Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
73700/20.YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: DOCUMENTOS PARTICULARES
FORÇA PROBATÓRIA
RECIBO DE PAGAMENTO
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 376.º, N.º 2 E 346.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O documento particular que o vendedor entrega ao comprador, designado literalmente por “recibo”, com o sentido de “quitação” pela quantia em dívida, porque integra declaração por parte daquele com factos contrários aos seus interesses, faz prova quanto à realidade destes factos, criando uma espécie de “presunção” de que o pagamento existiu.

II - Cabia ao vendedor ilidir a “presunção” de pagamento, mediante contraprova daquilo que resultava do “recibo”/“quitação”.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                           *

1 – RELATÓRIO

Em autos de processo comum resultante de injunção, relativa a obrigação emergente de transação comercial, proposta por AA contra “F..., Lda.”, ambos melhor identificados nos autos, pretende o Autor que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 21.265,40€ sendo 14.840,00€ de capital, 6.272,40€ de juros, e 153,00€ de taxa de justiça paga.

Alega, para tanto, e em síntese, que vendeu à Ré no dia 8/6/2015 doze bovinos, que foram entregues a esta, pelo preço de 14.000,00€, acrescido de IVA, o que perfaz a quantia de 14.840,00€, conforme a fatura nº 0523.

O sócio gerente da Ré disse ao A. que não tinha cheques para pagar e por isso ofereceu-se para ir ao Multibanco com o A., para fazer a transferência bancária para o NIB fornecido pelo A. Na caixa de multibanco o sócio gerente pegou no cartão de multibanco do Requerente e efetuou uma transferência bancária e no fim disse para o Requerente que o depósito estava feito, só que essa transferência bancária para pagar o preço da venda dos bovinos nunca foi creditada na conta do A.

Apesar do A. ter interpelado o sócio gerente da R. de que a transferência não tinha sido efetuada para a sua conta, o certo é que o valor da venda nunca foi creditado na conta do A. O sócio gerente da R. fez uma declaração não séria nos termos do nº 2 do artigo 245º do Código Civil ao dizer que o depósito estava feito. Ao capital inicial acresce juros desde a data da venda até ao presente no valor de 6.272,40€, sendo os juros no valor de 1.269,90€ à taxa de 8,05% desde 8/6/2015 até 30/06/2016 e o valor de juros na quantia de 5.004,50€ contados desde 1/7/2016 a 16/09/2020 à taxa de 8%, valor a que acrescem juros vincendos até integral e efetivo pagamento da fatura.

*

Notificada, a Ré deduziu oposição, em que diz, em síntese, que a injunção que deu causa a esta ação consubstancia uma mera manobra do A. para tentar enriquecer à custa da R., que nada deve ao A.

Foi instaurado processo de insolvência contra a Ré, sob o nº 2442/20.... do Tribunal de Comércio ..., processo que terminou por desistência, cujo prazo de contestação terminava a 08/09/2020, e porque não encontrava os recibos de pagamento ao A. telefonou-lhe a solicitá-los tendo este dito que não os tinha em seu poder, mas que a Ré nada lhe devia. O sócio gerente da Ré procurou então no seu arquivo pessoal e encontrou os recibos das faturas n.ºs 523 e 526, docs. 1 e 2 que junta, pagamentos que haviam sido feitos com dinheiro próprio do mesmo.

Em 21/09/2020 o A. pensando que a R. não possuía recibos dos pagamentos veio intentar a presente ação.

Como demonstra o recibo o A. recebeu da R. o pagamento do preço. Se não o tivesse recebido não teria negociado de novo com a R., cfr. Doc. 2 e teria reagido de imediato.

A R. limitou-se a pagar a fatura, conforme comprova o respetivo recibo.

Mais diz que o A. deduziu, com dolo, pretensão cuja falta de fundamento não ignorava. Alterou deliberadamente a verdade dos factos, tendo feito do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal. Deverá assim ser condenado como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da R., a fixar na quantia que julgue mais adequada à conduta do A.

*

Notificado para aperfeiçoar o requerimento inicial o Autor veio dizer que o sócio gerente da Ré pediu ao Autor o NIB deste, como o mesmo se encontra inscrito no cartão de multibanco, o Requerente entregou ao sócio gerente da Ré o cartão de multibanco para que este pudesse digitalizar o NIB da conta do Requerente onde ia ser concretizado o pagamento do preço dos bovinos. O NIB para onde o pagamento devia ter sido efetuado era o seguinte:  ...48 da C..., onde o Autor tem conta. O pagamento dos bovinos devia ter sido efetuado em 8 de junho de 2015, ou seja no dia em que a Ré carregou os bovinos da pecuária do Autor. O Autor deu conta que não houve transferência bancária cerca de um mês depois da suposta transferência ter sido realizada. O Autor ao longo deste lapso de tempo sempre solicitou o pagamento do preço dos bovinos, só que o sócio gerente da Ré lhe dizia que a transferência do montante do preço dos bovinos costumava ser demorada, o que criou a convicção no Autor que o sócio gerente da Ré estava a falar a verdade, por se ter criado laços de confiança e de amizade entre ambos, visto que o sócio-gerente da Ré ia praticamente todos os dias a casa do Autor pedir ajuda como criar bovinos, e por ser uma pessoa de idade que nunca tinha trabalhado com transferências bancárias, mas sim sempre pelo método tradicional, quando vendia gado o Autor recebia o seu preço por cheque ou em dinheiro.

Só quando a Ré pediu o recibo ao Autor e este foi ao livro das faturas e verificou que não tinha o recibo, chamou novamente atenção ao sócio gerente da Ré que nunca tinha sido creditado na sua conta o valor da fatura e peticionou uma vez mais o pagamento.

*

Notificada a Ré veio dizer que nunca o A., até à injunção dos autos, solicitou à R. o pagamento do preço uma vez que bem sabe que esta nada lhe deve.

Existiam efetivamente relações de amizade e confiança entre A. e R., razão pela qual não se compreende que o A. só tivesse detetado a existência da alegada dívida antes de propor a injunção.

É também estranho dizer-se que o A. não estava familiarizado com a utilização de cartões multibanco quando dos extratos bancários juntos aos autos se constata que o A. efetua as suas compras através do aludido cartão.

*

Foi proferido despacho que fixou o valor à causa.

Foi proferido despacho saneador.

Mais foi proferido despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, sendo que foi ainda proferido despacho a admitir os requerimentos de prova.

*

Procedeu-se a julgamento, conforme Ata respetiva.

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, resultava que o A. havia vendido à R. os 12 bovinos em causa, por € 14.840,00 (incluindo IVA), pelo que, não tendo a Ré provado, como lhe competia, nos termos do art. 342º, nº2 do C. Civil, ter pago a correspondente fatura, era esta última responsável pelo pagamento do respetivo preço, como peticionado, a que acresciam juros, mas só desde a citação, termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«III. Decisão

Por todo o exposto:

a) Julgo parcialmente procedente a ação, em consequência do que condeno a ré F..., Lda. a pagar ao Autor a quantia peticionada de 14.840,00€ (catorze mil oitocentos e quarenta euros), bem como juros de mora vencidos, às referidas taxas, sobre aquele valor, desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a quanto ao mais peticionado.

b) Condeno o Autor e a Ré, no pagamento das custas, na proporção do respetivo decaimento.

Registe e notifique.»

                                                           *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a Ré recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1) Foram julgados como provados os factos que se deixaram referidos no ponto II do corpo destas alegações e que por uma questão de economia processual aqui se dão por reproduzidos.

2) De tais factos resulta inequivocamente que a Ré já pagou o quantitativo em que foi condenado, contrariamente ao entendido pela d. sentença recorrida.

3) E não se diga que o facto do R. alegar que não se recorda como efectuou tal pagamento é o mesmo que dizer que desconhece como tal pagamento foi realizado.

4) O que o R. afirmou foi que, decorridos 5 anos após o pagamento, já não consegue recordar-se de que modo o efectuou.

5) Sublinhe-se que este pagamento foi efectuado com dinheiro próprio do sócio gerente da Ré e não pela própria Ré, uma vez que esta não tinha hipótese de o fazer.

6) E tal facto explica que não tivesse ficado registado o meio de pagamento utilizado, sendo que durante este lapso de tempo o sócio gerente da Ré procedeu a inúmeros pagamentos.

7) A d. sentença recorrida defende também que o “recibo” junto aos autos não pode ser considerado um verdadeiro recibo uma vez que não está assinado pelo A.

8) Só que o recibo foi emitido em papel timbrado do A., onde este está perfeitamente identificado.

9) Por outro lado resulta do facto 3 da matéria provada que aquele recibo foi entregue pelo A. ao sócio gerente da Ré,e que apesar de não estar assinado, foi por ele emitido.

10) Assim à sua força probatória sempre será aplicável o artº 376 do C.C. uma vez que está reconhecida expressamente a sua autoria pelo próprio A.

11) O aludido documento “faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao A. “ sendo que “ os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante” ( artº 376, nº 2 ), ou seja, faz prova do pagamento efectuado pela R.

12) É certo que o A. podia fazer prova do que o declarado no recibo não correspondia à verdade, o que tentou fazer em audiência de julgamento, sendo que nada provou.

Mas mais,

13) A tese que apresenta foi sendo sucessivamente alterada, sendo que em audiência de julgamento contradisse o que alegou no seu articulado.

14) Em julgamento referiu que três semanas / um mês após a venda o representante da Ré foi com ele ao Multibanco e simulou efectuar uma transferência e que “ começou logo a dar conta que o dinheiro não tinha sido transferido “.

15) É óbvio que esta versão – como aliás a que apresentara no requerimento de injunção - não faz qualquer sentido, tendo aliás os factos que as sustentavam sido julgadas não provados.

16) Por outras palavras: o A. não conseguiu contrariar o facto constante no recibo, ou seja, que o pagamento havia sido efectuado.

Mas mais,

17) Foi dado como provado que a Ré, quando preparava a oposição no processo de insolvência nº 2442/20.... do Tribunal ..., telefonou ao A. a pedir os recibos de pagamento, uma vez que pensava que não os tinha em seu poder.

18) Ora tal facto prova inequivocamente o pagamento uma vez que, se a Ré não tivesse pago, obviamente que não telefonava ao A. a pedir os recibos !.

E,

19) Encontra também junto aos autos a oposição deduzida no processo de insolvência que foi deduzido depois da conversa supra referida que o próprio A. confirma ( cfr. motivação da d. sentença recorrida).

20) E o próprio A. alegou no artigo 9º do seu articulado de 30-10-2020, que só peticionou o pagamento após a Ré lhe ter pedido o recibo !.

21) E isto apesar de terem decorrido mais de cinco anos desde a venda dos bovinos !

22) O recibo junto aos autos faz assim prova de que foi o A. que nele apôs as declarações nele constantes, facto que aliás é comprovado pelo próprio A. que também confessa que o entregou ao sócio gerente da Ré.

23) Aquele “recibo” é pois um documento particular, cuja autenticidade foi reconhecida pelo A., sendo que não foi impugnado a veracidade da letra nem da autoria do mesmo.

24) Assim, nos termos do artº 376, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, uma vez que estas são contrárias ao seu interesse.

25) Mas mais: Está provado que foi o próprio A. quem emitiu o recibo e como resulta da matéria não provada, não fez prova de que a declaração nele constante não corresponda à verdade.

26) Pelo contrário, resulta dos factos provados que o recibo em causa prova efectivamente o recebimento pelo A. da quantia aí constante uma vez que, se tal não fosse verdade, nunca a R. teria telefonado a pedir o recibo ao A., quando preparava a oposição à insolvência ( Setembro de 2020), demonstração inequívoca de que aquela quantia havia sido paga.

27) Mas mais: encontra-se junto aos autos um outro recibo no montante de 402,80 €, com a data de 13.09.2015, que titulava também a venda de um bovino feita pelo A. à Ré, factura cujo pagamento não é reclamado pelo A. que aceita assim que o mesmo está pago.

28) Ora não faria qualquer sentido que, se a venda concretizada em 8.06.2015 não estivesse paga o A. viesse a negociar de novo com a Ré sem receber aquele pagamento !

29) Por último dir-se-á ainda que o facto de não ter sido transferido para a conta do A. número ...62 da C... em Junho de 2015 a quantia de 14.840,00 € não tem qualquer interesse para a decisão do presente processo.

30) Ao julgar a acção parcialmente procedente condenando a Ré a pagar ao A. a quantia de 14.840,00 € acrescido de juros, fez o Mº Juíz “a quo” incorrecta interpretação da lei e dos factos, tendo violado, além do mais, os artºs 376 e 342 do C.C.

31) Assim a d. sentença recorrida não deverá manter-se

32) É o que se pede e espera desse Alto Tribunal assim se fazendo

J U S T I Ç A !

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida que deverá ser substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente e absolva a Ré do pedido.»                                                      

                                                                       *

            Apresentou o A. as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes “conclusões”:

«A) – As questões a decidir na Douta Sentença “a quo” é de saber se a Ré deve ser condenada a pagar ao Autor a quantia peticionada nos autos, relativo ao preço dos bovinos adquiridos ao Autor em 8/06/2015;

B) – Pelos factos dados como provados extrai-se que foi celebrado um contrato de compra e venda de doze bovinos pelo preço de 14.000,00 €, acrescido de IVA, o que perfaz a quantia de 14.840,00 €, conforme a fatura nº 0523;

C) – Os bovinos foram entregues à Ré;

D) – Para a conta do Autor número ...62 da C..., em Julho de 2015, não foi transferida pela Ré ou respetivo sócio gerente a quantia de 14.840,00 €;

E) – Apesar de o Autor ter emitido recibo daquela fatura com a data de 8/06/2015, junto aos autos e que entregou ao sócio gerente da Ré;

F) – Não prova que a Ré ou o seu sócio gerente tenha pago efetivamente a compra dos bovinos, porque o Autor recorreu aos meios gerais para impugnar a declaração que tinha feito e que está documentada naquela fatura, nos termos previstos no nº 2 do artigo 376º do Código Civil, porque;

G) – O Autor impugnou a declaração probatória do recibo por esta não provar que a declaração corresponde à sua vontade que era de ter recebido o preço da venda dos bovinos;

H) – O que pode fazê-lo recorrendo aos meios gerais da impugnação da declaração, não relevando o recibo emitido pelo Autor nos termos do nº 2 do artigo 376º do Código Civil um facto contra si, no sentido que recebera o valor neste inscrito;

I) – A Ré ou o seu sócio gerente não provou que tinha cumprido a obrigação de pagar o preço da compra, como era o seu dever, visto que uma quantia deste valor deve-se guardar o meio de pagamento, por ser uma quantia considerável, e;

J) – Quando se trata de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor sejam positivos, quer sejam negativos, é ao Réu que cabe fazer prova da sua verificação nos termos do nº 2 do artigo 342º do Código Civil;

K) – Não se podendo explicar a razão da entrega do “recibo” ao sócio gerente da Ré como prova de pagamento, porque o Autor nas suas declarações de parte explica a razão da entrega do “recibo” ao sócio gerente da Ré no pressuposto que este ia fazer a transferência bancária na caixa de multibanco da C..., o que nunca foi feita;

L) – Mais a Ré como o seu sócio gerente nunca afirmaram perentoriamente que tinham pago o preço da venda dos bovinos;

M) – Só pediram ao Autor o recibo para preparar a sua oposição no processo de insolvência nº ...0... do Tribunal do Comércio ..., por não encontrar o recibo;

N) – Só que está em causa é a relevância probatória do recibo entregue ao representante da Ré que não pode ser tratado como um título original para efeitos do artigo 786º, nº 3 do Código Civil, porque o mesmo não está assinado pelo Autor, apesar de ter sido emitido no momento da emissão da fatura e nem a Ré afirmou que o recibo foi emitido aquando do pagamento, o que reforça mais que a fatura não foi paga, e;

O) – Nem a Ré ou o seu sócio gerente declaram qual foi o meio de pagamento e a respetiva data, o que é estranho visto que as quantias que o sócio gerente paga em nome da sociedade vão para a “conta de sócio”, sendo assim imperioso guardar os comprovativos do pagamento e o meio de pagamento para alicerçar a contabilidade da Ré e uma quantia deste valor considerável é muito importante ter provas inequívocas do pagamento para se poder comprovar os pagamentos realizados por terceiros em nome da sociedade, para que a sua contabilidade esteja correta e se for caso disso poder ser ressarcido pela sociedade;

P) O sócio gerente da Ré só afirma que fez inúmeros pagamentos ao longo destes anos, mas nunca disse como pagou ao Autor e em que data.

Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida, condenando-se a Ré do pedido.

Fazendo-se assim a costumada

JUSTIÇA»

                                                                      *

            O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

                                                                       *

            Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Ré nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - incorreto julgamento de direito [desacerto da sentença que condenou a Ré a pagar ao A. a quantia peticionada nos autos, relativa ao preço dos bovinos adquiridos por aquela a este, em 8/06/2015]?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Cumpre começar por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, sendo certo que o recurso não questiona tal parte da decisão.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

 «A) Produzida a prova e discutida a causa, consideram-se provados, com relevância para a decisão, dos factos alegados, os seguintes:

1. O Autor vendeu à Ré no dia 8/6/2015 doze bovinos pelo preço de 14.000,00€, acrescido de IVA, o que perfaz a quantia de 14.840,00€, conforme a fatura nº 0523.

2. Os bovinos foram entregues à Ré.

3. O Autor emitiu o “recibo” daquela fatura, com data de 8/06/2015, junto aos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido, que entregou ao sócio gerente da Ré.

4. Para a conta do A. número ...62 da C..., em junho de 2015 não foi transferida pela Ré ou respetivo sócio gerente a quantia de 14.840,00€;

5. O Autor e o sócio gerente da Ré tinham estabelecido laços de confiança e de amizade, visto que o sócio-gerente da Ré pedia ao Autor ajuda sobre como criar bovinos.

6. Foi instaurado processo de insolvência contra a Ré, sob o nº 2442/20.... do Tribunal de Comércio ..., e a Ré quando preparava a oposição porque não encontrava os recibos de pagamento ao A. telefonou-lhe a solicitá-los.

*

B) Factos não provados, com interesse para a decisão da causa:

1- O sócio gerente da Ré afirmou ao A. que não tinha cheques para pagar e por isso ofereceu-se para ir ao Multibanco com o A. para fazer a transferência bancária para o NIB fornecido pelo A.

2 - Deslocaram-se à caixa multibanco e o sócio gerente da R. pegou no cartão de multibanco do A. e efetuou uma transferência bancária e no fim disse que o depósito estava feito.

3 – O NIB para onde o pagamento devia ter sido efetuado era o seguinte:  ...48 da C..., da conta número ...62 referida em II.1.A) 4.;

4 – O Autor deu conta que não houve transferência bancária cerca de um mês depois da suposta transferência ter sido realizada, na data de 8/06/2015;

5 – O Autor ao longo deste lapso de tempo sempre solicitou o pagamento do preço da venda dos bovinos, só que o sócio gerente da Ré lhe dizia que a transferência do montante do preço dos bovinos costumava ser demorada, o que criou a convicção no Autor que o sócio gerente da Ré estava a falar a verdade.

6- O sócio-gerente da Ré ia praticamente todos os dias a casa do Autor pedir ajuda para criar bovinos;

7 - O pagamento dos bovinos devia ter sido efetuado a 08/06/2015.

8 - O sócio gerente da R. pagou com dinheiro próprio a fatura nº 0532, não se recordando como foi efetuado o pagamento.

9- Por ser uma pessoa de idade que nunca tinha trabalhado com transferências bancárias, mas sim sempre pelo método tradicional quando vendia gado, o Autor recebia o seu preço por cheque ou em dinheiro;

10 – Só quando a R. pediu o recibo ao A. e este foi ao livro das faturas e verificou que não tinha o recibo, chamou novamente a atenção ao sócio gerente da R. que nunca tinha sido creditado na sua conta o valor da fatura e peticionou uma vez mais o pagamento. 11- O A. depois do telefonema referido em II. 1.A) 6., pensando que a R. não possuía recibos dos pagamentos, veio intentar a presente ação, sabendo que esta lhe tinha pago a fatura relativa aos bovinos.»

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre entrar sem mais na apreciação da questão supra enunciada, diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito [desacerto da sentença que condenou a Ré a pagar ao A. a quantia peticionada nos autos, relativa ao preço dos bovinos adquiridos por aquela a este, em 8/06/2015].

Que dizer?

Abreviando razões, que inequivocamente procede a argumentação recursiva.

Recorde-se que a linha de argumentação da Ré/recorrente assenta nuclearmente na alegação de que resultava positivamente dos factos dados como “provados”, mormente do sob “3.” [a saber, «O A. emitiu “recibo” daquela factura com a data de 8/6/2015, junto aos autos, cujo teor se dá por reproduzido, que entregou ao sócio gerente da Ré»], que ela Ré havia já pago ao A. o quantitativo em que foi condenada.

Mais concretamente, que o “recibo “em causa, emitido em papel timbrado do A., e estando, como está, reconhecida expressamente a sua autoria pelo próprio A., daí resulta, por apelo ao disposto no art. 376º, nº2 do C.Civil, que esse documento «faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor», sendo que «os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante», donde, o dito “recibo” «faz prova do pagamento efectuado pela R.».

Merece-nos basicamente acolhimento uma tal linha de argumentação, nomeadamente face à dogmática relativa à força probatória dos “documentos particulares”, como é o caso, isto independentemente de se considerar que o documento entregue pelo A. ao sócio gerente da Ré pode ou não ser considerado “recibo”.

Senão vejamos.

Começando pelo aspeto da força probatória do “documento particular / “recibo” em causa.

Alega enfaticamente a Ré/recorrente, neste contexto, que «(…) o A. podia fazer prova do que o declarado no recibo não correspondia à verdade, o que tentou fazer em audiência de julgamento, sendo que nada provou», isto é, que «o A. não conseguiu contrariar o facto constante no recibo, ou seja, que o pagamento havia sido efectuado.»

Este é efetivamente o argumento nuclear e decisivo a considerar para a solução da questão.

Mas rememoremos, antes de mais, a melhor dogmática neste particular, sempre tendo presente o teor literal do artigo 376º do C.Civil, com a epígrafe de “Força probatória”:

«1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.  

2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.

(…)»

Importa ter presente que a regra geral nesta matéria é a de que o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta.

Sendo certo que sobre esta temática, a jurisprudência tem sido unívoca na afirmação do seguinte entendimento:

«1. A força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do C.Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas.

2. Ainda que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos respectivos factos materiais e, sobretudo, não se excluindo a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova.»[2]

Dito de outra forma: apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.

Por outro lado, importa nunca olvidar a regra geral de que era à Ré/recorrente, enquanto devedora, que cabia provar o cumprimento da obrigação por força do disposto no art. 342° do C.Civil.

Revertendo estes ensinamentos ao caso ajuizado, o que é que resulta?

Temos que o A. emitiu e entregou à Ré um documento, designado literalmente por “recibo”, com o sentido de “quitação” pela quantia em dívida.

Tal “recibo”, porque integra declaração com factos contrários aos seus interesses, faz prova quanto à realidade destes factos – cf. art. 376º, nº2 do C.Civil – criando uma espécie de “presunção” de que o pagamento existiu.

Logo, e porque na circunstância o A. não logrou provar factos atinentes ao não pagamento – cf. factos “não provados” “1-” a “5-” , “9-” e “10-”[3] – daqui resulta que o A. não logrou fazer contraprova [cf. art. 346º do C.Civil] perante a “prova” do já citado art. 376º, nº2 do C.Civil.

Face ao “perigo” da eventual entrega não devida do “recibo”, o Autor tinha de defender-se, fazendo prova do não cumprimento, ou seja contraprova daquilo que resultava do “recibo”/“quitação”[4]!

O que tudo serve para dizer que não logrou ilidir a “presunção” de pagamento/veracidade do “recibo” por si emitido, isto é, se não lhe estava vedada a prova da inveracidade do declarado no “recibo”, o que é certo que era sobre o A. que recaía o ónus, o que ele não logrou cumprir.

Acresce que, se bem compulsarmos a “motivação” da Exma. Juiz de 1ªInstância, não deixa de se concluir que mesmo para ela o Autor não fez prova do que afirmou, o que, salvo o devido respeito, faz naufragar inapelavelmente a sua pretensão de recebimento do valor dos bovinos que reclamou através da ação.

Não podemos assim sancionar o constante da sentença recorrida, mormente quando se afirma que «Do exposto resulta que o documento denominado de “recibo da fatura nº 0523” não comprova qualquer recebimento do pagamento da fatura a que alude e a restante prova produzida, por si ou conjugada com tal documento, também não o prova (…)».

É que, repetindo, aquele “recibo”, com o sentido de “quitação”, é um documento particular, o qual consubstanciando factos contrários aos interesses do declarante/Autor, provam ou, pelo menos, faziam “presumir”, a veracidade da atinente “declaração” [cf. art. 376º, nº2 do C.Civil].

Ou seja, apesar da exigência que lhe estava colocada, o Autor não provou – apesar de o ter alegado – nomeadamente, que não recebeu.

De referir que não obstante ter resultado “provado”, sob o ponto “4.”, que «Para a conta do A. número ...62 da C..., em junho de 2015 não foi transferida pela Ré ou respetivo sócio gerente a quantia de 14.840,00€», tal acaba por ser perfeitamente inócuo e inconclusivo, na medida em que nem sequer se apura que era para essa conta que o pagamento devia ser feito, ou que essa era a única conta bancária do Autor…

Assim sendo, dando procedência à argumentação recursiva e ao recurso, impõe-se revogar a sentença recorrida, com a consequente absolvição da Ré da condenação no pedido.

                                                           *

(…)                                                                *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, revogar a sentença recorrida, com a consequente absolvição da Ré da condenação no pedido.  

Custas em ambas as instâncias pelo A./recorrido.

            Coimbra, 10 de Maio de 2022

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira

Declaração.

Voto a decisão com a seguinte declaração.

Perante o recibo de quitação e o disposto no artº 376º nº2 do CC, que prova o pagamento da ré, ao autor, para obter ganho de causa, não bastava, como entendido na fundamentação, fazer apenas a contraprova de tal facto - a qual, nos termos do artº 346º do CC apenas se destina a tornar duvidosos os factos alegados pela parte que tem o ónus de os provar - mas, antes, estava onerado em operar a prova do contrário do que resulta provado ex vi daquele segmento normativo, ou seja, provar que, efetivamente, não recebeu o pagamento - cfr. artº 344º nº1 do CC , Ac. RL de 4.12.2006, p. 8914/2006-2 e Ac.STJ de 09.12.2004, p.05B1986.

Carlos António Moreira





[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] Assim no acórdão do STJ de 23.11.2005, proferido no proc. nº 05B3318; no mesmo sentido, inter alia,  os acórdãos do mesmo STJ de 24.10.2006 (proferido no proc. nº 06S1831), de 19.12.2006 (proferido no proc. nº 06B4112), 22.3.2007 (proferido no proc. nº 06S3782), 12.7.2007 (proferido no proc. nº              07S921), 12.9.2007 (proferido no proc. nº 06S4107), 17.4.2008 (proferido no proc. nº08B731) e 9.12.2008 (proferido no proc. nº 08A3665), todos eles acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[3] De referir que, salvo o devido respeito, alguns deles até eram “ilógicos”, como sejam os “4-”, “5-” e “9-”: Tanto tempo para se dar conta que não tinha havido depósito? Se normalmente recebia em dinheiro e cheque, porque é que aceitou receber por transferência? Tantos anos para instaurar a ação?
[4] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, Coimbra Editora, 1986, a págs. 39, em anotação ao art. 787º dizem que «Contra o perigo da expedição antecipada do recibo ou quitação, terá o credor de defender-se, fazendo prova do não cumprimento, ou seja, contraprova daquilo que resulta do documento (cfr. arts. 381º, nº3, 376º, nº2, 393º e 395º)».