Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CATARINA GONÇALVES | ||
Descritores: | ALIMENTOS MAIORIDADE LEGITIMIDADE ACTIVA SUB-ROGAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 07/01/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 5º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 592º DO CC | ||
Sumário: | I – O filho, sendo titular e beneficiário das prestações de alimentos a que estava obrigado o seu progenitor durante a sua menoridade e tendo adquirido a maioridade e a plena capacidade de exercício dos seus direitos, terá, em princípio, legitimidade para reclamar e exigir o pagamento dessas prestações. II – Tal legitimidade poderá, no entanto, ser reconhecida ao progenitor que conviveu com o filho durante a sua menoridade caso tenha suportado integralmente as despesas com o sustento e educação do menor e se deva concluir, por essa razão, que, tendo cumprido a obrigação que recaía sobre o outro progenitor, fica sub-rogado no direito do filho (art. 592º do C.C.). III – Apresentando-se o filho (agora maior) a reclamar o pagamento daquelas prestações, sem que tenha sido invocada qualquer sub-rogação a favor do seu progenitor e sem que tenham sido alegados ou constem dos autos quaisquer elementos que apontem para a existência dessa sub-rogação, não existe fundamento para considerar que o mesmo não tenha legitimidade para esse efeito. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. A..., residente em (...), Luxemburgo, veio deduzir incidente de incumprimento de prestação de alimentos, nos termos do art. 189º da OTM, contra o seu progenitor, B..., residente na Rua (...), Monte Real. Alega que atingiu a maioridade em 08/07/2012 e que o Requerido nunca liquidou a prestação de alimentos, no valor de 83,33€, devida ao Requerente e a cujo pagamento ficou obrigado a partir de Agosto de 2004, por força de sentença proferida em processo de regulação do poder paternal. Alega que as prestações vencidas até à sua maioridade ascendem a 5.833,38€, a que acrescem os juros de mora que, até à data, ascendem a 326,73€ e, com esses fundamentos, requer a realização das diligências necessárias com vista à efectivação do pagamento daquela quantia.
Por decisão proferida em 21/11/2013, foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade do Requerente – por se ter considerado que o Requerente não tem legitimidade para, em seu próprio nome, instaurar o presente incidente, pertencendo essa legitimidade aos pais ou ao curador do menor – e, em conformidade, foi o Requerido absolvido da instância.
Inconformado com tal decisão, veio o Requerente interpor o presente recurso de apelação, cujo objecto sintetizou através das seguintes conclusões: a) A lei portuguesa não confere legitimidade para a representação do interesse dos filhos apenas aos pais ou a um curador especial de menores; b) A legitimidade dos pais para representar os filhos e administrar os seus bens está limitada no tempo, isto é, até que os filhos atinjam a maioridade ou a emancipação c) O artº. 181º., nº. 1 da OTM fixa a legitimidade de um dos pais para requerer as diligências necessárias para o cumprimento coercivo da obrigação incumprida, relativamente à situação do menor; d) Atingida a maioridade, passa a caber ao filho a legitimidade ativa para agir (se assim o entender) contra o pai faltoso, perante o título executivo formado a seu favor no decurso da sua menoridade, sendo ele o titular das prestações de alimento iure próprio; e) A legitimidade do progenitor, a quem o menor esteve confiado, pode advir-lhe do facto de ter pago as prestações alimentares em falta, por sub-rogação, se alegar que lhe assegurou o sustento, para além da quota-parte que lhe incumbia; f) Ao julgar o ora recorrente parte ilegítima nestes autos, a sentença de que se recorre violou as disposições conjugadas dos artºs. 1878º., 1877º., 1881º. e 130º. do CC e 189º. e 181º. Da OTM, por errada interpretação. Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por uma outra que julgue o recorrente parte legítima nestes autos.
Não foram apresentadas contra-alegações. /////
II. Questão a apreciar: Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o Apelante, tendo atingido a maioridade, tem ou não legitimidade para reclamar o pagamento das prestações de alimentos que lhe eram devidas e que se venceram até à sua maioridade. /////
III. Considerou a decisão recorrida que o Requerente, não obstante ter atingido a maioridade, não tem legitimidade para instaurar o presente incidente, baseando-se no disposto no art. 181º, nº 1, da OTM, do qual resultaria que a legitimidade para instaurar o incidente de incumprimento a que se reporta a norma citada pertence apenas aos pais ou ao curador do menor. Não nos parece, porém, que a questão possa ser analisada dessa forma simplista e com base numa leitura formal e literal do preceito em análise que, ao que nos parece, está formulado no pressuposto de que está em causa um menor (como sucede, por regra) a quem a lei não reconhece capacidade para o exercício dos seus direitos (cfr. art. 123º do CC). Mas, estando em causa uma pessoa maior, que dispõe de plena capacidade para o exercício dos seus direitos, para reger a sua pessoa e para dispor dos seus bens (cfr. art. 130º do CC), existirá fundamento legal para considerar que, não obstante esse facto, não tem legitimidade para exigir o cumprimento das prestações de alimentos que lhe eram devidas e que se venceram durante a sua menoridade? A questão não tem merecido resposta uniforme da nossa jurisprudência. Podemos, de facto, encontrar decisões que apontam, aparentemente, para a legitimidade exclusiva do progenitor. Veja-se, designadamente, o Acórdão da Relação de Coimbra de 28/01/2014[1], onde se diz que “as prestações vencidas durante a menoridade não se convertem em crédito próprio do filho após a maioridade deste, mantendo o progenitor a quem o menor ficou confiado legitimidade, em nome próprio ou em representação do filho, para as exigir do outro progenitor” e o Acórdão do STJ de 25/03/2010[2] onde se considerou (embora com um voto de vencido) que, não obstante o facto de o menor ser o beneficiário da prestação alimentar, é o progenitor a quem foi confiado que goza da titularidade dessa prestação e que, como tal, é esse progenitor, e apenas ele, quem pode reclamar ou renunciar à exigência dessas prestações vencidas, sem as quais proporcionou ao menor as condições de vida que teve por convenientes ou possíveis, mais considerando que essas prestações, dada a natureza da obrigação alimentar relativa a menor a expensas do progenitor, não se apresentam como convertíveis em crédito próprio do filho após a maioridade deste. Outras decisões poderemos encontrar que, sem excluir a legitimidade do progenitor (com fundamento em sub-rogação legal), consideram que o filho, tendo atingido a maioridade, tem legitimidade para exigir o pagamento daquelas prestações, como é o caso, designadamente, dos Acórdãos da Relação do Porto de 16/01/2014 e 15/01/2013 e da Relação de Coimbra de 12/06/2012[3]. Pelas razões que passamos a enunciar, propendemos para a solução sustentada nos últimos Acórdãos citados. Parece-nos indiscutível que o titular e beneficiário das prestações de alimentos é o filho; é ele o credor dos alimentos e é em função das suas concretas necessidades e da sua eventual capacidade para suportar, com o produto do seu trabalho ou outros rendimentos, as despesas com o seu sustento, segurança, saúde e educação que se determina a obrigação de prestar alimentos e o valor dessa prestação (cfr. 1874º, 1878º, 1879º, 2003º e 2004º do C.C.). É evidente que, estando em causa um menor, o mesmo não tem capacidade para exercer os seus direitos e, como tal, cabe aos progenitores, no âmbito do poder de representação do filho que está incluído nas suas responsabilidades parentais, exercer tais direitos em nome e em representação do filho e, estando em causa uma prestação de alimentos devida por um progenitor, caberá ao progenitor que convive com o filho reclamar do outro as prestações de alimentos devidas ao menor, tal como lhe cabe gerir essas prestações, dispondo do respectivo valor com vista à efectiva satisfação das necessidades (do menor) a que as mesmas se destinam. Mas, o poder de representação dos progenitores cessa com a maioridade (cfr. art. 1877º do CC), pelo que, a partir desse momento, nenhum dos progenitores poderá exercer qualquer direito que pertença ao filho, cabendo a este o exercício dos seus próprios direitos. E, nessa perspectiva, parece que, tendo atingido a maioridade, caberia exclusivamente ao filho a legitimidade para reclamar o pagamento das prestações de alimentos (das quais era titular e beneficiário) que se venceram durante a sua menoridade e não foram pagas oportunamente, já que, estando em causa um direito próprio, dificilmente se poderia admitir que fosse outrem a exercer esse direito à sua revelia e contra a sua vontade. A questão não é, porém, linear. De facto, estando em causa uma prestação que se destina a assegurar as despesas com o sustento e educação do menor, o que acontece, por regra, é que, em caso de incumprimento dessa prestação por parte do progenitor a ela obrigado, tais despesas acabam por ser suportadas, na totalidade, pelo progenitor que convive com o menor e, nessa medida, este progenitor, suportando tais despesas além da parte que lhe competia, acaba por cumprir a prestação de alimentos que ao outro incumbia. Daí que, como refere Remédio Marques[4], “embora as prestações caibam iure proprio ao filho (in casu, maior de 18 anos), o progenitor convivente, que tenha custeado (total ou parcialmente) as despesas de sustento e a manutenção que ao outro obrigavam, possa sub-rogar-se nos direitos (de crédito) do filho”. E é com fundamento nesta sub-rogação legal que as decisões supra mencionadas concluem pela legitimidade do progenitor para reclamar as prestações vencidas durante a menoridade do filho, ainda que este já tenha, entretanto, atingido a maioridade. Concordamos, plenamente, com a atribuição dessa legitimidade ao progenitor, caso seja permitido concluir pela existência de sub-rogação, já que, neste caso, o progenitor não está a actuar em representação do filho (sendo certo que já não tem qualquer poder legal de representação do filho que, entretanto, atingiu a maioridade), actuando em seu nome e no exercício de um direito próprio (que lhe é legalmente conferido – art. 592º do C.C.). Parece-nos, porém, não poder considerar-se – como se considerou na decisão recorrida (e como consideram, aparentemente, algumas das decisões supra mencionadas) – que a legitimidade para reclamar essas prestações pertença sempre, e exclusivamente, ao progenitor com quem o filho (agora maior) conviveu durante a sua menoridade. De facto, estando em causa, como se referiu, um direito próprio do filho – direito que o progenitor já não pode exercer por via dos poderes de representação que cessaram com a maioridade –, o progenitor só poderá reclamar aquelas prestações por via da sub-rogação e esta pressupõe – como decorre do disposto no art. 592º do CC. – que ele tenha cumprido a obrigação que incumbia ao outro progenitor e que deveria ter sido concretizada pelo pagamento das aludidas prestações. Ora, embora se possa admitir que seja isso que acontece, na generalidade dos casos (já que, por regra, será, naturalmente, o progenitor que vive com o menor a suportar todas as despesas, cumprindo a obrigação de alimentos que incumbia ao outro progenitor), a verdade é que tal não acontece necessariamente e, se nada for alegado nesse sentido, não nos será permitido presumir que assim tenha sucedido, ao ponto de negar a legitimidade do titular originário do direito para reclamar e exigir a sua satisfação. De facto, o incumprimento da prestação de alimentos por parte do progenitor a ela obrigado nem sempre determina que o outro progenitor cumpra além daquilo a que estava obrigado; por vezes, o incumprimento daquela prestação implica apenas que o filho fique privado da satisfação integral das suas necessidades ou abdique de algumas das despesas que aquelas prestações se destinavam a satisfazer; outras vezes, a falta dessas prestações poderá ser suprida com o trabalho do próprio menor ou com o auxílio prestado por terceiras pessoas e, nestas situações, não podendo afirmar-se que o outro progenitor contribuiu para a satisfação das necessidades do filho além daquilo a que estava obrigado, não será legítimo concluir que cumpriu a obrigação que incumbia ao outro progenitor e que, nessa medida, pode ficar sub-rogado nos direitos do filho para exigir o cumprimento daquela obrigação. Parece-nos, portanto, que, estando em causa uma pessoa maior, com total e plena capacidade para o exercício dos seus direitos, não lhe poderá, em princípio, ser negada legitimidade para exigir o cumprimento das prestações que lhe eram devidas pelo progenitor durante a sua menoridade, porquanto está em causa um direito próprio que a ele cabe exercer, sem prejuízo de tal legitimidade também poder ser conferida ao progenitor que conviveu com o filho durante a menoridade, por via do instituto da sub-rogação, desde que tenha cumprido a obrigação que cabia ao outro progenitor, suportando integralmente as despesas com o sustento e educação do menor a cuja satisfação aquelas prestações se destinavam. No caso sub judice, o Requerente, tendo atingido a maioridade e tendo adquirido plena capacidade para exercer os seus direitos, apresentou-se a reclamar o pagamento das prestações de alimentos que lhe eram devidas pelo progenitor durante a sua menoridade; o Requerente apresentou-se, portanto, a exercer um direito próprio, cuja titularidade lhe pertence; nada foi alegado e nada consta dos autos que permita afirmar que a sua progenitora tenha satisfeito, de algum modo, essas prestações e que, por via dessa satisfação, tenha adquirido o direito de se sub-rogar nos direitos do filho para o efeito de ser ela a única pessoa legitimada a reclamar do progenitor devedor o cumprimento daquelas prestações. Não encontramos, portanto, qualquer fundamento para concluir – como concluiu a decisão recorrida – que a legitimidade para deduzir o presente incidente e para reclamar tais prestações pertence exclusivamente à progenitora do Requerente, não obstante o facto de este ser maior e com plena e total capacidade para o exercício dos seus direitos.
E, como tal, não poderemos deixar de revogar a decisão recorrida. ******
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção): I – O filho, sendo titular e beneficiário das prestações de alimentos a que estava obrigado o seu progenitor durante a sua menoridade e tendo adquirido a maioridade e a plena capacidade de exercício dos seus direitos, terá, em princípio, legitimidade para reclamar e exigir o pagamento dessas prestações. II – Tal legitimidade poderá, no entanto, ser reconhecida ao progenitor que conviveu com o filho durante a sua menoridade caso tenha suportado integralmente as despesas com o sustento e educação do menor e se deva concluir, por essa razão, que, tendo cumprido a obrigação que recaía sobre o outro progenitor, fica sub-rogado no direito do filho (art. 592º do C.C.). III – Apresentando-se o filho (agora maior) a reclamar o pagamento daquelas prestações, sem que tenha sido invocada qualquer sub-rogação a favor do seu progenitor e sem que tenham sido alegados ou constem dos autos quaisquer elementos que apontem para a existência dessa sub-rogação, não existe fundamento para considerar que o mesmo não tenha legitimidade para esse efeito. /////
IV.
Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora) Maria Domingas Simões Nunes Ribeiro
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