Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FREITAS NETO | ||
Descritores: | DIREITO À INDEMNIZAÇÃO CRÉDITO PRESCRIÇÃO CITAÇÃO DEVEDOR PROCESSO NULIDADE | ||
Data do Acordão: | 02/24/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | J1 DA SECÇÃO CÍVEL DA INSTÂNCIA CENTRAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.ºS 306, Nº 1 E 23, NºS 1 E 2 DO C. CIVIL. | ||
Sumário: | 1. Enquanto se encontrar pendente inquérito penal para averiguação da inerente responsabilidade com base no facto fundante do direito de indemnização do lesado, não corre contra este o prazo de prescrição desse direito, nos termos do art.º 306, nº 1, do C. Civil. 2. Mesmo que declarada nula no processo, a citação de um devedor em processo pendente pode valer como expressão do credor da intenção de exercer o direito, nos termos do art.º 323, nºs 1 e 2 do C. Civil. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
A..., B... e C... propuseram no J1 da Secção Cível da Instância Central da Comarca de Leiria uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra D... e E..., S.A., alegando, em síntese: Os AA. são viúva e filhos de F..., falecido em 5 de Julho de 2008; o marido e pai dos AA. foi vítima de acidente de trabalho quando exercia a sua actividade profissional como operador de fabrico ao serviço da 2ª Ré; aquele acidente ocorreu quando a vítima operava com um máquina dotada de um mecanismo semi-automático correspondente a uma prensa para fabrico de blocos em betão, que havia sido recentemente adquirida pela 2ª Ré à 1ª Ré; que tendo sido esta Ré quem concebeu e fabricou a aludida máquina, a mesma continha um erro de concepção do circuito de comandos dos movimentos de subida e descida do molde e contra molde bem como do circuito hidráulico, não cumprindo os requisitos de segurança estabelecidos na Directiva 93/37CE, transposta pelo DL 320/2001 de 12/12; por força desse erro de concepção, a vítima foi esmagada por uma súbita entrada em funcionamento do molde e contra molde, quando, com a máquina parada, procurava realinhar o filme de plástico que se encontrava no seu interior; a 2ª Ré, entidade empregadora da vítima, não providenciou a sua formação e instrução, nem providenciou pelo seu acompanhamento na manipulação da máquina, que se achava ao serviço daquela Ré há apenas 3 semanas; os Autores sofreram um conjunto de danos patrimoniais e não patrimoniais com a morte daquele seu familiar. Rematam pedindo a condenação solidária das Rés no pagamento: à A. A..., de € 108.502,33, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação, e de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais; ao A. B... a quantia de € 32.148, 84, por danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação, e € 30.000,00 de danos não patrimoniais; ao A. C... a quantia de € 38.578,60, a título de danos patrimoniais, quantia que deverá ser acrescida de juros desde a citação, e de € 30.000,00 de danos não patrimoniais; aos AA., como únicos herdeiros do falecido, em partes iguais e solidariamente, ainda as quantias de € 60.000,00, pela indemnização do dano morte, e € 15.000,00, pelo sofrimento da vítima antes de morrer.
Contestaram as Rés, tendo a Ré D... invocado na sua contestação a excepção da prescrição, aduzindo que por ser de 3 anos o prazo de prescrição do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil do produtor, esse prazo ter-se-ia completado em 5 de Julho de 2011, e, por conseguinte, muito antes da citação da contestante e mesmo da entrada da acção em juízo.
Responderam os AA. à matéria da excepção, alegando que tendo corrido inquérito criminal por força do acidente, de cujo arquivamento apenas foram notificados em 6 de Outubro de 2008, a prescrição excepcionada não ocorreu.
Na audiência prévia, pronunciando-se sobre a prescrição, veio o Sr. Juiz a julgar tal excepção improcedente.
Inconformada, desta decisão interpôs a Ré D... recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
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São os seguintes os pressupostos de facto a ter em consideração:
A – Sob o nº 285/08. 4GBPBL dos Serviços do MºPº de Pombal correu termos um inquérito-crime para apuramento de eventuais responsabilidades no acidente que provocou a morte de F..., ocorrida em 05.07.2008. B – Em 6.10.2008 foram os AA. notificados do despacho de arquivamento que nesses autos foi proferido em 30.09.2008. C – A presente acção deu entrada em 29.06.2011, litigando os AA. com apoio judiciário, o qual, além do mais, abrangia a dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. D – Em 06.09.2011 a Ré D... arguiu a nulidade da sua citação, invocando a não observância de formalidades essenciais (não tradução da p.i. e documentos que a acompanhavam). E – Em 13.09.2011 foram os AA. notificados dessa arguição. F – Por despacho de 28.10.2011 foi declarada nula a citação da Ré D... com fundamento na ausência de tradução da petição inicial para a língua alemã, ao abrigo do art.º 247, nº 1, do CPC e do Regulamento nº 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Novembro de 2007, ordenando-se a repetição da mesma. G – Também aí foi oficiosamente determinada a tradução da petição e documentos que a acompanhavam. H – A Ré D... veio a ser devidamente citada para contestar em 7.03.2013.
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A apelação.
Nas conclusões com as quais encerra a respectiva alegação, a Ré e apelante D... suscita as seguintes questões: 1º- A relativa a saber se o prazo prescricional do direito de indemnização dos AA. começou a correr desde a data da morte do respectivo marido e pai, momento a partir do qual puderam demandar a apelante em acção cível autónoma, em separado da acção penal; 2º - A que se prende com o saber se ao prazo da prescrição do direito dos AA. não é aplicável a presunção constante do nº 2 do art.º 323 do CC.
Sobre o início da contagem do prazo prescricional do direito de que os AA. se arrogam.
Bate-se a recorrente pela tese de que não há qualquer interferência entre o inquérito penal que foi instaurado para determinação da eventual responsabilidade (penal) decorrente do acidente que vitimou o familiar dos AA. e o que se discute na presente acção. Isto é, que não há qualquer razão para trazer à colação o princípio da adesão que está plasmado no art.º 71 do CPP, princípio de que a decisão recorrida se serviu para aplicar o disposto no art.º 306 do CC, e, desse modo, remeter o início do prazo da prescrição do direito dos AA. para o momento da notificação do despacho de arquivamento ali proferido. Argumenta a apelante que no inquérito-crime identificado nos autos não estiveram em averiguação quaisquer factos pelos quais figurassem como denunciados funcionários seus; e de que, por outro lado, na vertente acção, não constitui causa de pedir qualquer erro de concepção da máquina que era manipulada pela vítima quando se deu o acidente. Daí parte para a conclusão de que nenhuma conexão material existe entre a factualidade que foi objecto daquele inquérito e a que se discute nestes autos. Mas não tem razão.
Não merece, desde logo, crítica por parte desta Relação, o postulado da decisão recorrida segundo o qual a recorrente D... surge demandada nos presentes autos à luz da responsabilidade do produtor, especificamente objecto do DL nº 383/89 de 6 de Novembro. Na verdade, para fundar a demanda da Ré e ora apelante, é invocado o incumprimento em que ela teria incorrido como fabricante/produtora da máquina que era manipulada pela vítima, pelo desrespeito das normas de segurança constantes da Directiva 98/37/CE (transposta para a ordem interna pelo DL 320/21 de 12.12). É isso que inequivocamente decorre do teor do art.º 40 e seguintes da p.i.. De forma que o prazo de prescrição do direito de indemnização dos lesados a ter em atenção é efectivamente o prazo de três anos especialmente previsto no art.º 11, nº 1, daquele diploma.
Mas também não se subscreve aqui o que aparece afirmado na alegação recursiva quanto à suposta irrelevância dos factos investigados no inquérito nº 285/08.4GPBL para o objecto do vertente litígio, irrelevância que adviria da circunstância de no aludido inquérito não terem sido denunciados funcionários/colaboradores da Ré, ora apelante. É que o inquérito penal não tem de correr contra pessoas determinadas: visa em primeira linha apurar a existência de um crime, e, nessa situação, dos seus autores. É o que sem margem para controvérsia se retira do teor do art.º 262 do C.P.P., onde se estatui que: “1. O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles (…). 2. Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”. Deflui dos pressupostos de facto acima enunciados que o mencionado inquérito penal se destinou ao apuramento da verificação de eventuais responsabilidades criminais no acidente que vitimou F.... O curso de tal inquérito justificou a dilação do início da contagem do prazo da prescrição do direito dos AA. para a data subsequente à notificação do despacho de arquivamento, notificação que se verificou em 06.10.2008. Tal como se enfatizou na decisão recorrida, a regra é a da obrigatória adesão da acção civil à acção penal, de harmonia com o art.º 71 do CPP. E se é certo que a alínea f) do art.º 72 do m. Código permite a dedução autónoma da pretensão ressarcitiva pelo lesado contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou apenas contra estas, isso não legitima a ilação de que o lesado está obrigado àquela dedução para evitar o transcurso do prazo de prescrição. O lesado tem “direito à adesão”, embora dela possa abdicar nas excepções identificadas no art.º 72 do CPP. Este “direito à adesão” não se compatibiliza com o dever de exercer separadamente o direito de indemnização no prazo prescricional que a lei estipula. Isto é, o lesado “pode” não instaurar a acção em separado, o que equivale a dizer que não tem o dever de a instaurar. O art.º 71 CPP tem de ser interpretado não só no sentido de que a lei privilegia a decisão cível no processo penal, como ainda naqueloutro de que ao lesado civil é conferido o direito a ver satisfeito o seu interesse ressarcitivo pela via da adesão ao processo penal. Pelo que, enquanto pender o inquérito, esse direito não lhe pode ser coarctado. A pendência do inquérito faculta-lhe a possibilidade de nele ver apreciada a questão da responsabilidade civil em conjunto com a penal. Porque assim é, a sua situação cabe, de certo modo, na previsão do art.º 306, nº 1, do CC: enquanto o lesado civil ou titular do direito de indemnização puder usar a adesão ao processo penal esse seu direito não deve ser separadamente exercido e o prazo de prescrição não pode começar a contar-se. Por conseguinte, por lhe ser legalmente reconhecido o direito a ver apreciada a sua pretensão ressarcitiva no processo penal, será, em princípio, só a partir do conhecimento do arquivamento do inquérito respectivo que o lesado está efectivamente livre – o que aqui na prática acaba por significar “sem alternativa” – para deduzir uma acção cível direccionada para o mesmo desiderato. Citamos aqui – por se nos afigurar que, por outras, e, porventura, mais adequadas palavras, melhor se ilustra esta mesma ideia – o que neste mesmo sentido se escreveu no Ac. do STJ de 13.10.2009, proferido no Pró. 206/09.7YFLSB (Relator Ex.mo Cons. Salazar Casanova): “Não é, ademais, razoável que o início da contagem prescricional para o exercício do direito de indemnização possa correr durante a pendência do inquérito. Admitir o contrário, representaria, em certos casos, negar, na prática, o exercício da acção cível ao lesado que visse o processo crime ser arquivado decorridos que fossem mais de três anos sobre a verificação dos factos danosos, apesar desse processo /(penal) ter estado sempre em andamento “normal durante aquele período de tempo”. […] Destarte, só depois de esgotadas as possibilidades de punição criminal ficará o lesado habilitado a deduzir, em separado, a acção de indemnização, face ao disposto no n.º1 do artigo 306.º do Código Civil”.[Ac. do S.T.J. de 22-1-2004 (Ferreira de Almeida) (P. n.º 4084/03) in C.J., 1, pág. 36/39]. (…) O prazo de prescrição para instauração de acção cível deve aguardar o desfecho do processo-crime que haja sido instaurado, pois ao lesado assiste o direito de pedir indemnização civil no âmbito da acção penal (artigo 71.º do C.P.P.). O lesado pode renunciar a uma tal opção, deduzindo o pedido cível em separado em momento anterior, não podendo, no entanto, ser sancionado pelo não exercício de tal faculdade, o que traduziria uma contradição nos termos”. Conclui-se, desta forma, que tendo os AA. sido notificados do arquivamento do inquérito em 06.10.2008, só a partir de 07.10.2011 passaram a estar obrigados a exercer em acção autónoma o respectivo direito de indemnização contra os responsáveis civis e, nomeadamente, contra a apelante D.... Improcede, deste modo, a questão suscitada.
Quanto à aplicação da presunção da parte final do nº 2 do art.º 323 do CC.
Rebela-se ainda a apelante contra a consideração da decisão recorrida de que, apesar não ter sido oportunamente oferecida pelos AA. a tradução para a língua alemã da petição inicial e documentos que a acompanhavam, a demora verificada com citação da Ré (ora recorrente) não é imputável àqueles, pois beneficiariam da interrupção da prescrição cinco dias após a apresentação daquele articulado, nos termos do art.º 323, nº 2, do CC. Essencialmente, o que a apelante agora contrapõe é que a sua citação para contestar a acção – em termos válidos ou correctos com a tradução em falta – apenas teve lugar em 07.03.2013 por força daquilo que entende ter constituído uma omissão imputável aos AA., omissão que se materializaria na não junção da tradução e na falta de requerimento para que o tribunal por ela providenciasse. Também aqui se nos afigura que não é de acolher a argumentação recursiva.
Vejamos. Compulsado o acervo fáctico, pode nele constatar-se: Que os AA. instauraram a acção em 29.06.2011. Que o prazo de prescrição de 3 anos do direito de indemnização que com a acção os AA. quiseram fazer valer, contado da notificação do arquivamento do inquérito, terminava em 7.10.2011. Que sem notificar os AA. para a prática de qualquer acto, o tribunal avançou para a citação da Ré D..., citação que foi consumada sem a tradução da petição e documentos. Que ainda em 6 de Setembro de 2011, portanto a um mês da data em que se completaria o prazo da prescrição, foi arguida a nulidade da citação pela Ré D.... Que tal nulidade foi decidida e declarada por despacho de 28.10.2011; Que, em consequência, no mesmo despacho foi oficiosamente determinado que se procedesse”à tradução da petição inicial e dos documentos que a acompanham”, por “entidade/pessoa idónea que vier a ser indicada pela secção”.
Dispõe o nº 2 do art.º 323 do CC que “Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram cinco dias”. Ora os AA., litigando com apoio judiciário, apresentaram a petição e documentos em língua portuguesa e aguardaram que se realizasse a citação. Fizeram-no com mais de três meses de antecedência em relação à data em que se completaria o prazo prescricional. Desde logo se dirá que, sendo a razão de ser da interrupção da prescrição a expressão/manifestação pelo titular do direito da intenção de o exercer, não se veria motivo para que a primeira citação da Ré D..., mesmo que nula, não pudesse valer com esse restrito efeito, através da retroacção da posterior e válida citação, retroacção que se limitaria a essa específica consequência. Por outras palavras, ainda que a Ré, ora apelante, só haja sido regular e validamente citada em Março de 2013, não deixaria de ser razoável que, somente no que toca ao efeito interruptivo da prescrição que a lei liga à citação, aquela pudesse retrotrair à data em que teve lugar a que foi declarada inválida (e que ocorreu antes de 6.10.2011). É que assentando a prescrição na ideia de sanção contra a inacção do credor, essa inacção não se patenteia – antes pelo contrário, o que se evidencia é a sua cessação – se ele propõe a acção e o devedor é objecto de uma citação, mesmo que inválida. Com a citação válida – subsequente – o devedor fica a saber que o credor já num momento anterior expressou a intenção de exercer o seu direito.
Atentemos, em todo o caso, na questão do facto imputável. Percorrendo a materialidade provada não descortinamos a suposta imputabilidade aos AA. do atraso na citação (válida). Do que se retira do acervo fáctico, os AA. não deixaram de cumprir qualquer determinação do tribunal tendente à regularização da citação da apelante. Até porque no despacho que atendeu à arguição da nulidade da citação da Ré D... foi o próprio tribunal que, oficiosamente, ordenou que se procedesse à tradução da petição e documentos por pessoa a indicar pela secção. Não se pode sustentadamente afirmar que a citação da apelante tenha ultrapassado o prazo prescricional por algum facto imputável aos AA.. Donde que eles devam aproveitar do disposto no art.º 323, nº 2, do C. Civil, ou seja, deve a prescrição do direito objecto da vertente acção ter-se por interrompida, nos termos desse inciso legal, cinco dias após ter sido requerida (requerimento que é contemporâneo da entrada da acção – 29/06/2011). Por conseguinte, bem antes de esgotado o prazo da prescrição. Pelo que também não colhe o que motivou a apelante quanto a esta segunda questão.
Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida. Custas pela apelante. Freitas Neto (Relator) Carlos Barreira Barateiro Martins |