Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA QUALIFICAÇÃO INSOLVÊNCIA CULPOSA | ||
Data do Acordão: | 06/16/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA – COMÉRCIO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 186.º/2/H) DO CIRE | ||
Sumário: | Configura a prática de irregularidade contabilística com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (preenchendo a presunção do art. 186.º/2/h) do CIRE) relacionar-se como saldo de caixa o montante de € 119.070,76 sem que exista um único cêntimo no “caixa” (numa “empresa” que teve vendas anuais, em 2011, de € 345.031,23 e, em 2012, de € 31.935,50). | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório Por apenso à acção especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação A..., Lda., com sede na Rua R..., Figueira da J... – veio a interessada B... & Filho, Lda., requerer (ex vi 188.º/1 do CIRE) a qualificação da insolvência como culposa, alegando, em síntese, que a insolvente, apesar de ter cessado a sua actividade no plano fiscal, continuou a exercer a mesma actividade, com a mesma estrutura material e humana, através de uma outra sociedade, denominada L..., Lda., que passou a usufruir da clientela e dos meios materiais da insolvente e cujo capital social foi subscrito pelos filhos do gerente da insolvente e é gerida de facto por este; mais referiu que o gerente da insolvente fez sair do imobilizado da empresa três veículos e que na contabilidade da empresa existia um saldo de caixa no valor de € 119.070,76 que o gerente da insolvente invocou ter levantado para liquidar montante por si adiantado; concluindo que a insolvência deve ser qualificada como culposa por estarem verificadas as situações previstas nas alíneas a), b), d), f), g) e h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE. * Em seguida, a Administradora da Insolvência propôs, no parecer que apresentou (nos termos do art. 188.º/2, do CIRE), que a insolvência seja qualificada como culposa, afectando a qualificação o sócio e gerente C... ; para o que invocou, em resumo e identicamente, que o estabelecimento de talho da insolvente está a laborar, sob a mesma denominação comercial e com trabalhadores que eram da insolvente, através da sociedade L..., Lda., cujo gerente de facto é o administrador da insolvente e que se apropriou do activo fixo tangível e do activo fixo intangível da insolvente; e que a devedora alienou parte considerável do seu activo, nomeadamente veículos, não tendo o saldo da caixa sido devolvido à administradora; concluindo que o gerente da insolvente fez desaparecer parte considerável do seu património, dispôs de bens da devedora em proveito de terceiros (veículos e activo fixo tangível e intangível) e prosseguiu no seu interesse pessoal uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, assim preenchendo as previsões das alíneas a), b), d), f), e) e g) do art. 186.º, n.º 2, do CIRE. * Após o que se pronunciou o Ministério Público (art. 188.º/3 do CIRE) no mesmo sentido e aderindo ao parecer da administradora da insolvência. * A devedora/insolvente A... , Lda. e o requerido C... vieram então apresentar oposição, na qual, em súmula, negam a factualidade alegada pela credora e pela administradora e alegam que a insolvência resultou antes do facto de um dos trabalhadores mais antigos da insolvente ter criado uma sociedade e passado a explorar um estabelecimento de talho perto do estabelecimento da insolvente, conseguindo desviar a grande maioria dos clientes habituais e deixando a insolvente com um valor de aviamento praticamente nulo; refutam a existência de qualquer confusão entre a insolvente e a L..., Lda., embora admitam que foi criada pela filha do gerente da insolvente, no local onde se situava o estabelecimento da insolvente e onde o gerente desta trabalha porque a filha o ajudou; referem que os veículos foram pagos e alienados na convicção das condições e preço serem as melhores soluções para a sociedade insolvente e seus credores; dizem que o saldo de caixa é um saldo contabilístico motivado pela não inclusão na contabilidade das devoluções dos suprimentos efectuados pelo C... ; e concluem que o gerente da insolvente agiu com todo o zelo, empenho e ponderação dos interesses dos credores, devendo o incidente de qualificação da insolvência ser julgado improcedente e, em consequência, a insolvência declarada como fortuita. * A administradora da insolvência respondeu à oposição deduzida, reiterando os termos do seu parecer e refutando as alegações produzidas pela devedora/insolvente e afectado/requerido. * Foi proferido despacho saneador – em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém – identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. Após o que, instruído o processo e realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, concluindo a sua decisão do seguinte modo: “ (…) Pelo exposto, decide-se: Qualificar como culposa a insolvência de A... , Lda.; Julgar afectado pela qualificação o gerente C... ; Declarar C... inibido para o exercício do comércio pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, e inibido, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido C... , e condená-lo na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; Condenar o requerido C... a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, correspondente ao valor dos créditos reconhecidos deduzido do montante que vier a ser pago no âmbito do processo da insolvência, até às forças do respectivo património; (…) ”
Inconformados com tal decisão, interpuseram a devedora/insolvente e o requerido C... – afectado pela qualificação da insolvência como culposa – o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que não qualifique a insolvência como culposa e que assim não o afecte. Terminaram a sua alegação com conclusões que aqui não transcrevemos atenta sua redundância e extensão[1].
A Administradora de Insolvência e o Ministério Público apresentaram resposta, defendendo a improcedência do recurso.
Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. *
II – “Reapreciação” da decisão de facto Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal. No caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, foram gravados; sucedendo, porém, que há partes significativas da gravação que se mostram deficientes. Efectivamente, diversos depoimentos – principalmente, o da Administradora de Insolvência e o do requerido C... – são entrecortados por sucessivos silvos e ruídos estridentes que não permitem compreender completamente tudo o que é perguntado e respondido. Em face disto, sendo-se rigoroso, pode afirmar-se que não constam do processo todos os elementos probatórios com que a 1.ª instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto e, em consequência, não tendo a deficiência da gravação sido invocada nos termos e prazo constantes do art.144.º/5 do CPC, rejeitar as questões respeitantes à reapreciação/impugnação da decisão de facto. Outra solução, menos “radical”, é a de ir, na reapreciação da decisão de facto, até onde os elementos probatórios disponíveis/compreensíveis permitem um escrutínio seguro da decisão de facto. É isto que entendemos dever fazer; tanto mais que – tendo presente as posições assumidas nos articulados, analisados os documentos juntos e ouvido o registo, na parte compreensível, da sessão de julgamento – é manifesto, antecipando a conclusão, que não assiste ponta de razão aos apelantes (na impugnação da decisão de facto), ou seja, apontando todos os elementos disponíveis/compreensíveis no sentido oposto ao da impugnação dos apelantes, não deve tal (por razões formais conduzirem ao mesmo desfecho) deixar de ser aqui afirmado. Efectuado tal prévio esclarecimento, debrucemo-nos sobre o âmago da questão/impugnação de facto. É absolutamente claro e indiscutível: Que a devedora/insolvente exerceu a sua actividade de comércio de carnes, talho e salsicharia, entre 1988 e o final do ano de 2011, na Rua da R R..., n.º ...[2]. E que, a partir do início do ano de 2012, exactamente a mesma actividade de comércio de carnes, talho e salsicharia, passou a ser exercida no mesmo n.º ... da Rua da R R... pela firma L..., Lda., a qual foi constituída e teve como sócios fundadores os 2 filhos – F... e G... , ambos estudantes – dos 2 sócios (marido e mulher) da devedora/insolvente. Estes factos, juntos à circunstância da apresentação à insolvência por parte da devedora/insolvente ter ocorrido 15 meses depois (em 23/04/2013), com um passivo de € 418.736,87[3] e “sem bens que se vissem” (mais exactamente, com bens apreensíveis no valor de cerca de € 1.500,00[4]), são, só por si, examinados com meridiana perspicácia, indicadores de que algo menos íntegro e leal se pode ter passado. E é justamente isto – que tais factos indicam e denunciam – que todos os restantes factos e elementos probatórios confirmam e corroboram à saciedade. Repare-se: A L... não se limitou a passar a explorar o comércio de carnes (talho) no mesmo local em que a devedora/insolvente exerceu a mesma e idêntica actividade durante 23 anos; além disso, passou a utilizar estrutura material e o mesmo nome/denominação comercial – “ N...” – que antes eram usados pela devedora/insolvente[5]. Mais, quem está, no dia-a-dia, no estabelecimento da L... é o requerido C... [6], assim como empregados que antes ali trabalhavam como empregados da devedora/insolvente[7]. Ou seja, o cliente médio e normal nem se terá dado conta de qualquer alteração no estabelecimento/talho do n.º ... da Rua da R R..., uma vez que tudo – a imagem publicitária exterior, as vitrines, os expositores, os balcões, as pessoas, etc. – terá continuado igual e como era dantes[8], devendo natural e forçosamente concluir-se (como se fez constar do facto 23) que a L... passou a usufruir da clientela da devedora/insolvente. E é nesta linha de raciocínio que surge – e deve ser interpretada – a transferência da propriedade de todos os veículos automóveis (referidos nos factos provados e não provados) pertencentes à insolvente/devedora[9], os quais foram transferidos, todos eles[10], a familiares (irmãos, filho e sobrinho) do requerido e sócio-gerente da insolvente, ou seja, tendo em vista evitar que os mesmos respondessem, como activos que eram, pelas dívidas da insolvente. Evidentemente – não se escamoteia – foram ouvidos os dois irmãos ( C... e D... ) e o filho ( G...) do requerido e sócio-gerente da insolvente, os quais confirmaram as versões dos apelantes sobre os negócios que originaram as transferências de propriedade e sobre os pagamentos dos veículos automóveis. Sucede – é um lugar comum – que não é por uma testemunha referir um certo facto que o tribunal passa a ficar adstrito a incluir tal facto na sua “reconstituição do passado”; aliás, o “julgamento da matéria de facto”, vem verdadeiramente imediatamente a seguir (ao que as testemunhas referem), quando o juiz/tribunal aprecia, valora, harmoniza as provas e, a partir daí, faz a “reconstituição do passado”; e, é sabido, a prova testemunhal é apreciada livremente pelo tribunal, o que significa que o tribunal não está vinculado, na sua apreciação, a quaisquer regras legais estritas, devendo antes recorrer a todas as circunstâncias envolventes, a todos os detalhes, munindo-se de todo o seu sentido crítico e analítico, fazendo uso de toda a sua perspicácia, argúcia e experiência, para avaliar o depoimento das testemunhas, só “validando” para a sua “reconstituição do passado” o que lhe possa/deva merecer valor e crédito. Foi exactamente isto que a Exma. Juíza a quo fez, numa “análise crítica” que colhe a nossa total concordância e na qual praticamente só deu como provada a objectividade que foi levado e consta do registo (de automóveis), considerando quase tudo o mais como não provado. Efectivamente, contextualizando os factos, apenas temos como seguro que as propriedades dos automóveis foram transferidas e que, claro está, os negócios não foram feitos em simulação absoluta; mas se houve preços, se os preços foram efectivamente pagos e se houve ou não simulações relativas (quer na modalidade subjectiva, de interposição fictícia de pessoa[11], quer na modalidade objectiva, sobre o objecto/conteúdo do negócio) é coisa em que ninguém pode arriscar quaisquer certezas[12]. É que, importa enfatizá-lo, as regras da experiência comum – as presunções naturais ao caso atinentes e convocáveis – apontam no caso, em face da escassez e insuficiência da prova documental produzida, no sentido do “non liquet” que conduziu quer aos factos provados quer aos factos não provados contra os quais os apelantes se insurgem[13]. Finalmente, em linha com o que logo denunciavam os factos inicialmente alinhados, a própria explicação oferecida, incipiente e contraditória, para a queda na situação de insolvência (dum ex-funcionário, a testemunha J..., ter montado um talho e levado clientela, assim “ficando a sociedade insolvente praticamente sem clientes e criando um desequilíbrio entre custos e receitas, o que constitui a causa próxima da insolvência – concorrência por antigo funcionário”[14]); uma vez que, ao mesmo tempo que se dava tal explicação (em que um comerciante/talhante, experiente, se confessou impotente para responder à concorrência dum ex-funcionário), se disse que esse mesmo comerciante aconselhou os filhos, estudantes, a montar um talho no local onde havia estado estabelecido durante 23 anos e onde tinha acabado de confessar ter sido impotente para responder à concorrência do antigo funcionário. Enfim, tudo bastante inverosímil e a denotar que o que se passou não teve nada a integridade e lealdade reclamadas pelos apelantes; devendo ser factualmente retratado como consta da decisão recorrida, de que aqui se corroboram as seguintes observações e considerações: “ (…) a prova dos factos vertidos nos n.ºs 22, 23 e 24 estribou-se nas declarações da administradora da insolvência, nos depoimentos das respectivas funcionárias, nas declarações do próprio gerente da insolvente e no depoimento da contabilista desta. Com efeito, de todos estes depoimentos resultou que a L..., Lda. se instalou no espaço que, até então, era usado pela insolvente para explorar um dos talhos denominados “N...”, com todo o seu equipamento, que continuou a usar aquela denominação e que, dessa forma, se apropriou quer do activo fixo tangível quer do activo fixo intangível da insolvente, nomeadamente parte da sua clientela. Os factos constantes dos n.ºs 25 e 26 decorrem das declarações do gerente da insolvente e respectiva contabilista, tendo o facto vertido no n.º 27 sido confirmado pelo gerente da insolvente. Relativamente aos factos referidos no n.º 28, ou seja, a gerência de facto da L... Lda. pelo gerente da insolvente, teve-se em conta o conjunto dos depoimentos produzidos, analisados à luz das regras da experiência comum, na medida em que deles resulta que é o gerente da insolvente quem está quotidianamente no estabelecimento da L..., é este quem trata dos assuntos desta sociedade junto da contabilista, e é este quem possui o conhecimento e a experiência necessária para aquele cargo; ao invés, a sua filha F... , apesar de ajudar pontualmente na loja, é estudante, estando no início do seu curso superior quando a sociedade foi criada, nunca lá trabalhou com carácter e permanência, e encontra-se até actualmente a residir no Brasil. Como tal, não é plausível que a sociedade seja gerida efectivamente por uma jovem, estudante, com pouca experiência, e que nunca ou raramente está na loja, quando é o seu pai, profissional da área há décadas, quem está diariamente no local. Os factos referidos nos n.ºs 29 e 30 resultam da ponderação das declarações do gerente da insolvente e do seu irmão C..., na medida em que estes admitiram que o gerente da insolvente assumiu ter rendas do leasing em atraso e não ter possibilidade de continuar a proceder ao seu pagamento, o que permitia concluir que existiriam outras dívidas que a insolvente também não teria capacidade para solver. No que concerne aos factos dos n.ºs 31 a 35, teve-se em conta as declarações da testemunha J... , que não suscitaram qualquer dúvida quanto à respectiva credibilidade (até porque a testemunha que desenvolve inclusivamente actividade concorrente com esta, não tem presentemente qualquer ligação com a insolvente ou seu gerente), conjugadas com os documentos n.ºs 1 e 2 da contestação.
Os factos não provados mencionados nas alíneas a) a e) decorreu de nenhuma prova os ter sustentado, directa ou indirectamente. Relativamente às alíneas f) e g), remete-se para o que se deixou exposto para fundamentar a prova do facto constante do n.º 28. Não se considerou provado o efectivo pagamento do preço do Mitsubishi porque os documentos apresentados sob os n.ºs 4 a 6 da contestação não demonstram a origem das quantias que, alegadamente, constituirão as prestações do preço, e porque o tribunal, atento o laço de parentesco que une o adquirente ao gerente da insolvente, o facto de este ter continuado a circular com o veículo, e face ao esvaziamento do património da insolvente, não pôde deixar de ficar com dúvidas sobre a veracidade do negócio; contudo, a prova produzida também não permitiu demonstrar que o negócio tenha sido simulado, assim se justificando os factos não provados das alíneas h) e n). Não foi feita qualquer prova do valor real dos veículos, pelo que tal matéria foi dada como não prova nas alíneas i) e m). Os factos não provados descritos nas alíneas j) a l) decorrem da inexistência de prova documental acerca dos mesmos e da insuficiência do depoimento do gerente para a sua demonstração. Por fim, o facto não provado mencionado na alínea o) resultou de se ter considerado credível o negócio celebrado com H..., conforme declarações por este prestadas, atenta a sua plausibilidade como forma de resolver o problema em que se traduzia a incapacidade da insolvente em continuar a pagar o leasing. (…)” É quanto há a dizer e concluir sobre o recurso de facto, que improcede “in totum”. *
III – Fundamentação de Facto A - Encontra-se provado o seguinte factualismo: 1. A... , Lda., NIPC 502 070 480, com documentos depositados na Conservatória do Registo Comercial da Figueira da Foz desde 23 de Janeiro de 2012, tinha sede na Rua R..., da Figueira da Foz, concelho da Figueira da Foz, distrito de Coimbra. 2. O seu objecto era o comércio de carnes, talho e salsicharia. 3. Desde a sua constituição, em 4 de Outubro de 1988, até à declaração da insolvência, a razão social foi sempre a de uma sociedade por quotas. 4. O documento societário da devedora foi matriculado em 23 de Novembro de 1988. 5. O capital social de € 24.940,00, à data da constituição, foi subscrito pelos irmãos C... e D... . Posteriormente, D... vendeu a sua participação social a I..., mulher de C... , ficando cada um dos sócios com uma quota de € 12.470,00. 6. A sociedade passou a obrigar-se com a intervenção da assinatura de um gerente e foi nomeado gerente C... . 7. A insolvente exerceu a sua actividade na Rua da R R..., concelho de Figueira da Foz, distrito de Coimbra. 8. Em Janeiro de 2012 transferiu a sede para a Rua R..., 3080-300 Figueira da Foz, na mesma freguesia. 9. A devedora encerrou a sua actividade em sede de IVA em 31 de Março de 2013. 10. Apresentou-se à insolvência no dia 23 de Abril de 2013, tendo a sentença que declarou a insolvência sido proferida no dia 30 de Abril de 2013. 11. À data da apresentação em juízo do pedido de declaração da insolvência o estabelecimento comercial estava encerrado e a devedora inactiva. 12. A insolvente sempre utilizou a denominação comercial de « N...». 13. A designação « N...» é hodiernamente utilizada pela sociedade L..., Lda. 14. A sociedade L..., Lda., com o NIPC 510 131 603, tem sede e estabelecimento na Rua da R R..., concelho de Figueira da Foz, distrito de Coimbra. 15. A sócia e gerente da sociedade L..., Lda., F... , é filha de C... e mulher, I.... 16. O veículo automóvel de marca Honda, matrícula IJ..., registado em 4 de Abril de 2013 em nome da insolvente, e no mesmo dia em nome de H..., irmão do sócio gerente da insolvente. 17. O veículo jipe de marca Mitsubishi, matrícula ...PV, registado em 2 de Novembro de 2004 em nome da insolvente, foi registado em 4 de Outubro de 2011 em nome de G... , filho do sócio gerente da insolvente, em 26 de Outubro de 2011 em nome de D... irmão do sócio gerente da insolvente, e em 8 de maio de 2013 em nome de E..., irmão do sócio gerente da Insolvente. 18. O veículo de marca Piaggio, matrícula IF, registado em 24 de Fevereiro de 2010 em nome da insolvente, foi registado em 1 de Fevereiro de 2012 em nome de D... , irmão do sócio gerente da insolvente, e em 8 de maio de 2013 em nome de G... , filho do sócio gerente da insolvente. 19. Parte dos bens que a insolvente utilizava e que foram objecto de locação financeira encontram-se nas instalações da sociedade Q..., Lda. 20. As instalações sitas na Rua R..., arrendadas pela insolvente, foram entregues pela insolvente ao proprietário pela administradora da insolvência, o que fora objecto da acção ordinária n.º 315/13.8TBFLG, tendo-lhe sido reconhecido um crédito de € 25.671,00. 21. No inventário de bens e direitos existentes na massa, a administradora relacionou um saldo de caixa de € 119.070,76, constante da contabilidade da insolvente, e que é inexistente. 22. A L... Lda. exerce a actividade de comércio de carnes com a mesma estrutura material da insolvente e com trabalhadores desta. 23. Passou a usufruir não apenas das suas instalações, mas também da clientela da insolvente. 24. Foi criada e instalou-se nas anteriores instalações da insolvente em 12 de Janeiro de 2012. 25. O administrador da insolvente justificou o saldo de caixa inexistente invocando ter levantando esse montante por ter liquidado o montante de € 120.000,00 do seu património pessoal, para pagamento de um trespasse. 26. Este contrato não se encontra retratado na contabilidade da insolvente. 27. A insolvente desenvolveu a sua actividade nas instalações da Rua da República onde labora actualmente a L..., Lda. até ao final do ano de 2011. 28. O gerente da insolvente trabalha para a L..., Lda. e é pessoa que de facto gere a sociedade. 29. H... e C... tinham consciência que, à data em que foi vendido o Honda, existiam responsabilidades assumidas perante credores e que não era possível proceder ao seu cumprimento. 30. E por isso o património da devedora seria penhorado. 31. Em 2009 a insolvente tinha um funcionário chamado J.... 32. Que já era trabalhador da sociedade há cerca de 20 anos. 33. Em agosto de 2011 J... deixou de trabalhar para a sociedade insolvente e constituiu uma sociedade comercial com W ..., seu irmão, que tinha um talho em Brasfemes, Coimbra, denominada O... , Lda. 34. Esta sociedade montou um estabelecimento comercial na Rua ..., Figueira da Foz, que dista 9,5 Km do estabelecimento da insolvente. 35. Este ex-trabalhador, devido ao seu conhecimento da clientela, conseguiu que alguns dos clientes da sociedade insolvente passassem a ser clientes da O..., Lda. 36. A Rua R... dista da Rua da R R... cerca de 2 quilómetros. 37. H... pagou o veículo IJ.... * B - De entre os factos alegados nos pareceres apresentados e na oposição deduzida, não se provou: a) Que o administrador da insolvente estivesse ciente que, com a criação da L..., Lda., arruinava a capacidade de resposta desta para fazer face ao seu endividamento. b) Que tenha sido a criação da L... e o desenvolvimento de actividade concorrente por parte desta, que conduziram a que a insolvente ficasse vulnerável às oscilações de mercado e conduziu à situação de insolvência. c) Que o ex-trabalhador J... conseguiu que a grande maioria dos clientes da insolvente passassem a ser clientes da O..., Lda. d) Ficando a sociedade insolvente praticamente sem clientes. e) O que constituiu a causa próxima da insolvência, uma vez que, por isso, as receitas passaram a ser insuficientes para prover os custos. f) Que a filha do gerente da insolvente, decidindo começar a ganhar a vida, pediu conselho ao pai sobre a abertura de um talho. g) Que o pai a aconselhou a montar um talho onde, três anos antes, se situava o estabelecimento comercial da sociedade insolvente. h) Que D... pagou à insolvente, pela alienação do veículo ...PV, € 1.000,00 em 19.12.2011, € 1.700,00 em 31.12.2011, € 400,00 em 3.01.2012, € 400,00 em 11.01.2012 e € 1.000,00 em 6.02.2012. i) Que os veículos foram vendidos por preços acima do razoável, tendo em conta o mercado e a ocasião, atento o estado de degradação e desgaste dos veículos. j) Que C... , em 1996 ou 1997, efectuou suprimentos de € 120.000,00 para pagamento do trespasse do estabelecimento de talho que funcionava na Rua da R R.... k) Que tais suprimentos foram devolvidos a C... ao longo dos primeiros anos de actividade da sociedade insolvente. l) Que C... deu instruções para que fosse registada na contabilidade o pagamento do trespasse, os suprimentos e a devolução dos suprimentos. m) Que o valor de € 4.500,00 é inferior ao valor de mercado do veículo Mitsubishi. n) Que o veículo saiu do acervo patrimonial dos bens da insolvente sem que fosse pago o respectivo preço. o) Que tenha sido com o objectivo de evitar que o veículo Honda fosse penhorado que este veículo passou para H.... *
IV – Fundamentação de Direito Versam os presentes autos/incidente sobre a qualificação da insolvência de A... , Lda. como culposa (cfr. art. 185.º e ss. do CIRE). A sentença recorrida, analisando os fundamentos expostos pela credora B... & Filho, Lda. e pela Srª. Administradora, considerou o seguinte: Quanto à alínea a) do art. 186º/2 do CIRE: Na perspectiva da previsão da alínea a) do n.º 2 do art. 186.º, relevam os factos vertidos sob os n.ºs 16, 17, 18, 21, 22, 23 e 24, a saber, a transferência dos veículos da insolvente, a afectação de bens da insolvente à actividade desenvolvida pela sociedade L..., Lda. e a inexistência de um saldo de caixa de cerca de € 120.000,00. A transferência dos veículos e a afectação dos bens da insolvente à sociedade L... não preenchem tal previsão, na medida em que não constituem actos de destruição, danificação, inutilização ou ocultação de bens da devedora, não tendo tais actos feito desaparecer os bens em causa – bens que, ademais se desconhece se constituem «parte considerável» do património da devedora. Poderia, efectivamente, o desaparecimento do saldo de caixa existente à data da declaração da insolvência integrar a mencionada presunção - sendo certo que o mesmo, pelo seu elevado valor, sempre representaria parte significativa do património da devedora – caso se tivesse apurado que o saldo teria tido existência real, e não meramente contabilística. Com efeito, a inexistência da quantia correspondente a este saldo é justificado pelo gerente da insolvente por ter levantado ao longo dos anos as quantias que adiantara do seu património pessoal para pagamento do contrato de trespasse através do qual a sociedade adquiriu o estabelecimento da Rua da R R.... E se é certo que esta versão não está comprovada, também não está demonstrado o contrário, ou seja, que se trata de alegação falsa e que o administrador tenha realmente feito dado descaminho a tais valores. (…) Não tendo sido apurada a existência efectiva de determinado património da titularidade da insolvente e a prática de actos concretos dos quais terá resultado a sua perda ou subtracção, não se poderão considerar preenchidos tais conceitos e, como tal, verificada tal previsão. Não está, assim, demonstrada a previsão da alínea a) do art. 186.º, n.º 2, do mesmo passo que não foi alegado qualquer facto que traduza a criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos, ou a redução de lucros, que determinariam a qualificação da insolvência nos termos do alínea b) do referido normativo. Quanto às alínea d) e f) do art. 186º/2 do CIRE: Está, contudo, provado à saciedade que o gerente da insolvente dispôs de bens da sociedade em proveito de terceiros. Não obstante se considerar que não se enquadra neste contexto o negócio do veículo Honda, dado que este não pertencia à insolvente, estando em leasing até à data em que foi transferido para o irmão do gerente da insolvente (o qual pagou o respectivo preço), certo é que os veículos Mitubishi e Piaggio foram transferidos para familiares do gerente da insolvente, sem que se comprovasse o pagamento de qualquer quantia em contrapartida. Por outro, verifica-se que a estrutura material que existia no estabelecimento que a insolvente explorava na Rua da R R... foi transferida, com todo o activo intangível do estabelecimento comercial, nomeadamente a marca e a respectiva clientela, para a sociedade L..., Lda. Assim, e sendo esta sociedade constituída pelos filhos do gerente da insolvente, embora gerida de facto por este, não apenas se verifica a disposição dos bens do devedor em proveito de terceiros a que alude a alínea d), mas também o uso dos bens da devedora contrário ao interesse desta, para favorecer outra sociedade na qual o administrador tem interesse directo, o que constitui causa de qualificação da insolvência consagrada na alínea f) do n.º 2 do art. 186.º. E quanto às alíneas g) e h) do art. 186º/2 do CIRE: Não existem factos que permita sustentar a prossecução deliberada de uma exploração deficitária a que alude a alínea g), nem o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada ou a prática de irregularidade contabilística que acarrete prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedor, estas plasmadas alínea h) do art. 186.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Observa-se, a este respeito, que a manutenção em saldo de caixa de um valor inexistente não representa uma irregularidade contabilística, dado inexistirem, como explicou a contabilista da insolvente, documentos de suporte que permitam eliminar tal saldo ou inseri-lo noutra rubrica. Subsistiu pois para concluir pela qualificação da insolvência como culposa e para abranger/afectar o apelante – enquanto sócio-gerente da insolvente – na qualificação culposa, o ter este disposto/usado os bens da devedora insolvente em proveito de terceiro, contra os interesses da devedora insolvente e para favorecer empresa na qual tinha interesse directo. Em face disto – tendo a sentença recorrida considerado que não se verificava alguma das restantes três alíneas analisadas – os apelantes circunscreveram o seu labor recursivo sobre tais alínea d) e f) do art. 186.º/2. Compreende-se, mas – é a observação preliminar que cumpre efectuar – o objecto do recurso não são apenas as alíneas d) e f) do art. 186.º/2 do CIRE; o objecto do recurso (e da divergência recursiva) é a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) do apelante. É isto que está aqui em causa e é disto que nos cumpre conhecer, confirmando ou revogando tal qualificação culposa da insolvência. E para tal, para confirmar ou revogar tal qualificação culposa, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar regras diferentes das invocadas, atribuir às regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 5.º/3 do CPC). É em parte o caso. E dizemos “em parte”, uma vez que, concordando-se com a sentença recorrida quanto à verificação das alíneas d) e f) do art. 186.º/3 do CIRE – e sendo tal suficiente para, só por si, confirmar a qualificação da insolvência como culposa e para a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) dos apelantes – nos vamos abster duma apreciação rigorosa das alíneas a) e g) do art. 186.º/2 do CIRE (“imputadas” pela Credora e pela Srª. Administradora e consideradas não preenchidas na sentença recorrida), porém, quanto à alínea h), não podemos deixar de notar que também a mesma se encontra verificada. Expliquemo-nos (começando pela premissa maior): Segundo o art. 186.º/1 do CIRE – “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores[15], de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência”. “Definição” esta que é complementada, nos n.º 2 e 3 do art. 186.º, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular[16] sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos. Interpretando tal art. 186.º do CIRE[17], a jurisprudência vem entendendo[18] que as alíneas do n.º 2 correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa; e começou por entender que as alíneas do n.º 3 apenas consagram presunções relativas de culpa qualificada (nos comportamento omissivos aí referidos), ou seja, para a insolvência ser dada como culposa com base no art. 186.º/3, seria necessário que a presunção de culpa qualificada não fosse ilidida e, ainda, que fosse feita a prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186.º/1 do CIRE – o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Posição esta sobre o art. 186.º/3 do CIRE – que a jurisprudência maioritariamente começou por adoptar – de que nos afastamos, por tal preceito, assim interpretado, ser vazio de sentido útil[19]; razão porque – procurando encontrar o seu sentido útil e interpretando-o em conjunto e em harmonia com todo o art. 186.º do CIRE – entendemos que as presunções do art. 186.º/3 não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido, tendo antes que ser vistas como presunções relativas (ilidíveis) de culpa qualificada na insolvência (o mesmo é dizer, presunções relativas de insolvência culposa)[20]. “Conjunto de presunções” que pela não homogeneidade dos comportamentos aí descritos (nos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE) nos deve fazer reflectir e concluir que não estão sempre em causa e enunciados em todas as alíneas do n.º 2 e 3 do art. 186.º comportamentos directa e imediatamente ligados à criação ou agravamento da situação de insolvência. Analisando as alíneas a) a g) do n.º 2 do art. 186.º vemos que estão em causa factos/actos[21] em que há um denominador comum de delapidação do património do devedor, em que existe (em abstracto) um nexo lógico entre os respectivos factos/actos e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[22], em que, sendo assim, pode dizer-se que o legislador mais não fez do que mandar presumir a causalidade (que era latente) entre eles e a insolvência; Ao invés, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas duas alíneas do n.º 3 já não se consegue ver onde é que possa estar o nexo lógico, a conexão substancial entre o facto/acto que dá origem à presunção e a criação ou o agravamento da situação de insolvência; do que se trata, em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3, é de enunciar factos que fazem suspeitar a existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência, ou seja, por outras palavras, os factos enunciados – a não organização ou desorganização da contabilidade, a falsificação dos respectivos documentos, a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a não elaboração e depósito das contas – fazem supor que, se assim se procedeu, é porque pode haver alguma coisa a esconder, é porque podem ter sido praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, sendo estes os factos (que se quis/quer ocultar e porventura causais da criação ou agravamento da situação de insolvência[23]) que estão implicitamente presumidos (ou, se preferirmos, ficcionados) nos factos enunciados em tais alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 e cuja verificação desencadeia a insolvência culposa. Em síntese, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal entre eles e a criação ou o agravamento da situação de insolvência[24]; estando em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE), sendo em função da violação de tais deveres legais que a lei a supõe que foram praticados actos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, o que determina a aplicação do regime da insolvência culposa a estas situações. Temos pois que a lei (art. 186.º do CIRE), além da cláusula geral contida no n.º 1 (em que define a insolvência culposa), enumerou, nos seus n.º 2 e 3, um conjunto de factos que desencadeiam como consequência a qualificação da insolvência como culposa; factos enumerados em que, “em vez de se limitar a desenvolver, casuisticamente, o enunciado geral [contido no n.º 1], acrescenta alguns casos de insolvência (…) que não se subordinam aos requisitos da noção geral de insolvência culposa – a sua submissão ao mesmo regime resulta de um juízo diferente ou de uma distinta valoração. Em síntese, as alíneas a) e g) são factos/actos que se reconduzem ainda à cláusula geral; havendo nos factos/actos apurados indícios sérios de que a insolvência se deve a tais actos/factos, não surpreendendo ou repugnando que consubstanciem presunções. Mas, nas alíneas h) e i) o caso é diverso. Só muito remotamente algum dos factos/actos pode ser considerado causa de insolvência ou mesmo do seu agravamento. Constituindo, por um lado, a violação de um dever específico do comerciante e, por outro lado, a violação de um dever elementar de todo o insolvente, é legítimo supor que houve culpa qualificada do sujeito – mas culpa qualificada no acto praticado ou omitido e não na insolvência, como é exigido pela norma geral do n.º 1. E, no entanto, desencadeiam os mesmos efeitos da insolvência culposa. O legislador terá entendido submetê-los também ao regime da insolvência culposa não porque eles pudessem ser a causa (real ou presumível) da insolvência, mas porque a probabilidade de o sujeito ter praticado um acto ilícito gravemente censurável justificava submetê-los também. Na base desta opção legal está, portanto, como se disse, uma valoração diferente daquela que terá estado na origem da disciplina. Deve, por isso, considerar-se que a lei estabeleceu, nestes dois pontos, não presunções, mas – passe o paradoxo – verdadeiras ficções.[25] Evidentemente, não o podemos ignorar, assim vistas as coisas, serão muitos os casos em que a insolvência será declarada culposa; uma vez que o insolvente tem que combater a presunção legal de insolvência culposa do n.º 3 ou, pior ainda, que se conformar com as consequências da insolvência culposa caso se verifique algum dos factos do n.º 2, em que a presunção é iuris et de iure. Porém, a nosso ver, é mesmo este o sentido da lei.
Abarca os casos em que se verifica a culpa qualificada e o nexo de causalidade integrantes da noção de insolvência culposa, nos termos do art. 186.º/1; ou seja, os casos em que tenha havido uma conduta do devedor, ou dos seus administradores, de facto e de direito, que (a) tenha criado ou agravado a situação de insolvência, que (b) se trate de actuação dolosa ou com culpa grave, e que (c) tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo Além e fora disso, sujeita aos efeitos da insolvência culposa os casos em que se verifique alguma das situações/presunções constantes do n.º 2 e 3 do art 186.º do CIRE; presunções que também foram estabelecidas para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os devedores que violaram obrigações legais. Solução esta porventura excessiva, especialmente quanto às alíneas h) e i) do n.º 2, em que não é detectável uma diferença sensível em relação às alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 186.º (em que a presunção pode ser ilidida)[26]; razão pela qual – tendo isto presente, procurando aproximar as alíneas h) e i) do art. 186.º do tratamento das alíneas do n.º 3.º – entendemos que pode/deve ser colocada alguma exigência na preenchimento de tais alíneas h) e i), entendemos que pode/deve ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”, constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º. Aqui chegados, do que acaba de ser dito sobre o modo como interpretamos todo o art. 186.º do CIRE – consagrando as alíneas do n.º 2 presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do n.º 3 presunções (relativas) de insolvência culposa[27] (e não meras presunções relativas de culpa grave, o que, como se referiu, esvaziaria a utilidade destas presunções) – irradia para o caso dos autos e do recurso o seguinte: Quanto à alínea h) do art. 186º/2 do CIRE: Os comerciantes (e uma sociedade por quotas é comerciante – cfr. art. 13.º/2 do C. Comercial) estão, desde “sempre”, atenta a especificidade da sua actividade e do seu regime legal, sujeitos a um conjunto de obrigações; designadamente, estão obrigados a ter escrituração comercial, a dar balanço e a prestar contas (cfr. art. 18.º do C. Comercial). Faz parte da gestão saudável duma actividade económica (como é o caso duma sociedade), que se quer e pretende organizada, o registo constante e integral do exercício respectivo e de periódicos acertamentos da sua situação financeira; por outro lado, destinando-se a sociedade a realizar lucros para se repartirem entre os sócios (art. 980.º C. Civil), há toda a conveniência em proporcionar a possibilidade da distribuição periódica de lucros; e como também há interesses de terceiros – dos credores da sociedade e o interesse tributário do Estado – tudo concorre para uma exigência de acertamento periódico da situação financeira da sociedade. Daí a exigência de escrituração mercantil, que é o registo dos factos que podem influir nas operações e na situação patrimonial dos comerciantes; cuja obrigatoriedade também decorre dos art. 29.º e 40.º/1 do C. Comercial e que constitui um meio de verificação da regularidade da conduta do comerciante (v. g. no caso de insolvência e em todos os casos em que isso estiver em causa) e que serve de base à liquidação de impostos e à fiscalização do cumprimento das normas tributárias. Escrituração que, porém, não se confunde – não é a mesma coisa – com a sua contabilidade, que é a compilação, registo, análise e apresentação, em termos de valores pecuniários, das operações comerciais. Daí também o disposto no art. 62.º do C. Comercial, segundo o qual “todo o comerciante é obrigado a dar balanço anual ao seu activo e passivo nos 3 primeiros meses do ano imediato e lançá-lo no livro de inventário e balanços, assinando-o devidamente”. Balanço que constitui a síntese da situação patrimonial do comerciante em determinado momento, através da indicação abreviada dos elementos do activo, do passivo e da situação líquida e respectivos valores[28],[29]. É neste ambiente legal – de escrituração, contabilidade e contas devidamente organizadas – que se insere o dever legal de apresentação à insolvência (cfr. art. 18.º do CIRE), corolário lógico duma actividade que se quer organizada e que se destina a gerar lucros; com o que também se visa – tanto mais que o CIRE (nas disposições vigentes à data da instauração dos autos) também se dirige à protecção dos credores – evitar o agravamento de situações que podem prejudicar gravemente os credores[30]. E é ainda neste ambiente legal que se insere o art. 186º/2/h) do CIRE, segundo o qual constitui fundamento de qualificação da insolvência o incumprimento, “em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, a manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.” Alínea esta, porém, que – dentro da ideia de exigência e densidade factual no seu preenchimento, decorrente da presunção inilidível (iuris et de iure) de insolvência culposa que estabelece – não se basta com todo e qualquer incumprimento, com toda e qualquer irregularidade contabilística, pressupondo o incumprimento “em termos substanciais” da obrigação de manter uma contabilidade organizada e fiel da situação patrimonial e financeira da empresa. Ou seja, para tal alínea estar preenchida, tem que se estar perante uma irregularidade contabilística com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade contabilística com influência na percepção que uma contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado. Configurará por certo tal presunção inilidível uma contabilidade cuja organização fuja às regras do SNC em vigor, que não contenha os documentos de prestação de contas exigíveis, que esteja engenhosamente feita por forma a esconder/mascarar/disfarçar a realidade financeira e patrimonial da empresa contabilizada. Será o caso, a nosso ver e com o devido respeito por opinião diversa, duma contabilidade, como a da devedora/insolvente (uma “empresa” que teve vendas anuais, em 2011, de € 345.031,23 e, em 2012, de € 31.935,50), que relaciona como saldo de caixa o montante de € 119.070,76 sem que exista um único cêntimo no “caixa”. Efectivamente, impõe-se realçar: Que a conta de “caixa” é uma conta do activo que inclui os meios líquidos de pagamento, isto é, as notas de banco e moedas metálicas com curso legal, os cheques e vales postais; razão pela qual, justamente por incluir os meios líquidos de pagamento, deve haver um controlo e conferência permanentes dos seus valores[31]. Que a conta de “caixa” não pode funcionar e ser entendida como uma mera “conta caldeirão” do activo em que cabe e entra, de modo contabilisticamente irrepreensível, tudo aquilo que não tiver documento de suporte para entrar noutra qualquer conta do activo ou do passivo. Assim, se, por ex., um sócio-gerente desvia e utiliza em proveito próprio quantia pertencente à sociedade, o registo contabilístico de tal quantia como estando no “caixa”, quando não está, é uma irregularidade contabilístico que não pode/deve eternizar-se e muito menos atingir a expressão financeira como a que o facto 21 retrata. É que – importa não esquecê-lo – a conta de “caixa” também tem/exige “documentos” de suporte, ou seja, não havendo real e efectivamente qualquer quantia no “caixa” não há “documento” que suporte dar-se como contabilisticamente existente no “caixa” uma quantia de quase € 120.000,00[32]. É que – importa ainda não esquecê-lo – a informação financeira resultante das demonstrações contabilísticas tem em vista transmitir e proporcionar uma imagem substantivamente verdadeira e apropriada da posição financeira, dos resultados e dos fluxos da empresa; razão pela qual dar como existente no “caixa” uma quantia de quase € 120.000,00 quando real e efectivamente não existe no “caixa” qualquer quantia configura uma irregularidade contabilística com prejuízo relevante para a compreensão da situação financeira da empresa. Como supra se referiu/admitiu, a teia legal desenhada pelo art. 186.º do CIRE é bastante estreita: além de “perseguir” os factos que directa e imediatamente delapidam o património do devedor (e de presumir o nexo causal com a criação ou agravamento da situação de insolvência), também persegue os “vestígios” que tais factos invariavelmente deixam na “vida” do devedor; uma vez que persegue os factos que fazem suspeitar que, se assim se procedeu, é porque foram praticados actos/factos que se quis/quer ocultar e que são presumidamente causais da criação ou agravamento da situação de insolvência. Segundo a explicação dada pelos apelantes, o saldo de caixa (constante da contabilidade, mas efectivamente inexistente) resultou do reembolso dum suprimento (disponibilizado para o pagamento dum trespasse) efectuado pelo sócio-gerente no início da actividade da devedora; suprimento e trespasse não documentados, não havendo por isso suporte para o reembolso contabilístico de tal verba de cerca de € 120.000,00. Explicação essa que não ficou provada, subsistindo: - a confissão de efectivamente haverem sido retirados, pelo sócio gerente, do património da devedora cerca de € 120.000,00[33], ou seja, a confissão dum facto que diminuiu o património da devedora, o que, porém, uma vez que ignorarmos o momento temporal em que tal foi feito (isto é, não sabemos se tal foi feito nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência) não permite qualificar a insolvência (ex vi alínea a) do art. 186.º/2 do CIRE). - o “vestígio” deixado, ano após ano, na contabilidade, “vestígio” a que a lei (art. 186.º/2/h) do CIRE) liga a suspeita de haver sido praticado um facto causal da criação ou agravamento da situação de insolvência. Suspeita e causalidade presumidas pela lei (art. 186.º/2/h) do CIRE) que, no caso, em face da “confissão” contida na explicação dada, nem sequer se apresentam como uma ficção legal sem ligação directa e imediata à concreta realidade – insolvência da devedora – em análise. E que, aliás, estão em linha com os factos que a sentença recorrida considerou como integradores das alíneas d) e f) do art. 186.º/2 do CIRE. Quanto às alíneas d) e f) do art. 186º/2 do CIRE: De acordo com tais alíneas, a insolvência deverá ser qualificada de culposa quando o administrador de direito ou de facto tenha “disposto dos bens do de devedor em proveito pessoal ou de terceiro” ou tenha “feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenha interesse directo ou indirecto”. É justamente o que é forçoso concluir dos factos provados, que, em resumo, reflectem (15 meses antes da início da apresentação à insolvência) a transferência do activo da devedora para uma nova sociedade ( L..., Lda.) de que foram sócios fundadores os dois filhos (estudantes) dos dois sócios da devedora/insolvente; nova sociedade que passou a funcionar no mesmo local/instalações em que funcionou a devedora/insolvente, com a mesma estrutura material, denominação comercial, clientela e gerência de facto da devedora insolvente (como resulta à saciedade dos factos 12, 13, 14, 15, 21, 22, 23, 27 e 28). “Desnatagem” da devedora em favor de terceiros que incluiu os veículos automóveis existentes no balanço da devedora que, nos meses anteriores à apresentação à insolvência, foram todos transferidos para familiares dos sócios e gerente da devedora/insolvente (como resulta dos factos 16 a 18), o que, como já se referiu, permitiu que a devedora se apresentasse à insolvência com um passivo de € 418.736,87 e “sem bens que se vissem” (mais exactamente, com bens apreensíveis no valor de cerca de € 1.500,00). Tudo isto – na medida em que incumbe aos gerentes cumprir o seu ofício-função de acordo com o máximo interesse e no exclusivo interesse da sociedade, omitindo comportamentos que visem a realização de outros interesses, próprios ou alheios – ao completo arrepio dos deveres de cuidado e de lealdade que um gerente deve observar no exercício das suas funções (cfr. art. 64.º do CSC). Sendo irrelevante esgrimir que não está provado que não tenha sido pago o preço dos veículos e/ou que a L... não haja pago à devedora/insolvente o activo fixo tangível que “herdou” e com que passou a exercer a sua actividade; e que, em função disso, não está provado que de tais transferências de propriedade haja resultado qualquer prejuízo para a devedora/insolvente e/ou diminuição do seu saldo patrimonial. Efectivamente, o que, no seu todo, resulta dos factos provados referidos é a transferência do todo dum estabelecimento comercial – composto por coisas corpóreas, coisas incorpóreas, aviamento e clientela – da devedora/insolvente para a L..., transferência em que se “abandonou” em favor da L... as coisas intangíveis (como o aviamento e clientela) e em que se documentou a transmissão das coisas tangíveis; e, de tudo isto, o que ressalta e sobressai é o prejuízo para a devedora/insolvente, é a diminuição do seu activo e do seu saldo patrimonial, uma vez que, é uma evidência irrefutável, o valor dum estabelecimento comercial, numa perspectiva de continuidade, não é comparável – é bem superior – ao valor de alguns dos seus activos fixos, numa perspectiva de liquidação. * Enfim, tudo razões que conduzem à improcedência de tudo o que os recorrentes invocaram e concluíram na sua alegação recursiva – tanto mais que, para além de estarmos perante 3 presunções inilidíveis (do art. 186.º/2 do CIRE), não ficou minimamente provado que não tenha sido a conduta ilícita e culposa do sócio gerente da devedora a dar causa à insolvência ou ao respectivo agravamento[34] – o que determina o completo naufrágio da apelação e a confirmação do decidido na 1ª instância. Efectivamente, quanto à capacidade de exercício, não sendo as sociedades comerciais pessoas físicas, necessitam de quem as represente, isto é, de alguém que pratique actos que, mediante certo condicionalismo, produzam efeitos na esfera jurídica da sociedade, de alguém que intervenha por elas e no seu interesse, formando e manifestando a vontade social. Formação e manifestação da vontade social que cabe, nas sociedades por quotas, quanto à administração e representação, à gerência nos termos do art. 252.º/1 do CSC; sendo os gerentes designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios – cfr. 252.º/2 do CSC. Gerentes que têm poderes e competência para praticar todos os actos – de administração e de disposição – pertinentes à realização do escopo social (cfr. 259.º do CSC); que dispõem duma competência genérica e indefinida para realizar todas as operações sociais, só não podendo praticar os actos que a lei ou o contrato social reservam à competência de outros órgãos (assembleia-geral ou ao órgão fiscalizador). Vale isto para dizer e explicar que, sendo assim, a qualificação, como culposa, da insolvência duma sociedade por quotas tem necessariamente que afectar e que se reflectir sobre as pessoas que constituem o órgão que forma e manifesta a sua vontade[35]; sobre as pessoas – enquanto elementos e “partes componentes” da sociedade – que não cumpriram os deveres societários, o mesmo é dizer, o gerente nomeado. É justamente o caso do aqui recorrente, C... , sócio-gerente da devedora insolvente nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência; a quem a sentença recorrida, nos termos do art. 189.º/2/c) do CIRE, inibiu para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 2 anos e 6 meses (sendo a “moldura” mínima a inibição por 2 anos); a quem a sentença recorrida, nos termos do art. 189.º/2/d) do CIRE, determinou a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e condenou na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e a quem a sentença recorrida, nos termos do art. 189.º/2/e) do CIRE, condenou a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, indemnização correspondente ao valor dos créditos reconhecidos deduzido do montante que vier a ser pago no âmbito do processo da insolvência, até às forças do respectivo património. *
V – Decisão Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida. Custas pelos requeridos/apelantes. * Coimbra, 16/06/2015
(Barateiro Martins)
(Arlindo Oliveira)
(Emídio Santos)
[1] De 18 páginas, em que – ao arrepio do disposto no art. 639.º/1 do CPC, segundo o qual o recorrente “ (…) concluirá, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão” – reproduziram a quase totalidade do que antes haviam dito no corpo da alegação. Deficiência que, é verdade, dá lugar a convite ao aperfeiçoamento (cfr. art. 639.º/3 do CPC), que não conduzindo, em boa verdade, a uma imediata e efectiva sanção processual – razão pela qual já há muito “desistimos” do convite ao aperfeiçoamento – leva a que, hoje em dia, sejam vulgares alegações cujas conclusões são um verdadeiro exercício de desprezo pela referida “forma sintética” imposta pela lei. [2] Foi o seu próprio sócio-gerente que o admitiu (após alguma tergiversação sobre datas), dizendo que “esteve nos dois sítios até 2011”. [5] Isto mesmo acabou por ser referido pelo requerido C... , que disse ter mantido a estrutura material da loja da Rua da R R... e ter adquirido equipamento novo, em regime de leasing, para a loja da Rua ... admitindo que o equipamento existente na loja da Rua da R R..., e que pertencia à insolvente, passou a ser utilizado pela sociedade L... aquando da sua constituição (acrescentando, é certo, “que era tudo velho, um estorvo”). Assim como foi referido pela TOC, M..., ao dizer que a L... adquiriu equipamento usado à A... . [8] Sintomaticamente, as testemunhas K... e Y... (funcionárias da administradora da insolvência) referiram que, quando se deslocaram à Figueira da Foz (a fim de falar com o gerente da insolvente e proceder à apreensão dos bens da devedora), se dirigiram ao estabelecimento da insolvente na Rua ... (que encontraram encerrado), onde foram informados, por vizinhos, que a loja funcionava na Rua da R R.... [10] O último dos quais 19 dias antes da apresentação à insolvência. [11] Efectivamente, quando as funcionárias da A. I. estiveram na Figueira da Foz, o sócio-gerente da insolvente fazia-se deslocar no jipe Mitsubishi, cuja propriedade foi, como resulta do facto 17, sucessivamente transferida; e a testemunha .X..(senhorio da loja da Rua ...) também disse que continua a vê-lo no Pajero; e o irmão H... também admitiu que, “às vezes, empresta o Honda à cunhada”. [13] Aliás, quer-nos parecer, com todo o respeito, que os apelantes não compreendem completamente a lógica processual duma sentença, mais exactamente a lógica processual que preside à fixação dos factos provados e não provados; só assim se compreendendo que vejam inúmeras contradições entre os factos, designadamente entre os factos provados e os factos não provados, quando, verdadeiramente, um facto não provado nunca entra em contradição com o que quer que seja, desde logo por dum “facto não provado” não se poder extrair nada e com um “nada” não pode haver contradição em termos factuais. Ou seja, exemplificando, pode dar-se como não provado que o D... pagou e pode dar-se como não provado que não pagou sem que entres estes dois “nadas” possa haver qualquer contradição. Assim como não há com o facto de se ter dado como provado que o Mitsubishi foi registado em seu nome; aliás, a partir deste facto (único provado) só ficamos a saber que a propriedade do Mitsubishi foi transferida, mas até ignoramos o negócio subjacente e, tendo sido venda, não sabemos o preço e muito menos se foi ou não pago (e não é por não se pagar o preço que deixa de haver compra e venda). [19] Desde logo por entre os factos omitidos referidos nas alíneas a) e b) do art. 186.º/3 do CIRE (incumprimento do dever de apresentação à insolvência e incumprimento do dever de elaboração e depósito das contas) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência não ser vislumbrável, em abstracto, a possibilidade de vir a existir um nexo lógico ou uma qualquer conexão, o que, evidentemente, tornaria inatingível a prova, em concreto, do nexo de causalidade exigido e redundaria – exigindo-se a prova de tal nexo causal – na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE (enquanto enumeração de actos/factos susceptíveis de desencadear como consequência a qualificação da insolvência como culposa). [24] É também e justamente por isto que dissemos que a exigência da prova do nexo causal entre os factos do n.º 3 e a criação ou agravamento da situação de insolvência redundaria na inutilidade e no esvaziamento do art. 186.º/3 do CIRE. [29] No termo de cada exercício, o membro ou membros do órgão de administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as contas de exercício e os demais documentos de prestação de contas previstas na lei (cfr. art. 65.º do CSC); e no tocante às sociedades por quotas – resulta do art. 263.º/3 do CSC – deverão ser elaboradas, pelo menos, “o relatório de gestão, as contas e a proposta sobre a aplicação de lucros e tratamento de perdas”. [30] Repare-se: um comerciante organizado – que tenha a sua escrituração e as suas contas devidamente organizadas/apuradas – sabe em tempo oportuno quando a sua “operação” se está a tornar deficitária, se e quando lhe vai ser difícil/impossível cumprir as obrigações vencidas, quando o capital próprio fica totalmente consumido pelos sucessivos resultados anuais negativos; mais, até sabe o que significa “realmente e em substância” o montante de capitais próprios inscrito no balanço, uma vez que, todos o sabemos, este não passa duma cifra que foi/está consumida na aquisição dos bens (imóveis, equipamentos e existências) e direitos (créditos sobre clientes) identificados no lado do activo. [31] Para o que, mandam as boas regras, deve ser elaborada uma “folha de caixa”. [32] O “caixa” e a “conta de caixa” não é, salvo o devido respeito, um “faz de conta” que serve apenas para acertar demonstrações contabilísticas; e que pode, sem censura, ter quaisquer valores sem a menor aderência à realidade abstracta e, acima de tudo, sem a mínima existência concreta. [33] Independentemente de se saber se a “explicação” dada é verdadeira ou falsa, o certo é que a mesma pressupõe que os € 120.000,00 existiram e foram retirados, razão porque, com o devido respeito, não concordamos com a passagem da sentença recorrida em que se observou que “ (…) se é certo que esta versão não está comprovada, também não está demonstrado o contrário, ou seja, que se trata de alegação falsa e que o administrador tenha realmente dado descaminho a tais valores (…)”; efectivamente, não está demonstrado que se tratou de alegação falsa, mas está demonstrado/confessado que tais valores foram retirados (em momento temporal que se ignora) pelo sócio-gerente. [34] Ou seja, que tenha sido uma qualquer outra razão, externa ou independente da sua vontade (por exemplo, a conjuntura económica ou as condições de mercado), a dar causa à insolvência ou ao seu agravamento. |