Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANA CAROLINA CARDOSO | ||
Descritores: | CARTA DE CONDUÇÃO POR PONTOS PERDA DE PONTOS NOTIFICAÇÃO DA PERDA DE PONTOS VIOLAÇÃO DO DIREITO DE AUDIÇÃO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA DA CERTEZA JURÍDICA E DA CONFIANÇA DOS CIDADÃOS | ||
Data do Acordão: | 06/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 69.º E 292.º DO CÓDIGO PENAL/C.P. ARTIGOS 121.º-A, 148.º, N.º 2 E 4, E 149.º, N.º 1, DO CÓDIGO DA ESTRADA/C.E. ARTIGO 50.º DO D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/RGCO | ||
Sumário: | I – A subtração de pontos do título de condução, estabelecida no artigo 148.º do Código da Estrada, constitui um efeito automático do trânsito em julgado da decisão administrativa que condene o condutor pela prática de contraordenação grave ou muito grave ou da sentença que aplique ao condutor a pena acessória de proibição de conduzir, prevista no artigo 69.º do Código Penal.
II – Sendo a subtração de pontos automática, não é aplicável em tais situações nem o artigo 50.º do RGCO, nem os artigos 119.º, alínea d), e 123.º do Código de Processo Penal, nem o artigo 195.º do Código de Processo Civil. III – A cassação da carta de condução por perda de pontos ocorre sempre que o condutor incorra em duas condenações em pena acessória de proibição de conduzir, com uma diferença temporal inferior a 3 anos. IV – A submissão a acção de formação em segurança rodoviária ou a nova prova teórica tem uma função pedagógica, mas não tem a virtualidade de acrescentar novos pontos à carta de condução. V – A carta de condução é uma licença administrativa, que pode ser revogada no caso de prática de actos de desrespeito grave pela proteção de terceiros, pode caducar, podendo ainda o seu titular ser sujeito à verificação periódica da subsistência das condições físicas e psíquicas que o habilitem a conduzir. VI – A compressão do direito de um cidadão ser titular de carta de condução, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, tem na base o confronto deste direito com o direito dos outros cidadãos de circularem na vida pública com segurança, assumindo aqui particular relevo as medidas legislativas adotadas para prevenção e combate à sinistralidade rodoviária, nomeadamente o combate às atividades suscetíveis de elevar o perigo na condução e, em consequência, a sinistralidade, resultando manifesta a proporcionalidade das restrições dos direitos individuais, quer com a retirada de pontos da carta de condução, quer com o direito de exercer a condução automóvel, que é subtraído ao cidadão através da cassação da carta de condução. | ||
Decisão Texto Integral: | Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório AA interpôs recurso da sentença proferida no processo de recurso de contraordenação n.º 1778/22.6T8CBR.C1, do Juízo Local Criminal de Coimbra – J..., Comarca de Coimbra, que manteve a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação da sua carta de condução … * (transcrição da parte relevante para a apreciação do recurso): “(…) Realizado o julgamento, com audição da testemunha arrolada, mostram-se assentes os seguintes factos: 1.º O arguido/recorrente foi condenado no âmbito do processo sumário n.º 51/18...., que correu termos no Juiz ... do Juízo Local Criminal de Coimbra, pela prática, em 15/03/2018, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal e de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos n. os 1 e 2 do artigo 348.º do Código Penal. 2.º A sentença condenatória foi proferida e notificada ao arguido em 03/04/2018, tendo transitado em julgado em 03/05/2018. 4.º Volvidos cerca de dois anos, o arguido/recorrente foi condenado, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 42/20...., que correu também os seus termos no Juiz ... do Juízo Local Criminal de Coimbra, pelo cometimento, em 07/03/2020, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1 do Código Penal. Consequentemente, sendo a perda de pontos um efeito automático resultante da lei, não estando prevista qualquer notificação desse efeito e sendo a decisão de cassação impugnável, nos termos gerais, não se vislumbra que se verifique qualquer violação do direito ao contraditório ou do direito de defesa do arguido.
* (conclusões que se transcrevem integralmente):
«I- … II- Na douta sentença recorrida, o tribunal a quo considerou provados, os seguintes factos: … III- … IV- A douta sentença em crise andou mal ao decidir que a perda automática de pontos é consequência necessária e automática do trânsito em julgado da decisão condenatória, correferindo que “o sistema de pontos tem um sentido essencialmente pedagógico, seja pela subtração de pontos, seja pela sua concessão, estimulando do condutor para comportamentos estradais de índole positiva, sendo que aquela subtração, e designadamente a que está diretamente em causa nos presentes autos, ocorre como efeito automático da infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo ou um índice da gravidade da infração cometida.“ IV- O arguido arguido/recorrente apenas leve conhecimento dos dois atos administrativos da subtração dos pontos, quando foi notificado para se pronunciar e para impugnar a decisão administrativa. V- Os condutores não têm acesso automático aos pontos que detêm na carta de condução, uma vez que o sírio da internet criado para o efeito (https://portalcontroordenacaes.ansr.pt/), não funciona, não sendo permitida a consulta de pontos, o que claramente viola o n.º 3 do artigo 149.° do Código da Estrada. VI- Aquando da prolação da segunda sentença condenatória pela prática de crime estradal, o arguido/recorrente telefonou para os serviços da ANSR, tendo-lhe sido informado que, naquela data, este detinha 15 pontos na sua carta de condução. VII- O facto de não ter ocorrido qualquer notificação da retirada dos primeiros seis pontos da carta de condução; a informação errada acerca dos pontos; e a não referência a tal consequência nas doutas sentenças, criou uma verdadeira "decisão-surpresa" para o arguido/recorrente, prejudicando, de sobremaneira, as suas legítimas expectativas jurídicas, para além de inibir o efeito repressivo das decisões, a título de prevenção especial, por via da falta de notificação/conhecimento da retirada de pontos. VIII- A alínea c) do n.º 4 e o n.º 10, ambos do artigo 148.º do Código da Estrada, violam o Princípio da Segurança Jurídica e bem como o da Certeza Jurídica e Proteção da Confiança dos Cidadãos, previsto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido que o arguido não tem que ser notificado da respetiva perda de pontos. Bem como tal interpretação viola o princípio da igualdade entre cidadãos, nos termos do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. IX- A entidade administrativa, ao não retirar automaticamente os primeiros seis pontos da carta do arguido, nem o notificando de tal, retirando-os do seu cadastro estradal apenas quando o arguido foi novamente condenado, e notificando-o apenas do processo de cassação, num momento ulterior à segunda sentença, prejudicou, acima de tudo, o princípio da segurança jurídica, parte integrante do "principio do Estado de direito democrático, consagrado no antigo 2.ºda Constituição (que), postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas, razão pela qual a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitraria ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito tem de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Constituição." (vide douto acórdão do Tribunal Constitucional, publicado em: http://www.dgsi.pt/atco1.nsf/904714e45043f49b802565fa004a5fd7/75ac6ea5760f07df80256 82d00648ad7?OpenDocument). X- Ao não ser dada ao arguido a conhecer a retirada dos primeiros seis pontos da sua carta de condução, foi-lhe, outrossim, vedado o eventual direito a recuperar ou a aumentar os seus pontos, nos termos dos nºs 5 a 7 do artigo 148.º do Cód. da Estrada. Para além que, a falta de notificação do arguido/recorrente do ato automático de retirada de pontos, configurou uma violação do direito de audição em processo de contraordenação - previsto no artigo 50.º do Ilícito de Mera Ordenação Social e que tem consagração constitucional no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (Princípio do Contraditório). XI- A liberdade de informação é um direito fundamental essencial (artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa) e tem uma importância extrema no direito administrativo. Sendo, ainda, uma pedra basilar de todas as liberdades, o direito à informação é um elemento imprescindível para a fruição da liberdade de expressão e, é também, essencial para garantir a transparência e fiscalização dos poderes públicos e a salvaguarda dos direitos fundamentais. Ora, o “direito à informação administrativa”, presente no nº 2 do art.º 268º da Constituição da República Portuguesa, impõe que a Administração paute a sua atividade pelos princípios da transparência e da publicidade de modo a que não só as suas decisões sejam públicas e acessíveis, mas também que o procedimento que as precede possa ser objeto de consulta e informação pois que só assim se promove a formação de uma opinião pública esclarecida e só assim se permite que os interessados conheçam as razões que determinaram os seus atos. XII- Tendo sido dado como provado o facto 9.º da lista de factos provados, deveria de ter o tribunal a quo revertido a decisão de cassação da carta de condução do recorrente, por violar os aludidos princípios constitucionais. XIII- Se o direito de audiência e defesa do arguido, bem como ao direito à informação passou a ser conferida dignidade constitucional, em sede de direitos liberdades e garantias, a postergação de tais direitos, só tem uma proteção adequada – a nulidade do processo contraordenacional. XIV- Sendo ao processo contraordenacional é subsidiariamente aplicável o processo penal, nos termos do artigo 41.º do Ilícito de Mera Ordenação Social, a ausência processual do arguido, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de audição (direito ao contraditório), conduz a que tais garantias fiquem irremediavelmente prejudicadas. Pelo que, tais garantias, consagradas constitucionalmente, só se podem tornar efetivas, tornando nulo o ato em que esse direito não tenha sido respeitado. XV- O ato em causa – decisão administrativa –, mesmo que não se entenda nulo (ao abrigo do disposto na alínea d) do artigo 119.º do Código de Processo Penal), o que não se concede, é irregular, pois a omissão do direito de audição e de defesa do arguido consignado no referidos artigos constitui, pelo menos, uma irregularidade suscetível de integrar uma invalidade processual já que pode influir na decisão da causa conforme resulta do teor o n.º 2 do artigo 118.º e do n.º1 do artigo 123.º, ambos do Código de Processo Penal. XVI- Tendo em conta que o que aqui se discute não tem, aliás, uma natureza puramente penal, uma vez que se trata de matéria relativa à obtenção do reconhecimento de uma qualidade exigida para o exercício de um direito meramente civil do recorrente, precedente à prática de um ato administrativo, e não da sua responsabilidade criminal ou contraordenacional, entendemos que se aplica, ainda que subsidiariamente, a regra geral sobre as nulidades na lei civil, mormente o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 195.º do Código de Processo Civil, pelo que, tendo a irregularidade invocada advindo da omissão de uma formalidade legal - a notificação/conhecimento pelo arguido -, produziu-se uma nulidade, porquanto esta irregularidade cometida influi diretamente na decisão da causa. XVII- Outrossim a decisão administrativa é nula por, mais uma vez, o arguido ver prejudicado o seu direito ao contraditório, dado que a entidade administrativa se recusou a ouvir as testemunhas por aquele arroladas, sem sequer indagar qual a razão de ciência daquelas e que factos se queria provar com o seu depoimento. XVIII- A decisão de cassação do título de condução do arguido é nula, quer do ponto de vista penal (Ex vi alínea d) do artigo 119.º do Código de Processo Penal), quer do ponto de vista civil (nºs 1 e 2 do artigo 195.º do Código de Processo Civil), devendo, por isso, ser assim declarada na douta sentença recorrida, pelo que se requer a V.ª Ex.ª a alteração desta em conformidade com o supra propalado, para os devidos e legais efeitos e com as devidas e legais consequências.». *
* 1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação conclui pelo não provimento do recurso do arguido, …
* II. Questões a decidir no recurso … ([1]).
Atendendo às conclusões recursivas apresentadas, cumpre conhecer das seguintes questões: - A violação do invocado direito de audição prévio à subtração dos pontos da carta de condução: - A necessidade de notificação de tal subtração; - Violação de vários princípios com assento constitucional, Tudo tendo por objetivo a declaração de nulidade da decisão administrativa proferida.
* III. Conhecimento do recurso A Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, que alterou o Código da Estrada, instituiu o denominado sistema de carta de condução por pontos, dispondo o art. 121º-Aº do referido Código, sob a epígrafe “Atribuição de pontos”: “1 - A cada condutor são atribuídos doze pontos. 2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º 3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º” Por sua vez, o art. 148º dispõe o seguinte: “1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos: a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves; b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves. 2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor. 3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância. 4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos; c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor. 5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A. 6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais. 7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento. 8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor. 9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator. 10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução. 11 – A que, tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor a qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação. 12 – A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação (…)”
2.
Ao recorrente foi aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses em virtude da prática do crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, praticado 15.3.2018, tendo a sentença condenatória transitado em julgado a 3.5.2018. Posteriormente, pela prática do mesmo crime, foi condenado por sentença transitada em julgado a 15.10.2020, na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 5 meses. Releva neste particular o n.º 2 do art. 148º transcrito, nos termos do qual se prevê a perda de seis pontos nos casos em que o condutor tenha sido condenado na pena de sanção acessória de proibição de conduzir, ou nos casos em que tenha havido arquivamento do inquérito no âmbito da suspensão provisória do processo, com cumprimento da injunção prevista no art. 281º, n.º 3, do Código de Processo Penal. No n.º 4 do mesmo art. 148º encontram-se previstas as consequências resultantes das perdas de pontos, esclarecendo a alínea c) que a perda total de pontos importa a cassação do título de condução. No caso dos autos, tendo o recorrente sido condenado, por sentenças transitadas em julgado, por factos posteriores à entrada em vigor das citadas alterações ao Código da Estrada, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, praticados em datas distintas, em penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados, viu ser-lhe subtraída a totalidade dos 12 pontos que lhe haviam sido atribuídos, o que tem como consequência necessária a cassação do título de condução. Prevendo o transcrito art. 148º, para além das causas de retirada de pontos da carta de condução, a atribuição de novos pontos, caberá ainda referir não ter decorrido, entre as condenações sofridas pelo recorrente, o período necessário à atribuição de mais pontos, conforme prevê o n.º 5 da norma em causa.
3. Antes da análise dos concretos fundamentos recursivos, atente-se no seguinte: Em 28.5.2015 deu entrada na Assembleia da República a Proposta de Lei do Governo nº 336/XII/4, que viria a ser aprovada por unanimidade. Na sua apresentação ao Plenário da Assembleia da República, a Exma. Ministra da Administração Interna, Anabela Miranda Rodrigues, justificou a alteração legislativa efetuada da seguinte forma ([2]): “Propõe-se a atribuição inicial de 12 pontos aos condutores, sendo que os condutores perdem dois ou quatro pontos pela prática, respetivamente, de contraordenações graves ou muito graves. A condução sob o efeito de álcool, acima dos limites legais, ou de substância psicotrópica tem um regime diferenciado pela particular e muito negativa contribuição para a sinistralidade rodoviária. Lembro, Sr.as e Srs. Deputados, que, em 2013, cerca de 1/3 dos condutores vítimas mortais em acidentes rodoviários apresentou uma taxa de álcool no sangue superior ao legalmente admitido. As contraordenações rodoviárias desta natureza, graves ou muito graves, implicam a perda de três ou cinco pontos, respetivamente. A possibilidade de extinguir contraordenações rodoviárias permite, e permitirá no futuro, orientar o sistema da carta por pontos para penalizar, em especial, aqueles comportamentos que mais contribuem para a sinistralidade rodoviária, permitindo também, desta forma, a maior consciencialização dos condutores para os perigos na estrada. É importante também salientar que, em termos da proposta, os crimes rodoviários passam a ter relevância para o regime da cassação da carta e implicam a perda de seis pontos. Ainda no que se refere à perda de pontos, prevê-se um limite de seis pontos para as contraordenações praticadas em cúmulo, exceto quando esteja em causa a condução sob o efeito do álcool ou substância psicotrópica. A subtração de pontos ao condutor tem consequências, mas, ao contrário do regime vigente, não se trata apenas da cassação da carta. Existe uma aposta clara na reabilitação do condutor através da frequência de ações de formação rodoviária e na realização do novo exame teórico de condução. Por último, gostaria ainda de sinalizar que os condutores têm a possibilidade de recuperar os pontos perdidos: por cada período de três anos sem que exista registo de contraordenações graves, muito graves ou crimes de natureza rodoviária são atribuídos três pontos ao condutor e é importante notar que os condutores poderão recuperar pontos até ao limite de 15, mais três do que os iniciais. O regime proposto não só penaliza o mau comportamento na estrada, como beneficia e, portanto, incentiva o bom comportamento…” Ou seja, recorreu o legislador à distinta gravidade das condutas e sua repetição como fundamento para a diferenciação quer dos pontos a retirar, quer dos pontos a recuperar, quer à sua recuperação, através da frequência pelo condutor de ações de formação rodoviária ou da realização de novo exame teórico de condução. Por outro lado, a perda de 6 pontos estipulada para quem pratica crimes rodoviários sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas constituiu uma opção legislativa clara, tendo em conta a gravidade das consequências da prática de tais ilícitos, o que foi logo anunciado na exposição de motivos da citada Proposta de Lei nº 336/XII/4: “A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.” Resulta assim manifesta a aplicação do princípio da proporcionalidade às restrições dos direitos individuais, quer na retirada de pontos da carta de condução, consoante a gravidade e efetuada uma graduação dos riscos para outros bens constitucionalmente protegidos, quer do direito de exercer a condução automóvel, que é subtraído ao cidadão através da cassação da carta de condução. A compressão do direito de um cidadão ser titular de carta de condução, prevista no art. 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada, tem na sua base o confronto deste direito com o direito dos outros cidadãos em circularem na vida pública com segurança, assumindo aqui particular relevo as medidas legislativas adotadas para prevenção e combate à sinistralidade rodoviária, nomeadamente o combate às atividades suscetíveis de elevar o perigo na condução e, em consequência, a sinistralidade – como sucede com a condução sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas (conforme prevê o art. 148º, n.º 1, do Código da Estrada). Resultando da sinistralidade rodoviária a ameaça dos direitos à vida e à saúde, o direito do recorrente a ser titular da carta de condução cede perante aquele, que constitui o direito supremo de qualquer pessoa. Tendo presentes estes princípios, em que assenta o recentemente instituído sistema de pontos na carta de condução, passamos a conhecer dos fundamentos invocados pelo recorrente.
4. Insurge-se o recorrente contra o facto de não ter sido notificado da perda de 6 pontos na sua carta de condução no processo a que se referem os n.ºs 1 e 2 dos factos provados. Alega que a violação do seu direito de audição previamente à subtração de pontos da carta de condução, contra o que dispõe o art. 50º do RGCO, bem como não terem sido inquiridas testemunhas por si arroladas na fase administrativa do procedimento para cassação da carta de condução, defendendo a nulidade da decisão administrativa proferida. Ora, a subtração de pontos da carta de condução opera de forma automática, por mera aplicação da lei, sem necessidade de notificação ao condutor ([3]). Concretamente, não preveem os arts. 292º e 69º do Código Penal qualquer notificação ou comunicação a efetuar ao Registo Individual de Condutor infrator relativamente à perda de pontos na carta de condução, nem qualquer norma do Código da Estrada ou do seu Regulamento. A subtração de pontos do título de condução constitui um efeito imediato do trânsito em julgado da decisão administrativa que condene o condutor pela prática de contraordenação grave ou muito grave ou da sentença que aplique ao condutor a pena acessória de proibição de conduzir, prevista no art. 69º do Código Penal. Na verdade, o art. 149º, n.º 1, do Código da Estrada estabelece que: “Do registo de infrações relativas ao exercício da condução, organizado nos termos de diploma próprio, devem constar: a) Os crimes praticados no exercício da condução de veículos a motor a respetivas penas e medidas de segurança; c) A pontuação atualizada do título de condução”; acrescentando o n.º 3 que “A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária assegura o acesso dos condutores ao registo de infrações” (sublinhado nosso) – encontrando-se o registo individual do condutor regulado pelo Dec.- Lei n.º 317/94, de 24.12, na versão revista pelo Dec.-Lei n.º 86/2016, de 28.11. Resultando a subtração de 6 pontos automaticamente da lei, concretamente do art. 148º, n.º 2, do Código da Estrada, a operar a partir do transito em julgado da sentença crime que aplicou a pena acessória prevista no art. 69º do Código Penal, não tem qualquer relevo a incorreta informação prestada telefonicamente ao recorrente, nem a alegada indisponibilidade de consulta dos pontos produz efeito no tocante ao exercício do contraditório no âmbito de um procedimento administrativo com vista à cassação do título de condução, de um processo contraordenacional ou judicial, que ainda não existe. Desta forma, não é aplicável à subtração dos pontos por cada infração que a tal consequência conduza quer o art. 50º do RGCO, os arts. 119º, al. d), e 123º do Código de Processo Penal (não se encontrando, além do mais, prevista a obrigatoriedade de presença do arguido ou a promoção de procedimento para a comunicação de perda de pontos) e muito menos a norma prevista no Código de Processo Civil para a omissão de formalidade legal essencial, no seu art. 195º, por não existir lacuna no Código de Processo Penal que deva ser preenchida nos termos do seu art. 4º, uma vez que o processo penal português contém e prevê um regime de nulidades próprio.
5. Quanto a uma pretensa violação dos princípios da segurança jurídica, da certeza jurídica e da confiança dos cidadãos, que o recorrente afirma estarem consagrados no art. 2º da Constituição da República Portuguesa, cumpre apenas vincar que o art. 2º tem por objeto o Estado português (de Direito Democrático), na perspetiva do Estado: soberania popular, respeito e garantia dos direitos fundamentais, sociedade que tem por objetivo a transição para o socialismo. Esta norma integra e agrega um amplo conjunto de regras e princípios constitucionais que se encontram dispersos pela Lei Fundamental, enunciando as componentes do Estado de Direito Democrático. Pretende o recorrente que o art. 148º, n.º 4, al. c), e n.º 10 viola este comando constitucional quando interpretado no sentido que o arguido não tem de ser notificado da perda de pontos. Perante o que vem de se referir, improcede o invocado pelo recorrente. Acresce que a liberdade de informação a que se refere o art. 37º da Constituição da República Portuguesa, referida pelo recorrente, refere-se à liberdade de expressão e informação, não abrangendo a informação do registo de condutor invocada no recurso. Por último, não foi violado o direito constitucional de acesso aos arquivos administrativos, a que se refere o art. 268º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, não tendo o recorrente invocado ter solicitado junto da Administração Pública o acesso a informação que lhe teria sido negada – o que não se pode confundir com uma resposta obtida por telefone, quanto a um registo público que deveria ter sido efetuado (ignorando-se se efetivamente foi), mas cuja omissão a lei não comina com qualquer consequência jurídica. Os princípios da transparência e publicidade, invocados igualmente de forma genérica pelo recorrente, não têm aplicação ao caso, uma vez que a subtração de pontos não depende da prática de qualquer ato administrativo, decorrendo direta e automaticamente da lei.
6. O processo para cassação do título de condução apenas se inicia verificada que se encontre a perda total de pontos, conforme decorre dos n.ºs 4 do art. 148º do Código da Estrada, sendo ordenada em processo autónomo da competência do Presidente da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária – arts. 148º, n.º 10, e 169º, n.º 4, do CE. Neste processo autónomo não é admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto, o que já sucedeu nos processos, de natureza contraordenacional ou criminal, que estiveram na origem da aplicação das sanções que determinaram legalmente a perda de pontos: verificados os factos donde decorre a perda de todos os pontos do condutor, a cassação é decretada de forma automática, sem qualquer margem de subjetividade da autoridade administrativa. Foi o legislador quem fixou, de forma objetiva, a perda das condições para a concessão do título de condução ou, dito de outra forma, para a cessação da licença administrativa concedida. Na verdade, a carta de condução é uma licença administrativa que pode ser revogada caso o seu titular pratique um conjunto de atos reveladores de inidoneidade ou inaptidão para conduzir veículos automóveis ou um desrespeito grave pela proteção de terceiros, obrigação inerente ao exercício da condução. Para além de revogado, o titular de carta de condução pode ser sujeito (como é) à verificação periódica da subsistência das condições físicas e psíquicas que o habilitem a conduzir, ou caducar, nos casos previstos na lei. No processo autónomo previsto no art. 148º, n.º 10, do Código da Estrada, destinado ao apuramento dos pressupostos – sempre de natureza objetiva – da cassação da carta de condução e correspondente decisão da autoridade administrativo é assegurado o direito de defesa prévia, devendo ter lugar a notificação a que se refere o art. 50º do RGCO – notificação que ocorreu no âmbito do processo administrativo que iniciou os autos, tendo o arguido apresentado defesa e testemunhas. Não incorreu, assim, a autoridade administrativa na violação do art. 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, contrariamente ao alegado.
Invoca ainda o recorrente a nulidade da decisão por não terem sido inquiridas as testemunhas que arrolou na fase administrativa, por decisão da autoridade administrativa. Ora, tendo em conta os pressupostos da cassação e a automaticidade da perda de pontos que a antecede, sem que possam ser ponderadas outras circunstâncias, concorda-se com a invocada inutilidade da audição das testemunhas. Acresce que é à autoridade administrativa que cabe deferir ou não a realização de diligências requeridas pela defesa, não estando obrigada a realizar diligências de prova inúteis ou dilatórias, devendo sempre fundamentar a sua decisão, como sucedeu no caso ([4]). Não tendo o recorrente invocado não terem sido proferidas as duas decisões judiciais que lhe aplicaram a sanção acessória prevista no art. 69º do Código Penal; antes de decorrido o prazo de 3 anos necessário à atribuição – igualmente automática – de 3 pontos ao condutor (art. 148º, n.º 5, do CE), os factos apurados, decorrentes exclusivamente de prova documental, constituem o único pressuposto da decisão administrativa de cassação da carta de condução. No que respeita ao art. 13º da Constituição da República Portuguesa, que o recorrente afirma igualmente ter sido violado, recorde-se o que este estabelece: “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” Princípio estruturante do sistema constitucional português, o princípio da igualdade é considerado um princípio de justiça social, assumindo relevo enquanto princípio de igualdade de oportunidades e de condições reais de vida. O art. 13º transcrito enuncia o princípio geral da igualdade (lex generalis), encontrando-se concretizado em vários outros preceitos constitucionais. O que significa que (1) “os fundamentos materiais da igualdade subjacentes às normas constitucionais consagradoras de direitos especiais de igualdade sobrepõem-se ou têm preferência, como lex specialis, relativamente aos critérios gerais do artigo 13º/1; (2) que os critérios de valoração destes direitos podem exigir soluções materialmente diferentes daquelas que resultariam apenas da consideração do principio geral da igualdade” ([5]). Esta doutrina tem vindo ao longo dos anos a ser afirmada pelo Tribunal Constitucional, citando-se, a título exemplificativo, o seu Acórdão n.º 437/2006, no qual se decidiu que: «(O) princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cf. por todos acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de junho de 2003 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º vol., págs. 7 e segs.).» E no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 302/97: «É sabido que o princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - desde logo, diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º da Lei Fundamental (diferenciações baseadas na ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social) -, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objetiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot). Cfr., por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 186/90, 187/90 e 188/90, publicados no Diário da República, II Série, de 12 de setembro de 1990.» A lei não prevê a notificação de qualquer pessoa da perda de pontos da carta de condução. Não se vislumbra, assim, fundamento para a invocada violação do princípio da igualdade.
8. O recorrente invoca ainda ter-lhe sido coartado o direito a recuperar ou aumentar os pontos da sua carta de condução, nos termos do art. 148º, n.ºs 5 e 7, do Código da Estrada. Quanto ao n.º 5, já se referiu que o decurso de 3 anos sem que o condutor registe contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária garante automaticamente a atribuição de 3 pontos ao condutor. Esta norma funciona como uma reabilitação do condutor face ao comportamento posterior aos factos que determinaram a retirada de pontos. Fica, assim, na disponibilidade do condutor a reaquisição dos pontos perdidos, bastando para o efeito que se muna de cuidado especial no exercício da condução, de modo a não incorrer na prática de qualquer infração ao Código da Estrada, como é sua obrigação. No caso, não decorreram 3 anos entre as condenações sofridas pelo recorrente, não podendo nunca ter aplicação esta norma. Sibi imputet. No que respeita ao n.º 7, recupere-se a sua redação: “A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento”. Resulta dos artigos 2º, 8º e 9º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2016, de 30 de maio, que todos os condutores aos quais restem 5 ou 4 pontos na respetiva carta de condução são obrigatoriamente notificados pela ANSR para que frequentem ações de formação, e que aos condutores a que restem 3, 2 ou 1 pontos são obrigatoriamente notificados pela ANSR para que realizem nova prova teórica de exame de condução. Ao recorrente sobravam 6 pontos na carta de condução após a primeira condenação na pena acessória prevista no art. 69º do Código Penal. É verdade que, tendo perdido 6 pontos, caso o recorrente incorresse na prática de uma contraordenação grave ou muito grave, poderia ver-lhe subtraídos pontos entre 2 e 5 pontos – art, 148º, n.º 1, als. a) e b) do Código da Estrada -, o que determinaria a sua notificação pela ANSR para os efeitos do n.º 4, als. a) e b), da norma referida. No entanto, reincidiu o recorrente na prática da conduta que o legislador pretendeu, em especial, prevenir, por entender que quem conduz sob o efeito do álcool contribui de forma mais relevante para a sinistralidade rodoviária. E a frequência da ação de formação ou a submissão a novo exame teórico em nada alteraria o desfecho no caso concreto, a saber, a cassação da carta de condução, por subtração da totalidade dos pontos ao recorrente, fruto da sua conduta. Na realidade, a submissão a ação de formação em segurança rodoviária ou a nova prova teórica tem uma função pedagógica (como, aliás, todo o sistema de atribuição de pontos), servindo como um importante auxílio ao condutor para não voltar a infringir as regras estradais, mas não acrescenta novos pontos para a carta de condução. Assim, no caso do recorrente, tendo praticado nova infração considerada pelo legislador como a mais grave no exercício da condução (sob influência do álcool) antes de decorrido o prazo necessário à concessão legal e automática da atribuição de novos pontos na carta de condução. Ou seja, o recorrente encontra-se em rigorosa igualdade com outros condutores que, na situação de lhes restarem 5 ou menos pontos na sua carta de condução, são notificados pela ANSR para os efeitos do at. 148º, n.º 4, als. a) ou b), do Código da Estrada: estes têm de cumprir aquele ónus, sob pena de ser de imediato cassada a sua carta de condução (n.º 8 do mesmo preceito), mas se cometerem infração que lhes retire os pontos remanescentes, sujeitam-se de igual forma à cassação da carta, conforme previsto na al. c) do preceito referido. O que resulta da motivação do recorrente é que incorre no erro fulcral de presumir que lhe adviria qualquer benefício pela frequência da ação de formação em segurança rodoviária, ou que veria acrescentados pontos por essa razão à sua carta de condução. Sem qualquer fundamento: a frequência voluntária de ação de formação prevista no n.º 7 do art. 148º é aplicável ao período de revalidação da carta e desde que não exista registo de crimes de natureza rodoviária, sendo distinta da que encontra previsão na al. a) do n.º 4 do mesmo artigo – que o recorrente coloca em crise.
9. Não podemos deixar de recordar a jurisprudência que vem sendo firmada pelo Tribunal Constitucional, como no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 260/2020 ([6]), no sentido da constitucionalidade do novo regime instituído pela Lei n.º 116/2015: “a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado” (sublinhado nosso).
Assim, tendo em consideração que o sistema de carta de condução por pontos prevê, em função da gravidade da infração do condutor, a retirada de pontos, em número variável; e considera o período temporal sem registo de infrações a favor do condutor, acrescentando-lhe pontos e permitindo, desse modo, que recupere os eventualmente perdidos; impõe-se concluir que respeita os princípios da necessidade, da proporcionalidade e, por fim, o princípio geral da igualdade – desde logo por tratar de forma igual situações iguais, e de forma distinta o que é distinto.
10. Por último, o que fundamenta o regime especial estabelecido para quem cometa infrações sob o efeito do álcool num espaço temporal inferior a 3 anos é a maior gravidade das consequências da sinistralidade automóvel da condução nesse estado, a justificar que o regime aplicável seja mais exigente que o previsto para outras infrações rodoviárias – tendo o legislador optado por dar primazia à segurança rodoviária em detrimento do direito do condutor em continuar a ser portador de título de condução. Desta feita, a cassação da carta de condução por perda de pontos ocorre sempre, de forma automática, para qualquer pessoa que incorra em duas condenações em pena acessória de proibição de conduzir, com uma diferença temporal inferior a 3 anos, independentemente da frequência de ação de formação em segurança rodoviária ou da realização de nova prova teórica do exame de condução – arts. 121º-A, n.º 1, e 148º, n.ºs 2 e 4, do Código da Estrada. *
Conclui-se, pelas razões expostas, pela conformidade do procedimento seguido nos autos com os princípios e imposições constitucionais vigentes, nomeadamente com os princípios e normas constitucionais invocadas pelo arguido.
* IV. Decisão Pelas razões expostas, acordam os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando em 4 UC’s a taxa de justiça (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).
Coimbra, 7 de junho de 2023 Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi) João Bernardo Peral Novais (1º adjunto) Rui Pedro Miranda Mendes Lima (2º adjunto)
[1] … [2] Em DAR, I série, n.º 102, 2015.06.25, da 4.ª SL da XII Leg (pág. 15-20). [3] Cf. os Acórdãos da Relação de Évora de 26.4.2022, proc. 2257/21.4T8ENT.E1, da Relação do Porto de 11.1.2023, proc. 3682/21.6T9MAI.P1, em www.dgsi.pt, e da Relação de Lisboa de 8.3.2022, na CJ, ano XLVII, tomo 2, pág. 139. [4] - Cf. Ac. da Relação de Lisboa de 8.3.2022, cit. [5] Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Almedina, 7ª ed., págs. 430-432. [6] DR n.º 147/2020, II Série, de 30.7.2020. |