Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FONTE RAMOS | ||
Descritores: | ADVOGADO MANDATO JUDICIAL CONFLITO DE INTERESSES | ||
Data do Acordão: | 05/19/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 99 DA LEI Nº 145/2015 DE 9/9 ( EOA), 48 CPC | ||
Sumário: | 1. O escopo do art.º 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 09.9) é evitar o risco sério (ainda que meramente potencial) de colisão entre os interesses dos clientes do Mandatário, quando um determinado interesse de um é contrário ao do outro, acautelando-se, assim, os valores da legalidade, dignidade, independência, segredo profissional, lealdade, confiança e ética. 2. Não integra a previsão do n.º 3 do referido art.º - «o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes» - a situação em que os assuntos em discussão são diferentes e sem qualquer conexão, não seja possível concluir pela existência de conflito entre os interesses desses clientes e nada obste a que o Mandatário ajuíze, em primeira linha, da observância das normas éticas e deontológicas. | ||
Decisão Texto Integral: |
Apelação 759/19.1T8LRA-A.C1 Sumário do acórdão:
1. O escopo do art.º 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 09.9) é evitar o risco sério (ainda que meramente potencial) de colisão entre os interesses dos clientes do Mandatário, quando um determinado interesse de um é contrário ao do outro, acautelando-se, assim, os valores da legalidade, dignidade, independência, segredo profissional, lealdade, confiança e ética. 2. Não integra a previsão do n.º 3 do referido art.º - «o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes» - a situação em que os assuntos em discussão são diferentes e sem qualquer conexão, não seja possível concluir pela existência de conflito entre os interesses desses clientes e nada obste a que o Mandatário ajuíze, em primeira linha, da observância das normas éticas e deontológicas.
* Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Na acção declarativa comum movida por A (…) contra M (…), esta afirmou que o Exmo. Mandatário do A. demandou o mesmo A. e a Ré em outra acção, nela patrocinando os pais do A. contra este e contra a Ré (conforme documentos juntos aos autos[1]), o que constitui violação manifesta do disposto no art.º 99º/3 do EOA, porquanto um advogado representar um cliente numa acção, depois de o ter demandado noutra acção como executado, não pode deixar de constituir esse conflito de interesses, que o EOA, aprovado por lei, expressamente não permite, configurando falta de mandato, devendo o Autor ser notificado para regularizar o vício, com a cominação prevista no art.º 48/2 do CPC. Respondeu o A. através daquele Exmo. Mandatário, confirmando patrocinar terceiros em acção intentada contra o A. por si nestes autos patrocinado e contra a Ré, mas concluiu pela não violação de qualquer regra deontológica. No exercício do contraditório, a Ré veio ainda dizer que dúvidas não existem quanto ao alegado na contestação, situação que configura conflito de interesses, mas “se o Autor, apesar do que foi trazido ao processo, e que certamente será do seu conhecimento, entende não existir conflito de interesses com os seus pais, que contra ele, patrocinados pelo seu aqui advogado, instauraram um processo executivo pedindo o pagamento de mais de setenta e oito mil euros, naturalmente que em tal conflito não se vai insistir”(cf. requerimento de 20.9.2019)[2]. Por despacho de 12.11.2019 - remetendo-se para o disposto no art.º 99º do Estatuto da Ordem dos Advogados/EOA (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09.9) e considerando-se que “dúvidas inexistem (…) que e independentemente das razões que terão levado o mandatário do A. a patrocinar terceiros, em acção proposta também contra o aqui A., a verdade é que estatutariamente o não podia fazer” -, a Mm.ª Juíza a quo decidiu: «- o Dr. (…) não pode manter-se nos autos enquanto mandatário do A;/ - o A. deverá no prazo de 20 dias outorgar procuração a advogado (que não partilhe escritório com o Dr. (…)) com poderes especiais para ratificar o processado, ratificação essa a efectuar pelo mandatário a constituir relativamente aos actos praticados pelo Dr. (…).» Inconformado, o A. apelou formulando as seguintes conclusões: 1ª - Facilmente se alcança inexistir falta ou insuficiência de procuração ou sequer a sua irregularidade. 2ª - Apenas existe irregularidade do mandato, quando a procuração não satisfaz os requisitos necessários para ser pública ou havida por pública, razão porque o despacho recorrido viola frontalmente o disposto no art.º 48º do Código de Processo Civil (CPC). 3ª - É a própria Ordem dos Advogados quem tem competência para dirimir qualquer conflito de interesses entre os seus clientes (entre dois ou mais clientes representados pelo mesmo advogado), conflito de interesses (entre clientes do signatário) que se não verifica na situação em apreço, por nunca o signatário ter sido constituído mandatário ou sequer consultado pela Ré/Recorrida. 4ª - Nos mais variados assuntos extrajudiciais ou judiciais sempre representou a parte contrária, inexistindo qualquer conflito de interesses entre os seus clientes ou sequer qualquer questão conexa com a dos presentes autos. 5ª - Comprovativo de que o signatário não violou qualquer dispositivo legal do EOA, atente-se não só ao facto do art.º 99º dos Estatutos se inserir no CAPÍTULO II - RELAÇÕES COM CLIENTES, como também ao que se refere sob os n.ºs 2 a 16 do III das presentes alegações[3]. 6ª - Deverá revogar-se o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento da lide sem obrigatoriedade do A. ter de outorgar procuração a outrem que não o signatário, por ser neste em quem aquele confia plenamente e a quem outorgou procuração válida (tomando-se-lhe declarações para o efeito se se entender necessário), sob pena de se violar o disposto nos art.ºs 48º do CPC e 3º, 54º, n.º 1, alínea f), 58º, 81º a 83º, 88º a 90º e 97º a 100º do EOA. A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir se existe conflito de interesses que torne anómalo o mandato que o A. conferiu ao Exmo. subscritor da p. i. e das alegações de recurso. * II. 1. Para a decisão do recurso releva o que consta do antecedente relatório e o seguinte:[4] a) A. e Ré casaram entre si em 25.02.1984; o divórcio foi decretado por sentença transitada em julgado em 08.02.2018. b) Na presente acção, instaurada em 28.02.2019, o A. pediu a condenação da Ré a reconhecer que os valores arrolados nas contas bancárias de que aquele é titular melhor identificadas no art.º 19º da petição inicial (p. i.) constituem bens próprios do A. e estão em consequência excluídos de partilha dos bens comuns do casal. c) Alega o A. que lhe foi atribuída uma indemnização em consequência do acidente e da invalidez permanente profissional e funcional melhor descrita na p. i., objecto de arrolamento promovido pela Ré em violação do disposto nos art.ºs 1728º, n.º 2, alínea d) e 1733º, n.º 1, alínea e), do Código Civil (CC). d) Foi junta à p. i. procuração datada de 29.11.2017, subscrita pelo A., através da qual constituiu seus bastantes procuradores os Srs. Drs. (…) conferindo-lhes os mais amplos poderes forenses, podendo substabelecer e agir conjunta ou separadamente. e) Na acção executiva para pagamento de quantia certa instaurada por A (…) e M (…) (pais do A.) contra A (…) e M (…), a que respeita o processo 756/19.7T8PBL, é “Mandatário” subscritor o Sr. Dr. (…).[5] f) Consta do respectivo requerimento executivo, nomeadamente: por documento particular datado de 05.8.2002, manuscrito pela executada e assinado pelos executados, estes reconheceram dever solidariamente aos exequentes a quantia de € 78 497,62, correspondente à soma de vários empréstimos gratuitos que estes lhes fizeram, durante o ano de 2001 e nos primeiros meses do ano de 2002, atentos os estreitos laços familiares existentes entre as partes; por cartas de 08.10.2018, os exequentes interpelaram os executados no sentido destes os reembolsarem do referido montante, no prazo de 60 dias, mas não o fizeram. g) A executada M (…) foi aí citada por carta registada de 22.3.2019. h) Acerca da matéria alegada nos art.ºs 1º a 8º da contestação[6], na sequência do despacho de 28.5.2019 - no qual se aludiu ao aparente patrocínio de “terceiros em acção intentada contra o próprio A. e contra a Ré” -, veio o A. dizer, nomeadamente: «- não cometeu o ora signatário qualquer violação manifesta ou sequer “dissimulada” do disposto no Art.º 99º, n.º 3 do EOA, desde logo por inexistir qualquer conflito entre os interesses dos seus clientes (o aqui A. e os seus pais (…), Exequentes na Execução melhor identificada no Art.º 5º da Contestação em que são executados a aqui R. e aqui A.). - teve o signatário o cuidado de, antes de instaurar a Execução, conferenciar com ambos aqueles seus clientes, no sentido de se assim o entendessem, tal Execução ter de ser instaurada por outro Colega que não o signatário. - Porém, face à firme, livre e inteira vontade daqueles seus clientes insistirem no sentido de ser o signatário quem patrocinasse também ambas as partes, dado sobretudo o A. não negar por qualquer forma ou meio a dívida solidária que em conjunto com a R. têm para com aqueles seus pais, antes sempre a reconhecendo e respeitando, só não tendo cumprido já com o pagamento da “metade” que lhe compete, atento sobretudo o carácter solidário da mesma, e a R. ter desde logo e antecipadamente à instauração daquela execução, subrepticiamente, a instruções de alguém a seu mando, apesar do documento dado à execução ter sido subscrito pelo seu próprio punho, “negado de forma inconclusiva”, à semelhança do que também referiu depois nos Art.ºs 16º a 21º da sua Oposição de Embargos, - Não restou ao signatário senão dar cabal satisfação aos desígnios daqueles seus clientes, (…) não houve qualquer violação do disposto nos art.ºs 3º e 7º do CPC, nem do art.º 99º, n.º 3 do EOA, ou quaisquer outros deveres deontológicos, antes pelo contrário, ou sequer da alegada violação do disposto no art.º 48º do CPC. (…)» 2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão. O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária (art.º 99º, n.º 1 do EOA). O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado (n.º 2). O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes (n.º 3). Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito (n.º 4). O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente (n.º 5). A falta de procuração e a sua insuficiência ou irregularidade podem, em qualquer altura, ser arguidas pela parte contrária e suscitadas oficiosamente pelo tribunal (art.º 48º, n.º 1 do CPC). O juiz fixa o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado (n.º 2 - 1ª parte). Sempre que o vício resulte de excesso de mandato, o tribunal participa a ocorrência ao respetivo conselho distrital da Ordem dos Advogados (n.º 3). 3. A questão a reapreciar por esta Relação não é isenta de dificuldades. Contudo, atento o referido enquadramento fáctico e normativo, pensamos que não se trata de um real ou substancial “conflito de interesses”, mas de mero conflito aparente, cabendo ao Exmo. Mandatário a faculdade de ajuizar da subsistência dos valores e princípios subjacentes à figura do patrocínio judiciário. 4. Relacionando-se o art.º 99º do EOA com o conflito de interesses entre clientes (passados, actuais ou futuros) do Advogado e surgindo o conflito, em regra, quando o Advogado é confrontado com situações que podem ser consideradas incompatíveis por causa dos clientes em concurso, deverá o mesmo, antes de praticar qualquer acto de consulta, mandato judicial, representação ou assistência a uma pessoa, averiguar previamente se há conflito de interesses e rever a sua posição de imediato ou logo que se aperceba da existência desse conflito. O Advogado deve recusar o patrocínio quando exista, inicial ou supervenientemente, um conflito ou um risco sério de conflito de interesses entre os seus clientes; não pode aconselhar, representar ou agir por conta de mais do que um cliente, se entre eles existir ou for de prever que exista um conflito ou esteja em causa a violação do segredo profissional. O escopo do art.º 99º do EOA é evitar o risco sério (ainda que meramente potencial) de colisão entre os interesses desses clientes (identificar potenciais conflitos de interesses cada vez mais presentes numa sociedade em crise económica e de valores), quando um determinado interesse de um é contrário ao do outro; visa-se acautelar os valores da legalidade, dignidade, independência, segredo profissional, lealdade, confiança e ética. [7] 5. Perante o caso concreto, cabe, pois, ao Advogado verificar se a relação de confiança estabelecida com o anterior cliente é posta em causa, se existe conflito de interesses entre os seus clientes. A matéria de conflito de interesses é uma questão de consciência do próprio Advogado e a ele competirá, em primeira linha, aferir da sua verificação, e, assim, se a assunção de novo mandato não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua actividade, conforme exigido pelas normas do seu estatuto profissional; aos órgãos da Ordem cabe dar parecer sobre a questão concreta (Conselho Geral) ou pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional (Conselhos Regionais) ou proceder ao julgamento das eventuais infracções disciplinares (Conselhos de Deontologia e Conselho Superior) (cf., v. g., os art.ºs 44º, 54º e 58º do EOA).[8] E é entendimento corrente que só se deverá recusar a aceitação de novo mandato quando não verificada alguma das seguintes circunstâncias: (i) se é inequívoco que nunca teve qualquer intervenção no assunto que o novo cliente lhe pretende confiar; (ii) se é inequívoco que este assunto não é (materialmente) conexo com qualquer outro em que tenha intervindo ou tomado conhecimento em representação do seu antigo cliente; (iii) se está convicto de que com a aceitação do novo mandato não sentirá a sua independência afectada; (iv) se está convicto que o exercício do novo mandato não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos do seu antigo cliente; (v) se está convicto que do conhecimento dos assuntos do seu antigo cliente não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.[9] 6. Na situação em análise (mencionada acção executiva), os progenitores do A. visam receber a importância do empréstimo ao casal que se diz realizado nos anos de 2001 e 2002, pretensão fundada no título dado à execução, instaurada depois da dissolução do casamento do A. e da Ré (pedido exequendo que, face aos elementos disponíveis, será formal e materialmente válido[10]); na acção declarativa em apreço, questiona-se se determinada importância percebida a título indemnizatório integra o acervo patrimonial do dissolvido casal (cf. II. 1. alíneas c) e f), supra). Sendo naturalmente diferentes as posições, as pretensões e o interesse patrimonial dos progenitores do A. no confronto com a realidade dos bens e eventuais dívidas do dissolvido casal do A. e Ré, decretado o divórcio, cada um dos ex-cônjuges pugnará pela partilha que salvaguarde os bens próprios e a sua meação no património comum (haverá lugar ao correspondente inventário divisório, destinado a partilhar os bens que fazem parte dum património comum nos precisos termos que a lei civil estabelece - art.º 1689º do CC).[11] A presente acção declarativa surge, pois, no âmbito daquela segunda controvérsia (a título preliminar) mas o seu objecto não tem qualquer conexão com a dita acção executiva. 7. À referida acção executiva subjaz pretensa dívida do dissolvido casal - quiçá, a liquidar no âmbito de inventário subsequente ao divórcio (art.º 1689º, n.º 2 do CC); porém, não se poderá/deverá necessariamente concluir que a pretensão dos pais do A. (exequentes) colida, forçosa e inexoravelmente, com a posição e o interesse do A., e/ou que a circunstância deste não ter deduzido oposição à execução (ao contrário da Ré[12]) indicie, de algum modo, “conflito de interesses” dos mencionados clientes do Exmo. Advogado subscritor da p. i. e da alegação de recurso (que, em contexto diverso, patrocina o A. e os ditos exequentes). 8. Em princípio, a Ré/recorrida não terá o contributo/colaboração/empenho do A. para o (eventual) sucesso da oposição que deduziu à execução, circunstância ou “inevitabilidade” a ponderar em sede judicial e que a própria Ré não enjeita - cf. o citado requerimento de 20.9.2019, onde acaba por emitir como que o seu derradeiro “parecer/juízo” sobre o aparente “conflito de interesses” entre os clientes do Exmo. Mandatário subscritor da p. i.. 9. Numa visão mais ortodoxa ou numa aplicação porventura mais rigorosa dos princípios e normas em matéria de patrocínio judiciário, dir-se-á que talvez fosse preferível que o Exmo. Mandatário não representasse o A. nesta acção declarativa ou a “parte contrária” naquela acção executiva. No entanto, afigura-se que uma (avisada) menor ortodoxia não será avessa à álea ou ao risco cuja inicial e decisiva ponderação caberá ao próprio mandatário judicial, tanto mais que, reafirma-se, atento o estatuído no art.º 99º do EOA, não se conclui que exista inegável ou evidente conflito de interesses entre os clientes do Exmo. Mandatário signatário da p. i. ou na sua relação para com tais clientes, ou sequer em qualquer questão conexa com a dos presentes autos ou, então, que foram desrespeitadas normas éticas ou deontológicas afectando o interesse e a posição daqueles clientes e, até, da Ré/recorrida (cf. ainda, designadamente, o preceituado nos art.ºs 83º, 88º, 90º, 97º e 100º do EOA). 10. E se, como se vê, o Exmo. Mandatário diz inexistir conflito de interesses (que os interesses dos seus clientes não são conflituantes entre si - cf., por exemplo, a “conclusão 5ª”/ponto I. e II. 1. alínea h), supra), salvo melhor opinião, os elementos disponíveis não indiciam situações que colidam com a sua integridade ou independência e diminuam a amplitude do exercício da advocacia, constituindo incompatibilidade relativa do mandato forense e da consulta jurídica (cf. art.º 83º do EOA). 11. Por conseguinte, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, o Exmo. Mandatário subscritor da p. i. e da alegação de recurso não tinha de recusar mandato ou prestação de serviços em questão em que já tivesse intervindo em qualquer outra qualidade ou fosse conexa com outra em que representa ou tenha representado a parte contrária; não se poderá dizer que devesse recusar mandato contra quem noutra causa seja seu mandante; ou, por último, que não pudesse representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, por se tratar do mesmo assunto ou assunto conexo, existindo conflito entre os interesses desses clientes (cf. o art.º 99º, n.ºs 1 a 3 do EOA)[13], sabendo-se que a imposição desses deveres visa evitar a verificação de situações de conflito de interesses no exercício do mandato e tem uma tripla função: “a) defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes; b) defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes e c) defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações”.[14] 12. Face aos elementos disponíveis, não podemos afirmar que exista falta, insuficiência ou irregularidade do mandato (cf. art.º 48º do CPC), sendo que a irregularidade da procuração pressupõe a inobservância dos requisitos de forma do art.º 43º do CPC[15]. 13. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso. * III. Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida, com a consequente manutenção do mandato conferido pelo A.. Custas pela Ré/apelada (sem prejuízo de eventual benefício do apoio judiciário). * 19.5.2020
Fonte Ramos ( Relator ) Alberto Ruço Vítor Amaral
[1] Foi alegado no art.º 5º da contestação: “(…) em data recente o Dr. A(…), passou a patrocinar A (…), pais do Autor, em concreto, intentando uma execução (processo 756/19.7T8PBL) contra a Ré e contra o A.”. [5] Consignou-se no despacho recorrido que a Ré juntou com a contestação “cópia de requerimento executivo e procuração, na qual se vislumbra que o Dr. (…) patrocina A (…) e M (…)em execução intentada contra os aqui A. e R.” - tal procuração não consta dos elementos juntos aos autos de recurso. [7] Vide, por todos, Carlos Mateus, Deontologia Profissional - Contributo para a formação dos Advogados Portugueses, Póvoa de Varzim, Abril de 2019/pdf. [9] Cf., de entre vários, o parecer/consulta do Conselho Distrital de Lisboa n.º 18/2012, de 20.8.2012, relatado pela Sr.ª Dr.(…), in https://crlisboa.org/2016/docs/Legislacao_profissional.pdf. [10] Veja-se, por exemplo, que uma mera doação aos cônjuges após a celebração do casamento, para integrar a comunhão conjugal dos donatários, recai no âmbito das liberalidades previstas no art.º 1791º do CC, e caduca com a dissolução do casamento por divórcio, revertendo automaticamente ao património dos doadores - cf., neste sentido, o acórdão desta Relação de 17.9.2019-processo 384/18.4T8LRA.C1, subscrito pelo relator e o 1º adjunto. [12] Veja-se a parte final da resposta à alegação de recurso e o ponto 1 do requerimento da Ré de 20.9.2019, onde se refere que a Ré deduziu oposição e defendeu os seus interesses no processo de execução 756/19.7T8PBL e que o A. “nem advogado constituiu”. [13] Sobre situações de “conflitos de interesses” enquadráveis na previsão do art.º 99º do actual EOA (e normas similares de diplomas anteriores), cf., de entre vários, os acórdãos da RC de 30.01.2007-processo 382-A/2002 [assim sumariado: «Se, no mesmo assunto, existir conflito de interesses entre dois ou mais clientes representados pelo mesmo advogado, deve este cessar de agir por conta de todos, no âmbito desse conflito» (art.º 94º, n.ºs 3 e 4, do EOA)] e da RL de 30.3.2017-processo 1712/11.9TVLSB.L1-6 [constando do sumário: «A advogada que ao tempo em que acompanhou e assistiu juridicamente a sua cliente na negociação da compra e venda de um imóvel, era titular de parte do capital social da sociedade que interveio nesse negócio como compradora, agiu em claro conflito de interesses, incorrendo na violação de normas éticas a que estava obrigada, designadamente os artigos 76º e 83º n.º 1 a) e b) do EOA.»], publicados no “site” da dgsi. [15] Que reza o seguinte: «O mandato judicial pode ser conferido: a) Por instrumento público ou por documento particular, nos termos do Código do Notariado e da legislação especial; b) Por declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo.» Vide, nomeadamente, J. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, 1960, pág. 53 (sobre a irregularidade do mandato, à luz do CPC de 1939, refere que estão em causa os requisitos “necessários para - a procuração - ser pública ou havida por pública”) e J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 81. |