Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
196/09.6TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
Data do Acordão: 01/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 56.º, N.º 1; 58.º, N.º 1 DO CSC
Sumário: 1. O presidente da mesa da assembleia geral das sociedades anónimas é detentor de poderes que radicam na sua própria função, gozando de plena autonomia, sem qualquer tipo de delegação emanada da assembleia, pelo que é assim soberano de aceitar ou rejeitar qualquer proposta no sentido da alteração da ordem do dia, gozando de total independência da vontade de tal assembleia, que assim, e sob pena de ilegalidade, não pode à sua própria sobrepor-se.
2. Não é lícito aos accionistas presentes em Assembleia Geral, agindo contra expressa decisão do Presidente da Mesa, pôr à votação e aprovar a alteração da ordem do dia dos respectivos trabalhos, na sequência de proposta nesse sentido apresentada por um deles.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO

1. A... intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B..., S.A., pedindo que se declare nulas e de nenhum efeito as deliberações tomadas pela Assembleia Geral da Ré, em 6 de Março de 2009, ou que, pelo menos tais deliberações sejam anuladas.

Para tanto alegou –em síntese‑, que é accionista da Ré, e Presidente da Assembleia Geral da mesma, sendo que nesta qualidade designou para o dia 6 de Março de 2009, pelas 10 horas, uma Assembleia Geral, com a ordem de trabalhos elencada no artigo 4º da petição inicial.

Mais alegou que, na referida Assembleia, o representante da accionista C..., L.da. fez um requerimento à Mesa da assembleia, solicitando que o ponto 14 da convocatória ‑ eleição dos novos membros dos órgãos sociais‑ fosse o primeiro a ser discutido e votado, o que o A. não aceitou, pretendendo seguir a ordem dos trabalhos que constava da convocatória.

Contra esta vontade do A., porém, o citado representante pôs à votação por sua livre iniciativa a referida proposta a qual foi aprovada, tendo-se seguido a “eleição” dos corpos sociais, orientada e dirigida pelo dito representante.

Ora –mais aduz‑, tal atitude além de não respeitar a vontade de quem dirigia os trabalhos é manifestamente ilegal, pois viola os poderes do Presidente da Assembleia Geral.

Por outro lado ‑prossegue‑ o livro de actas não lhe foi mais facultado, nem foram discutidos os demais pontos da convocatória, pontos esses de extrema importância uma vez que existem suspeitas de apropriação de dinheiros, havendo dúvidas e esclarecimentos a prestar sobre a obra realizada na sede da sociedade.

A rematar, diz ainda que o direito à informação que assiste aos accionistas minoritários ficou prejudicado, tanto mais que do esclarecimento desses pontos, poderia resultar uma eleição dos órgãos sociais diversa.

Citada a Ré veio apresentar contestação nos termos constantes de fls. 29 e seguintes, concluindo pela improcedência da acção.

O autor apresentou, por seu turno, articulado de resposta, concluindo como na inicial.

Conclusos os autos, a Mm.ª Juíza, considerando os autos disporem de todos os elementos para se conhecer do pedido com a necessária segurança, passou a proferir decisão de mérito, julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré dos pedidos contra ela formulados.

2. Irresignado com o assim decidido, o A. interpôs o vertente recurso de apelação, cuja douta alegação finda a pedir que, na procedência do mesmo, sejam consideradas nulas ou pelo menos anuláveis as deliberações tomadas, em 6 de Março de 2009, pela Assembleia Geral da Ré/Recorrida.
Para tanto, firma as seguintes conclusões:

1 - A Sentença ora posta em crise ao dar como provados os factos constantes da mesma, não teve em devida apreciação a conduta dos accionista e os poderes que são inerentes ao presidente da mesa da assembleia-geral.

2 - Na verdade, o presidente da mesa da assembleia-geral das sociedades anónimas é detentor de poderes que radicam na sua própria função, gozando de plena autonomia, sem qualquer tipo de delegação imanada da própria assembleia geral.

3 - O presidente da mesa da assembleia-geral é que fixa a data, hora, local da assembleia geral e redige ordenando do modo que entende mais consentâneo com os interesses da sociedade a ordem do dia, mesmo quando não tenha a iniciativa da sua convocatória.

4 - Para o exercício de tais poderes o presidente da mesa da assembleia-geral goza de perfeita discricionariedade.

5 - Ora a ordem de trabalhos, não deverá ser alterada a não ser em casos excepcionais e sempre com interesse de debater primeiro assuntos que mereçam maior urgência.

6 – Todavia, é o presidente da mesa da assembleia-geral que determina ou põe à votação as alterações que entenda ser correctas de acordo com o interesse societário.

7 – O presidente da mesa da assembleia-geral é assim soberano em aceitar ou rejeitar qualquer proposta no sentido da alteração da ordem do dia.

8 - Gozando de total independência da vontade da própria assembleia-geral.

9 - Tal entendimento radica na protecção dos accionistas minoritários de modo a permitir entre outros aspectos o direito à informação.

10 - No caso vertente a atitude do representante do accionista C..., Lda., viola flagrantemente os poderes do presidente da mesa da assembleia-geral usurpando as funções que a este cabe pondo à votação uma proposta que fora pelo ora Recorrente rejeitada.

11 - A função desempenhada pelo ora Recorrente, está vinculada à lei e ao contracto devendo ser exercida com total isenção e independência.

12 - Da ordem do dia ínsita para aquela reunião resulta claramente que havia assuntos muitos importantes e delicados para discutir e com a perfeita subversão da mesma foram perfeitamente esquecidos e atirados para as calendas como era pretendido pelos accionistas maioritários.

13 - Do exposto resulta claramente que as decisões tomadas naquela assembleia geral de 6 de Março de 2009, é nula por força do disposto no artigo 56º, nº 1 al. d) do Código das Sociedades Comerciais, ou pelo menos, anulável em virtude do disposto no artigo 58º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal.

14 - Ao decidir com decidiu a Meritíssima Juiz a quo violou diversas normas legais, nomeadamente, o disposto nos artigos, 56º, n.º 1, al. d), 58º, n.º 1, al. a), 290º e 377º, todos do Código das Sociedades Comerciais.

            3. Não foram apresentadas contra-alegações.
Nada a tal opondo, cumpre decidir.

            II – FACTOS
No douto saneador-sentença foram considerados provados, e com interesse para a decisão, a materialidade que segue:

1 – Por escritura pública outorgada no dia 25 de Fevereiro de 1994, no Cartório Notarial de Oliveira do Hospital, exarada de fls 116 a 122, do Livro 66-D, foi constituída uma sociedade anónima entre D ...(o qual interveio por si e na qualidade de procurador de E ... e marido, de F ..., de G ..., de H ...e de I...), J ...,

L..., M..., N ... e outros – conforme documento de fls. 56 a 68 dos autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2 – Do artigo primeiro das cláusulas acordadas na escritura aludida em 1) consta que “A sociedade adopta a denominação de B ..., S.A e tem a sua sede nesta cidade de Oliveira do Hospital”.

3 - Do artigo segundo das cláusulas acordadas na escritura aludida em 1) consta que “A sociedade tem por objecto o comércio de automóveis e máquinas agrícolas industriais, peças e acessórios auto, lubrificantes, combustíveis e afins, pneus e ferramentas eléctricas, reparações em automóveis e assistência itinerantes”.

4 - Do artigo quinto das cláusulas acordadas na escritura aludida em 1) consta que “Os órgãos sociais da sociedade são a Assembleia Geral, o Conselho e o Conselho Fiscal”.

5 - Do artigo sexto o das cláusulas acordadas na escritura aludida em 1) consta que “ A Assembleia Geral será convocada por carta registada com aviso de recepção, com antecedência mínima de vinte e um dias e será legalmente constituída, em primeira convocação, desde que se encontrem presentes ou devidamente representados accionistas possuidores, de pelo menos, cinquenta e um por cento do capital social. As decisões da Assembleia Geral serão tomadas por simples maioria de accionistas presentes, respeitando, no entanto, o determinado no artigo trezentos e oitenta e seis, do Código referido. A Assembleia Geral deverá deliberar, por simples, sobre o modo de exercício do direito voto”.

6 - Do artigo oitavo das cláusulas acordadas na escritura aludida em 1) consta que “A mesa da Assembleia Geral será constituída por um presidente e dois secretários, eleitos pela própria Assembleia”.

7 - Do artigo décimo quarto das cláusulas acordadas na escritura aludida em 1) consta que “ Os membros do Conselho de Administração, do Conselho Fiscal e da Mesa da Assembleia serão eleitos, simultaneamente, por um ano pela Assembleia Geral e poderão ser reeleitos por uma ou mais vezes”.

8 – Na reunião da Assembleia Geral que teve lugar no dia 31 de Dezembro de 2005, foi deliberado por unanimidade, nomear como membros dos órgãos sociais “Assembleia Geral: Presidente – O...; 1º Secretário: Dr. P... e 2º Secretário: J ... (…)” – conforme consta do documento de fls. 69 a 71 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

9 – Pelos accionistas da ré foi dirigido ao presidente da Mesa da Assembleia Geral carta registada com aviso de recepção, datada de 13 de Novembro de 2007, conforme cópia de fls. 72 a 75 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

10 – Pelo accionista Q... foi dirigido ao presidente da Mesa da Assembleia Geral, carta registada com aviso de recepção, datada de 16 de Setembro de 2008, cuja cópia consta de fls. 76 a 78 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

11 - Pelo accionista Q...foi dirigido ao presidente da Mesa da Assembleia Geral, carta registada com aviso de recepção, datada de 22 de Fevereiro de 2008, cuja cópia consta de fls. 79 a 80 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

12 - Pelo accionista Q...foi dirigido ao presidente da Mesa da Assembleia Geral, carta registada com aviso de recepção, datada de 6 de Janeiro de 2009, cuja cópia consta de fls. 81 a 83 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

13 – Pelo autor na qualidade de presidente da Mesa da Assembleia, foi em 22 de Janeiro de 2009 convocada Assembleia Geral para o dia 6 de Março de 2009, pelas 10 horas, com a seguinte ordem de trabalhos: “(…) Ponto catorze – proceder à eleição dos membros dos órgãos sociais”.

14 - Na reunião da Assembleia Geral que teve lugar no dia 6 de Março de 2009, encontravam-se presentes ou representados accionistas constantes da lista de presenças, totalizando de 73,424% do capital social, tendo sido iniciada a reunião sob a presidência do autor. Iniciados os trabalhos pelo representante da accionista C..., L.da apresentado requerimento no sentido de que a ordem de trabalhos fosse alterada, iniciando a Assembleia pelo ponto 14, dado que nos termos dos estatutos da sociedade, deve proceder-se à eleição para os órgãos sociais todos os anos e desde 2007 que não se procede a tal eleição.

15 – Consta da acta da reunião aludida em 14) que “Pelo presidente da mesa foi dito que se recusava a pôr tal requerimento a votação. Face a tal recusa do senhor Presidente da Mesa, o Senhor R... perguntou aos restantes accionistas presentes para votarem a favor da alteração da ordem de trabalhos, nos termos propostos, tendo tal alteração sido votada a favor da alteração da ordem de trabalhos, tendo tal alteração sido votada por maioria correspondente a 57,705% do capital social. Votou contra o accionista A ...e o accionista P... declarou que não votava. Seguidamente o senhor R..., apresentou à Assembleia ovo requerimento propondo a destituição da mesa com efeitos imediatos, tendo a destituição sido votada favoravelmente pelos accionistas representativos de 57,705% do capital social. Foi então designado para assumir a presidência da Mesa da Assembleia o senhor R..., secretariado pelo Senhor S.... Seguidamente foi dada a palavra aos accionistas para se pronunciarem sobre o ponto 14 da ordem de trabalhos: proceder à eleição dos órgãos sociais (…). Seguidamente pelo Presidente da Mesa foi proposta a suspensão dos trabalhos da assembleia, para continuar em data, oportunamente marcada, tendo em conta que os órgãos sociais tinham sido acabados de eleger, proposta que foi também aprovada pela maioria dos accionistas, representando 57,705% do capital social (…)”. – conforme consta do documento de fls. 108 a 110 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

16 – A ré encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Oliveira do Hospital, sob o n º ..., com o código de acesso ....

IIII – DIREITO

1. Como inequivocamente emerge do disposto nos arts. 684º, nº3 e 685º-A, nº 1, ambos do Cód. Proc. Civil, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões das alegações do Recorrente, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas.


2. Nessa medida, e tendo em mente o quadro de sintéticas proposições com que o A. e aqui Recorrente finda a sua douta alegação, concluímos que apenas a uma se circunscreve a questão que ora nos cumpre dilucidar, qual seja, saber se, agindo contra expressa decisão do Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ré/Recorrida, aos accionistas presentes na reunião era lícito, na sequência de proposta nesse sentido apresentada por um deles, pôr à votação e aprovar a alteração da ordem do dia dos respectivos trabalhos, e portanto, se ao assim actuarem os ditos accionistas levaram a efeito, ou não, uma deliberação inquinada de invalidade.

2.1. No seu douto saneador-sentença, a Mm.ª Juíza foi no sentido de arredar a existência de fundamento anulatório de tal deliberação, aduzindo para tanto, e em suma, que a deliberação não extravasou a convocatória nem foi concretizada com violação da lei ou do contrato social, tanto quanto é certo que este refere –de um lado‑, que o presidente da mesa será eleito pela Assembleia, e –do outro‑ que as decisões da Assembleia são tomadas pela maioria dos votos correspondentes ao capital, o que também ocorreu.
O Recorrente, por sua vez, refuta em absoluto este pensamento, dizendo que o presidente da mesa das sociedades anónimas é detentor de poderes que radicam na sua própria função, gozando de plena autonomia, sem qualquer tipo de delegação emanada da assembleia, pelo que é assim soberano de aceitar ou rejeitar qualquer proposta no sentido da alteração da ordem do dia, gozando de total independência da vontade de tal assembleia, que assim, e sob pena de ilegalidade, não pode à sua própria sobrepor-se.
A qual destes desconvizinhos entendimentos conferir razão?
Adiantando o veredicto – e sempre ressalvando melhor opinativo‑, cremos que se impõe que seja ao último, o do aqui Recorrente.
Vejamos porquê.

2.2. Como é sabido, e flui nitidamente do estatuído em diversos preceitos do Código das Sociedades Comerciais, ao presidente da mesa da assembleia geral das sociedades anónimas cabem múltiplas funções entre elas, a de direcção e condução da reunião de tal colégio. E neste específico desempenho, compete-lhe, notadamente, abrir e encerrar a assembleia, pôr em discussão cada ponto da ordem do dia, dar a palavra aos participantes que dela pretendam usar, aceitar e pôr à votação propostas de deliberação, efectuar a contagem dos votos e, ainda, proclamar o resultado da votação.
Dado este leque de relevantes funções, e conforme elucida Pedro Maia[1], a doutrina e a jurisprudência estrangeiras têm-se ocupado da questão de saber se, em princípio, os poderes do presidente da assembleia geral constituem poderes próprios ou, diversamente, poderes delegados pela assembleia de sócios. E a resposta a esta questão –mais elucida o mesmo Autor‑, “condiciona a resposta aquela outra questão que é saber se a assembleia pode, por deliberação sua, impor ao presidente da mesa decisões no âmbito da condução dos trabalhos –quer revogando as decisões tomadas pelo presidente, quer deliberando, por sua iniciativa, nessa matéria.”
Sempre norteado pelo mesmo enfoque, o referido Autor esclarece[2] que nos tempos mais recentes se tem assistido ao progressivo reconhecimento –em que também se inscreve o nosso Código das Sociedades Comerciais‑, de que o presidente da assembleia geral da sociedade anónima “dispõe de poderes próprios, que lhe pertencem originariamente, e não por via de delegação (tácita ou implícita) da assembleia a que preside.”
E prossegue na sua exposição: Importa sublinhar que, ao contrário do que poderia supor-se, esta concepção que identifica no presidente da assembleia um centro de poder próprio e autónomo da assembleia é, simultaneamente, a que melhor tutela o interesse dos sócios. Com efeito, se se reconhecesse à assembleia o poder genérico de revogar as decisões do presidente estaria aberta a porta para que a maioria –a maioria presente na assembleia, entenda-se, que em regra constitui uma minoria no capital –orientasse os trabalhos da assembleia na prossecução dos seus interesses próprios. Diferentemente, ao reconhecer-se ao presidente da assembleia um quadro de poderes próprios, assegura-se que a condução das assembleias gerais não privilegiará os interesses de determinados sócios em detrimento de outros.” E ligeiramente adiante: “Deste modo, a condução dos trabalhos por um presidente investido de poderes próprios confere aos accionistas –aos accionista presentes, mas minoritários, e também àqueles ausentes da reunião‑, a garantia de que no funcionamento do colégio não serão precludidos os interesses de determinados accionistas em proveito dos de outros, ou que não será aí privilegiada a posição dos membros de outros órgãos da sociedade em detrimento das posições veiculadas em assembleia geral pelos accionistas.”
E mais à frente[3], em conclusão desta sua explanação, escreve o insigne Comercialista a que nos atemos: “Em suma, deve entender-se que (…) o presidente da assembleia geral da sociedade anónima dispõe de poderes próprios na condução das reuniões, salvo aqueles casos em que a lei expressamente admite que a assembleia revogue, mediante deliberação, as decisões tomadas pelo presidente.”
Em moldes em tudo idênticos se pronuncia o Prof. A. Menezes Cordeiro[4], nomeadamente: “[é] importante recordar que o presidente da mesa recebe o seus poderes da lei e dos estatutos: não é um delegado dos accionistas nem, muito menos, da maioria que o tenha elegido. Embora ao serviço da sociedade –logo: dos accionistas‑ ele deva tratá-los em modo colectivo, o que pode pressupor que se deva opor, em certas circunstâncias, à maioria da assembleia.” E mais à frente[5]: “A assembleia não tem poderes para avocar matéria processual de condução dois trabalhos (…). Embora seja o órgão máximo, a assembleia geral não é soberana, no sentido de fazer o que entender. Trata-se de uma consequência da tutela dos valores em modo colectivo, destinada a assegurar os interesses dos ausentes, das minorias e da própria sociedade, pela imagem de estabilidade e de isenção que transmita para o mercado.” Ainda e afirmando da possibilidade de invocar, a contrario sensu, o dsiposto no art. 379º, nº 6, o mesmo Mestre –exactamente em coincidência com o anterior Docente‑, conclui[6] que “apenas em situações limitadas e expressamente referidas na lei pode a assembleia revogar decisões do presidente.”

2.3. De posse destes tão autorizados ensinamentos, logo se infere, baixando ao caso dos autos, que tendo o Presidente da Assembleia da Ré –o aqui Recorrente‑, ante a proposta do representante da accionista C..., Lda., no sentido se proceder à alteração da ordem dos trabalhos, se recusado a pôr à votação tal proposta, inviável era a quem quer que fosse dos presentes ‑ignorando tal qualificada manifestação contrária‑, pôr essa proposta à votação e, obtida a maioria corresponde ao capital social, levar efectivamente a cabo tal almejada alteração da ordenação dos assuntos agendados.
Dados esses poderes apenas na sua pessoa –e com inteira autonomia em relação aos demais órgãos societários‑, radicados, unicamente ao aludido Presidente era dado não só submeter à consideração da Assembleia a possibilidade de alteração da ordem do dia, mas até, independentemente de qualquer anseio ou posição dos Accionistas presentes, fazer com que essa alteração se efectivasse. Na verdade, e como refere Pedro Maia[7] ‑centrado precisamente na questão da observância e cumprimento da ordem do dia inserta na atinente convocatória‑, “[u]ma vez iniciados os trabalhos, ao presidente da assembleia incumbe assegurar que a ordem do dia seja regularmente cumprida, dentro de um período de tempo apropriado.E um passo adiante[8]: O presidente pode alterar a sequência dos assuntos da ordem do dia incluída no aviso convocatório, mas somente se tal alteração se mostrar adequada e necessária para o melhor decurso dos trabalhos.”
Nestes termos, pois, só ao presidente, que não à assembleia, cabe o poder de, por si, verificados esses apontados requisitos –adequação e necessidade‑, introduzir modificações no elenco dos assuntos constitutivos do “thema deliberandum”. Igual opinativo expressa, uma vez mais, o Prof. Menezes Cordeiro[9], listando entre os poderes do presidente da mesa, o de “seguir a ordem do dia, de modo adequado: introduzindo alterações na sequência dos pontos em discussão quando conveniente”.
Pelo exposto, indevidamente se houve a Assembleia da Ré, como se adiantou, ao admitir a colocação à votação, em contrário e sem a intervenção do respectivo Presidente, da proposta apresentada pelo representante da accionista C..., Lda., e, efectuando tal votação, deliberar por maioria a alteração da ordem do dia, dando-lhe de imediato execução.
Surgindo-nos, pois, tal colegial procedimento –na medida em que cabalmente afrontante desses poderes específicos da esfera de competência do Presidente‑ desconforme, impõe-se agora apurar qual a consequência jurídica inerente a esse facto, que o mesmo é dizer, qual a modalidade de vício correspondente a essa anómala deliberação.

2.4. Neste conspecto, o ora Recorrente sustenta estar-se perante um caso de nulidade, previsto no art. 56º, nº 1, al. d), do Cód. Soc. Comerciais, ou, pelo menos, de anulabilidade, com assento no art. 58º, nº 1, al. a), do mesmo Diploma.
A este propósito também J. H. C. Pinto Furtado[10] ensina que “perante um dado vício deliberativo concreto, a primeira investigação a tentar será a de apurar se ele é subsumível a alguma das facti species legais de nulidade. Excluída a solução afirmativa, só então caberá encará-la à luz da anulabilidade.
Deste modo, pois, vejamos antes de mais se a enfocada deliberação pode ser considerada nula, nos termos do apontada al. d), do nº1, do art. 56º, do sobredito Diploma.
Consoante a formulação dessa alínea “são nulas as deliberações dos sócios … cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.”
Não se antolhando qualquer artigo de lei, mormente constante do Cód. das Soc. Comerciais, que essa tomada de posição dos accionistas da Ré/Recorrida, determinante da alteração da ordem dos assuntos da reunião, ao arrepio da vontade e postergando qualquer intervenção do respectivo Presidente, possa ter contravindo, a declaração de nulidade da mesma apenas poderia defluir da sua efectiva contrariedade aos bons costumes.
Pronunciando-se sobre o sentido e alcance destes referenciados “bons costumes”, o Prof. Menezes Cordeiro[11] diz que “eles abrangem regras de conduta familiar e sexual e, ainda, códigos deontológicos próprios de certos sectores.” E assim –precisa‑, “incorre na nulidade por atentado aos bons costumes, qualquer deliberação social que: assuma um conteúdo sexual ou venha bulir com relações reservadas ao Direito da família; atente contra deontologias profissionais: por exemplo, assembleia de sociedades de advogados, de médicos ou de jornalistas que deliberem em sentido contrário ao sigilo profissional.” Partindo daqui para a “deontologia comercial” –que ao caso fundamentalmente releva‑, expende o mesmo Mestre que ela se impõe quando estejam em causa violações grosseiras, nesta senda ilustrando que “é ofensiva dos bons costumes a deliberação de distribuir lucros por dois fundos e uma conta nova, prosseguido há vinte e cinco anos com uma prática de não distribuir lucros aos sócios; idem quanto à deliberação unânime de vender a uma irmã de um sócio o único imóvel da sociedade por um preço muito inferior ao real; idem quanto à deliberação de vender por 210.000 c., o estabelecimento e sede da sociedade quando o sócio minoritário presente ofereceu 518.000 c., equivalentes ao valor real.”
Ora, frente a esta preclara lição, logo se impõe concluir, se bem cuidamos, não ser a ventilada deliberação dos sócios da Ré, “mera” intervenção ao nível da sequência da ordem de trabalhos agendada, contendente com qualquer regra da ética mercantil e, logo, violadora dos bons costumes em tal sede imperantes.
Donde resulta, ao cabo de contas, haver que afastar, no tocante a tal deliberação, o vício da nulidade.
Quanto à anulabilidade –também designada nulidade relativa ou impugnabilidade‑, lê-se naquela mencionada al. a), do nº 1, do art. 58º, do Cód. das Soc. Comerciais, que "são anuláveis as deliberações que… violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56º, quer do contrato de sociedade.”
Acerca do teor desta norma, Manuel A. Carneiro da Frada[12] refere que “ela é, pelo seu recorte no confronto com o art. 56º e pelo grau de indeterminação em que deixa os casos a que venha a aplicar-se, uma verdadeira cláusula geral que fornece o quadro-regra das invalidades em matéria de deliberações.” Convindo, certamente, também nesse aludido “grau de indeterminação”, Menezes Cordeiro[13], sustenta que “a referência a ´lei ´ deve ser entendida em termos amplos: violação do Direito.”
Ora, revertendo à deliberação aqui ajuizada, ainda que, como referimos, norma alguma exista, designadamente no Cód. das Soc. Comerciais, que vede a possibilidade de os membros de uma assembleia geral decidirem “motu proprio”, ignorando a oposta vontade manifestada pelo presidente da mesa, a alteração da ordem do dia, verdade é que, consoante também antes expendemos –com referência à mui douta exposição de Pedro Maia‑, o estabelecimento de poderes próprios e a título originário do presidente da assembleia geral ‑designadamente visando o regular e ordenado decurso dos trabalhos-, resulta da economia ínsita a tal Diploma, tributário das novas concepções a respeito desses poderes, pelo que, tal deliberação, desrespeitando frontalmente estes mesmos poderes, não pode deixar de se haver por ilícita, adversa ao Direito –quadro ordenatório‑ instituído.
E mercê de tal, enfermando de nulidade relativa, anulabilidade, nos termos da predita al. a), do nº 1, do art. 58º, do Cód. das Soc. Comerciais.
Aliás –diga-se ainda‑, a assim se não entender, a consagração desses poderes redundaria meramente teórica, platónica, pois, não existindo sanção para a respectiva transgressão, nada imporia o respeito por eles, ficando ao livre alvedrio dos accionistas presentes‑ ou mesmo, até, de apenas alguns deles‑, com os altamente nefastos reflexos antes apontados, a efectiva operância dos mesmos, o que vale dizer, a razão de ser da figura do presidente e respectivas atribuições.

2.5. De conformidade com tudo o exposto, havendo que anular a deliberação dos accionistas da Ré/Recorrida que, subscrevendo a proposta do Senhor R... aprovou por maioria de 57,705% do capital social a alteração da ordem de trabalhos, na mesma e consequente linha impõe-se também e obviamente anular as demais deliberações tomadas na sequência da mesma, seja: de destituição da Mesa com efeitos imediatos, consoante proposta do Senhor R..., e, bem assim, de designação deste Senhor R... para assumir a presidência dessa mesma Mesa, secretariado pelo Senhor S..., de eleição dos novos Órgãos Sociais, conforme lista apresentada pelo accionista Q..., e, finalmente, de suspensão dos trabalhos da assembleia para continuar em data oportunamente marcada, em consonância com proposta apresentada pelo novo Presidente da Mesa, deliberações estas todas aprovadas também pela indicada maioria de 57,705% do capital social.
Deste modo, e em suma, o douto recurso ora apreciado logra vitória, o que dita a completa insubsistência do saneador-sentença por ele em crise.

IV – DECISÃO
Termos em que, na procedência da apelação, revoga-se o douto despacho saneador-sentença, assim decidindo:
‑ anular a deliberação dos accionistas da Ré/Recorrida, tomada na reunião da Assembleia Geral que teve lugar a 6 de Março de 2009, a qual, a proposta do Senhor R..., aprovou por maioria de 57,705% do capital social a alteração da ordem de trabalhos constante do concernente aviso convocatório; e consequentemente
‑ anular, outrossim, as demais deliberações tomadas, nessa mesma reunião, na sequência de tal deliberação acima invalidada, notadamente a que procedeu à eleição de novos membros dos Órgãos Sociais, conforme lista apresentada pelo accionista Q....
Como assim, ordena-se o cancelamento do registo operado pela Insc. 3, na sequência da Ap. 8/20090324 (fls. 116).
Custas pela Ré/Recorrida.

Helder Almeida (Relator)
Francisco Caetano
António Magalhães


[1] Cfr. O Presidente das Assembleias de Sócios, in Problemas do Direito das Sociedades, Cadernos do IDET, Almedina, pág. 447.
[2] Idem, pág. 448.
[3] Id., pág. 450.
[4] Cfr. Manual de Direito das Sociedades, Tomo II, das Sociedades em Especial, 2006, Almedina, pág. 734.
[5] Idem, pág. 737.
[6] Id., pág. 738, nota 1833.
[7] Ob. cit., pág. 453.
[8] Id., ibidem.
[9] Ob. cit., pág. 735.
[10] Cfr. Deliberações de Sociedades Comerciais, Colecção teses, Almedina, pág. 634.
[11] Cfr. Ob. cit., Tomo I, pág. 646.
[12] Cfr. Deliberações Sociais Inválidas no Novo Código das Sociedades, in Novas Perspectivas do Direito Comercial, FDUCL e CEJ; Almedina, pág. 320.
[13] Ob. cit., Tomo I, pág. 657.