pela mesma entidade, datada de 26-02-2018, relativa a fonograma e a direitos conexos com a sua utilização, no montante de 575,14 Euros, e comprovativos do pagamento do valor de 143,79 Euros, efectuado no dia 25-02-2018, pelas 18:25 horas, conforme resulta de fls. 13 e 17.

A fls. 20 encontra-se e-mail enviado pela “Passmusica” à ASAE, no âmbito do qual aquela entidade informa esta última que o estabelecimento da arguida “(…) Bar” não se encontrava licenciado/autorizado no dia 25-02-2018 por produtores e artistas representados sob a marca “Passmusica”, para proceder à execução pública de música gravada constante do repertório entregue à sua gestão.”

Coloca-se, assim, a questão de saber se com base nos mencionados factos a arguida deve ser pronunciada pela prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195º e 197º do CDADC.

Tendo em conta o disposto nos artigos 68º, n.º 2, al. e), 149º, 155º, 195º e 197º, todos do CDADC (já transcritos na decisão recorrida), sendo o estabelecimento em causa um lugar público (de acordo com a definição do n.º 3 do art. 149º do CDADC), pergunta-se se a audição/visionamento de estações de televisão em cafés, restaurantes, bares, e outros estabelecimentos abertos ao público em geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter autorização dos autores das obras transmitidas?

A esta pergunta respondeu o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 15/2013 (DR, 1ª série, n.º 243, 16 Dez. de 2013), nos seguintes termos:

«Para decidir tal questão, há que operar a distinção entre receção e comunicação. A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite-se (radiodifunde-se) para o recetor.

Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149º.

Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito da receção.

É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo 149º. Este preceito tem de reportar-se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.

Esta nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria.

Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção, ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o disposto no n.º 2 do artigo 149º. Doutra forma, seriam cobrados direitos a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que pela autorização da radiodifusão da obra já o autor recebeu a correspondente remuneração».

Como escreveu Oliveira Ascensão ([1]) «Princípio fundamental nesta matéria é o da liberdade de recepção. Poder-se-ia pensar na sujeição de recepção a autorização do autor, ou pelo menos em atribuir uma remuneração ao autor em consequência da recepção. Mas seria absurdo sujeitar a duas autorizações o mesmo programa, com a consequente dupla cobrança, na fonte e no destino. Na realidade, quem possuir um receptor pode utilizá-lo livremente, pois a autorização inicial para a radiodifusão abrange já a posterior recepção.

(…) A lei não pode pois pretender limitar uma recepção que se quer sem barreiras, e está já prevista na autorização para a radiodifusão.

(…) A recepção é livre, qualquer que seja o modo como se realiza. Não tem a ver com o uso privado. Mesmo a recepção pública não altera esta situação».

Portanto, tendo os direitos de autor sido já pagos pela entidade difusora que presta o serviço televisivo à arguida, esta na qualidade de exploradora do estabelecimento “Bar (…)”, não carece de autorização da assistente, dado que é mera receptora do serviço (teledifundido). 

No caso vertente, no interior do estabelecimento da arguida encontrava-se em execução pública, através de altifalantes (para ampliação do som), música ambiente, que provinha de um canal de televisão especializado em música, o “VH1 Shuffle”.

Deste modo, estando a situação dos autos no domínio da mera recepção, não havendo qualquer recriação, não se verifica o crime de usurpação imputado pela assistente/recorrente à arguida.

Com efeito, o Acórdão Uniformizador n.º 15/2013 fixou jurisprudência no sentido de que «A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação de som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.»

Acresce que, acompanhamos a opinião segundo a qual “os estabelecimentos dotados de aparelhos receptores de televisão, ligados ao respectivo sinal difundido pelo distribuidor de cabo, pelo qual pagam o respectivo serviço, se integram nos casos que se prevêem no considerando da Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de Maio de 2001, segundo o qual “a mera disponibilização de meios materiais para permitir ou realizar uma comunicação não constitui só por si uma comunicação na acepção da presente directiva”.

Sustenta a recorrente que a interpretação dada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 15/2013 (o qual não tem força obrigatória geral) ao conceito de comunicação pública não é pacífica, ou consensual, na doutrina e na jurisprudência.

Acrescentando que, o conceito de comunicação ao público deve ser entendido em sentido amplo, ou seja, que “deve entender-se o conceito de «comunicação» como visando toda e qualquer transmissão de obras protegidas, independentemente do meio ou procedimento técnico utilizados. Resultando de tal comunicação pública a obrigação dos utilizadores a solicitarem a respectiva autorização e a procederem à liquidação de uma remuneração equitativa aos diversos titulares de direitos de autor e conexos, independentemente daquela que é devida aos organismos de radiodifusão, por força dessa mesma e diversa utilização da obra protegida.”

Efectivamente, no AUJ n.º 15/2013 o conceito de comunicação ao público poderá ser mais restrito e, por conseguinte, divergente de decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A este propósito, o AUJ, na nota 7, referindo-se às situações de recepção multiplicada em estabelecimento hoteleiro, indica o ac. de 15.3.2012, proc. n° C­162/10, e na nota 8, quando alude à transmissão televisiva em cafés, menciona em sentido contrário ao que aí se afirma o ac. de 4.10.2011, procs. n.ºs 403/08 e 429/08 (importando contudo atentar que, neste último caso, a destrinça no conceito de comunicação se reporta a público presente ao evento - o que estava em causa era a transmissão televisiva de jogos de futebol através de retransmissores não comercializados no país em causa - e público dele ausente, mas que pode visualizar, através da retransmissão).

Estabelece o n.º 3 do artigo 445º do CPP que A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.

O Consº Pereira Madeira ([2]) sublinha que “Como tem sido enfatizado pelo STJ, o tribunal judicial divergente não pode limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer relevante argumento novo não ponderado ainda, sem percepção de alteração notória nas concepções ou da composição do Supremo vg, através de arestos publicados, baseando essa divergência tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal.”

Deste modo, não se vislumbrando no despacho recorrido qualquer violação das orientações legais e jurisprudenciais da União Europeia a que o Estado Português está obrigado e, dado que os factos indiciados não preenchem o tipo do crime de usurpação, não merece censura o despacho impugnado.


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III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.

Sem tributação (dado a recorrente estar isenta de custas – art. 4º, n.º 1, al. f) do Regulamento das Custas Processuais).


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Coimbra, 22 de Maio de 2019

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Direito de Autor e Direitos Conexos, 2008, págs. 301 e 302.
[2] - Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1591.