Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
236/13.4GATBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA (EXCLUSIVA) DA VÍTIMA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CICLOMOTOR
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
Data do Acordão: 10/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TÁBUA - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 503.º, N.º 1, E 505.º, DO CC
Sumário: Perante acidente de viação em que o lesado se transportava em veículo motorizado (ciclomotor) - não se reportando, assim, o referido evento a utentes vulneráveis de vias públicas (peões e ciclistas) -, sendo a outra viatura interveniente um automóvel, o texto do artigo 505.º do CC não deve ser interpretado, de forma progressista ou actualista, no sentido de nele se acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco do próprio veículo automóvel.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum singular 236/13.4GATBU da Comarca de Coimbra, Instância Local de Tábua, Secção de Competência Genérica, J1, após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença em 9 de Fevereiro de 2015 com o seguinte dispositivo:

INSTÂNCIA CRIMINAL

Nestes termos e com estes fundamentos, julgo a acusação pública TOTALMENTE IMPROCEDENTE e, em consequência, ABSOLVO o arguido A... pela prática do crime de homicídio negligente, p. p. pelo art. 137.º/1 do CP, por que veio acusado.

Sem custas, por não serem devidas.

INSTÂNCIA CÍVEL

Nos termos e com os fundamentos enunciados, julgo o PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL formulado por INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, IP, PARCIALMENTE PROCEDENTE e, consequentemente, CONDENO a demandada B... , PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL, a pagar ao demandante o valor de € 219,69 (DUZENTOS E DEZANOVE EUROS e SESSENTA E NOVE CÊNTIMOS).

Custas por demandante e demandada, na proporção do respectivo decaimento, ex vi art. 527.º do NCPC.

Também nos termos e com os fundamentos enunciados, julgo o PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL formulado por C... , D... e E... como PARCIALMENTE PROCEDENTE e, consequentemente:

CONDENO a demandada B... , PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL a pagar a C... o valor de € 5.000,00 (CINCO MIL EUROS), acrescido de juros de mora, à taxa civil, desde a notificação do pedido de indemnização civil e até efectivo e integral pagamento;

CONDENO a demandada B... , PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL a pagar a D... o valor de € 3.125,00 (TRÊS MIL, CENTO E VINTE E CINCO EUROS), acrescido de juros de mora, à taxa civil, desde a notificação do pedido de indemnização civil e até efectivo e integral pagamento;

CONDENO a demandada B... , PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL a pagar a E... o valor de € 3.125,00 (TRÊS MIL, CENTO E VINTE E CINCO EUROS), acrescido de juros de mora, à taxa civil, desde a notificação do pedido de indemnização civil e até efectivo e integral pagamento;

E, ainda,

CONDENO a demandada B... , PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL a pagar aos demandantes C... , D... e E... , na qualidade de herdeiros de F... , o valor de € 7.632,50 (SETE MIL, SEISCENTOS E TRINTA E DOIS EUROS e CINQUENTA CÊNTIMOS), acrescido de juros de mora, à taxa civil, desde a notificação do pedido de indemnização civil e até efectivo e integral pagamento.

Custas por demandantes e demandada, na proporção do respectivo decaimento, ex vi art. 527.º do NCPC e sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozam os primeiros.

Inconformada, recorreu a demandada B... PLC, Sucursal em Portugal, condensando a motivação de recurso nas seguintes conclusões:

1  -  Uma  vez  que  a  culpa  no  eclodir  do  acidente  se  deve  imputar  exclusivamente  à  infeliz  Vítima,  para  além  de  que  não  atuou  na  veste  de  um  utente  vulnerável  das  vias  de  circulação,  nem  se  integrando  a  dinâmica  do  acidente  dada  por  provada  nas  alterações  ocorridas  no  Cód.  da  Estrada  para  proteção  desse  tipo  de  utentes,  não  se  verificam  os  pressupostos  de  facto  e  de  direito  para  condenação  da  Ré,  quer  em  sede  de  culpa  (exclusiva,  concorrencial  ou  presumida),  quer  em  sede  de  concurso  de  culpa  (da  infeliz  Vítima)  com  o  risco  provindo  da  utilização  do  veículo  segurado  na  Recorrente.  Assim,

2  -  Deve  a  Recorrente  ser  absolvida.  Por  cautela,  subsidiariamente,  e  para  a  hipótese  de  assim  se  não  entender,  então,

3  -  Deve  ser  fixado  em  10%  a  percentagem  de  concurso  de  culpa  do  Arguido  no  eclodir  do  acidente  e  nas  consequências  dele  derivadas,  ou  da  intervenção  do  risco  resultante  da  utilização  da  viatura  segura  na  Recorrente  naquele  evento  danoso  e  nas  suas  consequências;

4  -  Deve  ser  fixado  em  25.000,00€  o  valor  da  indemnização  devida  em  sede  de  dano  não  patrimonial  sofrido  pela  Demandante  C...   em  razão  do  decesso  de  seu  marido;

5  -  Deve  ser  fixado  em  10.000,00€  o  valor  da  indemnização  devida  em  sede  de  dano  não  patrimonial,  para  cada  um  dos  Demandantes  D...   e  E... ,  em  sede  de  dano  não  patrimonial  pela  morte  do  Pai  de  ambos;

6  -  Deve  ser  fixado  em  44.466,30€  o  valor  da  indemnização  devida  em  sede  de  dano  por  perda  da  vida  da  infeliz  Vítima.  Pelo  que,

7  -  Por  aplicação  da  percentagem  de  10%  ao  crédito  indemnizatório  dos  Demandantes,  deverá  a  Recorrente  ser  condenada  a  pagar-lhes,  respetivamente,  as  seguintes  quantias:

a)  -  à  Demandante  C... ,  a  título  de  dano  não  patrimonial  advindo  da  morte  de  seu  marido:  2.500,00€;

b)  -  a  cada  um  dos  Demandantes  D...   e  E... ,  a  título  de  dano  não  patrimonial  advindo  da  morte  de  seu  pai:  1.000,00€;

e)  -  aos  Demandantes  C... ,  D...   e  E... ,  na  qualidade  de  únicos  e  universais  herdeiros  da  infeliz  Vítima,  em  sede  de  dano  da  perda  de  vida:  4.446,63€  e  em  6,00€  pelo  dano  '-,--­resultante  da  reparação  do  ciclomotor.

8  -  Quanto  ao  demais  peticionado,  deve  a  Recorrente  ser  absolvida.

Nestes  termos  e  nos  mais  de  Direito  deve  o  presente  Recurso  ser  julgado  procedente,  por  provado,  consequlntemente  se  prolatando  Acórdão  absolvendo  ou  condena  o  a  Recorrente  nos  termos  acima  elencados  nas  Conclus  es,

Assim  se  fazendo  a  sempre  pedida  e  acostumada JUSTIÇA

O recurso interposto foi objecto de despacho de admissão.

Notificados os sujeitos processuais afectados pelo recurso, não ocorreu resposta.

Nesta Relação, efectuado o exame preliminar e corridos os vistos foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da decisão recorrida

A sentença recorrida contém a seguinte fundamentação de facto e de direito:

            3.1. Factos Provados

            Encerrada a Audiência de Discussão e Julgamento e esgotada a produção de prova, os seguintes FACTOS resultaram PROVADOS:

1. No dia 04.09.2013, pelas 14h25, na EN17, Km56, na localidade de Catraia de Mouronho, Mouronho, Tábua, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel (...) NC, conduzido pelo arguido A... , circulando no sentido Venda da Serra/Tábua e o ciclomotor de matrícula (...) FT, conduzido por F... ;

2. A via no local onde ocorreu o acidente configura uma recta, sem obstáculos à visibilidade, com a largura de 6,40ms, composta por duas faixas de trânsito, para cada um dos sentidos de marcha, ladeadas por bermas com a largura de 2,90 ms cada;

3. A estrada é ladeada, de ambos os lados, por posto de abastecimento de combustível, é delimitada por linhas guias (M19), as faixas de rodagem são separadas por marca longitudinal, com marcação contínua e descontínua (M3 e M2) e no local existe limite de velocidade de 50kms/hora para veículos ligeiros e de 40 kms/h para ciclomotores;

4. À data e hora no local onde o acidente ocorreu, era dia e estava sol, não chovia, nem havia chovido recentemente, a visibilidade era boa e estava bom tempo, sendo o trânsito pouco intenso;

5. No dia e hora citados, F... colocou o capacete, de modelo que não foi possível apurar, sobre a cabeça, sem o ajustar ou acomodar à cabeça de forma segura e iniciou a marcha no ciclomotor (...) FT a partir da zona de abastecimento do lado esquerdo (sentido Venda-da-Serra/Tábua);

6. À saída do posto de abastecimento referida em Factos 5.), existe sinalização vertical de paragem obrigatória e cedência de passagem (STOP) e a linha é descontínua para acesso à faixa de rodagem sentido Venda-da-Serra/Tábua, passando depois a possuir traço contínuo;

7. A partir desse local, F... tinha visibilidade para a estrada, em ambos os sentidos, em distância não inferior a 50 metros;

8. Antes de iniciar a marcha, F... havia ingerido bebidas alcoólicas, possuindo uma TAS de 1,16 g/l;

9. No citado local, dia e hora, o arguido A... conduzia a viatura a velocidade não inferior a 60 kms/h na sua faixa de rodagem, altura em que F... se internou na estrada, pretendendo tomar a mesma via de trânsito;

10. F... não cedeu passagem junto à sinalização vertical (STOP), não se assegurou que a via de trânsito estava desimpedida de trânsito e efectuou o atravessamento da via Tábua/Venda da Serra na diagonal, assim sem descrever uma perpendicular relativamente ao eixo da via;

11. A... , ao avistar o arguido, accionou os dispositivos de travagem da viatura e não efectuou qualquer manobra de desvio, persistindo em travagem em linha recta;

12. Devido à velocidade de que o veículo vinha animado e à resistência à alteração do movimento provocada pela inércia, A... colidiu, junto ao eixo da via, com o guarda-lamas e pneu traseiros do ciclomotor quando este ainda descrevia a linha diagonal por si tomada que lhe daria acesso à zona mais à direita da via de trânsito que o arguido percorria;

13. Devido ao movimento que ambos os veículos descreviam e à força provocada pelo embate, aquando da colisão F... projectou-se sobre a zona direita do pára-brisas do automóvel (...) NC, depois sendo projectado para a frente e para a berma do lado direito, atento o sentido de marcha da viatura;

14. F... ficou imobilizado na berma direita;

15. Como consequência do descrito em Factos 13.), F... sofreu as lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e raqui-meningo-medulares lombares descritas no relatório de autópsia a fls. 38-43 e que aqui se têm por integralmente reproduzidas, que foram causa da sua morte;

16. A... conhecia o local onde ocorreu a colisão, sabia que era ladeado por dois postos de combustível, que o atravessamento de viaturas era frequente e sabia que a velocidade máxima permitida era de 50 kms/h, que a circulação a velocidade superior representava um risco e um perigo acrescidos para os utentes da via e, ainda, que tal comportamento era proibido e punido por Lei;



17. A... encontra-se em situação de reforma e aufere a esse título o valor mensal de € 297,00, foi motorista de pesados e de longo curso, padece de doença crónica dos rins e foi submetido a transplante há cerca de 4 anos, vive sozinho em casa própria, tem uma filha, já maior e autónoma e tem por encargos fixos os custos de medicação, não inferiores a € 40,00/mês, a que acrescem os necessários à sua subsistência;

18. Não existe registo que A... tenha sido já condenado por prática criminal relacionada com crime rodoviário, tendo sofrido, porém, as seguintes prévias condenações:

60 dias de multa, pela prática de um crime de ameaça, p. p. pelo art. 153.º/1 do CP, pena aplicada pelo 1.º juízo criminal de Coimbra em 19.01.2009;

150 dias de multa, pela prática de um crime de injúria agravada, p. p. pelos arts. 181.º e 184.º do CP, pena aplicada pelo tribunal da comarca de Tábua em 13.07.2009;

200 dias de multa, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art. 86.º/1, al. c) da Lei n.º 5/2006 de 23.02, pena aplicada pelo tribunal da comarca de Tábua em 01.07.2011;

19. Não existe registo que A... haja sido antes condenado por contra-ordenação estradal e é visto como uma pessoa civilizada, cuidadosa e bem-formada por amigos e população de contexto;

20. Os demandantes C... , D... e E... são mulher e filhos de F... , são seus únicos e universais herdeiros e procederam à respectiva habilitação pela escritura pública a fls. 479-480;

21. Por contrato de seguro titulado pela apólice 006531091, B... assumiu a responsabilidade por danos decorrentes da circulação da viatura de matrícula (...) NC por contrato de seguro, em vigor em 04.09.2013;

22. F... tinha 54 anos à data da sua morte, era trabalhador, forte e saudável e trabalhava como abastecedor em posto de combustível, auferindo a esse título valor de € 489,00/mês e no campo em propriedades rurais próprias, para seu consumo e do agregado familiar, designadamente batatas, feijão, produtos hortícolas, criando ainda animais, como galinhas e coelhos;

23. F... mantinha-se casado com C... desde 1984 e até à data da sua morte, eram um casal unido e feliz, viviam o dia-a-dia com compreensão e estima mútua e a morte de F... deixou C... profundamente magoada e triste;

24. Com a morte de F... , o agregado familiar viu-se privado dos rendimentos laborais deste, que contribuía para o pagamento de alimentação, vestuário e demais despesas domésticas;

25. C... viu a sua situação pessoal sensivelmente agravada com a morte de F... ;

26. D... e E... tinham uma relação de amor e proximidade com F... , de carinho e afecto e a sua morte trouxe-lhes mágoa e tristeza;

27. Pela morte de F... , a sua herança na pessoa de seus herdeiros C... , D... e E... foi abonada por sociedade de seguros que assumia o pagamento de indemnização por acidentes de trabalho no valor de € 2.560,88 (capital de remição pela pensão anual e vitalícia), € 5.533,70 a título de subsídio por morte, € 1.406,00 por despesas de funeral e um valor, em quantitativo não apurado, de despesas de transportes;

28. O motociclo de F... ficou danificado no pára-lamas traseiro, por consequência da colisão;

29. A título de pensão de sobrevivência pela morte de F... , INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP assumiu o pagamento de prestações de sobrevivência desde  2013-10, no valor corrente de € 227,42/mês;

            3.2. Factos não provados

            Por sua vez, da instrução e discussão da causa os seguintes FACTOS NÃO resultaram PROVADOS:

A. F... parou junto à berma, na sinalização vertical de paragem obrigatória (STOP) e, depois, não vendo nenhum veículo ou peão a circular na via, iniciou a sua marcha e tomou o sentido Venda-da-Serra/Tábua, passando a circular nesta via, junto ao eixo;

B. A... circulava a uma velocidade nunca inferior a 84 kms/h, quando visualizou F... a uma distância nunca inferior a 44,50ms, iniciando a travagem sem conseguir evitar a colisão, quando alcançou o ciclomotor;

C. F... imobilizou-se a cerca de 21,60ms do local da colisão e o ciclomotor a 28 metros do mesmo ponto;

D. F... era uma pessoa de hábitos regrados, C... ainda hoje chora ao falar dele, não se conforma com a sua morte e foi deixada sem qualquer rendimento, tendo de pedir dinheiro emprestado para a satisfação das suas necessidades mais básicas;

E. Na sequência da colisão, o ciclomotor de F... ficou completamente inutilizado;

            3.3. Motivação da decisão em matéria de facto

            3.3.1. Estriba a decisão do Tribunal quanto aos Factos Provados, acima enunciada, a articulação de todos os meios de prova apresentados em Audiência de Discussão e Julgamento de que resultou valor probatório, devidamente articulados com as regras de experiência comum e que permitiram, no seu conjunto, ao Tribunal alcançar as conclusões que infra melhor se fundamentam (arts. 125.º, 127.º e 355.º, a contrario, do CPP).

            Quanto aos Factos Não-Provados, a decisão assenta na circunstância de nenhuma prova com valor persuasivo ter sido produzida que admitisse haver-se os mesmos por objectivamente adquiridos no processo.

            3.3.2. A prova produzida em julgamento foi genericamente convergente sobre a matéria factual tida por provada, mas será de fazer notar que boa parte dos testemunhos surgiram afectados pela relação de amizade que possuíam com F... e que mantêm ainda com a família sobreviva, sendo muito evidente, a espaços, não propriamente um intuito vindicativo sobre o arguido, mas uma preocupação em afastar campos de censura da vítima da colisão, que nos pareceram francamente insinceros.

            Começando desde já por H... (testemunha arrolada pela demandante cível), o seu depoimento surgiu forçado, construído, repleto de inconsistências e de descrições vagas e pouco congruentes do episódio, a que se associou um comportamento corporal de grande desconforto, durante as instâncias.

Se, de facto, H... estava presente na altura do embate onde afirmou (o que se nos afigura muito duvidoso), certo é que não possui dele uma memória minimamente nítida que permitisse atribuir-lhe um juízo de crédito positivo e, perante este espectro de dúvida e vacuidade, não lhe ficou atribuído qualquer valor como meio de prova.

            O arguido prestou declarações, reconhecendo, em parte, a matéria factual imputada e apresentou uma razoável descrição do evento. Em sentido oposto, momentos houve, porém, em que a sua excessiva defensividade e alguma dificuldade em recordar o que terá sido, certamente, uma memória violenta e traumática, prejudicaram a credibilidade de que poderia ser depositário e, consequentemente, nesses segmentos ficou arredado da decisão.

            Por sua vez, G... (colega de trabalho de F... , que o substituiu no posto de abastecimento e se achava presente no local na altura dos factos), pese embora algo afectado pelo relacionamento pessoal com o sinistrado e família, possuiu alguma utilidade probatória, com excepção dos momentos em que incorreu em raciocínios especulativos, a que se não atendeu.

            Relativamente aos agentes policiais ouvidos, O... (militar GNR que acorreu ao local) e P... (militar GNR que conduziu os exames a fls. 82-114), pouco mais apresentaram que não a corroboração oral dos documentos por si elaborados e que já instruíam os autos, se bem que acrescentando em audiência alguns detalhes de contexto relevantes que possuíram utilidade, em particular o segundo, que recordava o caso de forma mais presente e exibiu boa razão de ciência na análise dos vestígios do acidente ( Q... , militar GNR que realizou a perícia a fls. 153-163 e 215-227, foi ouvido nessa qualidade, razão por que não cabe efectuar uma apreciação do valor como testemunha, já que não adquiriu essa posição de interveniência nos autos – cfr. arts. 152.º, 153.º e 157.º/1 do CPP).

            Já quanto às testemunhas indicadas para a matéria civil pela demandante, C... (a demandante cível, em pessoa), I... (empregado de balcão do café vizinho ao posto de combustível e amigo da vítima) e J... (amigo da família da vítima, que acompanhava o seu quotidiano), se não se pode dizer terem sido desprovidos de utilidade para a decisão, a espaços denotaram a referida tendência para a espectacularização dos factos, pelo que os seus testemunhos foram merecedores de algumas reservas, se bem que hajam concorrido também para a decisão, por em importantes segmentos se terem revelado persuasivos.

As testemunhas arroladas pelo arguido, L... , M... e N... (todos, seus amigos de longa data, com conhecimento das vertentes pessoal e profissional da sua vida), ouvidos sobre a personalidade e condições de entrosamento do arguido, revelaram-se suficientemente credíveis, tendo motivado, em articulação com o constante do documento a fls. 447 (certidão emitida pelo IMT, certificativa do facto que corporiza, ex vi art. 169.º do CPP), o constante de Factos Provados 19.) e os detalhes referentes à sua carreira profissional de motorista, que se patenteiam em Item 18.) da decisão de facto.

            3.3.3. No que tange a circunstanciação geral do local onde ocorreu o incidente, Factos Provados 1.) a 4.), 6.) e 7.), decorrem das declarações do arguido e das testemunhas G... , I... , O... e P... , sendo que os dois primeiros foram de grande valor por trabalharem no local, tendo nessa matéria possuído grande importância o auto a fls. 5-10 e o exame ao local a fls. 82-103, que, constituindo o registo de percepções de autoridade pública em exercício de funções (policiais) adquirem o especial valor probatório que dimana do art. 169.º do CPP.

            No que respeita à TAS que o sinistrado F... possuía à altura em que iniciou a condução (sendo que segundos depois ocorreu o embate, já o veremos) (Factos Provados 8.)), louvamo-nos nos resultados do exame toxicológico a fls. 42, que o atesta com o especial valor de prova que dimana do art. 163.º/1 do CPP e de que se não diverge por não se divisar fundamento.

            Relativamente à existência de capacete pelo motorista sinistrado, nenhuma testemunha pôde afirmar, com certeza, ter visto F... a colocar o capacete em segurança na cabeça, apertando-o e amarrando-o, assegurando os procedimentos mínimos de segurança, mas todos eles explicaram que, genericamente, se tratava de um hábito comum, a que associam a condução do ciclomotor pelo sinistrado.

            Com maior pormenor e revelando mais robusta razão de ciência, I... afirmou que, em percursos pequenos (como seria o caso), era comum o arguido colocar o capacete mas não o apertar, deixando a fivela solta para maior comodidade e, em sentido convergente, também o referiu G... , enunciando uma memória vaporosa, que no dia do acidente, deu conta disso mesmo.

            Ora, o relatório de medicina legal a fls. 28-41 identifica a cabeça de F... como um local de abundantes lesões, escoriações e traumas, o que se afigura dificilmente compatível com a existência de um dispositivo de protecção em fibra e materiais resistentes, como aquela que um capacete configura.

            A Sra. Perita que subscreve o relatório de autópsia, ouvida em juízo, Dra. R... , foi clara em afirmar que, atendendo à extensão, natureza e número de lesões no crânio do sinistrado, a utilização de capacete em condições de segurança achava-se desmentida: na sua verbalização, o dispositivo, no caso que observou e atendendo às lesões na área que deveria estar protegida e acobertada pelo casco, ou não existia ou era «muito fraquinho».

            Façamos notar que a colisão sinalizada nos autos, pese embora o efeito dramático sobre F... , não foi particularmente espectacular ou violenta (no contexto de sinistralidade rodoviária): a vítima não foi projectada por dezenas de metros, não existe uma danificação dos materiais dos veículos a um nível especialmente destrutivo (cfr. fls. 94-103), pelo que não é possível entender que as lesões em causa fossem fruto de uma actuação de forças particularmente violentas sobre a cabeça da vítima, que pudessem, antes, ter inutilizado o capacete de protecção.

            Neste contexto, o que se extrai da articulação deste conjunto de elementos, é mesmo que as condições de utilização do dispositivo de segurança não foram respeitadas e que o mesmo não protegia o crânio de F... na altura em que este se projectou sobre o pára-brisas do automóvel.

            Assim, se se pôde concluir dos testemunhos que a colocação de capacete constituía um hábito automatizado de F... , que se presume ter sido empreendido por este na data em causa, já que não existe motivo para pensar que alguma particularidade tivesse ocorrido que o conduzisse a adoptar um procedimento pouco habitual, temos por certo que o mesmo não se achava colocado em condições de segurança, o que se espelha na decisão de facto (cfr. Item 5.), 1.ª parte, da Matéria Provada).

            3.3.4. Já no que respeita à dinâmica do acidente, Factos Provados 5.) e 9.) a 14.) decorrem da articulação e conjugação das declarações do arguido e do testemunho de G... , os únicos que presenciaram os eventos com valor de prova positivo (já afastamos o valor de prova do testemunho de H... , pelo que nos escusamos a repetir considerações), bem com dos vestígios no local e das marcas físicas que apresenta, reproduzidas nos autos de notícia e de exame, ao local e aos veículos.

            Considerando o ponto de colisão na rodovia, identificado tendo por base a sinalização no asfalto de uma micro-alteração de trajectória nas marcas de travagem (cfr. fls. 90, deixando impresso no alcatrão um registo do choque físico entre objectos, automóvel e ciclomotor, no percurso de travagem), associado aos vestígios físicos na traseira do motociclo, representando o embate (fls. 101-102) e a forma como a vítima F... caiu sobre a viatura, na zona do pára-brisas oposta ao ponto de embate no automóvel (cfr. fls. 95 e 96), percebemos como se efectuou o cruzamento entre ambos os objectos animados de velocidade, desmentindo-se integralmente o libelo acusatório.

            Se tivesse ocorrido o choque entre a frente do veículo do arguido e a traseira do ciclomotor nos termos constantes da acusação, supostamente quando este último tinha já descrito a manobra de acesso à via e percorresse a estrada em linha recta, a projecção de F... não seria efectuada para o lado direito do automóvel, mas directamente sobre a esquerda, no alinhamento do ponto de embate com o pára-choques e óptica, respeitando o sentido de marcha de ambos os veículos – o sinistrado seria, pura e simplesmente, atirado para trás, na direcção do pára-brisas, caindo directamente à frente do condutor, o que não se observa dos registos fotográficos supra aludidos.

            Ao suceder que F... foi projectado para trás e para a direita (caindo sobre o lado do passageiro do automóvel), isso mesmo significa que a inércia foi responsável também por esta segunda direcção do movimento (para a direita), o que permite concluir que o sinistrado dirigia o seu ciclomotor descrevendo uma linha diagonal ao eixo da via (para a frente e para a direita), provindo da estação de serviço.

            Em reforço desta afirmação, para além do que consta das respostas aos esclarecimentos a fls. 436, o Sr. Perito Q... quando ouvido em audiência de discussão e julgamento confirmou que, atentos os vestígios, existiria um desalinhamento dos eixos das viaturas na altura da colisão (o que apelidou de carácter excêntrico), indicando dois sentidos diferentes de marcha de ambas as viaturas: se as marcas de travagem (fls. 94) não deixam dúvidas que o arguido percorria a estrada num traçado rectilíneo, esse desalinhamento dos veículos embatidos só pode ter sido provocado, como dissemos, pelo sentido diagonal ao eixo da via que o sinistrado vinha descrevendo no seu percurso.

            No que tange a velocidade de que viria a viatura animada, os 84 kms/h constantes da acusação não encontraram, também, nenhum conforto em prova suficientemente persuasiva.

            O relatório a fls. 153-163 e 215-227, efectivamente, aponta para uma velocidade nessa grandeza, mas dos esclarecimentos prestados pelo Perito subscritor e mesmo do que da sua análise resulta, com muita facilidade se compreende que o mesmo não se pode entender possuir um conteúdo pericial compatível com o disposto no art. 163.º/1 do CPP, já que as suas conclusões não assentam numa análise das circunstâncias associadas ao incidente por simples mediação de Leis da Física ou fenómenos naturais verificados (art. 151.º do CPP).

            Na realidade, o relatório faz apelo a valores médios para a definição de constantes determinantes do resultado final, que arbitrariamente vão sendo elegidos na análise do caso, para assim realizar nada mais que uma abordagem de aproximação, de índole especulativa, ao que poderá ter sido o conjunto de fenómenos que precederam a colisão e lhe deram causa, mas sem o assegurar verdadeiramente num prisma de ciência.

            Assim, se a imobilização de uma viatura em travagem necessariamente ocorre quando a força de atrito ultrapassa a força de inércia (a resistência natural dos corpos à alteração do movimento ou do seu estado de repouso), o coeficiente de atrito atribuído ao asfalto pelos Srs. Peritos varia, em função de estudos efectuados por entidades Estadunidenses, entre 0,55 e 0,70 (cfr. fls. 220).

            A tabela em causa (fls. 220) apenas divide o coeficiente de atrito atribuível ao asfalto entre “novo”, “usado” e “polido do trânsito”, o que se nos afigura francamente desajustado: as condições de utilização do asfalto, possuindo dramática ingerência no sucesso de travagem, são demasiado diversificadas para serem classificadas desta forma simplista e redutora e o que constitui o principal factor de operatividade na acção de travagem, a quantidade de betuminoso, é pura e simplesmente ignorado na atribuição de coeficiente e nas suas variações.

            Se verificarmos as fotografias a fls. 87-96, atendendo à coloração do alcatrão (muito claro), facilmente concluímos que a quantidade de betuminoso aplicada na construção do troço em que ocorreu a colisão é reduzida, tornando a estrada menos eficiente na realização de manobras de travagem (por oposição, por exemplo, a uma auto-estrada, que adquire a sua cor azul-escura, quase arroxeada, devido às grandes quantidades de betuminoso aplicadas, tendo em vista imprimir segurança a travagens a altas velocidades).

            A convocação de dados médios que não atendem às técnicas de construção implementadas na instalação da rodovia, no troço em causa, afigura-se a erosão a um limiar irrazoável do juízo pericial, desprovendo-o de valor científico e, por necessária deriva, dificilmente pode ser entendido o relatório como possuindo essa natureza e associada valia de prova (seria necessário proceder a extracções de amostragem e testagens do alcatrão no troço em que ocorreu o incidente, para obter e aplicar um coeficiente de atrito de forma cientificamente rigorosa, o que não foi efectuado, nem existem meios para que pudesse ser).

            A acrescer, se nos cálculos a fls. 215-227, os cálculos referentes à extensão de travagem necessária à imobilização do veículo quando circule à velocidade regulamentar (50 kms/h) são efectuados considerando os índices de tabela máximos e mínimos do coeficiente de atrito proporcionado por alcatrão usado (0,55 e 0,7 – reiteramos que se nos afigura insuficiente esta valorimetria), não foi sequer essa a metodologia utilizada pelo Sr. Perito quando emulou a velocidade a que a viatura se deslocava, a fls. 153-163, em que apenas utilizou o coeficiente máximo de eficiência do piso, de 0,7, maximizando a performance do piso em travagem.

            Mais se diga, se o Sr. Perito identifica um tempo médio de resposta do condutor automobilista entre 0,4’’ e 2’’ (o que significa que o automobilista que tome 2’’ a responder ao estímulo de perigo se acha ainda nesse patamar médio), fixa o tempo de resposta do acusado em 0,75’’, de forma arbitrária, sem nenhum fundamento particular que se divise.

            Por outro lado, o tempo mecânico de resposta do dispositivo de travagem considerado, de 0,25’’, baseado em estudos de entidades comerciais do sector automóvel (MERCEDES e BMW) que não são representativas do operador de construção e comercialização da viatura média (tanto menos a dos autos, com notória vetustez – cfr. fls. 95-99 e fls. 104-108), parece tratar da mesma forma todos os mecanismos de travagem, quando a tecnologia conhece francas assimetrias nos dias modernos.

            Mesmo o peso da viatura e a tipologia de pneu (o seu concreto estado de conservação e eficiência) com dramático impacto, o primeiro, na força da inércia exercida e, o segundo, na força de travagem do veículo e na sua aptidão para combater a inércia, são variáveis que se não sopesam nos cálculos definidos, o que se nos afigura cientificamente incorrecto.

            Ilustrando isso mesmo, se a fls. 215-227 se conclui por uma distância mínima de travagem de 31,73 metros para imobilizar a viatura quando a mesma circule a 50 kms/h (com um coeficiente de atrito mínimo de tabela, cifrado em 0,55), basta-nos alterar ligeiramente o coeficiente de atrito do piso em face da fraca quantidade de betuminoso, evidente da simples visualização a olho nu (para 0,5) e o tempo de reacção (para o máximo dito normal, de 2 segundos), para obtermos uma distância mínima de travagem, a 50 kms/h, de 49,08 metros, bem superior à que necessitou o arguido para imobilizar o automóvel, in casu, atendendo à extensão das marcas de travagem certificadas nos autos (e de notar que existe uma discrepância entre o exame conduzido a fls. 85, que indica marcas de travagem de 35,18 ms e o auto de notícia elaborado pela GNR, a fls. 8, que indica 32,40 ms, adensando a confusão quanto a estes dados).

            Da mesma forma, alterando as constantes de fls. 157-163, designadamente quanto a coeficiente de atrito (aí usado o mais eficiente, de 0,7, claramente desajustado e atribuindo-lhe 0,5), o tempo de resposta (aí usado 0,75 e fixando em 2’’, o tempo máximo normal de reacção, segundo o relatório) e mesmo que se aceite o tempo mecânico de reacção da viatura (ao accionamento do dispositivo de travagem), em 0,25, obtemos uma velocidade no ponto de conflito de 13,79ms/s, uma velocidade no início da travagem de 23,29ms/s e uma velocidade aquando da reacção ao perigo de 9,07 ms/s.

Apurados estes dados, em função destas alterações das constantes e chamando à colação a mesma fórmula de cálculo exibida pelo Sr. Perito, concluiríamos que o veículo timonado pelo arguido circulava a não menos de 49,10 kms/h, o que seria quanto bastasse para o termos a velocidade regulamentar, ou, pelo menos, para não o termos como comprovadamente em excesso de velocidade.

Se esta forma de proceder, a que nos dedicámos agora na análise do relatório pericial e na reformulação dos seus cálculos, é, também ela, especulativa (já que não é certo que o tempo de resposta do arguido seja o médio de 2 segundos, ou que o coeficiente de atrito do alcatrão, in casu, seja de 0,5 – em ambos os casos, os valores podem estar inflacionados ou deflacionados) tanto permite-nos desde logo convergir com a conclusão final a que se conduziu o Sr. Perito em audiência de discussão e julgamento, quando apresentou os seus esclarecimentos a este problema: o relatório pericial apresentado não pretende constituir uma reprodução científica da colisão, uma enunciação histórica de eventos que nos vestígios e nas Leis da Física achasse uma sustentação do estado da arte.

Trata-se, noutro sentido, de uma abordagem por aproximação, feita com base em dados insuficientes e estimativas, uma extrapolação especulativa que não pode, por si só, sustentar conclusões.

Convocando outros meios de prova com incidência neste ponto específico, o arguido declarou que conduzia, apenas e tão-somente (se bem que em seu prejuízo), a 60 kms/h no momento em que F... lhe cortou caminho provindo da estação de serviço, o que oscila adequadamente pelas grandezas apuradas com base em dados médios, se compatibiliza com o dimensionamento das marcas de travagem e nada nos autos autoriza se conclua que circulava a velocidade superior.

Neste, como noutros segmentos importantes, o arguido afigurou-se perfeitamente persuasivo e não se vê qualquer outro elemento probatório ou indiciação que derrubasse a sua aptidão para ser considerado como meio de prova de valor positivo.

De facto, não se tem por adquirido com base em nenhuma máxima de experiência que fosse necessário que o arguido se deslocasse a velocidade superior para que se produzissem as lesões que F... exibia, tanto menos quando se mantenha a sua idade (54 anos) de onde se extrai que, não se tratando de um idoso, naturalmente se instalaria já alguma perda de consistência óssea, de tonificação muscular, bem como as demais debilidades causadoras de diminuição da resistência do corpo humano a situações de grande stress e esforço.

Para mais, as lesões produtoras da morte acham-se na cabeça, órgão particularmente vulnerável quando submetido a golpes contundentes e tanto mais quando consideramos que não existia protecção que fosse proporcionada por capacete ou materiais de resistência: o arguido não foi lançado para longe do local da colisão, não sofreu amputação ou decepação de membros e nada nos factos apurados permite concluir por um embate particularmente violento, já o dissemos e aqui relembramos.

As lesões descritas no relatório e os danos no ciclomotor retratados a fls. 100-103 são absolutamente compatíveis com uma colisão com uma estrutura em aço e fibra de vidro (o automóvel) que se desloca a 60 kms/h, não existindo nenhum corpo humano e nenhum ciclomotor que não se ressinta de um embate nestas condições nos termos caracterizados nos elementos de prova (cfr., também, fls. 95-99).

Foi consequentemente, tido por provado o constante do item 9.) e por não provado o item B.), a este respeito.

3.3.5. Conjugando todo este leque de meios de prova, repescando aqui também os relatos das testemunhas G... e I... , bem como as declarações do arguido, o tribunal ficou convencido que F... se internou na estrada precipitadamente, sem ceder passagem, única forma de se cruzar com o arguido, sem se certificar que a via se encontrava desimpedida, atendendo à ampla visibilidade de que gozava (cfr. Factos Provados 7.)) e, atalhando caminho, descreveu uma linha diagonal, abeirando-se da faixa direita.

A... , avistando o arguido enquanto efectuava a manobra e sendo por ela surpreendido, de imediato accionou o sistema de travagem, sulcando o alcatrão mas, porque o sinistrado não susteve a manobra de aproximação à via e porque nenhum de ambos efectuou outra manobra de recurso, o atrito gerado pela fusão dos pneus na rodovia foi insuficiente para evitar o embate, colidindo a parte frontal/esquerda do automóvel com a traseira/lateral direita do motociclo, colocado por essa altura na diagonal relativamente ao primeiro, atento o seu sentido de marcha oblíquo.

Efectuado o contacto entre os dois corpos, o pára-lamas do ciclomotor cedeu e torceu para a esquerda (fls. 101) e F... viu-se projectado para trás e para a direita colidindo com o pára-brisas (fls. 95), momento em que a sua cabeça, já desprovida por esta altura de capacete de protecção, embateu no vidro com violência, gerando as lesões que viriam a determinar a sua morte.

E se pode parecer excêntrico que F... se dispusesse a realizar a manobra desta forma precipitada, atento o carácter imprudente de tal comportamento, o estado de alcoolemia em que se encontrava (cfr. Factos Provados 8.)) oferece uma explicação sólida para o sucedido: em estado de intoxicação, a desinibição e dificuldade em raciocinar com base em premissas lógicas permitiu ao arguido empreender uma ousada travessia onde viria a encontrar a sua morte. Em face do exposto, ficou por provado o constante dos itens 9.) a 14.), que oferecem o devido reflexo factual à descrita análise probatória e, por anverso, se tiveram por incomprovados os itens A.) a C.) da decisão, sendo ainda de deixar patente que o Item D.) foi tido por indemonstrado por não ter ficado claro que o ciclomotor e o corpo de F... não tivessem sido movidos após a colisão, pela intervenção de forças de segurança e agentes médicos, que empreenderam a reanimação e evacuação para estabelecimento hospitalar do sinistrado.

3.3.6. Factos Provados 15.) funda-se no relatório de autópsia a fls. 38-43, gozando do especial valor probatório vertido no art. 163.º/1 do CPP, por não se vislumbrar fundamento técnico-científico para dele dissidir.

Factos Provados 16.) teve-se por comprovado com base nas declarações do arguido e, ainda, em máxima de experiência comum (art. 351.º do CC), conquanto constitui uma proposição de inegável mérito que um motorista profissional (em situação de reforma), conhecedor do local e das circunstâncias de circulação (como o próprio afirmou), não ignora, antes conhece, que a circulação a velocidade superior à permitida representa um risco acrescido para todos os utentes da via e, ainda, que tal conduta é sancionada por Lei porque universalmente reprovada a título de direito de ordenação.

Factos Provados 17.) tem por estribo as declarações do arguido e das testemunhas por si arroladas a que acima fizemos referência, que nesta parte se nos afiguraram cabalmente convincentes e Factos Provados 18.) resulta do CRC junto aos autos, que plenamente o atesta (cfr. art. 169.º do CPP).

3.3.8. Factos Provados 20.) decorre dos documentos a fls. 372-377 e fls. 479-480, Factos Provados 21.) do documento a fls. 394 junto pela sociedade de seguros demandada que o subscreve e que confirma a circunstância, ao passo que Factos 22.) a 27.) apoiam-se nas testemunhas ouvidas à matéria do pedido de indemnização civil, os já citados H... (nesta parte merecedora de juízo valorativo positivo), I... e J... , bem como pela demandante, convincentes na medida da comprovação e corroborados (e complementados) pelos documentos a fls. 328-331.

Se é certo que todos eles possuíam laços familiares para com o sinistrado e para com os demandantes, não é menos certo que permitiram, de forma credível e objectiva, sustentar da existência de reais laços de amor e carinho entre o de cuius e os seus familiares mais próximos, do choque emocional experienciado com a aquisição da sua morte, enunciando ainda genericamente o quadro de quotidiano e aptidão para auferição de rendimentos de F... , vertido na decisão.

Já não decorreu da prova, porém, que haja existido um verdadeiro colapso emocional da demandante, como se pretendeu na petição: se não existiu dúvida nenhuma tratar-se de um episódio intensamente doloroso, o que se tem por co-natural à morte do pai/marido em circunstâncias violentas como as alcançadas no caso concreto, não decorreu da prova que a demandante tenha ingressado num estado de falência de personalidade como o descrito no articulado, que houvesse ficado privada de todo e qualquer rendimento (pensões de sobrevivência foram-lhe pagas e mantém assistência dos dois filhos) e, por consequência, foi tido por incomprovado o constante do item D.) da decisão.

Das fotografias e auto a fls. 100-103 e fls. 110-114 (auto de exame), claro fica que o ciclomotor não ficou inutilizado pela colisão, antes se afigura que os prejuízos na sua estrutura se cingem ao pára-lamas traseiro, parecendo mesmo em razoáveis condições no que ao demais concerne, o que justifica a decisão quanto a Factos Não-Provados E.) e, por simetria, Factos Provados 28.).

Por fim, o pagamento de pensão de sobrevivência à viúva de F... , respectivo quantitativo e periodicidade, encontram-se sustentados por documento autêntico lavrado pela Instituição pública pagadora, o ISS, IP a fls. 258, razão por que se decidiu nos termos espelhados em Factos Provados 29.).

4. Enquadramento Jurídico-Penal

4.1. Tendo por estribo a Matéria factual tida por provada e a vinculação temática definida pela acusação, será de equacionar a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio negligente, p. p. pelo art. 137.º/1 do CP.

4.2. Procedendo a uma caracterização sumária do crime de homicídio negligente timbrado no art. 137.º do CP, tem este por bem jurídico tutelado a vida humana, o estado de animação da pessoa física, decorrente do seu nascimento e iniciado com o primeiro acto de expulsão da progenitora durante o parto (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Direcção de J. FIGUEIREDO DIAS, 1999, Coimbra Editora, pp. 4-5 e 106). O tipo objectivo do ilícito, não ingressando em problemáticas que não interessam a esta decisão, agrega duas proposições essenciais na delimitação da conduta típica: a (i) produção da morte (“matar”, entendido como a destruição da vida, fazendo cessar a actividade cerebral do corpo humano) em (ii) outra pessoa (o portador da vida destruída terá que ser outro indivíduo, nunca o próprio agente) (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, op. loc. cit., pp. 5-16 e 106).

Já relativamente à imputação objectiva do ilícito, a estatuição punitiva fica despoletada pela geração, pelo agente, de um foco de perigo típico para a vida de outra pessoa que exceda as fronteiras do risco permitido (comportado por um padrão ético-axiológico) e de onde haja decorrido, por aptidão própria desse especial perigo, a morte instalada na vítima.

Na concretização do que constituirá o parâmetro de aferição deste centro de perigo proibido, a doutrina identifica o que decorra de violação de normas impositivas de deveres de zelo ou de cuidado (1), de omissão de informação ou esclarecimento previamente à assunção da conduta geradora do perigo (quando essa informação ou esclarecimento permitisse eliminar ou erodir o foco de perigo) (2), ou de displicência ou imponderação na assunção de uma tarefa para a qual o agente sabia não estar preparado (3) (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, op. loc. cit., pp. 107-110).

Na análise dos critérios de aferição da criação do sobredito centro de perigo anti-jurídico para efeitos do art. 137.º do CP, encontramos o princípio da confiança, postulativo que não possuirá nexo de imputação com o resultado-morte o foco de perigo, ainda que ilícito, que seja produto causal de uma actuação anti-jurídica de terceiro apta a materializar o resultado previsto no tipo (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, op. loc. cit., pp. 107-110).

Como adiante veremos, este critério não deixa de possuir relevância nas conclusões a atingir no caso sub iudicio.

4.3. No caso dos autos, temos por adquirido que o arguido conduzia a velocidade infraccional (cfr. Factos Provados 3.) e arts. 24.º/1 e 28.º/1, al. b) do Código da Estrada [CE]), uma vez que se alcança da decisão que excedia os 50 kms/h estabelecidos na sinalização vertical (60 kms/h).

O facto de o arguido conduzir excedendo a velocidade máxima permitida e num troço em que a existência do posto de abastecimento torna previsíveis e frequentes atravessamentos de outras viaturas (cfr. Factos Provados 16.)), é quanto baste para que se entenda que não era lícito ao acusado presumir que circulava em segurança e em compaginação com o patenteado no art. 24.º/1 do CE (condução em velocidade de segurança), mas antes representando e gerando um perímetro de risco ilícito para os seus utentes, incluindo ele mesmo.

No entanto, extrai-se da decisão que F... internou-se na via de trânsito sem respeitar sinal de cedência de passagem obrigatória à viatura de A... (i) (cfr. Factos Provados 10.), 1.ª parte), que efectuou a manobra na diagonal, sem descrever uma linha perpendicular ao eixo da via (ii) (cfr. Factos Provados 10.), 2.ª parte), sem se ter provido devidamente de dispositivo de segurança protector (capacete) (iii) (cfr. Factos Provados 5.)) e possuindo uma TAS de 1,16 g/l, perturbadora da sua idoneidade para conduzir o veículo (cfr. Factos Provados 8.)) (iv).

A conduta do vitimado mostra-se, pois, por francamente ilícita, em colisão com largo conjunto de normas sobre circulação no regime jurídico do direito estradal (cfr. arts. 29.º/1, 44.º/1, 81.º/1 e 2 e 82.º/3 do CE) e, por apelo ao sobredito princípio da confiança, daqui resulta a inexistência do nexo de imputação que viemos de dizer por necessário para que se esteja presente a incriminação por homicídio negligente: ainda que se verificando, in casu, a geração pelo arguido de um circuito de perigo ilícito, este poderia confiar que, naquele momento, o trânsito provindo do posto de abastecimento lhe cederia passagem e que um putativo ciclomotor estaria a ser dirigido por pessoa munida de capacete de protecção e em condições de sobriedade que lhe permitissem perceber da impossibilidade de efectuar uma manobra de internamento na estrada em segurança.

É que, verificado o resultado-morte por causas concorrentes, a imputação objectiva do facto (geração de perímetro de perigo, por circulação a velocidade infraccional) ao ilícito (o próprio resultado-morte) depende se ache naquele facto a causa qualificada de produção do evento, ou, dito de outra forma, a conduta do agente como circunstância geradora de um perigo anti-jurídico terá que se concluir ter constituído a fonte causal exclusiva ou preponderante da verificação do resultado proibido por Lei, aqui radicando o nexo de imputação para efeitos jurídico-penais, o que não é, francamente, o caso sobre que nos debruçamos.

Assim, a censurabilidade e anti-juridicidade da conduta imputada a A... não é bastante para lhe atribuir uma forma de responsabilidade criminal, de censura penal, ética e juridicamente valorada, o que não permite sustentar a sua condenação.

Enfim, o arguido não conduzia o seu veículo de acordo com os parâmetros impostos pelas normas de circulação, mas fê-lo no interior de um contexto factício que desprovê essa conduta (proibida) de um nexo de imputação relevante para com o resultado criminal verificado e, por isso mesmo, será ABSOLVIDO da prática criminal que lhe foi imputada.

5. Dos Pedidos de Indemnização Civil

5.1. A responsabilidade civil por prática criminal fica, de prima facie, ancorada na responsabilidade civil aquiliana, sendo necessário proceder à demonstração que, na execução dos factos revestidos de relevância penal, ficou lesado um direito absoluto ou um interesse protegido por norma de tutela de que adequadamente resultou dano, na sua vertente patrimonial (decrescimentos de cariz valutário) ou não patrimonial (estados de constrangimento compensáveis por valores pecuniários) – cfr. arts. 483.º/1 e 562.º-567.º do CC.

In casu, sustentam os demandantes herdeiros de F... , mulher e filhos, que o arguido lesou a respectiva integridade pessoal na vertente moral pela produção de morte sobre seu pai, pedindo ressarcimento a esse título em valores que quantificam e apelando, implicitamente, ao disposto no art. 70.º/1 do CC, no plano da tutela geral da personalidade consagrada neste articulado legal, ainda por mediação do dispositivo do art. 495.º/3 do CC, que lho consente, pese embora o carácter indirecto da lesão (o bem jurídico lesado acha-se localizado na esfera de terceiro).

A acrescer, peticionam ainda por ressarcimento pela produção de dano morte sobre seu pai e, ainda, por perda de rendimentos que seriam auferidos pelo de cuius não fosse o corte abrupto da sua existência por acto do arguido (que entendem ilícito e culposo), disponibilidades que se integrariam no acervo hereditário e que viriam a ser transmitidas aos sucessores, pois, mortis causa, aqui existindo um dano patrimonial, por cujo ressarcimento também peticionam, bem como por compensação pela perda total da viatura. Todas estas questões nos ocuparão seguidamente.

O demandante INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, IP, por seu turno, com fundamento, também, na responsabilidade civil do arguido pela morte de F... , reclama pelo reembolso das pensões de sobrevivência pagas a sua mulher, C... , fazendo apelo ao quadro legal dos arts. 70.º da Lei n.º 4/2007 de 16.01 e ao regime que verte do Decreto-Lei n.º 69/89 de 22.02 e à faculdade sub-rogatória que por essa via normativa lhe é concedida.

5.2. A tanto acresce que a demanda responde, em princípio, pelos danos arguidos pelos demandantes por virtude de transferência de responsabilidade operada pelo contrato de seguro, no respectivo âmbito de cobertura legal (cfr. art. 11.º, al. a) do decreto-lei n.º 291/2007 de 21.08 e arts. 562.º-567.º do CC e Factos Provados 21.)), o que depende, porém, da verificação dos sobreditos pressupostos de responsabilidade civil sobre o tomador/lesante, A... , ex vi art. 483.º do CC.

Na quantificação da obrigação de indemnizar adquire grande preponderância, também no caso dos autos e porém, a culpa do lesado na produção dos danos (art. 570.º do CC), preclusiva da ressarcibilidade quando se conclua ser-lhe imputável a si a produção da situação de prejuízo moral ou perda patrimonial verificadas.

Deixemos impresso que, aqui, quando abordamos os requisitos de culpa no plano da responsabilidade aquiliana, abandonámos aquele campo da censurabilidade do comportamento criminal enformado por um paradigma ético: trata-se, noutro patamar, de aferir da censura jurídico-civil, necessariamente menos intensa e mais proximamente fundada num arquétipo de reprovação natural que na violação de uma premissa ontológica comunitária de foro axiológico.

Desta forma, comportamentos penalmente irrelevantes (como o é o do caso sub iudicio), não permitem excluir, por si só, a relevância civil do comportamento, que numa menor densidade da violação de premissas de cuidado e zelo continuam a exercer reprovação e a despoletar consequências substantivas.

Sublinhamos ainda que estamos no particular âmbito de danos produzidos por circulação de veículo, razão por que, ainda que se não apure da reunião dos pressupostos legais da responsabilidade por factos ilícitos a que nos temos vindo a referir, sempre assistiria à pretensão dos demandantes o quadro especial de responsabilidade pelo risco que verte do art. 503.º/1 do CC.

Aqui, demonstrando-se da transferência de responsabilidade do titular da direcção efectiva (pessoa que goza a viatura e assume a posição de vantagens que esta sinaliza, cabendo-lhe a respectiva disposição, controlo e manutenção em condições de integridade) que se encontra transferida para a seguradora pelo sobredito título de seguro automóvel (Factos Provados 21.) bastaria encontrar uma conexão entre o risco próprio do veículo (ou seja, o perímetro especial de perigo que sinaliza para a esfera jurídica de terceiros, pela sua existência e circulação) e a lesão produzida para encontrar fundamento de responsabilização da demandada (cfr. art. 504.º/3 do CC), ainda com a introdução da especialidade disposta no art. 506.º do CC, que oferece correspondência a este postulado basilar no campo normativo específico da colisão entre viaturas, como é aqui o caso.

Por fim, ainda no vestíbulo de nos debruçarmos sobre o caso concreto, diremos que, se tradicionalmente ao apuramento de culpa do lesado se associa a preclusão de responsabilidade pelo risco antecipada no art. 503.º do CC, ex vi art. 505.º do mesmo diploma, sublinhamos que aderimos à possibilidade de concurso entre ambas as fórmulas de responsabilidade (neste sentido, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007 no Proc. 07B1710, relatado por SANTOS BERNARDINO e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2009 no Proc. 08A3807, disponível in www.dgsi.pt), entendendo apenas afastada a obrigação de ressarcimento in tottum quando se alcance que a lesão decorreu por culpa única e exclusiva do próprio lesado, ou seja, quando se denote da matéria factícia apurada que a lesão e os danos não decorreram de qualquer forma de risco associada à circulação do veículo, mas, noutro sentido, apenas e tão-somente daquela actuação censurável.

5.3. Ora, da compulsão de Factos 9.) a 14.), concluímos que a actuação de A... é civilmente censurável e enquadra-se num nexo de imputação adequado (abstractamente idóneo – art. 563.º do CC) à produção da lesão na vida de F... : ao circular acima da velocidade regulamentar e numa zona de cruzamento de viaturas, o acusado gerou condições adequadas à verificação da lesão na integridade individual e no património do sinistrado e acrescentamos ainda que, ao omitir outra manobra de recurso para evitar a colisão, bastando-se com o accionamento do sistema de travagens, num cenário em que tinha bermas disponíveis que permitiriam manobras de desvio do eixo da via em segurança (cfr. Factos Provados 2.)), violou o arguido o padrão de diligência médio que lhe era normativamente imposto, concorrendo à produção da lesão num cenário de mera culpa (art. 487.º/2 do CC) que sinaliza o desenho da censurabilidade juscivil, sensivelmente menos exigente em face da culpa jurídico-penal.

Em contraponto, extrai-se da matéria provada, patentemente, uma actuação censurável do próprio F... , que, grosseiramente e de forma bem mais violenta que o acusado, omitiu a conduta apta a prevenir lesões na sua integridade pessoal e inerente produção de danos de acordo com a premissa normativa de prudência e cuidado, comportamento censurável a título de negligência que se insere num nexo de causalidade adequada (por concorrer directamente à verificação da lesão e mostrar aptidão abstracta para atingir o resultado verificado – art. 563.º do CC) com as lesões e danos causados no incidente (cfr. arts. 570.º/1 do CC).

Achando nós causas concorrentes à produção de lesões e danos, no confronto das condutas culposas de arguido e sinistrado será de entender que existe um evidente desnivelamento na participação adequada à causação da colisão em desfavor do próprio lesado e que, numa abordagem adequada (art. 570.º/1 do CC), entendemos excluir a obrigação de indemnizar em 90%.

No entanto, já dissemos que é conjecturável a existência de concurso entre risco e culpa, desde que se detecte uma manifestação do perigo específico gerada pela viatura na produção do sinistro, ou seja, a obrigação de indemnizar por fonte objectiva operada desde que em alguma medida exista um nexo de imputação entre esse circuito de perigo para bens jurídicos de terceiros e a lesão e danos verificados.

Não será difícil concluir, no caso dos autos, que a gravidade das lesões e a extensão dos danos encontra escoramento causal evidente no facto de ter sido uma viatura automóvel a cruzar-se com F... e que, quando se tratasse de um engenho com menor robustez e menor aptidão para lesão (v. g., um outro ciclomotor, ou um motociclo, por hipótese), seriam aqueles necessariamente menos graves, quando não mesmo a colisão pudesse, de todo, ser evitada (a mais ampla manobrabilidade de um motociclo, por exemplo, tornaria o incidente dificilmente verificável).

A gravidade do dano produzido e o carácter mortal das lesões encontram também fonte causal específica na robustez, peso e força motriz do automóvel de A... , bem como na dificuldade necessária da viatura em realizar manobras evasivas mais eficientes.

Dito de outra forma, no risco necessário para terceiros que o automóvel seguro representa sempre que circula radica um referente importante da lesão e dos danos, no caso sub iudicio, atendendo à impossibilidade de resistência à sua representação física quando um corpo humano com ele colide e, reforçando a associação da presença e corporeidade do veículo automóvel às lesões e danos verificados, temos também a dificuldade acrescida de o imobilizar em situações de emergência ou de o manobrar para fora de zonas de conflito, quando se entrecruza com um acto negligente da vítima (ainda que se pudesse contar com um comportamento incensurável do seu condutor).

Assim, quando se associa a produção das lesões e dos danos, também, ao risco específico que o veículo representa, entendemos que a obrigação de indemnizar deve ser ampliada, cifrando-se em 12,5% do dano ressarcível, tudo nos termos conjugados dos arts. 483.º/1, 503.º/1, 563.º, 570.º/1, 505.º/1 e 506.º/1, todos do CC.

5.4. Quantificação da Obrigação de Indemnizar (em abono de C... e filhos)

5.4.1. Iniciando o nosso percurso pelos danos próprios de cariz moral, a morte do pai e marido constitui, evidentemente, um prejuízo de índole moral, um sentimento de constrangimento relevante, para efeitos do disposto no art. 496.º/1 do CC.

O valor reclamado pela demandante/mulher é desigual face aos demandantes/filhos e atendendo a que se trata, no primeiro caso, também do impacto moral provocado pela destruição do projecto de vida comum que ambos desenvolviam, baseado em companheirismo e cumplicidade e que os acompanharia pela sua vida futura, previsivelmente até ao ocaso dos seus dias (cfr. Factos Provados 23.)), que tem por contraponto nos filhos uma maior resignação, perante a previsibilidade natural de um dia se despedirem de ambos os pais e de se verem com o encargo de prosseguirem as suas vidas desprovidos da sua presença.

Acedemos, portanto, a que a compensação voluntária deva ser desigual, por correspondência (cfr., também, Factos Provados 26.)).

Os valores peticionados, de € 40.000,00 quanto a C... e de € 25.000,00 quanto a cada um dos filhos, em face do que vai dito, surgem como adequados e proporcionais ao ressarcimento do dano moral causado, pelo que acolhemos o a esse título indicado pelos demandantes.

5.4.2. A lesão do direito à vida de F... , por sua vez, teve por reflexo a sua morte, existindo aqui um radical de dano não patrimonial que é comoriente com a cessação da sua personalidade jurídica, transmitindo-se, ex vi art. 2024.º do CC, aos seus herdeiros, que o exercem conjuntamente, na qualidade de universais sucessores do sinistrado, o que, quanto a nós, apenas se reforça pelo estabelecido no art. 496.º/1 do CC (vide, neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2003 no Proc. 03B4120, relatado pelo C. Conselheiro SALVADOR DA COSTA, in www.dgsi.pt).

A vida constitui um bem jurídico de primeira água, protegido pela tutela geral da personalidade (art. 70.º do CC) e com agasalho constitucional, de amplo nível de protecção (art. 24.º da Constituição da República).

Na medida em que representa a destruição do ser humano, a morte constitui o mais significativo dano na personalidade da persona iuridica (corporizando a sua eliminação global, definitiva e irreversível), razão por que o equivalente compensatório será, igualmente, maximizado, sendo ainda de anotar que, porque o direito à vida não conhece elasticidade ou desníveis entre indivíduos, é também o valor compensatório desse dano moral absolutamente estático, como corolário imediato da dignidade do ser humano e da sua inextrincável liberdade para existir, independentemente de idade, sexo, ou quaisquer outros atributos ou características humanas próprios.

Os demandantes peticionam, a esse título, pelo valor de € 60.000,00 que, igualmente, nos surge como um referente monetário adequado e proporcional ao ressarcimento do dano-morte verificado, pelo que assim se considerará (vide, neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.02.2012 no Proc. 1082/01-E1.S1 e de 12.09.2013 no Proc. 1/12-6TBTMR.C1.S1 e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.12.2010 no Proc. 181/08.5TBRG.G1, todos in www.dgsi.pt).

5.4.3. Os demandantes pedem ainda ressarcimento pela perda de rendimentos originada pela antecipada morte de F... .

Se a Lei não refere expressamente da possibilidade de sucessores reclamarem ressarcibilidade por danos patrimoniais do de cuius que advieram da sua morte (como o faz quanto aos não patrimoniais, no citado art. 496.º/3 do CC), certo é que não a veda: a disposição legal do art. 496.º/3 do CC pretende ampliar a possibilidade de pedidos indemnizatórios por danos de terceiro a pessoas que, em princípio, estariam processual e substantivamente destituídas dessa possibilidade, como é o caso de unidos de facto, que não estão contemplados na lista de sucessíveis e que, como tal, apenas por via do disposto no art. 496.º/3 do CC se acham capacitados para o efeito.

Esta norma, por seu turno, subtrai ainda do acervo hereditário o direito a essa compensação quando exista união de facto do de cuius (cfr. art. 496.º/4 do CC), existindo aqui, igualmente, relevância jurídica substantiva da solução legal positivada.

Para o que não se divisaria fundamento seria para, concluindo o tribunal, cabalmente, que ficou perdido um período de vida activa que geraria rendimentos e que enriqueceria o acervo hereditário do de cuius (dano patrimonial – cfr. art. 566.º/2 do CC) que encontra fonte causal num facto gerador da obrigação de indemnizar (por facto ilícito, pelo risco, ou por concurso de ambos), se veja o lesante abonado com a irressarcibilidade desse prejuízo por ter sido ele próprio o causador da morte do titular dessa fonte de riqueza, em claro prejuízo do princípio da reparação in integrum, de restituição plena, do lesado, ao status quo ante, ou dos seus sucessores.

Tal como dissemos quanto ao dano-morte, o dano patrimonial por privação de rendimentos é comoriente com a perda de personalidade jurídica do lesado (com a sua morte), momento em que a destruição da sua representação física corporiza a anulação da sua força de trabalho observada como referente económico de ganho e, por necessária deriva, traduz um dano patrimonial nas vestes de lucro cessante que adquire foros de ressarcibilidade (arts. 564.º/1 e 566.º/2, ambos do CC.

Integrada a esfera patrimonial do lesado com um direito indemnizatório com estes caracteres, a sua morte implica, eo ipso, a sucessão nesse direito pelos seus herdeiros, ex vi art. 2024.º do CC, que assim se vêem capacitados para reclamá-lo do lesante (ou de entidade responsável, por efeito de contrato de seguro, v. g.), não se divisando, do direito positivado, nenhum espaço de alteração normativa que afecte ou prejudique este agrupado de efeitos de direito substantivo.

Assim, na aferição do dano sofrido e indemnizável, será de computar o prejuízo que advém da impossibilidade de aplicação da força de trabalho do sinistrado, porque falecido, que importaria a auferição de incrementos patrimoniais previsíveis e determináveis (vide, neste sentido acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.1998, de 31.01.2002 e de 02.03.2004, todos in www.dgsi.pt).

Ora, considerando que F... auferia a título de rendimentos laborais o valor anual de € 6.846,00, considerando catorze meses de retribuição mensal (cfr. Factos Provados 22.)) temos aqui uma grandeza patrimonial expressa num valor de capital a que cumprirá aplicar uma taxa financeira, que exprima a respectiva capitalização.

Aqui, será de considerar uma referência que permita perceber qual a oscilação do valor da moeda no futuro, ou seja, qual a representatividade patrimonial que o dinheiro terá, para assim obter um equivalente efectivo com o activo fixo (o terreno) de que os expropriados se viram desapossados.

A consideração pelo preço por que o dinheiro é comercializado nos mercados centrais permite uma aproximação ao custo em que incorre qualquer operador que pretenda financiar-se mediante a especulação sobre um spread sobre essa cifra de encargo financeiro de referência, já que esta constitui o paradigma central dos nossos mercados de capitais.

De facto, tendencialmente, as cláusulas de remuneração bancária atendem a esta indexação, pois que representa o seu próprio custo de re-financiamento pelo valor do capital por que financiam terceiro no mercado centralizado a que a instituição de crédito tem acesso.

Reflexamente, mais se diga, a EURIBOR exprime também a medida de valorização dos depósitos de capitais e, em geral, de rendibilidade de quaisquer produtos financeiros, uma vez que as instituições de crédito, numa lógica de geração de lucro, oferecerão aos depositantes e subscritores dos seus produtos preços remuneratórios que se compaginem com aquele leque de encargos a que terão que atender, na sua lógica de negócio (v.g., se o seu custo de financiamento nos mercados centrais estiver a “1”, o Banco tenderá a remunerar a “1-x” os depositantes e subscritores de produtos financeiros que emita, procurando equilibrar este delta “x” com o spread que pratica com os seus mutuários, no seu mercado interno).

Assim, o valor do prédio, como realidade económica, será expresso em moeda pela medida por que a taxa central apresentar flutuações: uma taxa de capitalização alta ficciona que a rendibilidade da aplicação do capital da indemnização será também ela muito expressiva, o que poderá encontrar, ou não, simetria com a prática central de mercado, apenas se revelando efectivamente simétrica se as entidades bancárias centrais fixarem um preço aos capitais que injectam nos mercados igual ou aproximado.

Convocando a média da taxa EURIBOR a seis meses entre 2003-2013 (inclusive), achamos uma média de 2,250% e, quando este período agrega uma fase de estabilidade, uma fase de sobreaquecimento (com valores do dinheiro muito altos, inferindo-se uma tentativa de refrear a circulação, para que servisse de profilaxia a fenómenos inflacionistas) e uma fase de recessão (o período final, em que o dinheiro conhece preços baixos por se pretender insuflar o investimento, prevenindo quebras de liquidez, quando os operadores absorvem prejuízos), parece-nos que essa década representa uma amostra feliz do comportamento das flutuações do valor do dinheiro, a projectar para um futuro de universo.

Não incluímos as referências EURIBOR relativas aos anos de 2015 e 2014, o primeiro por representar dados muito prematuros e, o segundo, por se tratar de um ano influenciado por políticas económicas descontextualizadas com o que se pode entender ser um mercado de capitais operando de forma regular: a injecção anómala de liquidez em mercados financeiros, provocando um fenómeno de acumulação de capitais no intermediário bancário constitui uma torção no que se pode entender o paradigma capitalista instituído no mundo ocidental.

Em função disso, os valores de referência dos bancos centrais são muito baixos ao longo de todo o ano de 2014, precisamente por pretenderem encorajar um comportamento (a distribuição de capitais à economia real, operadores de produção e bases de consumo) que persistiu em não acontecer.

Assim, se convocássemos os valores de referência EURIBOR do ano de 2014, baixaríamos a média apurada em função de um período de tempo em que se observa um estrangulamento de liquidez na economia de produção e uma acumulação da mesma nas instituições de crédito (que, a eternizar-se, implicaria a estagnação económica e um fenómeno violento de ruptura da lógica de mercado, por a recessão produtiva não ser acompanhada por um fenómeno de inflação), ou seja, chamaríamos à representação do comportamento do valor do dinheiro (para o universo) um período de tempo e um conjunto de referências necessariamente anómalas e transitórias.

Ficarão, por isso, de fora dos nossos cálculos e a taxa de capitalização será, pois, fixada em 2,250%.

Realizando a operação de capitalização atendendo a estas constantes e variáveis e obtendo um montante de € 280.686,00, consideremos agora que, do seu período de vida activa (geral, de quarenta e sete anos, desde os 18 anos até aos 65), remanesciam apenas 11 anos de actividade a F... , ou seja, apenas 23,40% do capital apurado (que exprime o valor da sua força de trabalho como fonte de proveitos) será considerado rendimento perdido (tendo sido o demais já auferido, durante o tempo em que viveu) e, por inerência, apenas este se subsumindo ao conceito de dano, que assim se reduz a € 65.680,52.

Por sua vez, atendendo ao valor da retribuição do sinistrado e à elevada propensão, média e marginal, dos titulares de rendimentos mais baixos (como é o caso) para o consumo, que absorve em larga medida a riqueza que auferem, a que acresce a consunção de uma parte significativa dos mesmos em impostos indirectos, será de concluir que o sinistrado não teria condições para aforrar mais que 15% dos rendimentos que obtivesse nos termos aqui emulados, como condição da manutenção da fonte produtiva (a sua própria força de trabalho), sendo aqui de desconsiderar proveitos de capitais sobre eles obtidos, que tendencialmente acompanhariam a evolução da inflação.

Concluímos, portanto, por um valor de € 9.852,08 que constitui a riqueza que o sinistrado previsivelmente acumularia durante a sua vida laboral remanescente a título de retribuições por trabalho e que, com a sua morte antecipada, se viu privado, bem como os titulares do acervo hereditário.

A este montante cumpre ainda abater o capital de remição e subsídio por morte que já foram pagos a este título, pois que ambos se centram na perda de rendimentos que deriva da morte do trabalhador e respectivo impacto de perda de rendimentos laborais nos seus sucessores (cfr. arts. 20.º e 22.º/1 do RJAT), no valor de € 8.094,58 (cfr. Factos Provados 27.)) atingindo-se, assim, o montante final de € 1.757,50, que aqui consideraremos.

5.4.4. Da Matéria de Facto Provada decorre ainda que a força de trabalho de F... era utilizada também em proveito próprio, no âmbito de agricultura de subsistência, que em alguma medida representaria, também, ganhos para si e que nos cabe igualmente computar (cfr. Factos Provados 22.), 2.ª parte).

Atendendo a que a actividade em causa não possuía cunho de empresarialidade, não estando dirigida para a criação de excedentes e obtenção de riqueza, ainda assim trata-se de uma aplicação de força e meios para a geração de mercadorias consumíveis, possuidoras de valor venal, merecendo uma autonomização do que seriam os seus rendimentos laborais, para efeitos de aferição de lucro cessante, por também se co-envolver com a sua aptidão para geração de riqueza.

Introduzindo aqui um apuramento por equidade, pois que não se apurou a concreta representação de valor desta sua actividade (art. 566.º/3 do CC) e considerando que os encargos fixos de manutenção de produções produzem uma margem de rendimento líquido muito magra, entendo proporcional e adequado ao ressarcimento do dano patrimonial derivado do acidente, nesta vertente que aqui se aborda, a cifra de € 1.000,00.

5.4.5. Por último, pedem os demandantes pelo pagamento do valor do ciclomotor acidentado e, tendo fracassado na comprovação da sua inutilização total (cfr. Factos Não-Provados E.)), ainda assim demonstra-se existir um prejuízo patrimonial (dano emergente), a que têm direito, atendendo à perda de propriedades de integridade do engenho que se destaca de Factos Provados 28.).

O valor da reparação concreto não ficou provado, mas a descrição das realidades físicas que aqui interessam (o ciclomotor e a extensão da danificação das características do veículo – cfr. Factos Provados 28.)) é quanto baste para nos alavancar para um exercício de equidade, também aqui (art. 566.º/3 do CC) e, considerando a extensão da danificação da estrutura e o valor que se tem por comummente associado a viaturas com estas características, entendo adequado e proporcional ao ressarcimento do dano o valor de € 60,00.

5.4.6. Como acima dissemos, atendendo ao concurso de culpa do lesado, a demandada apenas será entendida por responsável pela indemnização devida na proporção de 12,5% do dano produzido e, chamando à colação as operações de quantificação que conduzimos supra, temos então que ficará devido:

A C... o valor de € 5.000,00 (€ 40.000,00 x 12,5%);

A D... o valor de € 3.125,00 (€ 25.000,00 x 12,5%);

A E... o valor de € 3.125,00 (€ 25.000,00 x 12,5%);

Aos demandantes, na qualidade de herdeiros universais de F... , os valores de:

€ 7.500,00 (€ 60.000,00 x 12,5%);

€ 219,69 (€ 1.757,50 x 12,5%);

€ 125,00 (€ 1.000,00 x 12,5%);

€ 7,5 (€ 60,00 x 12,5%);

Como última ressalva, antes de terminarmos, será apenas de referir que o crédito referente a privação de rendimentos laborais, no valor de € 219,69 e acima discriminado, não será arbitrado em favor dos demandantes, atendendo a que ISS, IP se acha sub-rogado nesse direito, como adiante veremos.

5.4.6. Certo sendo que se arbitrará indemnização em face do exposto, porque a demandada se manteve remissa até esta data, constituiu-se na obrigação de indemnizar os credores pelo período de privação do capital em que se traduz a prestação valutária da obrigação de indemnizar, assente na dupla presunção iuris et de iure de que a quem não é disponibilizado um embolsamento em dinheiro sofre um dano de natureza patrimonial (i) em quantitativo igual à taxa de juro de lei (ii) (cfr. arts. 798.º, 799.º/1, 804.º/1 e 2 e 806.º/1 e 2, todos do CC).

Fazemos notar que o arbitramento a que procedemos refere-se à data da prática dos factos, constituindo a liquidação de dano a compensação reportando a esse momento temporal, que não considera a desvalorização inerente à inflação desde então ocorrida e, por necessária deriva, será a demandada condenada nos respectivos juros de mora, vencidos desde a data da notificação do pedido indemnização civil deduzido e até integral pagamento (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2002 de 27.06.2002)

5.5. Quantificação da Obrigação de Reembolso (em abono de Instituto de Segurança Social, IP) por força de Sub-Rogação Legal

Estabelece o art. 70.º da Lei n.º 4/2007 de 16.01 (em articulação com o art. 1.º do Decreto-Lei n.º 59/89 de 22.02) que o ISS, IP se encontra sub-rogado nos direitos de pensionistas quando decorram do facto que funda a atribuição de pensão.

No caso dos autos, provou o demandante ISS, IP que pagou pensão de sobrevivência, decorrente da perda de rendimentos do agregado familiar que integra a 1.ª demandante por morte de F... , pensão essa que ascende a € 227,42/mês e é paga desde Outubro de 2013 (cfr. Factos Provados 28.)).

Assim, fundando-se a pensão de sobrevivência atribuída na perda de rendimentos do agregado familiar que derivou da morte de F... (cfr. art. 4.º/1 do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18.10), acha-se ISS, IP sub-rogado nos direitos que emergiram, para os titulares da indemnização, do mesmo facto (indemnização por lucro cessante, ou perda de rendimentos laborais), que tem por limite o valor arbitrado a título de privação de proveitos nas vestes de lucro cessante e na cifra de € 219,69, in casu.

Assim, o pedido ter-se-á por parcialmente procedente, condenando-se a demandada em conformidade e, nesta medida, improcedendo também o pedido dos demais demandantes cíveis.


***

III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (artigos 363° e 428° nº 1 do Código de Processo Penal).

Não obstante, o concreto objecto do recurso é sempre delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) sem embargo das questões do conhecimento oficioso.

E vistas as conclusões do recurso interposto, a questão que reclama solução é a seguinte:

- Se em acidente de viação em que foram intervenientes veículo automóvel e ciclomotor pode ser reconhecido o direito a indemnização de lesado/familiares de lesado falecido, condutor de ciclomotor que concorreu com culpa exclusiva para a sua produção, com fundamento em concorrência desta culpa com o risco próprio da circulação do veículo automóvel, nos termos do artigo 505º do Código Civil.

Apreciando:

Na decisão recorrida são vertidos dois fundamentos para a obrigação e não apenas um, como parece ter interpretado o recorrente.

Num primeiro momento o Tribunal a quo reconhece a existência de concorrência de culpa do condutor do veículo automóvel, que gradua em 10%, como reflectem os seguintes trechos que se transcrevem:

Deixemos impresso que, aqui, quando abordamos os requisitos de culpa no plano da responsabilidade aquiliana, abandonámos aquele campo da censurabilidade do comportamento criminal enformado por um paradigma ético: trata-se, noutro patamar, de aferir da censura jurídico-civil, necessariamente menos intensa e mais proximamente fundada num arquétipo de reprovação natural que na violação de uma premissa ontológica comunitária de foro axiológico.

Desta forma, comportamentos penalmente irrelevantes (como o é o do caso sub iudicio), não permitem excluir, por si só, a relevância civil do comportamento, que numa menor densidade da violação de premissas de cuidado e zelo continuam a exercer reprovação e a despoletar consequências substantivas.

(…)

Ora, da compulsão de Factos 9.) a 14.), concluímos que a actuação de A... é civilmente censurável e enquadra-se num nexo de imputação adequado (abstractamente idóneo – art. 563.º do CC) à produção da lesão na vida de F... : ao circular acima da velocidade regulamentar e numa zona de cruzamento de viaturas, o acusado gerou condições adequadas à verificação da lesão na integridade individual e no património do sinistrado e acrescentamos ainda que, ao omitir outra manobra de recurso para evitar a colisão, bastando-se com o accionamento do sistema de travagens, num cenário em que tinha bermas disponíveis que permitiriam manobras de desvio do eixo da via em segurança (cfr. Factos Provados 2.)), violou o arguido o padrão de diligência médio que lhe era normativamente imposto, concorrendo à produção da lesão num cenário de mera culpa (art. 487.º/2 do CC) que sinaliza o desenho da censurabilidade juscivil, sensivelmente menos exigente em face da culpa jurídico-penal.

Já num segundo momento entendeu-se reconhecer o direito a indemnização de familiares de sinistrado falecido em acidente de viação que se deveu a sua exclusiva culpa, entendendo-se que, no caso, devia a culpa do lesado concorrer com o risco próprio da utilização do veículo automóvel interveniente no acidente, graduado em 12,5%, como resulta dos seguintes trechos da decisão recorrida:

 Sublinhamos ainda que estamos no particular âmbito de danos produzidos por circulação de veículo, razão por que, ainda que se não apure da reunião dos pressupostos legais da responsabilidade por factos ilícitos a que nos temos vindo a referir, sempre assistiria à pretensão dos demandantes o quadro especial de responsabilidade pelo risco que verte do art. 503.º/1 do CC.

Aqui, demonstrando-se da transferência de responsabilidade do titular da direcção efectiva (pessoa que goza a viatura e assume a posição de vantagens que esta sinaliza, cabendo-lhe a respectiva disposição, controlo e manutenção em condições de integridade) que se encontra transferida para a seguradora pelo sobredito título de seguro automóvel (Factos Provados 21.) bastaria encontrar uma conexão entre o risco próprio do veículo (ou seja, o perímetro especial de perigo que sinaliza para a esfera jurídica de terceiros, pela sua existência e circulação) e a lesão produzida para encontrar fundamento de responsabilização da demandada (cfr. art. 504.º/3 do CC), ainda com a introdução da especialidade disposta no art. 506.º do CC, que oferece correspondência a este postulado basilar no campo normativo específico da colisão entre viaturas, como é aqui o caso.

Por fim, ainda no vestíbulo de nos debruçarmos sobre o caso concreto, diremos que, se tradicionalmente ao apuramento de culpa do lesado se associa a preclusão de responsabilidade pelo risco antecipada no art. 503.º do CC, ex vi art. 505.º do mesmo diploma, sublinhamos que aderimos à possibilidade de concurso entre ambas as fórmulas de responsabilidade (neste sentido, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007 no Proc. 07B1710, relatado por SANTOS BERNARDINO e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2009 no Proc. 08A3807, disponível in www.dgsi.pt), entendendo apenas afastada a obrigação de ressarcimento in tottum quando se alcance que a lesão decorreu por culpa única e exclusiva do próprio lesado, ou seja, quando se denote da matéria factícia apurada que a lesão e os danos não decorreram de qualquer forma de risco associada à circulação do veículo, mas, noutro sentido, apenas e tão-somente daquela actuação censurável.

 (…)

Não será difícil concluir, no caso dos autos, que a gravidade das lesões e a extensão dos danos encontra escoramento causal evidente no facto de ter sido uma viatura automóvel a cruzar-se com F... e que, quando se tratasse de um engenho com menor robustez e menor aptidão para lesão (v. g., um outro ciclomotor, ou um motociclo, por hipótese), seriam aqueles necessariamente menos graves, quando não mesmo a colisão pudesse, de todo, ser evitada (a mais ampla manobrabilidade de um motociclo, por exemplo, tornaria o incidente dificilmente verificável).

A gravidade do dano produzido e o carácter mortal das lesões encontram também fonte causal específica na robustez, peso e força motriz do automóvel de A... , bem como na dificuldade necessária da viatura em realizar manobras evasivas mais eficientes.

Dito de outra forma, no risco necessário para terceiros que o automóvel seguro representa sempre que circula radica um referente importante da lesão e dos danos, no caso sub iudicio, atendendo à impossibilidade de resistência à sua representação física quando um corpo humano com ele colide e, reforçando a associação da presença e corporeidade do veículo automóvel às lesões e danos verificados, temos também a dificuldade acrescida de o imobilizar em situações de emergência ou de o manobrar para fora de zonas de conflito, quando se entrecruza com um acto negligente da vítima (ainda que se pudesse contar com um comportamento incensurável do seu condutor).

Assim, quando se associa a produção das lesões e dos danos, também, ao risco específico que o veículo representa, entendemos que a obrigação de indemnizar deve ser ampliada, cifrando-se em 12,5% do dano ressarcível, tudo nos termos conjugados dos arts. 483.º/1, 503.º/1, 563.º, 570.º/1, 505.º/1 e 506.º/1, todos do CC.

Note-se que a indemnização veio a ser arbitrada com fundamento na ocorrência entre culpa do lesado e risco da viatura automóvel, como denota, além do mais, a fixação da indemnização em 12,5% do valor dos danos considerados, o que encerra, a nosso ver uma contradição.

É que a existir concorrência de culpas entre lesante e lesado, como em primeiro lugar se considerou, tal excluiria em qualquer caso a intervenção da responsabilidade pelo risco como decorre do disposto nos artigos 483º, nºs 1 e 2 e 570º do Código Civil.

Devemos pois centrar em primeiro lugar a nossa análise na possibilidade de imputar o acidente e respectivo resultado lesivo a culpa do condutor do veículo automóvel.

Verificamos que para efeitos de imputação criminal do resultado morte foi considerado que o condutor/arguido não concorreu com culpa sua para a produção dos danos. Mas para efeitos civis apela-se a um conceito diverso de negligência e já se entende que concorreram para o acidente a velocidade que excedia a legalmente permitida em zona de cruzamento de veículos e o accionamento do sistema de travagem, num cenário em que tinha bermas disponíveis que permitiriam manobras de desvio do eixo da via em segurança.

Trata-se, no entanto, de conclusão que não encontra o devido substrato fáctico na factualidade provada porque aí se não estabelece qualquer nexo de causalidade entre a omissão de tais deveres de cuidado e a produção do sinistro, que é um elemento essencial, também ao nível da responsabilidade civil por facto ilícito, para sustentar a obrigação de indemnizar com esse fundamento.

Aliás, também se diga que em relação à possibilidade de manobra de recurso que não se limitasse à travagem, tal dependeria do modo mais ou menos súbito como o condutor do ciclomotor efectuou a manobra (não sabemos a que distância se encontrava o arguido quando o ciclomotor iniciou a travessia da faixa e a que distância iniciou a travagem) e da própria possibilidade do desvio com travagem (não sabemos se o veículo permitia travar e desviar a direcção ao mesmo tempo).

Mas também a velocidade só poderia ser causal do acidente se a circulação a velocidade legalmente permitida pudesse ter contribuído para evitar o acidente nas circunstâncias em que se deu, o que igualmente depende da forma mais ou menos súbita do atravessamento do ciclomotor; dado de facto não apurado.

Não obstante, não divisarmos como se possa distinguir a negligência penal da negligência civil, posto que ambas supõem a omissão de um concreto dever de cuidado que na situação concreta se impusesse ao agente, decisivo é que da matéria de facto provada não se possa extrair que as referidas omissões de deveres de cuidado tenham contribuído para a produção do sinistro; tenham sido causais deste.

Excluída que se encontra a responsabilidade civil por facto ilícito do condutor do veículo automóvel seguro na recorrente, importa então discutir se no caso pode concorrer culpa do lesado com risco da viatura segura, que é, afinal, a questão proposta pela recorrente, sendo certo que não almejaria nunca alcançar a sua pretensão final de absolvição dos pedidos sem que se excluísse a possibilidade de indemnização fundada em responsabilidade civil por facto ilícito.

A jurisprudência do STJ tem admitido essa possibilidade, com base em interpretação actualista do artigo 505º do Código Civil, mas apenas em razão da condição da vítima, ou seja em relação a utentes vulneráveis das vias, ciclistas e peões, e nunca relativamente a condutores de veículos motorizados como no caso ocorre.

O próprio acórdão citado na decisão recorrida, de 4.10.2007, relatado pelo Exmº Conselheiro Santos Bernardino refere-se a ciclista e a tese defendida apenas o é relativamente a utentes vulneráveis da vias (peões e ciclistas) como claramente se extrai do trecho que se segue à citação de jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, referente a pessoas transportadas em veículos e ao reconhecimento do seu direito a indemnização “E o que se diz para os passageiros transportados vale igualmente para os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que constituem «, normalmente, a parte mais vulnerável num acidente, e cujo ressarcimento é também preocupação das Directivas comunitárias.

No caso estamos perante lesado que se transportava em veículo motorizado e em que não vislumbramos razão para efectuar a interpretação actualista em causa, devendo considerar-se que o disposto no artigo 505º do Código Civil exclui a possibilidade de indemnização quando preceitua que “(…) a responsabilidade prevista no artigo 503º, nº 1 só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado (…)”.

Merece, pois, provimento o recurso, devendo a demandante e recorrente ser absolvida do que civilmente foi peticionado. 


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IV. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, absolvendo a demandada/recorrente B... , PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL dos pedidos que contra ela foram formulados pelos demandantes INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, IP, C... , D... e E... .

Em consequência, as custas cíveis são integralmente da responsabilidade dos demandantes.

Não há lugar a tributação em razão do recurso. 

Coimbra, 14 de Outubro de 2015

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora)

(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)