Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CÂNDIDA MARTINHO | ||
Descritores: | AMEAÇA AGRAVADA CONHECIMENTO DAS EXPRESSÕES PELA VÍTIMA DOLO | ||
Data do Acordão: | 01/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Recurso: | Leiria (Juízo Local Criminal de Leiria – J2) | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 153º, N.º 1, 155º, N.º 1 E 14º DO CÓDIGO PENAL. | ||
Sumário: | I- Para além do conhecimento e vontade de praticar o facto, o dolo no crime de ameaça terá de abranger a adequação da ameaça a provocar no ameaçado medo ou inquietação e pressupõe que o agente tenha vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do ameaçado. II- Sendo a acusação omissa quanto à vontade por parte do arguido em querer que as expressões cheguem ao conhecimento da ofendida, omissão que não pode ser colmatada através do mecanismo do art. 358º do C.P.P., impõe-se a absolvição do arguido. | ||
Decisão Texto Integral: | Relatora: Cândida Martinho 1.ª Adjunta: Rosa Pinto 2.º Adjunto: João Abrunhosa
Acordam, em conferência, os juízes da 4ªsecção penal do Tribunal da Relação de Coimbra.
I.Relatório
1. Nos presentes autos de processo comum com o nº2639/22.4T9LRA, do Tribunal da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Leiria -Juiz 2, foi proferida sentença em 26/05/2023, nos termos da qual foi decidido, para além do mais, condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido, pelos artigos 153.º,n.º1 e 155.º,n.º1, alíneas a) e c), 132.º, n.º2, alínea l), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão.
2. Inconformado com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões: (…) XXV. Em nenhum momento restou provado que o arguido tenha mandado um recado à ofendida pelo senhor Agente da PSP, tanto que o mesmo sequer percebeu com certeza algum tipo de ameaça contra a mesma, resolvendo apenas certificar para prevenir eventos futuros; XXVI. Não há um destinatário para a suposta ameaça; XXVII. Não há relação de proximidade, para que houvesse a possibilidade de se caracterizar algum tipo de ameaça, sendo ambos desconhecidos entre si; XXVIII. Além de o recorrente não ter mandado qualquer recado à ofendida, por qualquer meio, o conhecimento das frases ditas ocorreu pelo senhor Agente BB e não pelo arguido; XXIX. Não havendo a intenção de se comunicar qualquer ameaça inexiste crime; não é necessário que a ofendida tenha medo, porém, faz-se necessário que o agente queira que de alguma forma fazê-la ter conhecimento do que disse para que sinta algum tipo de receio; XXX. Não é um meio hábil para configurar o crime de ameaça o conhecimento por meio de terceiros daquilo que este ouviu numa conversa; XXXI. Numa conversa com terceiro não se pode considerar uma ameaça ainda que haja probabilidade de a pessoa vir a saber o teor; XXXII. De qualquer forma, não restou provado que a ofendida era destinatária de alguma frase que teria sido dita pelo arguido; XXXIII. O próprio conceito de ameaça pressupõe, naturalmente, que o agente tenha a vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário. Não há nos autos a mínima prova de que isso tenha acontecido e nem por suposição se pode chegar a este entendimento; XXXIV. O que há nos autos são meras presunções de que o arguido teria ameaçado a ofendida, pelo que o tribunal deveria ter feito operar o princípio do in dubio pro reo e absolver o arguido do crime de ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153.º,n.º1 e 155.º,n.º1, alíneas a) e c), 132.º, n.º2, alínea l), todos do Código Penal; XXXV. Relativamente à medida da pena, a pena aplicada de 4 meses de prisão é manifestamente excessiva; (…)”.
3. O Ministério Público na primeira instância veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência nos seguintes termos: (…) 5. Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.
6. Cumprido o artigo 417º, nº2, do CPP, não foi apresentada qualquer resposta ao parecer.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º, nº3, al.c), do diploma citado.
8. Da sentença recorrida (transcrição parcial): “A.Factos Provados: Com interesse para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos: “1. No dia 29.10.2021, pelas 09h45, em cumprimento de mandados de condução da menor CC para a casa de acolhimento residencial “...” da ... (associação de pais e educadores para a infância), emitidos no processo n.º 3612/20...., do juiz ..., do juízo de família e menores ..., o agente da Polícia de Segurança Pública ... acompanhado pela técnica da segurança social DD, deslocaram-se à Rua ..., ..., ... .... 2. Aí, o agente da P.S.P. e a técnica DD ao entrarem na residência, previamente autorizada por EE, onde se encontrava a menor CC, explicaram o objectivo da diligência – retirada da criança para acolhimento em instituição. 3. Aquando do cumprimento do mandado de condução referido em 1., a ofendida FF, gestora do processo que se encontrava no exercício de funções de técnica da segurança social, acompanhou o agente da Polícia de Segurança Pública ... e a técnica da segurança social DD, no entanto, enquanto aqueles se deslocaram à habitação identificada em 1., a ofendida permaneceu no exterior da habitação supra indicada, aguardando a entrega da criança no carro. 4. Após entrega da criança, deslocou-se à indicada habitação o arguido AA que proferiu, em voz alta e tom grave e sério, as seguintes expressões, referindo-se à técnica gestora do processo da menor FF “vou voltar lá para dentro mais três anos mas vou acabar com ela”, referindo-se à prisão e, ainda, “vou-lhe enfiar uma pistola na garganta”; as quais foram escutadas pelo agente da Polícia de Segurança Pública ... que, posteriormente, das mesmas deu conhecimento à ofendida. 5. Ao ter conhecimento das expressões proferidas pelo arguido, a ofendida FF sentiu receio, medo e inquietação pela sua vida e integridade física, ficando convicta da sua seriedade. 6. Agiu o arguido de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de utilizar tais expressões que sabia serem adequadas a produzir receio, medo e inquietação à ofendida FF, como sucedeu, sabendo que a ofendida se encontrava no exercício das suas funções de técnica da segurança social e por causa das mesmas, o que representou. 7. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Mais se provou: 8. O arguido, na data dos factos, residia com a sua companheira, GG, as filhas do casal HH e II, o companheiro da filha mais velha, EE, a filha recém-nascida deste casal, e neta do arguido. No presente, a família conta com mais dois netos, recém-nascidos, um de cada filha. A ambiência familiar é descrita pelos seus constituintes como positiva, de envolvência familiar e de entreajuda. 9. O arguido não possui qualquer referência da figura paterna nem materna. 10. O arguido possui o 2.º ano de escolaridade. 11. Desde muito novo passou a acompanhar o seu grupo familiar nas actividades de venda ambulante. O arguido é uma fonte de sustento da família, com recurso ao comércio de automóveis velhos e usados, que recupera e vende a terceiros, por valores baixos e que representa uma receita variável e inconstante. Para além desta receita, EE, companheiro da filha mais velha do arguido, contribui com parte do seu ordenado, como operário fabril, em .... No mais, são apoiados institucionalmente pelo Rendimento Social de Inserção atribuído à companheira do arguido e aos subsídios atribuídos aos menores do agregado. 12. A família assume despesas domésticas no valor de €150,00 mensais. 13. Em liberdade desde Outubro de 2021, o arguido dedica o tempo ao cuidado da sua família e assume no presente uma postura isolada do convívio social. Esta adequação pessoal é reconhecida pelos seus familiares, que o consideram ter um papel de relevo na dinâmica familiar. 14. Pelas fontes externas ao agregado familiar, é atribuído ao arguido um quotidiano voltado para a família e para o exercício de reparação e venda de automóveis. Não há registo de incidentes ou comportamentos desajustados na comunidade local. É tido como respeitador, embora por vezes com uma comunicação irreflectida, mas que não belisca a sua imagem. 15. Do Certificado de Registo Criminal do arguido constam averbadas as seguintes condenações: a) por sentença transitada em julgado em 15/09/2006 foi o arguido condenado pela prática, em 04/10/2003, de um crime de detenção ilegal de arma, na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de €3,00: b) por sentença transitada em julgado em 12/05/2006 foi o arguido condenado pela prática, em 26/04/2006, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €4,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 3 meses; c) por sentença transitada em julgado em 31/01/2007 foi o arguido condenado pela prática, em 16/01/2007, de um crime de violação de proibições ou interdições, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €4,00; d) por sentença transitada em julgado em 20/02/2008 foi o arguido condenado pela prática, em 02/02/2005, de um crime de burla qualificada, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de €5,00; e) por sentença transitada em julgado em 14/04/2008 foi o arguido condenado pela prática, em 23/05/2006, de um crime de desobediência, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 1 ano; f) por sentença transitada em julgado em 27/11/2008 foi o arguido condenado pela prática, em 15/05/2007, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 60 dias de prisão; g) por sentença transitada em julgado em 04/05/2009 foi o arguido condenado pela prática, em 08/09/2005, de um crime de abuso de confiança, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de €4,00; h) por acórdão transitado em julgado em 04/06/2009 foi o arguido condenado pela prática em 09/06/2006 de um crime de detenção ilegal de arma e de um crime de detenção de arma proibida, na pena única, de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na execução por igual período; i) por acórdão transitado em julgado em 22/07/2009 foi o arguido condenado pela prática, em 20/06/2008, de um crime de furto simples, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na execução por igual período, com regime de prova; j) por sentença transitada em julgado em 17/05/2013 foi o arguido condenado pela prática, em 06/04/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 2 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 1 ano, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 6 meses; k) por sentença transitada em julgado em 08/06/2015 foi o arguido condenado pela prática, em 28/05/2013, de um crime de desobediência, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 1 ano; l) por sentença transitada em julgado em 30/09/2015 foi o arguido condenado pela prática, em 20/07/2011, de um crime de abuso de confiança, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 dias de multa, à taxa diária de €5,00. Por despacho transitado em julgado em 30/01/2017, a multa foi substituída por 300 horas de trabalho. m) por acórdão transitado em julgado em 25/07/2019 proferido no Processo Comum Colectivo n.º 1/14.1PELRA foi o arguido condenado pela prática, em 2014, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 4 anos de prisão; n) por despacho de 09/10/2021 foi concedida a liberdade definitiva ao arguido, tendo sido perdoado o período remanescente de prisão à ordem do Processo Comum Colectivo n.º 1/14.1PELRA e declarada extinta a pena, sob a condição resolutiva de não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce a pena perdoada, artigo 2.º da Lei 9/2020, 127.º, n.º1 e 128.º,n.º 3 do Código Penal e artigo 6.º, alínea b) da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio e 12.º do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto. (…)”.
II. Fundamentação
Constituindo jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso afere-se, nos termos do artigo 412º, nº1, do CPP, pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo arguido/recorrente, as questões a decidir prendem-se com: - a nulidade da sentença por falta de fundamentação. - o erro notório na apreciação da prova. - a violação do princípio “in dúbio pro reo”. - o erro de julgamento. - a não substituição da pena de prisão por pena de multa. Porém, temos para nós que independentemente das questões suscitadas pelo recorrente, impõe-se apreciar oficiosamente uma outra, a qual se prende com um erro de direito de que padece a sentença recorrida, porquanto a materialidade fáctica aí vertida nunca permitiria responsabilizar o arguido pela prática do crime de ameaça, responsabilidade esta que de acordo com a acusação pública já estava votada ao fracasso. Com efeito, compulsada a factualidade enunciada na sentença recorrida, não vislumbramos nela a descrição de todos os elementos do tipo subjetivo do crime de ameaça, falha que já se evidenciava da descrição fáctica vertida na acusação pública, a qual veio a ser reproduzida na sentença recorrida. No que tange ao crime em apreço foram dados como provados os seguintes factos: “1. No dia 29.10.2021, pelas 09h45, em cumprimento de mandados de condução da menor CC para a casa de acolhimento residencial “...” da ... (associação de pais e educadores para a infância), emitidos no processo n.º 3612/20...., do juiz ..., do juízo de família e menores ..., o agente da Polícia de Segurança Pública ... acompanhado pela técnica da segurança social DD, deslocaram-se à Rua ..., ..., ... .... 2. Aí, o agente da P.S.P. e a técnica DD ao entrarem na residência, previamente autorizada por EE, onde se encontrava a menor CC, explicaram o objectivo da diligência – retirada da criança para acolhimento em instituição. 3. Aquando do cumprimento do mandado de condução referido em 1., a ofendida FF, gestora do processo que se encontrava no exercício de funções de técnica da segurança social, acompanhou o agente da Polícia de Segurança Pública ... e a técnica da segurança social DD, no entanto, enquanto aqueles se deslocaram à habitação identificada em 1., a ofendida permaneceu no exterior da habitação supra indicada, aguardando a entrega da criança no carro. 4. Após entrega da criança, deslocou-se à indicada habitação o arguido AA que proferiu, em voz alta e tom grave e sério, as seguintes expressões, referindo-se à técnica gestora do processo da menor FF “vou voltar lá para dentro mais três anos mas vou acabar com ela”, referindo-se à prisão e, ainda, “vou-lhe enfiar uma pistola na garganta”; as quais foram escutadas pelo agente da Polícia de Segurança Pública ... que, posteriormente, das mesmas deu conhecimento à ofendida. 5. Ao ter conhecimento das expressões proferidas pelo arguido, a ofendida FF sentiu receio, medo e inquietação pela sua vida e integridade física, ficando convicta da sua seriedade. 6. Agiu o arguido de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de utilizar tais expressões que sabia serem adequadas a produzir receio, medo e inquietação à ofendida FF, como sucedeu, sabendo que a ofendida se encontrava no exercício das suas funções de técnica da segurança social e por causa das mesmas, o que representou. 7. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. (…)”. Em face desta factualidade, concluiu-se na sentença recorrida que a mesma era suscetível de integrar a prática pelo arguido de um crime de ameaça agravada, previsto e punido, pelos artigos 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1,alínea a) e c), e 132.º,n.º2, alínea l), todos do Código Penal. Como nela se fez constar: “Atenta a factualidade apurada concluímos que as expressões dadas como provadas (“vou voltar lá para dentro mais três anos mas vou acabar com ela”, e, ainda, “vou-lhe enfiar uma pistola na garganta”), proferidas pelo arguido, referindo-se à Técnica Gestora do Processo FF (que veio a ter conhecimento das mesmas), e considerando o contexto em que foram proferidas, são objectivamente idóneas a causar medo e inquietação no visado, o que o arguido bem sabia, mesmo assim actuando. A ameaça em questão é adequada e idónea a intimidar qualquer pessoa, tendo em conta, desde logo, as circunstâncias em que foi proferida. Verifica-se, portanto, atenta a matéria de facto provada, que se encontram preenchidos todos os elementos do tipo quer objectivo quer subjectivo, do crime de ameaça. Ou seja, face aos factos provados não restam dúvidas de que o arguido, ao actuar da forma supra descrita, praticou o ilícito que lhe vinha imputado, na forma agravada. A ameaça efectuada traduz-se na ameaça da prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos ( artigo 155.º,n.º1, alínea a) do Código Penal) e face aos factos provados mostra-se também preenchida a alínea c) do artigo 155.º, por referência à alínea l) do artigo 132.º do Código de Processo Penal Inexistem circunstâncias susceptíveis de afastar a ilicitude ou a culpa. Pelo exposto, conclui-se que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de ameaça agravada, previsto e punido, pelos artigos 153.º, n.º1 e 155.º,n.º1,alínea a) e c), e 132.º,n.º2, alínea l), todos do Código Penal”. Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a conclusão a que chegou o tribunal recorrido. Ora, são pressupostos objetivos do crime em apreço: - Que o agente ameace outra pessoa – o que pressupõe que chegue ao conhecimento do destinatário - com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor. Visando o crime de ameaça a tutela penal da liberdade de decisão e de ação do destinatário, ou seja, da pessoa ameaçada, o conhecimento por parte desta é elemento integrante do tipo objetivo do ilícito de ameaça: “Quem ameaçar outra pessoa” (Ac. da Relação de Évora, de 26/6/2018, proc.145/17.8GESLV.E1). - Que a ameaça seja adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Não é necessário que o destinatário tenha efetivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª ed. atualizada, pág.602º). No que tange ao elemento subjetivo, o mesmo pode ser preenchido por qualquer modalidade de dolo. Porém, para além do conhecimento e vontade de praticar o facto, o dolo terá de abranger a adequação da ameaça a provocar no ameaçado medo ou inquietação e, pressupõe, que o agente tenha vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do ameaçado (Acórdãos da Relação de Lisboa de 25/2/2015, proferido no processo 1193/12.0GAMAI.P1 e de 18/9/2018, proferido no processo 1453/15.8S5LSB). Se é certo que se encontra descrito na acusação pública e também na sentença recorrida, que o arguido agiu com o propósito concretizado de proferir as expressões em causa, as quais sabia serem adequadas a produzir receio, medo e inquietação à ofendida, expressões essas que acabaram por chegar ao conhecimento desta por terceira pessoa, a verdade é que em momento algum nela se fez constar que o arguido quando as proferiu tinha vontade que as expressões em causa chegassem ao conhecimento daquela (destinatária das expressões). De facto, se o conhecimento da ameaça por parte do destinatário, ou seja, da pessoa ameaçada, é elemento constitutivo do tipo, claro está que o dolo tem de abranger esse conhecimento - o agente tem de querer que as expressões ameaçadoras cheguem ao conhecimento do seu destinatário, pois só assim se mostram preenchidos os elementos subjetivos do crime. O dolo essencial à perpetração do crime de ameaça, que tem de abranger todos os elementos do tipo objetivo, depende do conhecimento e vontade por parte do arguido que as palavras ameaçadoras proferidas cheguem ao conhecimento do visado com essas palavras, sob qualquer das formas previstas no artigo 14º do Código Penal (Ac. da Relação de Évora, já citado). Como referiu Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Pág.351, “o próprio conceito de ameaça pressupõe, naturalmente, que o agente tenha a vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário”. Ora, se é verdade que a comprovação de tal vontade é suscetível de poder ser inferida através de outros factos provados, com recurso a presunções naturais, à luz do princípio da normalidade ou das regras da experiência comum, tal não implica que seja admissível prescindir da narração dos factos que consubstanciam o dolo. Aliás, tendo em conta a jurisprudência fixada no Ac. do STJ nº 1/2015, de 20/11/2014, DR nº 18, I Série, de 27/01/2015, “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP”. No caso vertente, a acusação pública é totalmente omissa quanto à vontade por parte do arguido em querer que as expressões cheguem ao conhecimento da ofendida (atente-se nos 4º,5º e 6º, parágrafos da acusação pública), omissão essa que mantendo-se na sentença recorrida e não sendo suscetível de poder ser colmatada através do mecanismo do artigo 358º, impõe forçosamente à absolvição do arguido, com a consequente revogação da sentença recorrida.
III. Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4º secção do Tribunal da Relação de Coimbra em revogar a decisão recorrida, com a consequente absolvição do arguido, ora recorrente, do crime que lhe vem imputado.
Sem custas.
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