Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
278/17.0PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO
CÚMULO JURÍDICO DAS PENAS
PENA DE PRISÃO
PENA DE MULTA EXTINTA
Data do Acordão: 09/27/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 77.º E 78.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – Só se podem cumular juridicamente penas relativas a infracções que estejam em concurso e tenham sido praticadas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, pois o artigo 78.º do Código Penal não pode ser interpretado cindido do artigo 77.º do mesmo diploma.

II – Ou seja, a realização de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de concurso de crimes tem lugar quando, posteriormente à condenação no processo de que se trata – o da última condenação transitada em julgado -, se vem a verificar que o agente, antes de tal condenação, praticou outro ou outros crimes aplicando-se, ao caso, o disposto nos artigos 77.º, n.º 2, e 78.º, n.º 1, do Código Penal.

III – O cúmulo jurídico sequente a conhecimento de novo crime, que se integre no concurso, abrange as penas já cumpridas ou extintas pelo cumprimento, procedendo-se, após essa inclusão, ao desconto da pena já cumprida no cumprimento da pena única que venha a ser fixada, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal.

IV – É de bom senso, e em nome dos interesses do arguido, não integrar no cúmulo jurídico uma condenação em pena de multa já extinta em data anterior ao trânsito em julgado do processo relevante para a realização de cúmulo jurídico, quando as demais penas aplicadas nos processos a considerar são de prisão, pois que nunca aquela pena determinaria a realização de qualquer desconto.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
           1. O DESPACHO RECORRIDO

… foi proferido despacho com a referência n.º 91635098, datado de 23 de Junho de 2023, com o seguinte teor (transcrição): 
«Veio o TEP de Coimbra solicitar informação sobre se se está a diligenciar pela realização do cúmulo jurídico das penas aplicadas ao condenado no presente processo 278/17.... e no processo 179/15.....
O Ministério Público, junto deste Juízo, pronunciou-se no sentido de que existe uma situação de conhecimento superveniente de concurso de penas apenas entre os processos 294/16.... e 179/15...., para o que é competente este último, …,
Conferido contraditório ao arguido, pronunciou-se no sentido de que há lugar a situação de cúmulo jurídico entre o presente processo 278/17.... e os processos 294/16.... e 179/15.... …
Nos termos do disposto nos art.ºs 77.º e 78.º, do Código Penal, para verificação de uma situação de concurso de infracções a punir por uma única pena, exige-se, desde logo, que as várias infracções tenham, todas elas, sido cometidas antes de ter transitado em julgado a condenação imposta por qualquer uma delas, ou seja, o trânsito em julgado da condenação imposta por uma dada infracção obsta a que, com essa infracção ou com outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, conforme, aliás, tem sido uniformemente decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Daí que, como também tem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, o cúmulo dito por arrastamento não só contraria os pressupostos substantivos previstos no art.º 77.º, n.º 1, do Código Penai, como também ignora a relevância de uma condenação transitada em julgado como solene advertência ao arguido, pelo que, como tal, não deve ser aceite, …

Ora, o arguido foi alvo de condenações de 2007 a 2009.
Posteriormente, foi alvo das seguintes condenações:
Processo                Data dos Factos       Data da Sentença    Data do Trânsito
294/16.... -       04/10/2016             - 06/10/2016 -           07/11/2016
179/15.... -       14/05/2015             - 06/04/2017 -           15/05/2017
278/17.... -       09/03/2017            - 13/09/2017 -           13/10/2017
106/19.... -        08/05/2019            - 19/06/2019 -           19/06/2020
…, sendo evidente não relevarem para o caso concreto as condenações mais antigas de 2007 a 2009, atentemos nas demais condenações e nas regras supra expostas.
O primeiro trânsito em julgado ocorreu a 07.11.2016 (processo 294/16....).
Apenas os factos referentes ao processo 179/15.... foram cometidos anteriormente ao referido trânsito (14.05.2015).
Existe, assim, uma situação de conhecimento superveniente de concurso de penas entre os referidos processos, mas as penas aplicadas nos mesmos são de diferente natureza (processo 294/16.... – pena de multa e pena acessória de proibição de conduzir; processo 179/15.... – pena de prisão cuja suspensão veio a ser revogada).
O trânsito seguinte a considerar ocorreu 13.10.2017 (processo 278/17....).
Antes desse trânsito inexistem factos a considerar, pois os referentes aos processos 294/16.... e 179/15.... já integram a situação de cúmulo anterior e os referentes ao processo 106/19.... datam de 08.05.2019, ou seja, são posteriores ao referido trânsito, pelo que a pena aplicada quanto aos factos referentes ao processo 106/19.... é de cumprimento sucessivo.
Assim, não há lugar a cúmulo jurídico das penas aplicadas ao condenado no presente processo 278/17.... e no processo 179/15...., …, nem há lugar a cúmulo jurídico das penas aplicadas ao condenado no presente processo 278/17.... e nos processos 294/16.... e 179/15...., …, pois os factos referentes ao primeiro datam de 09.03.2017 e, como tal, são posteriores ao primeiro trânsito em julgado ocorrido a 07.11.2016, apenas os referentes ao processo 179/15.... tendo sido cometidos anteriormente.
Destarte, a pena aplicada nos presentes autos não se encontra em relação de cúmulo jurídico com nenhuma das penas aplicadas ao condenado AA nos demais processos constantes do seu certificado de registo criminal, pelo que nenhum cúmulo jurídico de penas cumpre realizar no âmbito dos presentes autos.
».


            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu do despacho em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«I- O recorrente, encontra-se em cumprimento de pena desde 15.02.2022 e sofreu mais duas condenações: no âmbito do processo 179/15...., por factos praticados em 15/05/2015 que consubstanciaram o crime de incêndio, na aplicação da pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, por acórdão datado de 06/04/2017, transitado em julgado em 15/05/2017. Esta suspensão a pena veio a ser revogada por decisão transitada em julgado em 18/04/2023; e no âmbito do processo 278/17...., por factos praticados em 08/03/2017, que consubstanciaram o crime de violência doméstica, na aplicação da pena de 2 anos e três de meses de prisão, suspensa na sua execução, por sentença datada de 13/09/2017 e transitada em julgado em 13/10/2017. Esta suspensão da pena de prisão veio a ser revogada, por decisão transitada em julgado em 19/01/2022
II- Os factos pelos quais o Recorrente foi condenado foram todos eles praticados antes de 15.05.2017.
III - E por esse motivo, deveria ser realizado cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos 179/15.... e 278/17...., conforme dispõe os artºs 77.º e 78.º do Código Penal
III- Sucede que, o tribunal da última condenação, decidiu por despacho que ora se recorre que não haveria lugar a Cúmulo, …

VI- A decisão proferida no douto despacho que ora se recorre viola o principio da legalidade, consagrado nos art. 13.º e 29.° da CRP inerente ao Estado de Direito Democrático, como consagrado no art. 2.° da CRP.
…».


            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, ….

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, ….

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso


Assim sendo, é esta a única questão a decidir por este Tribunal:
· Deve ou não ordenar-se a realização do cúmulo jurídico relativamente às penas aplicadas no âmbito dos processos 179/15.... e 278/17....?

2. Sobre a sequência de factos processuais:
a) O arguido foi alvo de condenações judiciárias de 2007 a 2009.
b) Posteriormente, e segundo o seu CRC, que consultámos no processo principal, foi alvo das seguintes condenações:
· Pº 294/16.... (processo sumário - crime de condução de veículo em estado de embriaguez):
o os factos são datados de 4/10/2016;
o houve condenação, para além da pena acessória, em 100 dias de multa a título principal, depois substituída por 100 horas de trabalho comunitário - em 6/10/2016;
o tal decisão de condenação em multa transitou em julgado em 7/11/2016;
o a pena substitutiva foi considerada extinta em 11/5/2017.
· Pº 179/15.... (processo comum colectivo - crime de incêndio):
o os factos são datados de 14/5/2015;
o houve condenação em 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, em 6/4/2017;
o tal decisão de suspensão transitou em julgado em 15/5/2017;
o tal suspensão foi entretanto revogada em 6/3/2023, com trânsito em 18/4/2023.
· Pº 278/17.... (processo comum singular - crime de violência doméstica) – O NOSSO PROCESSO:
o os factos são datados de 11/3/2017;
o houve condenação em 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa – com regime de prova - na sua execução por igual período, em 13/9/2017;
o tal decisão de suspensão transitou em julgado em 13/10/2017;
o tal suspensão foi entretanto revogada pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 15/12/2021, com trânsito em 19/1/2022.
· Pº 106/19.... (processo sumário - crime de resistência e coacção sobre funcionário):
o os factos são datados de 8/5/2019;
o houve condenação em 1 ano e 1 mês de prisão efectiva, em 19/6/2019;
o o trânsito em julgado dessa sentença ocorreu em 19/6/2020;
o tal pena foi já cumprida, tendo sido considerada extinta em 17/12/2021.
c)- Segundo informação que retirámos da consulta dos autos principais, o arguido encontra-se em cumprimento da pena aplicada nestes autos nº 278/17.... desde 15/2/2022.
           
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Está em causa decidir se deve ser realizado cúmulo jurídico superveniente das penas aplicadas ao arguido nos presentes autos e no Pº 179/15.


3.2. O pressuposto para o conhecimento superveniente do concurso e o cúmulo jurídico das penas é a prática pelo agente de diversos crimes antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles;
O trânsito em julgado da primeira das condenações é o pressuposto temporal do concurso de penas em que se fixa a data a partir da qual os crimes não estão em concurso com os anteriores para efeitos de cúmulo jurídico (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 9/2016, publicado no DR nº 111, I série, de 9/6/2016 - «O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso»).
E, assim, só se podem cumular juridicamente penas relativas a infrações que estejam em concurso e tenham sido praticadas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, só sendo cumuláveis penas em concurso, pois o art. 78º não pode ser interpretado cindido do art. 77º do CP.
Portanto, a realização de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de concurso de crimes tem lugar, quando posteriormente à condenação no processo de que se trata – o da última condenação transitada em julgado – se vem a verificar que o agente, anteriormente a tal condenação, praticou outro ou outros crimes (neste caso, são aplicáveis as regras do disposto nos arts. 77º, nº 2, e 78º, n.º 1, do CP, não dispensando o legislador a interacção entre as duas normas).
Deixou exarado o STJ em acórdão datado de 12/7/2012 (Pº 76/06....) o seguinte:
«A primeira decisão transitada será assim o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando as respectivas penas em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objecto de unificação. A partir desta data, em função dessa condenação transitada, deixam de valer discursos desculpabilizantes das condutas posteriores, pois que o(a) arguido(a) tendo respondido e sido condenado(a) em pena de prisão por decisão passada em julgado, não pode invocar ignorância acerca do funcionamento da justiça penal, e porque lhe foi dirigida uma solene advertência, teria de agir em termos conformes com o direito, «cortando» com as anteriores condutas. Persistindo, se se mostrarem preenchidos os demais requisitos, o(a) arguido(a) poderá inclusive ser considerado(a) reincidente. Esta data marca o fim de um ciclo e o início de um novo período de consideração de relação de concurso para efeito de fixação de pena única.
A partir do trânsito em julgado da primeira decisão condenatória, os crimes cometidos depois dessa data deixam de concorrer com os que os precedem, isto é, já não estão em concurso com os cometidos anteriormente à data do trânsito, havendo a separação nítida de uma primeira fase, em que o agente não é censurado, atempadamente, muitas vezes por deficiência do sistema de justiça, ganhando assim, confiança na possibilidade de outras prevaricações com êxito, sem intersecção da acção do sistema de justiça, de uma outra que se lhe segue, após advertência de condenação transitada em julgado, abrindo-se um ciclo novo, autónomo, em que o figurino não será já o de acumulação, mas de sucessão, em sentido amplo».
No nosso caso, a pena do Pº 106/19 (aliás, já cumprida) não deve englobar este cúmulo pois os factos consumaram-se depois do trânsito em julgado da pena aplicada nestes autos (cumprimento sucessivo).
Pegando como referência os processos 278 e 179, e abstraindo do Pº 294, constatamos que os crimes em causa concorrem entre si – a primeira pena a transitar foi no Pº 179 (15/5/2017) e os factos do nosso processo nº 278 datam de 11/3/2017, logo, em data anterior ao dito trânsito.
Ou seja, os factos de ambos os processos foram praticados em data anterior (em 14/5/2015 – Pº 179 - e 11/3/2017 – Pº 278) ao primeiro trânsito em julgado verificado (o do Pº 179 que se situa na data de 15/5/2017).
E o que dizer do Pº 294, um processo que aparentemente vem baralhar este raciocínio e que serve para que o tribunal recorrido se exima ao dever de realizar um cúmulo jurídico que tarda?
Haverá que lançar mão dele para efeito desta operação?
Recordamos que a pena foi já julgada extinta (tratava-se de uma pena de multa, pena diversa em termos de natureza das aplicadas nos Pºs 179 e 278 – prisão).
É verdade que a nova redacção do art. 78º, nº 1, do CP, introduzida em Setembro de 2007, com a supressão do trecho “mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta”, diversamente do que ocorria na redacção anterior, veio prescrever que o cúmulo jurídico sequente a conhecimento de novo crime, que se integre no concurso, não exclui, antes passa a abranger, as penas já cumpridas (ou extintas pelo cumprimento), procedendo-se, após essa inclusão, no cumprimento da pena única que venha a ser fixada, ao desconto da pena já cumprida.
Actualmente é claro, pois, que as penas cumpridas integram o concurso[1], havendo que proceder ao desconto das mesmas no cumprimento da pena final.
Mas a questão que se deve aqui colocar é a seguinte:
Deve tal pena de multa ser aqui chamada à colação?
Há concurso entre as penas do Pº 294 e do Pº 179 mas já não entre as penas do Pº 294 e Pº 278 (o nosso).
Há, no entanto, concurso entre as penas do Pº 278 e do Pº 179.
A pena do Pº 294 foi extinta em 11/5/2017, em data, portanto, até anterior ao trânsito em julgado do Pº 278 (o nosso).
E a sua natureza foi pecuniária, não fazendo qualquer sentido útil a realização de um cúmulo jurídico entre tal pena de multa e a pena de prisão aplicada no Pº 179, ambas em concurso.
Se assim é, é do mais elementar bom senso que se olvide tal pena de multa (recorda-se que, nos termos do nº 3 do artigo 77º, se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nesse normativo) e, em nome dos interesses do arguido preso a aguardar legitimamente a determinação em absoluto e de forma definitiva do «quantum» de prisão ainda a cumprir por si, se considerem apenas, para efeitos de concurso e cúmulo, as penas aplicadas no nosso processo e no Pº 179 (as únicas de prisão), sendo absolutamente irrelevante a pena de multa do Pº 294, inócua para este efeitos (nada há a descontar[2]).
Poder-se-á objectar que não se encontra fundamento legal para desconsiderarmos essa data da primeira advertência (condenação do Pº 294), acabando por se proceder a um outro concurso de crimes como se essa condenação não tivesse existido.
Diremos que nenhuma solução que afaste o cúmulo das penas aplicadas nos Pºs 179/15 e 278/17, em que os crimes são concorrentes (concurso supervenientemente conhecido no segundo), poderia fazer a devida justiça à regra do artigo 78º, nº 1, do CP, tanto mais que o crime punido no Pº 294/16, não concorrendo com o nosso, mas apenas com o do dito Pº 179/15, afinal - e ao menos por desnecessidade/inutilidade - nem sequer é aqui levado a esse cúmulo.
Ou seja: a não se fazer o cúmulo entre as penas do Pº 179/15 e do Pº 278/17 (o nosso), e isso por força do trânsito, previamente aos factos deste 278/17, da sentença condenatória proferida naquele Pº 294/16, cuja pena todavia também não foi cumulada com a do primeiro (Pº 179/15), então estar-se-ia afinal a chegar a uma interpretação do artigo 78º, nº 1 e 2, do CP, contrária ao respectivo texto, o que cremos não poder ser o sentido do AUJ 9/2016, aqui já citado.
Cremos que o alcance do dito AUJ seria, no nosso caso, o de vedar um cúmulo a abranger as penas dos três processos (294/16, 179/15 e 278/17), supondo um cúmulo das penas dos dois primeiros e, por isso, já não da do segundo com a do terceiro, que o "arrastasse"; mas se esse cúmulo das duas primeiras não teve antes lugar e nem aqui o terá, e se a segunda e a terceira entre si estão em concurso, não vemos que aquele alcance pudesse ser ainda o de afastar o cúmulo respectivo, para que a letra da lei aponta e com que não vemos qualquer "arrastamento" a forçar-lhe os limites.
Sempre diremos, a final, que a questão não será tanto a de, a mais do artigo 78º, nº 2, adiantar um explícito título legal para cumular a pena do Pº 179/15 com a do Pº 278/17, mas antes a de encontrar título para não as cumular, visto que os crimes em ambos julgados estão entre si em concurso, nos termos do dito 78º, nº 1.
Nem sequer a fundamentação aposta no recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 9/2023, de 29/6, publicado em DRE no dia 21/9 (Pº 123/16.4SWLSB-F.L1-A.S1), nos perturba pois, casuísticamente, neste caso de vida relatado no presente processo, opina-se no sentido de não fazer qualquer sentidoo que faz com que a melhor decisão nem sempre é a mais formal mas antes a mais substancial que realmente pode mudar a vida «das gentes» - cumular uma pena de multa com penas de prisão, ambas, sim, cumuláveis entre si, penas estas com que o arguido actualmente se debate em termos de cumprimento prisional. 
E, se assim é, tem razão o arguido ao reivindicar a realização de um cúmulo jurídico - que já tarda - entre as penas aplicadas nestes autos e no Pº 179, sendo competente para o realizar o presente processo o processo da última condenação[3] (artigo 471º CPP), no caso, o presente processo (278[4]), cúmulo a realizar por um Colectivo.

3.3. Se assim é, e pelos fundamentos acima descritos, só pode proceder este recurso.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, por MAIORIA, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e, em consequência, determina-se a realização, no âmbito destes autos, do cúmulo jurídico relativamente às penas aplicadas no presente processo (278/17....) e no Pº 179/15...., atentando-se nos termos do artigo 471º, nº 1 do CPP.

            Sem custas.
Coimbra, 27 de Setembro de 2023
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94.º, n.º2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)
 
 Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Rui Pedro Lima
Adjunto: Cristina Pêgo Branco - com voto de vencida, que adita:
«Pressuposto de aplicação do regime de punição do concurso, por conhecimento superveniente, é que o arguido tenha praticado uma pluralidade de crimes, objecto de julgamentos autónomos em vários processos (pelo menos, dois), antes do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer deles.
Tal como consta da fundamentação do acórdão que antecede (ponto 3.2.), o «trânsito em julgado da primeira das condenações é o pressuposto temporal do concurso de penas em que se fixa a data a partir da qual os crimes não estão em concurso com os anteriores para efeitos de cúmulo jurídico (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 9/2016, publicado no DR nº 111, I série, de 9/6/2016 - «O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso»).
E, assim, só se podem cumular juridicamente penas relativas a infrações que estejam em concurso e tenham sido praticadas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, só sendo cumuláveis penas em concurso, pois o art. 78º não pode ser interpretado cindido do art. 77º do CP.»
Como com clareza se explica no mencionado AFJ n.º 9/2016, citando o acórdão do STJ de 01-03-2004, Proc. n.º 4431/03 - 3.ª:
«(…) As regras da punição do concurso, estabelecidas nos referidos artigos 77º, nº 1, e 78º, nº 1, não se destinam a modelar os termos de uma qualquer espécie de liquidação ou quitação de responsabilidade, reaberta em cada momento sequente em que haja que decidir da responsabilidade penal de um certo agente, mas têm como finalidade permitir apenas que em determinado momento se possa conhecer da responsabilidade quanto a factos do passado, no sentido em que, em termos processuais, todos os factos poderiam ter sido, se fossem conhecidos ou tivesse existido contemporaneidade processual, apreciados e avaliados, em conjunto, num dado momento. Na realização desta finalidade, o momento determinante só pode ser, no critério objectivado da lei, referido à primeira condenação que ocorrer, e que seja (quando seja) definitiva, valendo, por isso, por certeza de objectividade, o trânsito em julgado.
A posterioridade do conhecimento «do concurso», que é a circunstância que introduz as dúvidas, não pode ter a virtualidade de modificar a natureza dos pressupostos da pena única, que são, como se referiu, de ordem substancial.
O conhecimento posterior (artigo 78º, nº 1) apenas define o momento de apreciação, processual e contingente. A superveniência do conhecimento não pode, no âmbito material, produzir uma decisão que não pudesse ter sido proferida no momento da primeira apreciação da responsabilidade penal do agente (cfr., neste sentido, Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", pág. 293-294).
Há, assim, para a determinação da pena única, como que uma ficção de contemporaneidade. A decisão proferida na sequência do conhecimento superveniente do concurso, deve sê-lo nos mesmos termos e com os mesmos pressupostos que existiriam se o conhecimento do concurso tivesse sido contemporâneo da decisão que teria necessariamente tomado em conta, para a formação da pena única, os crimes anteriormente praticados; a decisão posterior projecta-se no passado, como se fosse tomada a esse tempo, relativamente a um crime que poderia ser trazido à colação no primeiro processo para a determinação da pena única, se o tribunal tivesse tido, nesse momento, conhecimento da prática desse crime (cfr., a propósito do regime análogo ["pena global"] do § 55 do Strafgesetzbuch, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal - Parte General", trad. da 5ª edição, pág. 787).
6. A jurisprudência deste Supremo Tribunal, maioritária e mais recente, tem também interpretado neste sentido a conjunção das referidas disposições relativas à punição do concurso.
No acórdão de 7 de Fevereiro de 2002 (proc. 118/02-5ª), v. g., decidiu-se «que resulta directa e claramente» dos artigos 77.° e 78.° do Código Penal de 1995 que «para a verificação de uma situação de concurso de infracções a punir por uma única pena, se exige, desde logo, que as várias infracções tenham, todas elas, sido cometidas antes de ter transitado em julgado a condenação imposta por qualquer uma delas, isto é, o trânsito em julgado da condenação imposta por uma dada infracção obsta a que, com essa infracções ou com outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito. O trânsito em julgado de uma condenação penal é um limite temporal intransponível, no âmbito do concurso de crimes, à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois».
Com efeito - refere o acórdão de 28/05/1998, proc.112/98 - «o disposto no art. 78.°, n.° 1, do CP de 1995, não pode ser interpretado cindido do que se estabelece no respectivo art. 77.°, do mesmo modo que não se deve ignorar que há uma substancial diferença entre os casos em que o agente apesar de já te recebido uma solene advertência por via de uma condenação transitada em julgado, prossegue na sua actividade delituosa (situação que determina uma sucessão de penas), e os casos em que o agente comete diversos crimes antes de ser condenado por qualquer deles (situação de concurso de penas)».
Esta interpretação tem, assim, sido expressa, «sem discrepância», na jurisprudência deste Supremo Tribunal desde 1997 (cfr., só para referir a mais recente, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 11/10/2001, proc. 1934/01; de 17/01/2002, proc. 2739/01; de 23/01/2002, proc. 4410/02; e de 29/04/2003, proc. 358/03).
Resumindo: o limite, determinante e intransponível, da consideração da pluralidade de crimes para efeito de aplicação de uma pena única, é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes praticados anteriormente; no caso de conhecimento superveniente aplicam-se as mesmas regras, devendo a última decisão, que condene por um crime anterior, ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto.”»
E prossegue o AFJ, afirmando ser neste sentido a esmagadora maioria da jurisprudência do STJ e transcrevendo, a título exemplificativo, o sumário do acórdão de 30-05-2012, Proc. n.º 267/10.6 TCLSB - 3ª Secção:
«“I - A posterioridade do conhecimento «do concurso» não pode ter a virtualidade de modificar a natureza dos pressupostos da pena única, que são de ordem substancial. O conhecimento posterior (art. 78.º, n.º 1, do CP) apenas define o momento de apreciação, processual e contingente.
II - A formação da pena conjunta é a reposição da situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida que os foi praticando.
III - A primeira decisão transitada será o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando-os em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objecto de unificação (…)".
No caso dos autos, a questão que vem colocada à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se «Deve ou não ordenar-se a realização do cúmulo jurídico relativamente às penas aplicadas no âmbito dos processos 179/15.... e 278/17....» (cf. fls. 5 do acórdão que antecede).
Utilizando como referência a tabela constante da própria decisão recorrida, transcrita a fls. 2 do acórdão supra[5], temos que o trânsito em julgado da primeira condenação, no Proc. n.º 294/16...., ocorreu em 07-11-2016.
Com esta infracção apenas está em concurso a apreciada no Proc. n.º 179/15...., porquanto foi praticada em 14-05-2015, ou seja, antes do trânsito daquela primeira condenação.
Se, como vimos, do ponto de vista dos pressupostos de ordem substancial da pena única, importa atender ao trânsito em julgado da primeira condenação, por ser o limite temporal intransponível à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois, tal significa que, no presente caso, os crimes a que se referem os processos 278/17.... e 106/19...., cometidos, respectivamente, em 09-03-2017 e 08-05-2019, isto é, depois do trânsito da mencionada primeira condenação (no caso do Proc. 106/19...., até depois do trânsito de todas as demais), se mostram excluídos do concurso de crimes, por força do disposto no art. 77.º, n.º 1, do CP.
No acórdão de que agora discordamos, entendeu-se ser de determinar a realização de cúmulo jurídico entre os crimes apreciados nos Procs. 179/15.... e 278/17.....
Para assim se decidir, considerou-se, por um lado, que tais crimes concorrem entre si e, por outro, que deve ser olvidada a pena imposta no Proc. n.º 294/16...., por esta ser de diferente natureza (sendo uma pena de multa) e ser irrelevante e inócua, já que, mostrando-se já extinta, nada haverá a descontar.
Dúvidas não temos de que existe concurso de crimes entre os apreciados nos Procs. n.ºs 179/15.... e 278/17...., já que os factos do primeiro foram praticados em 14-05-2015 e os do segundo em 11-03-2017, tendo o trânsito em julgado da decisão proferida no Proc. 179/15.... ocorrido em 15-05-2017.
Sucede que, em nosso entender e salvo o devido respeito por opinião diversa, não é esta – a do Proc. n.º 179/15.... – a primeira condenação a ter em conta.
É que, tendo em consideração a actual redacção do art. 78.º, n.º 1 do CP[6], não podem ser excluídos do concurso de crimes aqueles cujas penas se encontram cumpridas, prescritas ou extintas.
Nem, por outro lado, podem ser arredados desse concurso os crimes punidos com penas de diferente natureza, em face do estabelecido no art. 77.º, n.º 3, do CP.
E não se nos afigura que do facto, meramente circunstancial e contingente, de no caso concreto se ter entendido não ser de proceder ao cúmulo entre as penas impostas nos Procs. 294/16.... e 179/15...., por não comportar qualquer relevância prática (sendo apenas duas as penas a considerar e já nada havendo a descontar na pena única que fosse encontrada), se possa retirar a conclusão de que a primeira condenação transitada em julgado é irrelevante e inócua.
Poderá sê-lo em termos práticos (por «nada haver a descontar») mas, na nossa perspectiva, não o será certamente do ponto de vista jurídico-penal, por estabelecer precisamente o limite temporal intransponível à determinação de uma pena única, a solene advertência ao agente, por via de uma condenação transitada em julgado, que ainda assim prossegue na sua actividade delituosa.
Por isso, não conseguindo encontrar fundamento legal para desconsiderar o trânsito em julgado da primeira condenação imposta (no Proc. 294/16....), que obsta a que com essa infracção ou com outras cometidas até esse trânsito (a do Proc. n.º 179/15....), se cumulem infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito (a do Proc. n.º 278/17....), responderia de forma negativa à questão colocada e, ao contrário do decidido, confirmaria o despacho recorrido».





[1] Embora se considere que a não consideração da pena de prisão suspensa na execução, que venha a ser declarada extinta, nos termos do art. 57º, nº 1, do CP, para efeitos de integração no cúmulo, de acordo com o disposto no novo texto do art. 78º, nº 1, do CP, tem sido assumida na jurisprudência do STJ no sentido de que será de desconsiderar, na feitura do cúmulo, tal pena, no caso de ter sido declarada extinta nos citados termos.
No caso específico das penas de execução suspensa que tenham sido extintas pelo decurso do prazo sem revogação, parece evidente que a mesma não deve ser descontada na pena única, pois não houve cumprimento da pena de prisão substituída, como se decidiu no Acórdão do STJ de 29/4/2010.
No mesmo aresto decidiu-se ainda que «não é possível considerar na pena única as penas suspensas cujo prazo de suspensão já findou, enquanto não houver no respectivo processo despacho a declarar extinta a pena nos termos daquela norma ou a mandá-la executar ou a ordenar a prorrogação do prazo de suspensão, pois no caso de extinção nos termos do art. 57.º, n.º 1, a pena não é considerada no concurso, mas já o é nas restantes hipóteses».
[2] Decorre do artigo 77º, n.º 1 do CP que as penas de multa cumulam-se juridicamente entre si - tal como as penas de prisão se cumulam entre si.
Quando no conjunto dos crimes em concurso há dois ou mais punidos com pena de multa, deve realizar-se um cúmulo autónomo das penas de multa.
Neste jaez, uma síntese da posição prevalecente neste STJ será a de que “de acordo com o artº 77º nº 3 do CP pode fazer-se o cúmulo de penas de prisão e multa se os crimes estiverem numa relação de concurso mas a diferente natureza dessas penas mantém-se na pena única que se determine. (…) Assim, se houver concurso de crimes nesses termos cumulam-se as penas de prisão entre si e, separadamente, cumulam-se as penas de multa também entre si. O resultado será a fixação de uma pena única de prisão e de uma pena única de multa que desse modo manterão a sua diferente natureza», (Acórdão do STJ de 07.01.2016, proferido no Processo n.º 1959/12.0 PBCBR.S - Sumários de Acs. 2016).
Há também profusa jurisprudência do STJ no sentido de que as penas de multa “só poderão cumular-se entre si”.
[3] E não o tribunal da última condenação transitada em julgado (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 15/1/2020 – Pº 22/07.0GCVFX-B-L1-9: «Cabe ao tribunal da última condenação efectuar o cúmulo jurídico de todas as penas cumuláveis, nada obstando que anteriormente a mesma ou mesmas penas tenham sido cumuladas noutros processos. E o tribunal da última condenação para efeito de cúmulo jurídico é o Tribunal da última condenação "tout court" e não o Tribunal da condenação transitada em julgado»).
[4] A sentença que condenou o arguido nestes autos data de 13/9/2017, sendo a condenação no Pº 179 datada de 6/4/2017.
[5] E que aqui reproduzimos:
Processo                Data dos Factos       Data da Sentença    Data do Trânsito
294/16.... -       04/10/2016             - 06/10/2016 -           07/11/2016
179/15.... -       14/05/2015             - 06/04/2017 -           15/05/2017
278/17.... -       09/03/2017            - 13/09/2017 -           13/10/2017
106/19.... -        08/05/2019            - 19/06/2019 -           19/06/2020

[6] Introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, que dele eliminou o segmento «mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta».