Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HUGO MEIRELES | ||
Descritores: | SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DA PARTILHA CASO JULGADO AÇÃO DE RECONHECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE USUCAPIÃO INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE | ||
Data do Acordão: | 10/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 580.º, N.ºS 1 E 2, 581.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 297.º, N.º 1, 1265.º DO CÓDIGO CIVIL, E 5.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL | ||
Sumário: | I – A sentença homologatória da partilha não constitui caso julgado numa ação em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade de uma verba, com fundamento no instituto da usucapião, quando no inventário não tenha sido concretamente apreciada, em incidente declarativo, a questão da titularidade desse bem.
II – Após a dissolução do vínculo conjugal por óbito de um dos cônjuges, a demonstração da posse relevante para aquisição por usucapião, pelo cônjuge sobrevivo, de bem que integrava o património comum do extinto casal, não dispensa a prova de factos de onde resulte a inversão do título, a que alude o art. 1265º do Código Civil. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA I. Relatório AA e BB, com os demais sinais dos autos, instauraram, no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, ação declarativa com processo comum contra CC, DD e EE, com os demais sinais dos autos, pedindo que seja declarado a favor dos autores o direito de propriedade do prédio urbano que identificam. Em suporte da sua pretensão e em síntese, os autores invocam a aquisição originária por usucapião do prédio urbano, composto de casa de habitação, que veio a ser adjudicado às rés por sentença homologatória de partilha proferida em processo de inventário judicial referente à herança de FF, avó e bisavó, respetivamente do primeiro e do segundo autor. Tal prédio era a casa de morada de família do casal constituído pela mencionada FF e pelo seu segundo marido, GG, sendo que após o falecimento deste último, passou a ser a casa de morada de família da única filha do casal e do marido da mesma, que entretanto também já faleceram, tendo deixado dois filhos, o aqui primeiro autor e a sua irmã, também já falecida, de quem o segundo autor é o único descendente. Por seu turno, as rés são, respetivamente, neta e bisneta da referida FF e do seu primeiro marido, com o qual teve dois filhos. Alegam que o imóvel, pelo menos desde 1937, sempre esteve e continua a estar na posse do “segundo ramo” da família, tendo sido inscrito na matriz predial em nome do segundo marido daquela FF e, mais tarde, a favor da mãe do primeiro autor, e foi erradamente integrado na relação de bens do inventário (aliás sem salvaguarda da meação do cônjuge sobrevivo) e licitado pelas rés quando o certo é que sempre foi utilizado em exclusivo – habitado, ocupado, conservado e transformado – pelo segundo marido da dita FF, pela única filha deste segundo casamento e pelo marido da mesma e, depois da morte destes, pelos aqui autores, que sempre se comportaram e continuam a comportar como seus únicos donos, à vista e com conhecimento de toda a gente, sendo reconhecidos e tidos por todos como legítimos e verdadeiros proprietários. Acresce que nem mesmo após a conclusão do processo de inventário, nem após o falecimento da mãe e avó dos autores, as rés alguma vez se apresentaram como donas e proprietárias do imóvel ou o reivindicaram dos seus possuidores. * Citadas, as rés invocam essencialmente que, por via do processo de inventário em que os autores também foram intervenientes, e que decorreu sem impugnações/reclamações, se está perante um direito adquirido que infirma os efeitos da usucapião, sendo as licitações definitivas e nunca tendo sido anteriormente invocada a posse por usucapião, nem qualquer erro. * Os autores contrapuseram que não é por não se terem apercebido de que o dito imóvel havia sido indevidamente integrado no acervo de bens a partilhar no processo de inventário aberto por óbito da dita FF, não terem reclamado da relação de bens, nem recorrido da sentença que adjudicou tal imóvel às rés, nem por terem sido pagas as tornas a que houve lugar, que perdem o direito a ver declarada a seu favor a aquisição do imóvel por usucapião, que constitui uma forma de aquisição originária que ocorreu em momento anterior àquela partilha.* No despacho saneador, foi relegada para final a apreciação da questão – anteriormente suscitada por despacho proferido na audiência prévia - atinente à eventual autoridade de caso julgado da sentença homologatória da partilha proferida naqueles autos de inventário.* Procedeu-se a julgamento e, findo o mesmo, a Mmª Julgadora a quo proferiu sentença que terminou com o seguinte dispositivo:Por todo o exposto, decido: A. Julgar não verificadas as excepções invocadas pelas rés. B. Declarar a favor dos autores, enquanto herdeiros, o direito de propriedade sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação, sito no lugar ..., inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...21. Custas a cargo das rés (art.º 527.º, do Código de Processo Civil). * As rés DD e EE interpuseram recurso desta decisão e formularam, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões:(…). * Nas contra-alegações que apresentam, os autores/recorridos concluem da seguinte forma:(…). * O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo. * Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * II. Questões a decidir Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal: 2. a impugnação da matéria de facto; 3. o efeito preclusivo do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha do processo de inventário n.º 31/10....; 4. a aquisição do direito de propriedade por usucapião; * III. Fundamentação de facto. Na decisão sob recurso foram dados como provados os factos que a seguir se transcrevem: * A decisão sobre recurso considerou como não provado o seguinte facto:“A) A ré EE, ao conviver no imóvel em causa, nunca se cruzou com os autores”. * IV. Do objeto do recurso Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões essenciais a decidir, é o momento de as apreciar. * 1. Nulidade da sentença Sustentam as recorrentes, na 8ª conclusão das suas alegações de recurso, que a sentença recorrida “padece de não pronúncia sobre questões que deviam ter sido apreciadas, gerando por isso, a nulidade da decisão em crise, pelo que se requer nova apreciação, de harmonia com o disposto no artigo 617º do C.P.C”. Vejamos. As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece, além do mais, que a sentença é nula quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d). O vício em causa prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos quer no artigo 608º, nº2 do Código de Processo Civil - «(o) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras» - quer, com referência à instância recursiva, pelas conclusões da alegação do recorrente, delimitativas do objeto do recurso, conforme resulta dos arts. 635º, nº4 e 639º, nº1 e 2, do mesmo diploma legal. Se o juiz deixa de conhecer questão submetida pelas partes à sua apreciação e que não se mostra prejudicada pela solução dada a outras, peca por omissão; ao invés, se conhece de questão que nenhuma das partes submeteu à sua apreciação nem constitui questão que deva conhecer ex officio, o vício reconduz-se ao excesso de pronúncia. Todavia, importa definir o exato alcance do termo «questões» por constituir, in se, o punctum saliens da nulidade. É pacífico o entendimento de que a nulidade consistente na omissão de pronúncia só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada. As questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções deduzidas, desde que se apresentem, à luz das várias e plausíveis soluções de direito, como relevantes para a decisão do objeto do litígio e não se encontrem prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio. E não se confundem com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia. Recorrendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis[1], “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º nº 1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”. Na ação, os autores formularam o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel acima identificado, com fundamento no instituto da usucapião, enquanto as rés, nas respetivas contestações, para além de impugnarem a factualidade aduzida na contestação, sustentam que a adjudicação desse imóvel em processo de inventário - onde a mãe e avó dos autores interveio na qualidade de interessada e no qual foi proferida sentença homologatória da partilha já transitada em julgado - impede o reconhecimento daquela pretensão. Sucede que a sentença recorrida não apenas se pronunciou sobre a matéria de exceção invocada pelos réus, concluindo pela inexistência da verificação da autoridade de caso julgado da sentença homologatória da partilha alcançada no referido processo de inventário - e consequentemente pela não preclusão da apreciação do direito que os autores pretendiam fazer valer na ação - como também pela procedência, em face dos factos considerados provados, da concreta pretensão dos autores. Não houve, portanto, omissão de pronúncia sobre qualquer questão controvertida que o Tribunal houvesse que decidir, concretamente a mencionada exceção invocada pelas rés nas respetivas contestações e a situação da dominialidade do imóvel em causa precisamente com fundamento na causa de pedir invocada pelos autores. Acresce que, nas conclusões do recurso, não fazem as recorrentes qualquer referência às concretas “questões” que entendem dever ter sido apreciadas pelo tribunal a quo. Limitam-se a aludir, na motivação do seu recurso, que o tribunal não se pronunciou sobre um conjunto de factos (tais como, supostos prejuízos pela privação de uso do imóvel ou a utilização do mesmo pela mãe e avó dos autores e por mera tolerância dos réus) que, após a analise integral do processo, não logramos extrair das contestações que apresentaram; e que, diga-se, sempre configurariam uma impugnação motivada da factualidade alegada na petição inicial e não “questões” autónomas sobre as quais o tribunal se devesse expressamente pronunciar. Não padece, pois, a decisão da invocada nulidade. * 2. A impugnação da matéria de facto Em sede de recurso, as apelantes declaram expressamente pretender impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância, parecendo-nos que é à luz desta pretensão que formulam as conclusões elencadas sob os pontos 1º a 3º, 5º, 6º, 9º e 17º das suas alegações de recurso. Para a impugnação da matéria de facto deve a parte observar os requisitos legais previstos no art.º 640º do CPC, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objeto do recurso. Preceitua o artigo 640º do CPC: “1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Como se lê no Acórdão do STJ de 01.10.2015[2]: “Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus: Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão”[3]. Diz-se também no acórdão do STJ de 19 de fevereiro de 2015, acessível em www.dgsi.pt[4], que: “(...), a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto”. “…Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no nº 1 do artigo 662º do CPC”. “…É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640º, nº 1, proémio, e nº 2, alínea a), do CPC”. “…Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada”. Sobre a interpretação da alínea c) do artº. 640º do CPC escreve Abrantes Geraldes[5]: “O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”. Com este novo regime, em contraposição com o anterior, pretendeu-se que fosse rejeitada a admissibilidade de recursos em que as partes se insurgem em abstrato contra a decisão da matéria de facto. Nessa medida, o recorrente tem que especificar os exatos pontos que foram, no seu entender, erradamente decididos e indicar, também com precisão, o que entende que se dê como provado. A imposição de tais indicações precisas ao recorrente, visou impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.”[6]. Também por esses motivos, o recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorretamente julgados e indicar expressamente a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre esses pontos, tem igualmente que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos. Assim, quanto a cada um dos factos que pretende obter diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados, criticar os mesmos e, discriminadamente, concluir pela resposta que deveria ter sido dada, evitando-se assim que sejam apresentados recursos inconsequentes, e sem fundamentação que possa ser apreciada e analisada. A este ónus de impugnação, soma-se um outro não menos importante, que é o ónus de conclusão, previsto no art.º 639.º, nº 1 do CPC, onde se lê que o «recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão». Este ónus de conclusão para além de visar a síntese das razões que estão subjacentes à interposição do recurso, visa também a definição do seu objeto. Como se refere no Acórdão do STJ de 16/05/2018[7] disponível in www.dgsi.pt: “Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração. Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso. Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art.º 640º, nº 1, als. a) e c) do CPC, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte.” Assim, pretende-se que o recorrente indique de forma resumida, através de proposições sintéticas, os fundamentos de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão, para que seja possível delimitar o objeto do recurso de forma clara, inteligível, concludente e rigorosa[8]. No caso dos autos, percorrendo as alegações e conclusões de recurso, parece-nos resultar evidente quer o incumprimento das especificações obrigatórias previstas, desde logo, no nº1 do art.º 640º do CPC, quer a inobservância do ónus de conclusão previsto no art.º 639º, n.º 1 do mesmo diploma legal. Desde logo, analisando as conclusões do recurso, é patente que as mesmas não indicam os pontos da matéria de facto que as apelantes entendem incorretamente julgados, designadamente por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença. E mais se verifica que as apelantes se limitam a, de forma conclusiva, vaga e genérica, manifestar a sua discordância quanto à apreciação crítica e valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo relativamente aos factos que se consideraram provados. Com efeito, sem identificarem, de entre o elenco daqueles que a sentença considerou provados, um único facto que consideram mal julgado (e muito menos os meios de prova que sobre eles imporiam uma decisão diversa), circunscrevem as conclusões do recurso, na parte atinente à impugnação da matéria de facto, a expressões de teor vago, genérico e sobretudo conclusivo como, (a) sentença não procedeu, como lhe está imposto, ao exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção (…) o Tribunal fundou a sua convicção unicamente no depoimento dos Autores e na prova testemunhal apresentada por estes, não analisando criticamente a respetiva valoração dos factos dados como provados, nem, tão pouco o depoimento das Rés, ora Recorrente (…) a douta julgadora, ao desconsiderar a matéria de facto alegada pelas Recorrentes e a apreciar incorretamente documentos probatórios (…), não indicando quais os concretos factos que entende terem sido mal julgados e muito menos os concretos meios de prova que impunham a diversa decisão sobre eles. Ou seja, não identificam as apelantes os factos que pretendem ver alterados, nem efetuam qualquer análise crítica dos elementos de prova que consideram relevantes à infirmação que dizem querer e tampouco esclarecem em que medida em que tais meios de prova relevam para alteração do decidido. Acresce que, decorrendo da motivação das suas alegações que as apelantes fundam a visada impugnação da matéria de facto em meio de prova gravada - aludindo (sempre de forma genérica) a depoimentos testemunhais e declarações de partes que imporiam decisão da matéria de facto de sentido contrário ao propugnado na sentença recorrida – omitem por completo quais as passagens da gravação de cada um dos depoimentos testemunhais/declarações de parte, que seria exigível que assinalassem para impugnar os pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados. Em consequência, entendemos que as omissões assinaladas conduzem inexoravelmente à rejeição do recurso no que se refere à pretendida impugnação da decisão sobre matéria de facto. Com efeito, tem sido também jurisprudência pacífica, e que se perfilha, que no âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito. A intenção da lei é não permitir impugnações vagas e genéricas da decisão da matéria de facto, sendo aqui mais exigente no princípio da autorresponsabilidade das partes. É que, essa maior responsabilização é premiada com um alargamento do prazo processual para a apresentação das alegações quando o recurso se funda também na impugnação da matéria de facto. A tal acresce que, a leitura das normas que regem esta matéria não permite outro entendimento, como resulta da análise do teor taxativo do artigo 640º e da previsão dos casos que justificam o convite constante do artigo 639º do Código de Processo Civil[9]. Considerando o que ficou exposto, temos que, no caso dos autos, não estão reunidos os pressupostos de ordem formal para admitir a reapreciação da decisão da matéria de facto requerida, que assim se rejeita. * Considerando que não haverá nenhuma alteração a introduzir na decisão relativa à matéria de facto (até porque também não vislumbramos qualquer outro facto alegado pelas partes com relevo para a decisão da causa, que se deva considerar assente seja por confissão, seja por documento com força probatória plena) a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir será assim a já constante de III. * 3. O efeito preclusivo do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha do anterior processo de inventário Na conclusão n.º 4, os recorrentes referem: “(d)iz-se que uma decisão não anula a outra, mas a presente sentença anula a sentença do processo de inventário, cujo trânsito em julgado já ocorreu em 2015”. Pese embora o seu teor algo equívoco, em nossa opinião, esta conclusão, se complementada com o conteúdo das alegações de recurso[10], é suscetível de ser interpretada como uma pretensão de recurso sobre o segmento decisório (da sentença) que julgou improcedente a exceção de autoridade de caso julgado. Vejamos, então. Como decorre da factualidade enunciada, o imóvel em discussão foi integrado na relação de bens do inventário para partilha das heranças (cumuladas) de FF - avó e bisavó do primeiro e segundo autor, respetivamente - e do primeiro e pré-falecido marido desta, nele intervindo como interessados a mãe e avó dos aqui autores e os descendentes daquele primeiro casamento. Tal imóvel, correspondente à verba n.º 55 daquela relação de bens da inventariada FF, foi, em conferência de interessados, licitado pelas rés e adjudicado às mesmas por sentença homologatória de partilha, transitada em julgado em 24 de abril de 2015, não tendo havido emenda da partilha, nem ação destinada a obter a anulação da partilha. Pretendem as recorrentes que, perante esta factualidade, ocorre caso julgado inibidor da propositura da presente ação, entendimento que não foi acolhido na sentença recorrida. Vejamos. A expressão caso julgado quer retratar a realidade jurídica de uma situação já jurisdicionalmente apurada, já julgada. A doutrina tem chamado a atenção para as diversas perspetivas - e concernente alcance - com que o instituto pode ser equacionado. E assim, por exemplo, se vem distinguindo o caso julgado como exceção dilatória da figura da autoridade do caso julgado ou ainda do alcance ou efeito preclusivo do caso julgado. Como exceção dilatória, o caso julgado visa obstar à repetição de uma causa e evitar que o tribunal se veja na contingência de ter de reproduzir ou contrariar a anterior decisão (art.º 580º, nº 1 e nº 2, do CPC), definindo a lei a noção de repetição da causa através dos consabidos critérios de identidade de sujeito, de pedido e de causa de pedir (art.º 581º do CPC). Por seu turno, como autoridade, o alcance do julgado recorta-se, já não como obstáculo processual a uma causa seguinte mas, mais positivamente, pela afirmação do que já antes foi decidido como objeto e que, por isso, já se não pode discutir - de uma outra (e precedente) causa. A fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais encontra-se traçada, entre outros, no sumário do Ac. da Relação de Coimbra de 28/09/2010[11], onde se lê: “A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 581º, do CPC”. De referir ainda que vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores que a verificação de uma ou outra tem diferentes consequências: a verificação da exceção dilatória de caso julgado impõe a extinção da instância por julgamento de forma – não há pronuncia de mérito; na situação de se concluir pela autoridade de caso julgado, então a primeira decisão impõe-se na segunda ação, sendo a decisão a proferir em conformidade de mérito (procedência ou improcedência)[12] Importa ainda fazer referência ao designado efeito preclusivo do caso julgado[13]. Dentro do processo, a definitividade da decisão impede que nele ela seja contraditada ou repetida (o designado caso julgado formal). “Fora do processo, produz-se um efeito preclusivo material: não só precludem todos os possíveis meios de defesa do réu vencido e todas as possíveis razões do autor que perde a ação, mas também, com maior amplitude, toda a indagação sobre a relação controvertida, delimitada pela pretensão substantivada (pedido fundado numa causa de pedir) deduzida em juízo” [14]. Feitas estas breves considerações, que entendemos necessárias a um adequado enquadramento que a apreciação deste concreto fundamento do recurso demanda, desde já adiantamos, tal como a sentença recorrida, ser concluir que o trânsito em julgado da sentença homologatória proferida no sobredito inventário não inibe os autores da propositura desta ação onde reclamam o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel ali partilhado e adjudicado às rés, com fundamento na aquisição originária do mesmo por usucapião. Tal como refere a Mmª Juíza a quo, a sentença homologatória de partilhas, na expressão de Lopes Cardoso[15], limita-se a "chancelar", "autenticar" uma dada partilha, mediante a qual se atribui aos respetivos interessados o direito de propriedade sobre certos e determinados bens; tal decisão só surtirá, contudo, eficácia de caso julgado no tocante às questões que, "ex professo", hajam sido discutidas e dirimidas no correspondente processo de inventário. Se bem que os autores devam ser considerados os únicos herdeiros de HH, que interveio como interessada naquele inventario (sendo, por isso, inquestionável, para efeitos de apreciação deste exceção, a verificação do referido pressuposto da identidade jurídica de sujeitos), a verdade é que, no aludido inventário, não houve qualquer incidente de reclamação contra a relação de bens na parte atinente ao imóvel descrito sob a verba n.º 55, pelo que a sentença homologatória do inventário não apreciou nem se pronunciou sobre o direito de propriedade relativo ao bem imóvel em causa nestes autos, antes aceitou como bom o pressuposto de que tal bem integrava a herança aberta por óbito de FF, procedendo à respetiva partilha, de acordo com os quinhões hereditários de cada um dos herdeiros de cada um dos inventariados. Acresce que o efeito preclusivo do julgado se relaciona essencialmente com a posição passiva na ação judicial e resulta de dois mecanismos processuais distintos. “Efectivamente, o princípio de concentração da defesa na contestação (art. 573º do CPC), incluído na defesa superveniente (como se deduz da conjugação dos artigos 588º, n.º 1, e 729º, al. g)) determina a preclusão de toda a defesa que haja oportunamente feito valer contra a concreta causa de pedir invocada pelo autor. Assim, o réu que perdeu já não pode, depois, na oposição à execução (cf. artigos 729º, al. g), a contrario, e 860º, n.º 3) invocar as exceções que não usara, como por ex. a nulidade do contrato invocado pelo autor, para se negar ao pagamento. Mas, por outro lado, tampouco o pode fazer em (i) ação autónoma ou em (ii) reconvenção, porque lhe vai ser oposta a autoridade de caso julgado decorrente da vinculação positiva externa do caso julgado assente no art.º 619º do CPC, em sede e objetos em relação de prejudicialidade”[16]. Sucede que, no processo inventário, as partes interessadas não têm a qualidade de demandantes e demandados. Como bem se refere na sentença recorrida, “o processo de inventário é um processo complexo, podendo ele configurar-se como um processo de jurisdição voluntária ou já de feição contenciosa, tudo dependendo da circunstância de, no seu decurso, surgirem questões entre os interessados que provoque ou não a actividade jurisdicional para decidir controvérsias. Se o juiz for chamado e forçado a decidir, a administrar justiça, transformando-se o processo em contencioso, deixando a jurisdição de ser voluntária e provocando a apreciação de prova produzida e do direito aplicável e subsequente decisão de mérito, aí nenhuma dúvida oferece que, em sede de julgamento de questões de índole contenciosa, a consequência será o funcionamento da excepção de caso julgado e da autoridade do caso julgado. Será o caso de questão incidental suscitada em sede de reclamação contra a relação de bens e julgada em processo de inventário se impor à subsequente demanda em acção declarativa comum, nomeadamente em acção de reivindicação, já que, à semelhança desta, o incidente de reclamação contra a relação de bens visa também ele a inclusão ou restituição de um bem em falta a um património comum e não meramente a apreciação acerca da titularidade de um direito. Ora, no inventário em causa, não houve qualquer incidente de reclamação contra a relação de bens atinente à dita verba n.º 55, sendo que só nessa sede se poderia aferir se decisão ali proferida se repetiria aqui quanto à causa de pedir e pedido ou se este tribunal ficaria colocado em posição de possível contradição com o decidido e que se impunha, visto que com o inventário sem mais tais coincidências de causa de pedir e pedido nunca se poderiam verificar”. Quer isto dizer que não vislumbramos in casu qualquer decisão prejudicial que haja sido tomada naquele inventário que possa ser contraditada por uma (posterior) decisão judicial que, com fundamento na aquisição originária (usucapião) do imóvel ali relacionado e adjudicado às rés, reconheça aos autores do direito de propriedade sobre esse mesmo imóvel. De facto, como nos diz o sumário do Acórdão da RG de 6.02.2020, “(a) a sentença homologatória da partilha não constitui caso julgado numa acção de reivindicação da propriedade de uma verba quando no inventário, não tendo corrido qualquer incidente declarativo, não se apreciou nem a titularidade do bem, nem se definiu a sua área, configuração concreta e limites”[17]. Por estas razões, entendemos ser de manter a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a exceção de violação da autoridade de caso julgado invocada pelas rés. * 4. A aquisição da propriedade por usucapião Cabe, por fim, averiguar, se perante a factualidade considerada provada, se deve manter, ou não, a decisão recorrida que, com fundamento na verificação dos pressupostos da usucapião, julgou procedente a ação e declarou “a favor dos autores, enquanto herdeiros, o direito de propriedade sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação, sito no lugar ..., inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...21º”. Este fundamento de recurso extrai-se claramente, entre outras, da conclusão décima das alegações das apelantes (“A matéria de facto, face aos factos dados como provados e não provados, demandava um diferente enquadramento, pelo que deveria o direito de propriedade relativamente ao imóvel em causa ter sido reconhecido às rés e não aos autores”)[18] Vejamos então. Arredando todos os considerandos que apenas se relacionam com as consequências jurídicas que as apelantes pretendiam extrair do efeito do caso julgado da decisão homologatória do mapa da partilha do processo de inventário n.º 31/10...., parece-nos ser possível sintetizar no seguinte elenco os argumentos das recorrentes contra a subsunção jurídica operada pela Mmª Juíza a quo: - Pelo menos até ao ano de 2015, a utilização do imóvel por parte da mãe/avó dos autores não poderia ter sido considerada uma verdadeira posse, mas antes uma situação de mera detenção, tolerada pelo proprietário do terreno, pelo que que jamais deveria ser considerada a data de 1967 para efeitos de início da contagem do prazo de usucapião, - A considerar-se que após a aquisição do imóvel pelas rés no processo de inventario, no ano de 2015, foi exercida pela mãe e avó dos autores, e pelos próprios, uma verdadeira posse sobre tal imóvel, nunca a mesma poderia ser tida como titulada e de boa fé, razão pela qual não poderia a sentença recorrida julgar decorrido o prazo para a aquisição por usucapião; - Tampouco a eventual posse invocada pelos autores poderia operar como presunção da titularidade do direito de propriedade em detrimento da presunção de propriedade de que beneficiam os réus e que decorre da inscrição de aquisição do direito de propriedade a seu favor no registo predial. Vejamos. A questão jurídica que importa apreciar é a de saber se os autores, enquanto (únicos) herdeiros de GG e HH (e marido desta), adquiriram o direito de propriedade do identificado imóvel por via do instituto da usucapião. O direito de propriedade adquire-se, além do mais, por usucapião (art.º 1316º, do CC). A usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade baseada na posse. A posse consiste no poder de facto que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º do CC). O nosso legislador acolheu a conceção subjetiva da posse, segundo a qual a posse é integrada por dois elementos: o corpus (elemento material) – que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efetivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício – e o animus (elemento intelectual), que consiste na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto[19]. Donde a exigência, em qualquer sistema possessório, de uma posse em nome próprio, de uma intenção de domínio, e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade[20]. Para conduzir à aquisição da propriedade, por via da usucapião, a posse tem de revestir duas características: ser pública e pacífica. As restantes características (ser de boa ou má-fé, titulada ou não titulada, estar ou não inscrita no registo) apenas relevam para a determinação do prazo da usucapião. Por isso é que se estipula no art.º 1263º do CC que a posse se adquire pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito (alínea a), pela tradição material ou simbólica da coisa, efetuada pelo anterior possuidor (alínea b), por constituto possessório (alínea c) e por inversão do título da posse (alínea d). Por outro lado, o art.º 1252º, nº 2 do CC estabelece uma presunção de posse em nome daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), justificando-se esta presunção por ser difícil fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente - neste sentido, o Acórdão do STJ de 14/05/1996,[21] que uniformizou jurisprudência no sentido de que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa”. Assim, incumbia aos autores o ónus da alegação e demonstração (art.º 342º. n.º 1 do CC) de todos os factos que integram os identificados pressupostos daquela sua pretensão. A título de questão prévia, é de registar, como se faz na sentença recorrida, que alegada posse que dá origem à usucapião se iniciou antes da vigência do Código Civil de 1966, pelo que estamos perante uma situação jurídica criada no domínio do Código Civil de 1867, razão pela qual os seus efeitos devem ser resolvidos no âmbito desse código, por imposição do art.º 12º do Código Civil de 1966. Apenas no caso de haver alteração dos prazos, há que observar a regra do disposto no art.º 297º do CC de 1966, desde que o prazo ainda não tenha completado. De acordo com a factualidade assente, o imóvel em causa existiria já desde 1937 e integrava o património comum do casal formado por FF e GG[22], que se dissolveu por morte da primeira ocorrida no ano de 1965. Como os direitos que dimanam da sucessão se regulam pela lei vigente ao tempo da sua abertura, é aplicável aqui o Código Civil de 1867 (designado Código Civil de Seabra), sendo herdeiros da referida FF apenas os filhos desta (do primeiro e do segundo casamento) e já não o mencionado GG[23], que apenas é meeiro, dado o regime de bens. Dissolvido o vínculo conjugal, por óbito da mencionada FF, o património comum degenera em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo o cônjuge sobrevivo dispor da sua quota ideal ou pedir a divisão da massa patrimonial através da partilha da herança daquela para a concretização da sua meação em bens certos e determinados. Este direito à meação, que assiste ao cônjuge sobrevivo (que, no caso, não é herdeiro), de receber a sua meação do património coletivo, não se confunde com a herança, já que constitui um direito próprio relacionado com o vínculo conjugal, pese embora o preenchimento da meação seja feito ao mesmo tempo que a partilha dos bens que constituem a herança do cônjuge falecido. Tudo isto serve para dizer que a demonstração da invocada posse, exclusiva e em nome próprio, por parte do identificado GG, bisavô e avô dos autores, não dispensa a prova de factos de onde resulte a inversão do título de posse[24], a que aludia o artº. 510º do Código Civil de 1867 (norma de conteúdo semelhante ao atual artº. 1265º do Código Civil), e que tem de consistir numa oposição, visível e percetível, no caso, aos direitos de (todos) os herdeiros da mencionada FF (incluindo, portanto, os filhos do primeiro casamento desta e seus descendentes), ou seja, às pessoas que diretamente tem interesse no direito em questão. De contrário, a manutenção da utilização do referido imóvel por aquele GG, nos termos em que o fazia antes da morte da sua mulher, teria sempre de ser considerada uma posse precária[25] Ora, como bem se refere na sentença recorrida, “(…) resulta, da factualidade apurada, ter o cônjuge sobrevivo GG invertido o título da posse sobre o referido prédio urbano. Com efeito, resulta que GG, desde o falecimento da mulher, passou a exercer uma posse sobre o referido prédio diferente da posse dos herdeiros, pois usou, deteve, fruiu, transformou, conservou o referido prédio, por si ou através de outrem, a seu mando ou mediante sua autorização, dele extraindo todas as utilidades de que é susceptível, de modo pleno, pessoal e exclusivo, à vista de toda a gente, sem oposição, continuadamente, na convicção de exercer um legítimo direito de propriedade e ignorando, ao adquirir tal posse, que lesasse os direitos de outrem, categoricamente deixando claro perante os herdeiros falecida (sublinhado nosso) assumida vontade de possuir plena, pessoal e exclusivamente o dito prédio como seu verdadeiro e único proprietário, o que, aliás, pelos mesmos era reconhecido, tal como a generalidade das pessoas. Reuniu, assim, corpus e animus, reunião essa necessária para servir de base à posse, sendo a sua posse pacífica, contínua e pública”. Conclui-se igualmente da matéria de facto provada que tal atuação, iniciada no ano de 1965, perdurou, de forma ininterrupta, até ao seu falecimento, ocorrido em julho de 1991, estando tal lapso temporal abrangido pela vigência quer do Código Civil de 1867, quer do Código Civil de 1966. Com efeito, a prática reiterada dos atos de posse (não titulada) pelo dito GG prolongou-se por 1 ano, 9 meses e 22 dias, no âmbito do Código de Seabra, e por e por 24 anos, um mês e 9 dias na vigência do no Código Civil atual. Acontece que na vigência do Código de Seabra a posse não titulada era sempre juris et de jure de má fé, pelo que a prescrição aquisitiva só se consumava ao fim de 30 anos (arts. 476º e 529º do Código Civil de 1867). Completando-se o prazo de 30 anos previsto no Código de 1867 já na vigência do atual Código Civil, há que ver se é de aplicar a regra do art.º 297º do CC sobre a alteração dos prazos, já que o prazo foi encurtado para 20 anos (art.º 1296 do CC). Tendo a lei nova reduzido o prazo da usucapião, o n.º 1 do art.º 297º do Código Civil de 1966 determina ser este aplicável aos que estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar. O prazo iniciou-se em 9 de agosto de 1965 e o atual Código Civil entrou em vigor em 1 de julho de 1967 (art.º 2º, n.º 1, 1ª parte do DL n.º 47344, de 25.11.1965). Logo, pela lei antiga faltavam cerca de 28 anos, dois meses e 8 dias para o prazo nela estabelecida (30 anos) se completar, e sendo este superior ao estabelecido no Código Civil de 1966 (20 anos), será aplicável o prazo mais curto de 20 anos estabelecido pela lei nova, contado a partir do momento da entrada em vigor desta lei, o qual já se mostrava consumado, quer à data da citação da rés para os termos da presente ação (arts. 552 nº2 do CC de 1867 e arts. 1292 e 323 nº1 do CC de 1966), quer à data da instauração do supramencionado processo de inventário. Concluímos, por conseguinte, que o mencionado GG exerceu a posse – pública a pacífica - sobre o prédio em referência durante mais de 20 anos, contados desde o dia 1 de julho de 1967, ou seja, pelo lapso de tempo suficiente para adquirir o correspondente direito de propriedade por usucapião. O acabado de expor é, a nosso ver, suficiente para julgar manifestamente improcedentes os aludidos argumentos esgrimidos contra a subsunção jurídica feita pela sentença recorrida, pois, perante a factualidade nela assente (designadamente nos pontos 27 e segs.), não se vê como considerar que até ao ano de 2015, o referido GG e, após a morte deste, a mãe e avó dos autores, foram meros detentores precários do imóvel. Por outro lado, é sabido que, nos termos da lei - art.º 1288º do CC – “(i)nvocada a usucapião, os seus efeitos se retrotraem-se à data do início da posse” e o artº. 1317º, al. c) do mesmo Código prescreve (com linear clareza) que o momento da aquisição do direito de propriedade por usucapião é o do início da posse. Como decorrência necessária desta regra da retroatividade, há que concluir que, à data da instauração do inventario, o imóvel já não integrava a herança de FF, pelo que a adjudicação, naquela sede, às ora rés configura um ato ineficaz em relação aos aqui autores (enquanto sucessores dos ditos GG e HH). Por último, importa referir que não temos notícia alguma, nem através da factualidade dada como provada, nem pela análise dos documentos juntos aos autos, da existência de qualquer registo de aquisição (na conservatória do registo predial), a favor das recorrentes, da titularidade do imóvel em causa nos autos. Pelo contrário, a omissão da descrição do imóvel na conservatória do registo predial consta dos factos provados na sentença, pelo que, salvo devido respeito, parece-nos destituída de qualquer fundamento a convocação da presunção prevista no artº. 7º do Código de Registo Predial como facto impeditivo do reconhecimento do direito de propriedade dos autores. Improcede, assim, a presente apelação. * Sumário (ao abrigo do disposto no art.o 663º, n.º 7 do CPC): (…). * V. Decisão. Perante o exposto, acordam os Juízes desta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida. Custas do recurso pelas apelantes. * Coimbra, 8 de outubro de 2024
Assinado eletronicamente por: Hugo Meireles Francisco Costeira da Rocha Anabela Marques Ferreira
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] (CPC Anotado, Vol. V, pg. 143). [3] Cfr., também, sobre esta matéria, Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 465 e que, nesta parte, se mantém atual). [12] Cf, o Ac. da STJ de 30-04-2024, proc. 5765/03.5TVLSB-A.L2.S1, in www.dgsi.pt [18] Não tendo as recorrentes formulado nos autos qualquer pedido reconvencional, resulta incompreensível, salvo o devido respeito, que concluam o seu recurso requerendo que, na hipótese de não se entender que o processo deverá ser reenviado à primeira instância por via das nulidades invocadas, este Tribunal da Relação reconheça o direito de propriedade das rés sobre o imóvel em causa nos autos e ordene a que o mesmo lhes seja restituído livre de pessoas e de bens. [22] Na vigência do Código de Seabra, a comunhão geral de bens constituída o regime supletivo. De facto, perante a falta de convenção dos nubentes sobre a escolha do regime de bens, aplicava-se o regime supletivo que consistia na comunhão geral de bens, prevendo o art. 1098.º do código que “na falta de qualquer acordo ou convenção, entende-se, que o casamento é feito segundo costume do reino”. |