Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
430/21.4T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
NOTIFICAÇÃO AO DEVEDOR
CITAÇÃO PARA A EXECUÇÃO
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 583.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A notificação ao devedor, a que alude o art. 583º, nº 1, do C. Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra o executado.

II – Com a citação para a execução cessa a inoponibilidade da transmissão, por parte do devedor cedido, ao cessionário.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

AA, BB e CC, melhor identificados nos autos, vieram deduzir embargos à execução movida por “H..., SA.”, melhor identificada nos autos, sustentando, em síntese, que a comunicação/notificação aos embargantes da cessão de créditos alegada no requerimento executivo, constitui/constituía uma condição absoluta e essencial para a validade e eficácia da mesma cessão relativamente aos embargantes, sendo que os mesmos jamais foram notificados dessa cessão de créditos por quem quer que fosse e jamais a aceitaram fosse de que forma fosse. Assim, segundo os Embargantes, o referido contrato de cessão de créditos é ineficaz em relação aos mesmos e a referida notificação, a efetuar nos termos e para os efeitos do artigo 538º nº 1 do C. Civil, é um dos pressupostos essenciais do título executivo e da própria execução pelo que, não tendo existido essa notificação, falta nos presentes autos um dos pressupostos para a exequibilidade do título e para a execução. Por tais motivos, defendem que a exequente não está legitimada para a presente execução nem tem o direito de exigir, por via da execução, a obrigação exequenda aos embargantes. Mais alegam que a citação para a execução não constitui notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 538º nº 1 do C. Civil, não faz suprir a falta dessa notificação, nem tem os efeitos jurídicos da notificação prevista nesse normativo legal.

                                                           *

Por despacho de 11.06.2021 os embargos de executado foram recebidos e a Exequente/Embargada notificada para, querendo, contestar.

Em sede de contestação a Embargada sustentou, em súmula, que o contrato de cessão foi devidamente comunicado aos Embargantes, juntando documentos.

                                                           *

Marcada audiência prévia, foi a Embargada notificada para, no prazo de 10 dias, juntar os originais ou cópia legível do anexo ao contrato de cessão junto na ação executiva e ainda para se pronunciar quanto à impossibilidade de o Tribunal confirmar o envio e entrega das notificações juntas aos autos, utilizando a referência do código de barras aposta nessas mesmas comunicações, requerendo o que tiver por conveniente.

No prazo concedido, a Embargada nada disse, nem nada juntou.

                                                           *

Em sede de despacho saneador, entendeu a Exma. Juíza de 1ª instância que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais prova, apreciar o mérito dos embargos, pelo que, dado não haver oposição das partes a tal, prosseguiu com a prolação de despacho saneador-sentença, no qual começou por enunciar em Relatório as posições das partes, fixou o valor da ação e afirmou a verificação dos pressupostos processuais, após o que elencou o conjunto de factos que considerava “provados”, e passou à fundamentação de direito da decisão, no contexto do que sustentou o entendimento de que não obstante os Embargantes não terem sido notificados do contrato de cessão, em momento anterior à instauração da ação executiva, podia a Exequente/Cessionária, instaurar tal ação, porém, dado que a Exequente/embargada não logrou juntar aos autos cópia legível do anexo ao contrato de cessão em ordem a concluir-se que o contrato dos autos fazia efetivamente parte daquele contrato de cessão de créditos, importava aferir se a livrança também apresentada como título executivo legitimava a Exequente para esse efeito, relativamente ao que se concluiu que «(…) com a apresentação da livrança para execução e alegação da relação subjacente, no requerimento executivo, a Embargada dispõe de título executivo próprio (artigo 703º, n.º3, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Civil) e, portante, encontra-se materialmente legitimada a instaurar a acção executiva, decaindo todos os fundamentos apresentados pelos Embargantes para se oporem à execução», termos em que se finalizou com o seguinte “dispositivo”:

«Por todo o exposto, julgam-se os presentes embargos de executado totalmente improcedentes.

*

Custas pelos Embargantes (artigo 567º, n.º1 e 2, do Código de Processo Civil).

*

Registe e notifique »

                                                           *

Inconformados com esse saneador-sentença, apresentaram os Embargantes/executados, recurso de apelação contra o mesmo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«I – O presente recurso versa apenas matéria de direito.

II – Da matéria provada na douta sentença recorrida resulta, nomeadamente e para o que ora interessa, que foi efectuado o contrato de cessão de créditos referido nos pontos 1 e 2 dos respectivos Factos Provados.

III – Mais resulta que foi dado como não provado o facto “ Os Embargantes foram notificados do contrato de cessão de créditos referido nos pontos 1 e 2, aceitando os seus termos, em momento anterior à citação para a acção executiva

IV – Nos termos do artigo 583º nº 1 do C. Civil, a cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor – e no caso aos recorrentes - desde que lhe seja notificada por comunicação escrita e que o devedor a aceite.

V – No caso dos autos, e como se disse, tal não sucedeu, já que os recorrentes não foram notificados nem receberam qualquer comunicação dessa cessão de créditos nem dela tiveram conhecimento , a não ser com a citação para a execução, e não a aceitou.

VI – A exequente não alegou no requerimento executivo que os recorrentes tivessem sido notificados de tal cessão de créditos e não alegou que a tivessem aceite.

VII – A citação para a execução não tem a virtualidade e eficácia de constituir a comunicação a que se refere o artigo 583º nº 1 do C.Civil, nos termos e pelas razões expostas no corpo das presentes alegações.

VIII - – Assim, e em face do exposto, não se verificam os pressupostos para validade e regularidade da instância executiva, sendo o contrato de cessão de créditos em questão, ineficaz em relação aos embargantes /recorrentes e consequentemente verifica-se a inexequibilidade do título executivo, não sendo exigível aos embargantes o pagamento da quantia exequenda, o que se invoca e pretende ver declarado por este Tribunal da Relação de Coimbra.

IX - Consequentemente, devia o Tribunal de primeira instância, e com todo o respeito, ter julgado os embargos de executado procedentes e provados e consequentemente declarado extinta a execução , com todas as legais consequências.

X – Não o tendo feito, o Tribunal a quo violou, e/ou fez errada interpretação do disposto no artigo 583º nº 1 do C. Civil, já que devia ter interpretado tal normativo legal no sentido de julgar os embargos procedentes, o que invoca, razão pela qual, e na modesta opinião do embargantes e sempre com o devido respeito, deve a douta sentença recorrida ser revogada, dando-se provimento ao presente recurso, o que respeitosamente se requer seja decretado.

Em face de tudo o exposto, devem as antecedentes Conclusões ser julgadas provadas e procedentes e consequentemente deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência deve ser revogada a douta sentença do Tribunal a quo, substituindo-a por decisão que julgue os embargos de executados procedentes e provados e em consequência ordenar a extinção da execução, assim se fazendo

JUSTIÇA»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões são:

 - decidir se a citação para a presente execução produz os mesmos efeitos jurídicos que a notificação, a que alude o art. 583 nº1 do C. Civil, com vista à eficácia da cessão de créditos relativamente ao devedor.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consiste a mesma na enunciação do elenco factual que foi fixado pelo tribunal a quo, sendo certo que o recurso deduzido não questiona a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto.

«1) Consta dos autos principais de execução, cópia de contrato de cessão de créditos com data de 23/11/2017, constando do mesmo que a Sociedade C... S.A. cederia à H..., SA, um conjunto de créditos vencidos de que era titular.

2) A mencionada cessão incluiria a transmissão, relativamente a cada um dos créditos, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios a eles inerentes.

3) A Embargada apresentou, como título executivo, uma livrança, que se encontra junta a fls. 56 dos autos principais de execução, encontrando-se a mesma assinada pelos Embargantes, enquanto subscritores e avalistas.»

                                                                          *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Salvo o devido respeito, a apreciação e decisão do presente recurso podia e devia até ser feita de modo sintético e sumário, na medida em que os embargantes/recorrentes, porventura por lapso, não interpretaram devidamente a fundamentação da decisão recorrida e sentido desta, limitando-se a questionar/impugnar um aspeto que nem constitui a fundamentação decisiva e última da decisão, mas apenas uma questão que nela foi aflorada no percurso decisório.

Na verdade, se bem se compulsar a fundamentação de direito do despacho saneador-sentença recorrido, não pode deixar de se constatar que nela se sustentou que na medida em que a Exequente/Embargada não logrou juntar aos autos cópia legível do anexo ao contrato de cessão [em ordem a concluir-se que o contrato dos autos fazia efetivamente parte daquele contrato de cessão de créditos], importava aferir se a livrança também apresentada como título executivo legitimava a Exequente para esse efeito, relativamente ao que se concluiu que «(…) com a apresentação da livrança para execução e alegação da relação subjacente, no requerimento executivo, a Embargada dispõe de título executivo próprio (artigo 703º, n.º3, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Civil) e, portante, encontra-se materialmente legitimada a instaurar a acção executiva, decaindo todos os fundamentos apresentados pelos Embargantes para se oporem à execução».

Isto é, resulta insofismavelmente que se decidiu os embargos no pressuposto de que se estava perante uma execução cambiária, cujo título executivo era a livrança também junta e que acompanhou a p.i. executiva.

Dito de outra forma: foi desconsiderada a causa de pedir da ação executiva consistente na cessão de créditos e validada unicamente a causa de pedir consistente no facto aquisitivo do direito à prestação pecuniária – cambiária. 

Não tem, assim, s.m.j., qualquer sentido nem justificação estar a questionar/impugnar uma orientação doutrinal e jurisprudencial que foi perfilhada no percurso argumentativo, mas que não veio a constituir a fundamentação última e direta da decisão, a saber, a de que a citação para a presente execução produz os mesmos efeitos jurídicos que a notificação, a que alude o art. 583 nº1 do C. Civil, com vista à eficácia da cessão de créditos relativamente ao devedor.

Em todo o caso, sempre se dirá que, em nosso entender, nada haveria que censurar a essa orientação doutrinal e jurisprudencial que foi perfilhada no percurso argumentativo.

Temos presente que essa questão, vem constituindo uma “vexata quaestio” tanto na doutrina como na jurisprudência, pois que quanto à mesma se alinham duas posições:

- segundo a primeira, a citação do executado, no âmbito da execução instaurada contra esse devedor, produz os mesmos efeitos jurídicos que a notificação, a que alude o art. 583 nº1 do C. Civil, com vista à eficácia da cessão de créditos relativamente ao devedor;

- já nos termos da segunda, exige-se que o devedor seja previamente notificado (judicial ou extrajudicialmente) não se podendo para esse efeito atribuir à citação da ação o valor da notificação, a que alude o art. 583 nº1 do C. Civil.

Que dizer?

Desde logo, que esta precisa questão já foi objeto de apreciação em anterior acórdão deste mesmo TRC de que foi Relator e 1º Adjunto o aqui também Relator e 1º Adjunto, a saber, o acórdão de 2016.11.15, proferido no proc. nº 9673/15.9T8CBR.C1[2], pelo que, com data venia, se vai passar a reproduzir, o que releva para o caso vertente do que então foi explicitado:

«(…)

De referir que esta mesma questão foi objecto de apreciação por um recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o qual teve a particularidade de constituir um recurso de revista excepcional, nos termos do art. 672, nº1 al. c) do n.C.P.Civil interposto pelo recorrente invocando oposição de julgados, a saber, arestos no sentido de cada uma das posições supra enunciadas, sendo que o nosso mais alto tribunal[3] aquilatou, com data venia, pela seguinte forma:

«Na cessão de créditos o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou parte do seu crédito, nos termos do art. 577 do C. Civil.

Como se refere no Ac. deste Supremo de 25.05.1999 acessível via www.dgsi.pt” o crédito transferido fica inalterado: apenas se verifica a substituição do credor originário para um novo credor. Cedente e cessionário têm intervenção activa e a terceira pessoa - o devedor - passiva, isto, porque não se exige o seu consentimento”

A cessão opera entre as partes (cedente e cessionário), independentemente da sua notificação ao devedor.

No entanto, em relação ao devedor é necessário que a cessão lhe seja notificada, nos termos preceituados do nº1 do art. 583 do C. Civil.

A razão de ser da exigência do conhecimento da cessão reside como bem nota o Ac. deste Supremo de 6.11.2012, acessível via www.dgsi.pt, “na necessidade da protecção do interesse do devedor pois, que, em princípio, não admite a lei eficácia liberatória da prestação feita ao credor aparente, havendo, enfim que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente” .

Como aí se diz também “o desiderato da lei fundamentalmente que o devedor como terceiro relativamente ao contrato de cessão, não seja confrontado como uma situação alterada no sentido do agravamento , por via da transferência do direito de crédito”

Também no Ac deste Supremo de de 3.06.2004 acessível via www.dgsi.pt : A lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido.

O que torna a cessão eficaz relativamente ao devedor é o facto de este a conhecer podendo esse conhecimento revelar-se de várias formas, entre quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.

Mas tal não significa que o conhecimento não possa chegar ao devedor por outra via, nomeadamente a citação para acção / execução .

Se a eficácia da cessão está ligada ao conhecimento, não se pode dizer que com a citação para a acção / execução o devedor não passe a conhecer que o crédito foi cedido .

Como bem nota o Acórdão de 6.11. 2012 citando Assunção Cristas em anotação ao Acórdão de 3 de Junho de 2004 in Cadernos de Direito Privado nº 14 pag. 63 “ mesmo que se conclua que a citação não é o mesmo que a notificação , ainda será necessário sustentar que ela não produz o conhecimento da transmissão por parte do devedor”

Também como bem nota o Acórdão que estamos a seguir de perto, se o conhecimento do devedor da cessão é o elemento constitutivo da eficácia da cessão relativamente a ele (devedor), é indiferente do ponto do vista do efeito jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento” sendo certo como aí se diz que não se vislumbra “como a citação não possa ser considerado um meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado “ conhecimento”.

“Com o “conhecimento” da transmissão, que se concretiza através da citação para a execução – ficando o cedido ciente da existência da cessão e da impossibilidade de invocar o seu desconhecimento (art. 583 nº2) o direito do cessionário, que até então era inoponível ao devedor cedido, protegido pela ineficácia, passa a gozar da exigibilidade que antes daquela acto a ineficácia relativa condicionava”»

É agora tempo de dizer que esta linha de argumentação merece o nosso integral acolhimento.

Desde logo porque é ela a que, s.m.j., corresponde à melhor interpretação da ratio do preceito em causa, a saber, o dito art. 583 nº1 do C. Civil[4], sendo certo que a interpretação a que se adere salvaguarda por inteiro o âmbito de protecção dessa norma.

Na verdade, para nós resulta como claro e inquestionável que com o dito preceito – o qual tem a epígrafe de “Efeitos em relação ao devedor” – se cuida apenas de garantir que o devedor tenha conhecimento da cessão de créditos no momento em que o pagamento lhe está a ser exigido.

Estando como está em causa a eficácia (em relação ao devedor), obviamente que a validade da cessão de créditos resulta pressuposta.

Isto porque, como negócio jurídico contratual, a cessão de créditos é válida e eficaz entre as partes contraentes (leia-se, “cedente e cessionário”) independentemente da sua eficácia em relação ao devedor, posto que a validade da cessão depende da inexistência de vício formal ou substancial e a sua eficácia entre os contraentes é imediata (a menos que estes tenham estipulado outra coisa).

Sem embargo, a lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido, sendo certo que a lei não impõe como condição para a eficácia a autorização do devedor, impondo tão somente, como regra geral, que ele já saiba que o seu credor cedeu o crédito a outrem.

Com efeito, o conhecimento/comunicação da identidade do cessionário destina-se a evitar que o cumprimento da obrigação seja feito junto do primitivo credor[5]

Ora se assim é, o que torna a cessão eficaz em relação ao devedor é o facto de este a conhecer e esse conhecimento pode revelar-se de várias maneiras entre as quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.

Sucede que se a cessão de créditos se torna eficaz perante o devedor logo que este tome conhecimento dela, nada obsta a que esse conhecimento ocorra com a citação no âmbito de execução instaurada.

Dito de outro modo: a inoponibilidade da cessão ao devedor aqui Executado provocava, enquanto perdurasse, a inexigibilidade da sua dívida para com o cessionário (o aqui Exequente), mas com a citação e o início da eficácia da cessão, a dívida passa a ser imediatamente exigível pelo novo credor, ainda que já na veste de Exequente.

O que tudo serve para dizer que nada impede que os efeitos dessa cessão em relação ao devedor sejam exercidos judicialmente, nomeadamente por via da citação na execução contra ele instaurada, após o que e em consequência de tal, o que lhe era inexigível até àquele momento deixa de o ser, sendo certo que não vislumbramos que legalmente esteja impedido que a eficácia e exigibilidade em causa operem unu actu e em simultâneo».

Acresce ainda o seguinte: a dita eficácia da cessão de créditos afigura-se como inquestionável dado estarmos face a uma execução “ordinária” à qual é aplicável o novo C.P.Civil.

É que, consabidamente, com a dita Reforma do Processo Civil de 2013 no âmbito do processo executivo, teve lugar o retorno à divisão entre forma ordinária e forma sumária (cf. art. 550º do n.C.P.Civil), sendo que a forma ordinária corresponde à execução com citação prévia e constitui a forma-regra, regulada nos arts. 724º e segs. do n.C.P.Civil.

É certo estar prevista a possibilidade de dispensa dessa citação prévia, mas na medida em que a citação prévia é o regime-regra nesta forma de processo, o pedido de dispensa dessa citação prévia constitui verdadeiramente um elemento eventual e opcional que, apenas sendo disso caso, constará do requerimento executivo.[6]   

Neste sentido é paradigmático o que consta da “Exposição de Motivos” que presidiu à Reforma do Processo Civil, traduzida na Proposta de Lei nº 113/XII (PL 521/2012 - 2012.11.22)[7], particularmente no seguinte segmento:

«(…)

 No que toca à tramitação do processo executivo comum para pagamento de quantia certo, retoma-se a distinção (abandonada, sem proveito, em 2003), entre forma ordinária e forma sumária. A forma sumária - caracterizada por penhora imediata, com dispensa da intervenção liminar do juiz e da citação prévia do executado, sendo o requerimento executivo remetido, sem autuação e por via electrónica, para o agente de execução - empregar-se-á quando o título executivo for uma decisão arbitral ou judicial (quando esta não deva ser executada no próprio processo), um requerimento de injunção ao qual tinha sido aposta fórmula executória, um título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor, ou um título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida cujo valor não exceda o dobro da alçada do tribunal de 1.ª instância. Na forma ordinária, assegura-se a intervenção liminar do juiz e a citação do executado em momento anterior à penhora. Em face desta nova formulação, haverá um maior controlo judicial na fase introdutória da execução, pois execuções que até agora principiavam pela penhora passarão a ser submetidas a despacho liminar, o que reforçará as garantias do executado. Ainda assim, nas execuções que devam seguir a forma ordinária, é prevista a possibilidade de o exequente obter a dispensa de citação prévia do executado, com carácter de urgência, se demonstrar a verificação dos requisitos do justo receio da perda da garantia patrimonial, aplicando-se, de seguida, a tramitação do processo executivo sumário.

(…)»

Ora, no caso vertente, não foi alegado nem resulta que tenha tido lugar a dispensa da citação prévia, pelo que, em consonância com o já referido regime-regra duma execução ordinária, estava suposto ter lugar a citação dos aqui Executados/embargantes ab initio, isto é, em momento anterior à penhora.

O que tudo serve para dizer que no caso vertente, em relação aos aqui Executados/embargantes, com a sua citação (prévia), teria lugar o conhecimento por parte destes de que o crédito havia sido cedido.

Orientação jurisprudencial esta que vem sendo sustentada maioritariamente pelo nosso mais alto tribunal – como flui, inter alia, dos arestos citados na decisão recorrida, a saber, os acórdãos do STJ de 07.09.2021 (proferido no proc. n.º348/16.2T8BJA-A.E1.S1) e de 10-05-2021 (proferido no proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1).[8]

Importava, então, concluir que estavam verificados os requisitos de eficácia da cessão de créditos.

Posto que, no quadro normativo aplicável à situação, a citação (prévia) dos aqui Executados/embargantes permitiu efetivamente suprir a necessidade de manifestação e comunicação a estes da operada cessão do crédito, ainda que unu actu com a instauração da execução!

Sem embargo do vindo de dizer, sucede que no caso vertente a decisão recorrida nem assentou verdadeiramente nessa linha de entendimento.

É que, como se começou por sublinhar, o despacho saneador-sentença recorrido decidiu os embargos no pressuposto de que se estava perante uma execução cambiária, cujo título executivo era a livrança também junta e que acompanhou a p.i. executiva.

Sendo certo que na execução de títulos de crédito (v.g., letras, livranças, cheques) a causa de pedir é o facto aquisitivo do direito à prestação pecuniária - cambiária, e não a relação subjacente (causa debendi) correspondente a esse direito, sendo que a constituição do direito cambiário é o saque ou emissão do título.

Por isso, a apresentação do título de crédito, devidamente datado e preenchido, preenche por si só a exigência de causa de pedir, pois certifica por si mesma o facto do saque ou da emissão.

Ora, se bem se compulsar a livrança, que se encontra junta a fls. 56 dos autos principais de execução e bem assim o próprio requerimento executivo, constata-se que a Exequente ora Embargada alegou oportunamente o bastante e suficiente a esta luz, mormente que «4. Tornou-se a cedente titular da(s) livrança(s) subscritas) pela/o(s) executado/a(s) que se juntam como Doc 2 que, vencida(s), não foi(ram) paga(s) na(s) data(s) do vencimento ou posteriormente.».

Atente-se que os Executados aqui Embargantes não contestam que a Exequente aqui Embargada seja a portadora da livrança…

Para além de que a Exequente detém o título, o que constitui uma presunção (não ilidida) que o recebeu da cedente…

Termos em que, “brevitatis causa”, improcede o argumento recursivo, sob qualquer enquadramento que se faça, donde a inapelável improcedência do recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A notificação ao devedor, a que alude o art. 583º, nº 1, do C.Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra o executado.

II – Com a citação para a execução, cessa a inoponibilidade da transmissão, por parte do devedor cedido, ao cessionário.

*

6 – DISPOSITIVO

            Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pelo Executado/embargante/recorrente.

                                                                       *

Coimbra, 28 de Junho de 2022   

                                                      Luís Filipe Cravo

                                                    Fernando Monteiro

                                                        Carlos Moreira




[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[3] Trata-se do acórdão do STJ de 10.03.2016, proferido no proc. nº 703/11.4TBVRS-A.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[4] No qual se preceitua o seguinte: «1. A cessão de créditos produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.»
[5]A notificação, enquanto comunicação do facto, visa, tão só, a protecção do devedor de boa fé, que deve manter-se a coberto dos riscos de um negócio a que foi alheio, marcando, a um tempo, os termos inicial e final de utilização dos meios de defesa oponíveis pelo devedor” – citámos o acórdão deste mesmo T.Rel. de Coimbra, de 06.07.2016, no proc. nº 467/11.1TBCNT-A.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, o qual sustenta o mesmo entendimento que aqui se perfilha, historiando a questão com assinalável profundidade, e cujo sumário é o seguinte:
«1. Na cessão de créditos, a notificação do devedor não é facto constitutivo do direito do cessionário nem condição necessária para assegurar a sua legitimidade activa, sendo mera condição de eficácia.
2. A eficácia da cessão pode ser conseguida através da citação do devedor para a acção declarativa ou executiva, assim cessando a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor.»
[6] Assim RUI PINTO, in “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, 2013, a págs. 345-348.
[7] acessível em app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path...fich=ppl113-XII.doc
[8] Ambos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.