Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOSÉ EDUARDO MARTINS | ||
Descritores: | DEBATE INSTRUTÓRIO ENCERRAMENTO JUNÇÃO DE DOCUMENTOS | ||
Data do Acordão: | 05/12/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE CANTANHEDE – 1º J | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 302º, 2,308º CPP | ||
Sumário: | 1. O encerramento do debate instrutório não constitui limite temporal inultrapassável da junção de todo e qualquer documento (que constitua elemento de prova), ainda que superveniente. 2. O artigo 308.º, n.º 1, do CPP, deve ser interpretado no sentido de que, até à decisão final da instrução, é admissível a junção de meios de prova documental que o interessado não teve possibilidade de fazer uso durante o debate instrutório e que não eram do seu conhecimento. | ||
Decisão Texto Integral: | A - Relatório: 1. Nos Autos de Inquérito n.º 32/07.8TACNT (Serviços do Ministério Público de Cantanhede – Unidade de Apoio), o Ministério Público, em 30/4/2008, deduziu acusação, em processo comum e com a intervenção de tribunal singular, contra A..., imputando-lhe a prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do Código Penal. 2. O arguido, em 3/6/2008, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, al. a), do CPP, veio requerer a abertura de instrução, defendendo que o conteúdo da acusação carece de fundamento, devendo, por isso, serem os autos arquivados. 3. A instrução foi declarada aberta, por despacho de 13/6/2008. Encerrada a instrução, foi o arguido, em 20/2/2009, pronunciado, enquanto autor material de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do Código Penal, nos seguintes termos: “(…) V Decisão Para ser julgado em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular pronuncio: A..., casado, engenheiro civil, residente na Rua …., Coimbra, Pelos factos a seguir descritos: O arguido, desde … que exerce funções na Câmara Municipal de Cantanhede e, desde …, as funções de Director…, funções essas que consistem em dirigir, planear, apreciar e emitir informações e pareceres sobre licenciamentos de obras particulares, para posteriormente serem submetidos a aprovação por parte da Câmara Municipal de Cantanhede. Em 1971, a Câmara Municipal de Cantanhede aprovou um alvará de loteamento com o número 2/71, o qual se mantém válido, conforme informação de fls. 190, onde a área de construção resultava livre depois de aplicados os afastamentos laterais de 3,0 metros, afastamento posterior de 5,0m e afastamento frontal à berma de 10m, o que na realidade traduz um índice de ocupação da ordem dos 65%. Em 10 de Maio de 2004, deu entrada na Câmara Municipal de Cantanhede um pedido de licenciamento em nome de M..., para construção de uma moradia num lote que confronta a sul com J..., tendo dado origem ao processo de obras n.º 1427/04. Tal construção foi autorizada, em 30 de Junho de 2004, devidamente enquadrada no loteamento com o n.º 2/71, mas em divergência com o mesmo no que concerne aos afastamentos laterais. Tendo o arguido justificado o desrespeito pelo alvará n.º 2/71 com as “inúmeras alterações que o mesmo sofreu”, cfr. Fls. 161. Com tal justificação, o arguido violou os deveres de isenção e imparcialidade que estão subjacentes ao cargo que exerce em benefício de M..., permitiu que fosse autorizada a construção da referida habitação, com desrespeito pelas regras impostas pelo referido alvará, as quais estava obrigado a respeitar e que tinha contribuído para tal, apesar de ter sido alertado para tal facto pelo munícipe J…, justificou a sua decisão com base numa informação técnica do processo. Agiu o arguido de forma livre e consciente bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punida pela lei penal. Pelo exposto, incorreu o arguido na prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do Código penal. Prova: (…)” 4. Na sequência do alegado despacho de pronúncia, o arguido, em 3/3/2009, veio, nos termos do artigo 669.º, n.º 1, al. a), do CPC, aplicável por força do artigo 4.º, do CPP, formular o seguinte pedido de esclarecimento: “Por que razão não valorou a decisão instrutória o acórdão do TAF de Coimbra que, apreciando a questão administrativa que subjaz à decisão de pronúncia do ora requerente, considerou válido e legal o acto que determinou a pronúncia do ora requerente, no pressuposto de que o mesmo era ilegal, nem sequer mencionando esse acórdão nas diligências realizadas em sede de instrução?” 5. Em 1/4/2009, foi proferido, a fls. 378, como resposta ao dito requerimento, o seguinte despacho: “Esclarece-se que o documento não foi valorado porque não se encontrava junto aos autos. De qualquer modo, ainda que o estivesse, como bem sublinha o Digno Magistrado do Ministério Público, o facto é que o debate instrutório teve lugar em 14 de Janeiro e o arguido não requereu a realização de qualquer diligência de prova complementar, ficando-lhe, assim, vedado o direito de, na fase de instrução, apresentar outras provas em momento posterior. Notifique, sendo o arguido com cópia da informação de fls. 376 para integral esclarecimento.” 6. Inconformado com o citado despacho e a decisão final da instrução, veio o arguido, em 19/5/2009, recorrer dos mesmos, apresentando as seguintes conclusões: A) No caso objecto dos presentes autos, o requerente declarou, em sede de debate instrutório, que não tinha outras diligências a requerer, pois, nesse momento, não tinha conhecimento da decisão proferida pelo TAF de Coimbra sobre o caso concreto, objecto dos presentes autos, dado que, por causa do deferimento do pedido de licenciamento entrado em nome de M..., para construção de uma moradia num lote que confronta a sul com J... e que deu origem ao processo de obras n.º 1427/04, este J... apresentou simultaneamente uma queixa-crime no Ministério Público de Cantanhede e uma acção administrativa especial contra o Município de Cantanhede, a que foi dado o n.º 198/05.1BECBR, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra. B) Essa acção foi decidida por acórdão de 13 de Janeiro de 2009, mas que só foi notificado ao mandatário do município de Cantanhede em 19 de Janeiro seguinte, ou seja, para além da data em que se realizou o debate instrutório. C) O Mº. Juiz, usando da faculdade conferida pelo artigo 307.º, n.º 3, do CPP, adiou a leitura da decisão instrutória para mais tarde, ou seja, para o dia 28 de Janeiro e depois para o dia 22 de Fevereiro, mas, nesse intervalo, foi junta cópia do acórdão, embora com alguma dificuldade, originada pela recepção via internet no Tribunal de Cantanhede, que não é muito compreensível. D) O M.º Juiz declarou expressamente que “ o documento não foi valorado porque não se encontrava junto aos autos. De qualquer modo, ainda que o estivesse, como bem sublinha o Digno Magistrado do Ministério Público, o facto é que o debate instrutório teve lugar em 14 de Janeiro e o arguido não requereu a realização de qualquer diligência de prova complementar, ficando-lhe assim vedado o direito de, na fase de instrução, apresentar outras provas em momento posterior.” E) Aparentemente, não regula a lei a possibilidade de alegar factos novos e juntar novas provas entre o encerramento do debate instrutório e o momento em que é proferida a decisão instrutória. F) No caso presente, trata-se da junção de uma decisão judicial que, para além de confirmar a legalidade do acto praticado com fundamento no parecer do ora recorrente, retira um dos pressupostos do crime que lhe é imputado, ou seja, que tenha havido para o requerente do licenciamento um benefício ilegítimo. G) Convém ter presente que a pronúncia se propõe dar consistência a uma decisão meramente processual de fazer ou não prosseguir um processo até julgamento, decisão essa que se basta com prova meramente indiciária (artigos 301.º, n.º 3, 302.º, n.º 4, 308.º, n.º 1, do CPP). H) Deve ter-se presente que “A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não, em certas circunstâncias, mesmo, um vexame” e que “no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (artigo 3.º daquela Declaração e 27.º, da constituição da República)”. I) “Quer a doutrina quer a jurisprudência vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação uma possibilidade mais positiva que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.” J) Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado: são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado. K) Por força do princípio constitucional do in dubio pro reo, entende o Tribunal Constitucional que, apesar de não ter concluído pela inconstitucionalidade da irrecorribilidade do despacho de pronúncia, nos casos do artigo 310.º, do CPP, não deixa de reconhecer um direito do arguido de não ser submetido a julgamento no caso de não existirem indícios suficientes, como manifestação da presunção de inocência (cf. Acórdão n.º 226/97, em BMJ n.º 465, páginas 140 e seguintes). L) Assim, a exacta interpretação do conceito de indícios suficientes e das exigências normativas quanto à fundamentação em que se apoia o despacho de pronúncia é de essencial relevância para a orientação seguida pelo Tribunal Constitucional. M) A ulterior possibilidade de, no julgamento, se infirmar a acusação e a garantia de respeito pela presunção de inocência nessa última fase do processo não são suficientes para dar conteúdo à garantia de não ser submetido a julgamento em face de uma acusação que provavelmente não conduzirá a uma condenação. É a expressão concreta, nessa fase, da presunção de inocência que impõe uma tal conclusão. N) É aqui que entra a interpretação a dar ao n.º 1, do artigo 308.º, do CPP, ou seja, que o encerramento da instrução só ocorre com a decisão de pronúncia ou não pronúncia e até este momento é lícito ao requerente da instrução juntar documentos, sobretudo um documento que é claramente DECISIVO sobre um dos pressupostos do crime de abuso de poder pelo qual vem acusado. O) A presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, tem como manifestação, nos termos referidos pelo Tribunal Constitucional, o reconhecimento do direito do arguido de não ser submetido a julgamento no caso de não existirem indícios suficientes ou como é o caso de se reconhecer que falta claramente um dos pressupostos. P) A sentença do Tribunal Administrativo de Coimbra reconhece que o acto administrativo de licenciamento da construção de uma moradia num lote que confronta a sul com J..., licenciamento esse requerido por M... e que deu origem ao processo de obras n.º 1427/04, é um licenciamento legal, pelo que desaparece o acto ilegítimo que é pressuposto do crime de abuso de poder. Q) Porque a decisão provém do órgão que, no sistema jurídico português, tem competência para declarar a legalidade dos actos administrativos, sem que aos tribunais de outra espécie seja conferida a possibilidade de, mesmo como questão incidental, pôr em causa essa declaração de legalidade, não se coloca a questão prejudicial e consequentemente a questão da suficiência do processo penal. R) Deve, por isso, o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, ser interpretado no sentido de que, até à decisão final da instrução, são admissíveis, pelo menos, os meios de prova documental que a parte não teve possibilidade de fazer uso durante o debate instrutório e que não eram do seu conhecimento. S) A decisão recorrida é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, nos termos enunciados pelo Tribunal Constitucional. T) Consequentemente, deve ser revogada a decisão recorrida e ordenado ao tribunal recorrido que profira nova decisão, tendo em conta o documento que foi junto pelo arguido. U) A presente decisão é recorrível, apesar do disposto na parte final do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, por esta norma constituir uma violação do direito de defesa legalmente atribuído ao cidadão e que está garantido constitucionalmente – o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) – e, ainda, nos termos do n.º 2, do artigo 20.º, da nossa Lei Fundamental, “a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos”. V) A negação do direito de recorrer da decisão que lhe é desfavorável quanto à admissão dos meios de prova é inconstitucional, pois não se pode privar o ora requerente, dado que se situa para além das restrições admissíveis, como resulta dos acórdãos do Tribunal Constitucional, pelo que deve ser admitido o presente recurso. X) Pelo exposto e porque a decisão recorrida não considerou o acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que considerou legal o acto administrativo, cuja ilegitimidade é fundamento da acusação do ora requerente/recorrente, violou essa decisão o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, devidamente interpretado em conformidade com o princípio constitucional da presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, da Constituição da República, pelo que deve ser anulada e ordenado que o tribunal recorrido profira nova decisão, tendo em conta esse concreto meio de prova, pois só assim se cumprirá e fará JUSTIÇA. **** 7. O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou, em 29/6/2009, a seguinte resposta: “Vem o arguido recorrer da decisão proferida a fls. 378, onde se refere que o arguido no decurso do debate instrutório não requereu a realização de qualquer diligência suplementar de prova, ficando-lhe assim vedado o direito de, na fase de instrução, apresentar outras provas em momento posterior. Para tanto, alega, em síntese, que: (…) Dispõe o artigo 307.º, do CPP, no seu n.º 1, que “Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificados aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento da abertura da instrução.” E continua no seu n.º 3, “Quando a complexidade da causa em instrução o aconselhar, o juiz, no acto de encerramento do debate instrutório, ordena que os autos lhe sejam conclusos a fim de proferir, no prazo máximo de 10 dias, o despacho de pronúncia ou não pronúncia. Nesta caso, o juiz comunica de imediato aos presentes a data em que o despacho será lido, sendo correspondentemente aplicável o disposto na segunda parte do n.º 1.” Pelo que constitui limite temporal inultrapassável da junção de todo e qualquer documento (que constitua elemento de prova) o encerramento do debate instrutório – v. Artigo 302.º, n.º 2, do CPP. Por outro lado, também não se poderá dizer que a decisão recorrida é inconstitucional porque viola o princípio da presunção de inocência e lhe veda o direito à sua defesa. Dispõe o artigo 315.º, do CPP, que o arguido apresenta, querendo, a contestação, o rol de testemunhas e com ela a lista das demais provas, isto é, os meios de prova e de obtenção de prova cuja produção ou exame são requeridos e os factos que através deles se espera provar. Por último, quanto à alegada inconstitucionalidade da negação do direito de recorrer, diremos que o tribunal constitucional já se pronunciou sob tal questão e não considerou o artigo 310.º, do CPP, inconstitucional, já que tal preceito não viola a Constituição. Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso interposto pelo arguido não merece provimento pelos motivos invocados. V. Exªs, porém, e como sempre, decidirão como for de Justiça.” 8. O recurso foi, em 9/9/2009, admitido. 9. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 9/12/2009, emitiu douto parecer no qual defendeu que o recurso deve ser rejeitado, quanto ao despacho de pronúncia, e que, quanto ao despacho intercalar de fls. 378, o mesmo apenas deverá subir a final, ou, caso assim se não entenda, que devem ambos ser julgados improcedentes.
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