Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
920/99.3TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DA SECÇÃO CRIMINAL
Data do Acordão: 02/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA MATERIAL
Legislação Nacional: ARTS. 33.º, N.ºS 1 E 12.º, N.º 3, AL. B), DO CPP; ART. 54.º, N.º 1 E 73.º, AL. A), DA LEI N.º 62/2013
Sumário: I - O processo de execução não tem natureza penal, visto não ser regulado por normas penais ou processuais penais, designadamente em matéria de recursos.

II - O critério adoptado, definidor da competência, foi o de identificar as causas que compete julgar às secções criminais e sociais, sendo o julgamento das restantes matérias da competência das secções cíveis.

III - É irrelevante a circunstância de a decisão recorrida correr num processo apenso a um processo criminal, visto o critério definidor da competência ser o da natureza da causa (Neste sentido o Ac do STJ de 26/04/2012 in www.dgsi.pt relatado pelo Exmo. Sr. Cons. Manuel Braz).

Decisão Texto Integral:

A... inconformado com o despacho proferido a fls 37 que indeferiu o requerido pelo recorrente a fls 33, ou seja, que atenta a falta de pagamento do preço, se procedesse em conformidade com o disposto no n.º 1 do artº 898.º do CPC, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL n.º 38/2003 de 8 de Março e por outro, ordenou que se procedesse em conformidade com o disposto no artº 898º, nº 1, al. b) do CPC “velho” interpôs recurso, tendo apresentado as conclusões de fls. 88/93, com o seguinte teor:

1 - Sendo verdade que a douta Sentença de fls. 440-447 considera provado que o proponente incorreu em erro sobre o objecto do negócio, não é menos verdade que da mesma Sentença consta o seguinte: "A ser assim, o comprador deveria ter procurado conhecer, previamente, o que desejava adquirir. Se não o fez adequadamente, apenas de si pode lamentar-se. Com efeito, se pôde obter posteriormente à venda as características exactas do prédio, conforme emerge da factualidade apurada (e dos documentos constantes de fls. 370 a 371, 372, 373 e 378), não se vê como, tendo tido anteriormente acesso aos meios de publicidade da venda, não pudesse também anteriormente ter formado correcto conhecimento quanto ao prédio que se aprestou a comprar." (Cfr. pág. 7 da douta Sentença).

II - Resulta da mesma decisão que quem mostrou o imóvel ao proponente (ou, melhor dizendo, a um primo do proponente) previamente à venda, foi o próprio executado, pessoa que tem óbvio interesse em que a venda se fizesse pelo maior valor possível.

III - O proponente nem sequer se preocupou em contactar o fiel depositário do imóvel, Sr. Eng.º B... , que seria a pessoa indicada para lhe exibir o imóvel e que estava identificado no edital que publicitou a venda.

IV - o proponente é empresário da construção civil, não sendo por isso um leigo no que concerne à matéria em causa, pelo que, no mínimo, deveria ter estranhado que do edital constasse um valor base para venda tão diminuto (70% de 8.750,00 €) relativamente ao valor que reputou para o imóvel que pretendia adquirir e que deu origem a uma proposta de 32.800,00 €, e, como tal, deveria, antes de apresentar a proposta, certificar-se de que o imóvel pretendido era o que constava do edital, tanto mais que o fez posteriormente à apresentação da proposta.

V - o comportamento do proponente prévio à proposta de aquisição foi no mínimo imprudente e o erro cometido foi tudo menos desculpável, pelo que, conforme é referido na douta Sentença a que se vem fazendo referência, apenas de si próprio se pode lamentar, atenta a negligência e ligeireza com que actuou.

VI - Não pode por isso o erro cometido pelo proponente servir de fundamento ao indeferimento do requerido pelo recorrente a fls. 437, contrariamente ao que fez o Tribunal A Quo.

VII - No estando em causa qualquer prazo de caducidade, não se afigura legítimo que uma decisão como a que consta do despacho de que ora se recorre tenha como fundamento " o período de tempo entretanto decorrido ", caso contrário, tal argumento serviria para eximir de responsabilidades grande parte dos intervenientes numa quantidade infindável de processos judiciais.

 VIII - Nos presentes autos no se encontra ultrapassado qualquer prazo legal ou processual que impossibilite a aplicação do disposto no n° 1 do art. 898º do CPC, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL n° 38/2003, de 8 de Março, pelo que não se compreende nem se pode aceitar que o Tribunal A Quo tenha vindo invocar o decurso do tempo como fundamento para o indeferimento do requerido.

IX - É no mínimo desprovido de qualquer sentido que a aplicação das sanções previstas no art. 898º do CPC seja afastada a com fundamento na crise do sector imobiliário, tratando-se este, no entender do recorrente, de um argumento absolutamente irrelevante, que em nada se relaciona com os autos, mesmo que destes resultasse que o proponente, em concreto, haja sido de alguma forma afectado por tal crise desde a data da apresentação da proposta até ao presente, o que nem sequer se verifica.

X - Não é aceitável que o argumento da " crise " possa servir para eximir sujeitos processuais do cumprimento das obrigações a que estão adstritos, caso contrário, entraremos no domínio da pura arbitrariedade.

XI - Conforme o proponente alega no art. 300 do requerimento inicial do incidente de anulação da venda, efectuou o depósito para evitar ver os seus bens arrestados na medida do suficiente para garantir o valor do depósito, das custas e despesas acrescidas.

XII - Como é bom de ver, quando efectuou o depósito, já premeditava solicitar o respectivo reembolso, o que efectivamente fez logo que o mesmo se tornou possível, pelo que dúvidas não existem que o proponente enganou deliberadamente o Tribunal e as demais partes no processo, fazendo crer que o valor proposto se encontrava depositado, quando efectuou tal depósito apenas para evitar o arresto dos seus bens, procedendo ao seu levantamento assim que pôde.

XIII - E, demonstrando total indiferença pelo Tribunal e pela acção da Justiça, tornou a no depositar o preço devido quando em 27/03/2014 foi notificado para o fazer no prazo de 10 dias, nem sequer respondendo ou prestando qualquer justificação para o não cumprimento.

XIV- Tal actuação por parte do proponente aporta, sem sombra de dúvida, um juízo de censurabilidade acrescido, que deveria ter sido tido em conta pelo Tribunal A Quo na ponderação sobre a justeza e equidade da decisão a tomar.

XV - Ao indeferir o pedido de arresto dos bens do proponente requerido pelo recorrente, o Tribunal A Quo acaba, ao invés, por premiar o comportamento ilegal e altamente censurável do proponente, o que não se pode aceitar.

XVI - Atenta a data em que os presentes autos de execução foram instaurados, regem-se os mesmos pelo regime jurídico do processo executivo anterior às alterações estabelecidas pelo DL n° 38/2003, de 8 de Março, ou seja, pelas disposições constantes do DL 329-A/95 de 12 de Dezembro.

XVII - As sucessivas alterações ao regime jurídico do processo executivo que se verificaram desde a data de instauração da presente execução até ao presente, apenas se aplicaram aos processos instaurados após a entrada em vigor de cada diploma legal.

XVIII - Em cumprimento da Lei, o presente processo tem sido tramitado, desde o seu início, pelas regras atinentes ao processo executivo vigentes antes das alterações estabelecidas pelo aludido DL n° 38/2003, de 8 de Março.

XIX - E assim foi também, como não podia deixar de ser, quanto à tramitação do próprio incidente de anulação da venda requerido pelo proponente, como se afere, a título de exemplo, pelo intróito do requerimento inicial de anulação da venda, em que o proponente refere, e bem, que " . . . vem, nos termos e para os efeitos do art. 908° do CPC, redacção anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 3812003, de 8 de Março ", ou pela própria Sentença relativa a tal incidente, proferida em 20/09/2012, em que se remete sempre para as disposições do CPC anteriores ao DL n.º 38/2003, de 8 de Março ( Cfr. págs. 5 e 6).

XX - Embora não identifique qual a versão do CPC a que se refere no despacho de que se recorre, apenas se referindo ao mesmo como o CPC "velho", será de presumir que o Tribunal A Quo se está a reportar à versão do CPC instituída pelo DL n.º 226/2008 de 20 de Novembro, pois que foi o diploma legal que integrou alíneas no n.º 1 do art. 8980 do CPC e também porque, efectivamente, a alínea b) do n.º 1 do art. 898° do CPC na versão do aludido DL n.º 226/2008 de 20 de Novembro, determina, precisamente, a realização da venda por negociação particular, não podendo ser admitido o proponente a nela intervir.

XXI - Será de admitir e de presumir, pelas razões sobreditas, que o Tribunal A Quo pretendeu aplicar, efectivamente, à falta de pagamento do preço, o regime instituído pelo DL n° 226/2008 de 20 de Novembro, o que fez erradamente.

XXII - A redacção do art. 898° do CPC foi sendo sucessivamente alterada, primeiramente, pelo DL n° 38/2003, de 8 de Março, posteriormente, pelo DL n.º 226/08 de 20 de Novembro e mais recentemente, pela Lei 41/2013 de 26 de Junho.

XXIII - Conforme decorre do art. 21°, n.º 1 do DL n.º 38/2003, de 8 de Março, o regime aí consagrado só se aplicava aos processos instaurados a partir de 15 de Setembro de 2003.

XXIV - E, por força do disposto na primeira parte do n.º 1 do art. 22.º e 230, n.º 1 do DL n.º 226/08 de 20 de Novembro, o regime legal nele estabelecido só se aplicaria aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, ou seja, após 31 de Março de 2009.

XXV - Pelo que aos presentes autos, e no que tange às regras constantes do regime de venda dos bens penhorados, aplicar-se-á o regime legal vazado no CPC, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL. 329-A/95 de 12 de Dezembro, solução essa, aliás, em consonância com os princípios gerais constantes do art. 12° do Código Civil.

XXVI - Atenta a falta de pagamento do preço, o Tribunal A Quo apenas poderia optar por uma das duas hipóteses consagradas no art. 989º do CPC, na versão que lhe foi dada pelo DL 329­A/95 de 12 de Dezembro e no qualquer outra.

XXVII - Indeferindo o pedido do recorrente para que se procedesse em conformidade com o disposto no n° 1 do art. 898° do CPC (indeferimento assente em fundamentos com os quais o recorrente, pelos motivos acima apontados, no pode concordar), o Tribunal A Quo sempre teria de seguir o estabelecido no n.º 2 do referido artigo, ou seja, ouvidos os interessados, determinar que a venda fique sem efeito e que os bens voltem a ser vendidos pela forma considerada mais conveniente, não sendo o proponente remisso admitido a adquiri-los novamente e ficando responsável pela diferença do preço e pelas despesas a que der causa.

XXVIII - Já em 17/02/2010, o Tribunal A Quo havia determinado que face à falta de depósito do preço, se procedesse nos termos do disposto no art. 898°, n° 2 do CPC, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, determinação essa que acabou por nunca ser cumprida.

XXIX - O Tribunal A Quo tinha, in casu, duas hipóteses: ou deferia o pedido do recorrente para que se procedesse em conformidade com o n.º 1 do art. 898° do CPC, ou, indeferindo tal pedido, teria de determinar que se procedesse em conformidade com o n.º 2 do mesmo artigo.

XXX- Não o fazendo, como efectivamente não fez, violou o disposto no art. 8980 do CPC, na redacção que lhe foi conferida pelo DL 329-A/95 de 12 de Dezembro, violando ainda, ao aplicar o regime estabelecido pelo DL n° 226/08 de 20 de Novembro, os arts. 22°, n°1 e 23°, n.º 1 deste diploma legal e, bem assim, os princípios gerais constantes do art. 120 do Código Civil.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.as, deve o douto despacho de fls. 481 e 482 proferido pelo Tribunal A Quo ser revogado e substituído por outro que defira o requerido pelo exequente ora recorrente, ou seja, que se proceda em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 8980 do CPC, na redacção que lhe foi conferida pelo DL 329-A/95 de 12 de Dezembro;

Ou, assim se não entendendo, o que apenas por hipótese meramente académica se concede, deve o douto despacho de fls. 481 e 482 ser revogado e substituído por outro que determine se proceda em conformidade com o n.º 2 do art. 8980 do CPC, na redacção que lhe foi conferida pelo DL 329-A/95 de 12 de Dezembro,

Assim fazendo V. Ex.as a costumada JUSTIÇA!        

                                      ****               

A fls 76 foi admitido o recurso, como de apelação, a subir imediatamente e em separado, com efeito meramente devolutivo.

Respondeu Faustino Silva Mendes pugnando pela extemporaneidade do recurso ou, caso assim se não entenda, manter-se inalterada a decisão recorrida.

***

O Ex.mº Procurador Geral Adjunto, apôs o seu visto.

Questão Prévia.

Antes de mais, diremos que é nosso entendimento que se verifica uma circunstância que obsta à apreciação do recurso, traduzida na incompetência material desta secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Vejamos então.            

Nos presentes autos está em causa a apreciação do despacho que indeferiu o requerido a fls 473 (imediato arresto de bens suficientes para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas) e, ao invés, com fundamento na falta de pagamento do respectivo preço declarou sem efeito a venda de fls 272-273 relativa ao imóvel rústico descrito na Conservatória do registo Predial de Pombal…e determinou a realização da venda por negociação particular, proferido no âmbito da execução ordinária sendo aplicável as disposições do Código de Processo Civil.

O processo de execução não tem natureza penal, visto não ser regulado por normas penais ou processuais penais, designadamente em matéria de recursos.

Nos termos do artº 12º, nº 3, alínea b), do CPP, às secções criminais das relações compete julgar recursos «em matéria penal». No mesmo sentido, o artº 73º, alínea a), da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, estatui competir às secções da Relação, «segundo a sua especialização julgar os recursos”, e o artº 54º, nº 1, define a especialização das secções, estatuindo que «as secções cíveis julgam as causas que não estejam atribuídas a outras secções, as secções criminais julgam as causas de natureza penal e as secções sociais julgam as causas referidas no artigo 126º».

O critério adoptado foi, pois, o de identificar as causas que compete julgar às secções criminais e sociais, sendo o julgamento das restantes da competência das secções cíveis.

Aqui, a causa a julgar não é de natureza penal, como se disse, nem se inclui nas referidas no artº 126º. Logo, é da competência das secções cíveis. É irrelevante a circunstância de a decisão recorrida correr num processo apenso a um processo criminal, visto o critério definidor da competência ser o da natureza da causa(Neste sentido o Ac do STJ de 26/04/2012 in www.dgsi.pt relatado pelo Exmo. Sr. Cons Manuel Braz).

Em consequência, decide-se que esta secção criminal é incompetente, em razão da matéria, para julgar o despacho aqui recorrido, sendo competentes as secções cíveis.

Ao abrigo do disposto no artº 33º, nº 1, do CPP e após trânsito, remeta os autos à distribuição pelas secções cíveis deste Tribunal da Relação.

                                                

Coimbra, 3 de Fevereiro de 2016

                                                

(Alice Santos - relatora)

                                                                 

(Abílio Ramalho – adjunto)