Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
492/10.0GAILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 44º, DO C. PENAL
Sumário: O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão e, deste modo, como sucede com a prisão por dias livres ou com o regime de semidetenção, apenas pode ser decidida na sentença, pelo tribunal de julgamento, e não na fase de execução da sentença, como se constituísse mero incidente da execução da pena de prisão.

E, se o momento para decidir da aplicação do regime de permanência na habitação é o da sentença condenatória, não permite o artigo 44º, do C. Penal, que, tendo sido suspensa a execução da pena de prisão, em caso de posterior revogação da referida pena, possa ser perspectivada a aplicação daquele regime.

É o que também se infere do n.º 2, do artigo 56º, do C. Penal, ao dispor: «A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (…)».

Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No Juízo de Média Instância Criminal de Ílhavo (Comarca do Baixo Vouga), após julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido A..., devidamente identificado nos autos, foi condenado, pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º, do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano.

Na fundamentação de direito da sentença, a final, ficou exarado: «No caso de revogação» da suspensão «desde já se decide que a pena poderá ser cumprida em regime de permanência no domicílio, mediante vigilância electrónica, por tal forma de cumprimento ser bastante para assegurar as finalidades da punição» (o sublinhado pertence-nos).


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2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da sentença, circunscrito à parte acima transcrita, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.ª - O arguido foi condenado, pela douta sentença ora recorrida, na pena de 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, mais se decidindo que, no caso de revogação da suspensão da execução da pena de prisão a pena poderá ser cumprida em regime de permanência no domicilio, mediante vigilância electrónica, por tal forma de cumprimento ser bastante para assegurar as finalidades da punição.

2.ª - O regime de permanência na habitação, previsto no artigo 44.º, do Código Penal, consubstancia uma verdadeira pena substitutiva da pena de prisão.

3.ª - O regime de permanência na habitação não pode ser aplicado como pena substitutiva de uma pena substitutiva - no caso em concreto, com pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão, pelo que a sentença ora recorrida violou o artigo 44.º, n.º 1, do Código Penal.

4.ª - Sem conceder, o condenado não prestou o consentimento para que fosse aplicado o regime de permanência na habitação, pelo que a Mma. Juiz a quo violou o disposto no corpo do n.º 1 do artigo 44.º do Código Penal.

5.ª - Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a parte decisória da sentença na qual se decide que, caso seja revogada a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido é condenado, aquele poderá cumprir essa pena em regime de permanência na habitação.

Pelo que, dando provimento ao recurso interposto, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada justiça!


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3. O arguido não respondeu ao recurso.

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4. Nesta Relação, em parecer a fls. 145/147, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta manifestou-se no sentido da procedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.


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6. Colhidos os vistos, o processo foi submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:

Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

No caso dos autos, o recorrente circunscreve o recurso à questão de saber se existe fundamento legal para a “decisão”, a itálico, supra enunciada.

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2. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
O arguido foi condenado, por sentença proferida nos autos de Processo Sumário n.º 282/10.OGBILH do Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo, transitada em julgado em 23/06/2010, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 5 (cinco) meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
A carta do arguido foi apreendida, à ordem do Processo Sumário n.º 282/10.OGBILH, em 26/06/2010, para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados referida.
Não obstante, no dia 10/09/2010, pelas 0lh40m, o arguido conduzia o veículo automóvel com a matrícula  … e circulava pela Rua Serpa Pinto, em Ílhavo.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que não podia conduzir veículos com motor durante o período de proibição de conduzir em que havia sido condenado pela sentença transitada em julgado proferida no Processo Sumário n.º 282/10.OGBILH do Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo e, não obstante, quis conduzir o 93-71-ET nas circunstâncias descritas.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Tem antecedentes criminais condução de veículo em estado de embriaguez tendo sido condenado, por duas vezes, em penas de multa.
É carpinteiro auferindo mensalmente valores não concretamente apurados mas não significativamente superiores ao salário mínimo nacional.
A esposa é auxiliar de serviços.
Têm cinco filhos entre os 18 e os 8 anos.
Confessou os factos integralmente.
Estudou até ao 12.º ano.
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3. Mérito do recurso:
O artigo 97.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, define a sentença como o acto decisório do juíz que conheça do mérito do processo.
De acordo com o disposto no artigo 374.º do mesmo compêndio legislativo, a sentença comporta três partes, quais sejam, o relatório, a fundamentação e o dispositivo.
No relatório, parte inicial, procede-se à identificação do arguido, do assistente e das partes civis e à indicação do crime imputado ao primeiro, segundo a acusação ou a pronúncia, se a tiver havido, e das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
Na fundamentação, a sentença deve revelar o procedimento lógico seguido pelo tribunal na formação da decisão, para ser possível aferir do seu acerto e segurança.
Para o efeito, é legalmente exigido:
- a enumeração dos factos provados;
- a exposição, completa e concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, ou seja, as considerações naquela dupla vertente necessárias à qualificação jurídica da factualidade apurada;
- a indicação e a apreciação crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A sentença termina com o dispositivo, ou seja, com uma parte conclusiva e decisória, donde constam: (i) as disposições legais que o tribunal teve por aplicáveis; (ii) o sentido da decisão, absolutória ou condenatória (neste caso com referência expressa aos crimes cometidos e respectivas penas); (iii) o destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime; (iv) a remessa de boletins ao registo criminal; (v) a data e as assinaturas dos membros do tribunal.
Examinada a estrutura formal da sentença sob recurso, verificamos que o dispositivo se circunscreve aos elementos descritos nos pontos i, ii, iv e v, sendo de destacar a imposição ao arguido A... da pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática do referido crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
Contudo, o segmento final da fundamentação, embora descontextualizado, ou seja, fora do esquema formal definido para a sentença, integra-se, substancialmente, no quadro do dispositivo.
Efectivamente, ali está afirmada uma decisão, consubstanciada no cumprimento, pelo arguido, da pena de prisão, decorrente da eventual revogação da suspensão, em regime de permanência no domicilio, mediante vigilância electrónica, no entendimento assumido de que tal cumprimento, na dita forma, é bastante para assegurar as finalidades da punição.
É certo que é usado o termo “poderá”. No entanto, a globalidade do referenciado segmento aponta claramente no sentido dessa expressão corresponder a uma decisão definitiva, no sentido apontado.
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O “Regime de permanência na habitação” constitui uma das novidades de relevo na reforma penal introduzida pela Lei n.º Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
Efectivamente, o novo artigo 44.º, do Código Penal, veio acrescentar ao elenco das penas de substituição uma outra, a aplicar-se como alternativa ao cumprimento da prisão nos estabelecimentos prisionais, verificadas que estejam as requisitos enunciados na referida norma.
A par da prisão por dias livres (artigo 45.º) e do regime de semidetenção (artigo 46.º),  a figura jurídica em causa tem a natureza de pena de substituição em sentido amplo ou impróprio, uma vez que é decidida pelo tribunal de julgamento no momento da condenação e pressupõe a não substituição da prisão previamente determinada por uma das penas de substituição em sentido próprio prevista no artigo 43.º (pena de proibição do exercício de profissão, função ou actividade), nos artigos 50.º e ss. (suspensão da execução da pena de prisão), no artigo 58.º (prestação de trabalho a favor da comunidade) e no artigo 60.º (admoestação)[1].
Ou seja, o regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão e, deste modo, como sucede com a prisão por dias livres ou com o regime de semidetenção, apenas pode ser decidida na sentença, pelo tribunal de julgamento, e não na fase de execução da sentença como se constituísse mero incidente da execução da pena de prisão[2].
Se o momento para decidir da aplicação do regime de permanência na habitação é o da sentença condenatória, não permite o artigo 44.º que, tendo sido suspensa a execução da pena de prisão, em caso de posterior revogação da referida pena, possa ser perspectivada a aplicação daquele regime.
É o que também se infere do n.º 2 do artigo 56.º do CP, ao dispor: «A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (…)».
Em face do exposto, procede o recurso.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, eliminando-se da sentença recorrida o aludido segmento decisório.
Sem tributação.
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Alberto Mira (Relator)

Elisa Sales


[1] Cfr. Jorge Gonçalves, in “A Revisão do Código Penal: alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares”, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 22, e António João Latas, “A Reforma do Sistema Penal de 2007, Garantias e Eficácia”, Justiça XXI, pág. 106/107.
[2] Neste sentido, vejam-se, a título meramente exemplificativo, e com maior desenvolvimento, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 23-10-2010, da Relação do Porto de 19-05-2010, e da Relação de Évora de 10-12-2009, todos publicados na CJ, tomos IV, pág. 134 e ss., III, pág. 214 e ss. e V, pág. 241/242.