Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FONTE RAMOS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE ÓNUS DA PROVA INDEFERIMENTO LIMINAR | ||
Data do Acordão: | 11/08/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.235, 238, 239 CIRE, 342 CC | ||
Sumário: | 1. Da circunstância de o devedor se atrasar na apresentação à insolvência não se poderá concluir imediatamente que daí advieram prejuízos para os credores. 2. A previsão da alínea d) do n.º 1 do art.º 238º, do CIRE, diz respeito a comportamentos que impossibilitem ou diminuam a possibilidade de os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida se tal actuação não se verificasse ou, ainda, que tenham favorecido alguns credores em detrimento de outros. 3. Os factos integrantes dos fundamentos do indeferimento liminar previsto no art.º 238º, n.º 1, do CIRE, têm natureza impeditiva da pretensão de exoneração do passivo restante formulada pelo insolvente; daí que, atento o preceituado no art.º 342º, n.ºs 1 e 2, do CC, o respectivo ónus de prova impenda sobre os credores e o administrador da insolvência. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Nos autos de insolvência pendentes no Tribunal Judicial de Viseu, referentes a J (…) e mulher, M (…), estes, na petição inicial (da apresentação à insolvência), requereram a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos art.ºs 235º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa/CIRE[1], aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3. Alegaram, designadamente, que, até Junho de 2010, sempre cumpriram a generalidade das suas obrigações, e só então, pelas razões aduzidas na petição, deixaram de cumprir com alguns dos credores, preenchendo os devedores os requisitos e estando dispostos a observar as condições legalmente impostas, de que depende a exoneração do passivo restante. Por sentença de 25.11.2010 foram os requerentes declarados insolventes. O Administrador da Insolvência não se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante e, em face do valor dos bens aprendidos, requereu, no decurso da Assembleia de Credores de 25.01.2011, o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (fls. 68/83 e 97). A credora F (…) – Instituição Financeira de Crédito, S. A., opôs-se àquele pedido “porquanto já existe uma execução a correr termos contra os insolventes”, instaurada em 2009 (processo n.º 978/09.9TBVIS) (cf. fls. 98). Por considerar preenchida a previsão do art.º 238º, n.º 1, alínea d), o Tribunal recorrido indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores. Inconformados com esta decisão e visando a sua revogação (e substituição por outra que defira o pedido de exoneração do passivo restante), os insolventes interpuseram o presente recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas: 1ª - Ao negar o despacho inicial de exoneração o Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação, o art.º 238º, 1, alínea d), do CIRE, pois não se encontram preenchidos os três requisitos cumulativos aí previstos. 2ª - Não basta o simples decurso do tempo (seis meses contados desde a verificação da situação de insolvência) – tal seria valorizar em demasia o decurso do tempo quando comparado com o prejuízo aos credores que deve acrescer aos demais requisitos. 3ª - Caso se entenda que efectivamente os seis meses já tinham decorrido, tal facto não determinaria, só por si, o indeferimento liminar do pedido, uma vez que ainda se teria que constatar que esse atraso havia prejudicado os interesses dos credores, nomeadamente, por ter contribuído para o agravamento da sua situação de insolvência. 4ª - Há que apurar se a situação de insolvência emerge de uma infeliz conspiração de circunstâncias e, por isso, se justifica, com sacrifício dos credores, conceder uma nova oportunidade, ou se, pelo contrário, a conduta do devedor foi consciente no sentido do agravamento do seu passivo e da crescente dificuldade dos credores em cobrarem os seus créditos. 5ª - Os insolventes sempre assumiram uma conduta digna e responsável para com os seus credores, mantendo-os, sempre, informados da situação real de dificuldade económica, tendo encetado inúmeras vezes, sem grandes resultados por culpa dos próprios credores, negociações que lhes possibilitassem não entrar em incumprimento. 6ª - Não ficou provado que os requerentes, ao se absterem de se apresentarem à insolvência, prejudicaram gravemente os seus credores – dos autos e do despacho de indeferimento não existe qualquer elemento donde resulte a demonstração directa de qualquer prejuízo para os credores, e a decisão recorrida não identifica qualquer prejuízo relevante de onde seja lícito concluir que os credores dos insolventes sofreram prejuízo com o alegado atraso na apresentação à insolvência. 7ª - Os prejuízos a que se refere o art.º 238º, n.º 1, alínea d), hão-de corresponder aos danos emergentes e lucros cessantes e não aos juros, pois estes visam contrabalançar a depreciação monetária. 8ª - Os apelantes sempre contrataram os créditos na esperança de mais tarde os poderem liquidar, créditos que sempre pagaram e honraram nos termos a que se obrigaram contratualmente, e que sempre acreditaram conseguir liquidar integralmente. 9ª - Nenhum dos credores trouxe ao processo elementos de prova que fizessem entender que não existiam perspectivas sérias de melhoria da situação económica. 10ª - Os requerentes tiveram sempre perspectivas sérias da melhoria da sua situação económica até ao momento da apresentação à insolvência e nada nos autos permite concluir que os apelantes não tinham perspectivas sérias de melhorias da sua situação. Não foi apresentada resposta à alegação dos recorrentes. Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso - art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8), coloca-se, sobretudo, a questão de saber se estão preenchidos os requisitos da alínea d) do n.º 1 do art.º 238º, do CIRE. * II. 1. Para além do que decorre do precedente “relatório”, releva ainda o seguinte: a) Os requerentes/insolventes apresentaram-se à insolvência em 15.11.2010. b) Em 14.01.2011, o Administrador da Insolvência procedeu à apreensão da seguinte verba única: “Um Lote de imobiliário, que se encontra no interior da casa de morada dos insolventes com um valor de mercado de aproximadamente € 250,00”. c) De acordo com a lista provisória de credores, os insolventes são devedores da quantia global de € 56 313,47, montante no qual se inclui o crédito do Banco E ..., S. A., no montante de € 9 187,10, vencido desde Abril/2009, o crédito do Banco P ..., no montante de € 20 997,94, vencido desde Janeiro/2009, o crédito do Banco B ...s, no montante de € 3 875, vencido desde Setembro/2010, o crédito de F(…) Capital - Instituição Financeira de Crédito, S. A., no montante de € 9 788,43, vencido desde Fevereiro/2009 [tais créditos respeitam a dois “créditos pessoais garantidos por livranças”, um “contrato de mútuo de crédito” e a dívida de “cartão de crédito”], o crédito (…), no montante de € 2 280, vencido desde Novembro/2010 e o crédito de (…) no montante de € 10 185, vencido desde Abril/2009 [este último, referente a um pretenso “contrato mútuo de empréstimo”]. d) Alguns dos referidos créditos foram reclamados em processos judiciais, assim identificados: 978/09.9TBVIS–Tribunal Judicial–2º Juízo Cível; 1488/09.0TBVIS– Tribunal Judicial–3º Juízo Cível e 2361/09.7TBVIS-A.[2] e) Na Assembleia de Credores de 25.01.2011 participou o Administrador da Insolvência e estiveram representados os requerentes e a credora F (…) Capital - Instituição Financeira de Crédito, S. A.[3], tendo sido ordenada a notificação dos demais credores para “se pronunciarem quanto ao requerido encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente”. f) Os insolventes, nascidos, o requerente, a 27.12.1970 e, a requerente, a 25.6.1971, têm dois filhos menores (nascidos a 25.12.1999 e 21.5.2007)[4] e desenvolvem as actividades de “operador de máquinas” e “empregada de limpeza”, auferindo as quantias mensais de € 583,56 e € 400, respectivamente. g) Em 1999 os insolventes adquiriram uma casa para habitação própria permanente com recurso a crédito bancário junto do BES, ficando a pagar uma prestação mensal de cerca de € 350 e que, por volta de 2006/2007, em razão da subida das taxas de juro, veio a atingir o valor mensal de € 500. h) Em meados de 2007, os insolventes fizeram uma dação em pagamento da mencionada casa, ficando ainda com o remanescente para liquidar. i) Nesse período, para além das despesas básicas e correntes do seu agregado familiar, os insolventes tinham ainda que liquidar as obrigações assumidas com “contratos de crédito ao consumo”. j) Os insolventes tentaram renegociar os contratos celebrados com os credores - v. g., com o estabelecimento de períodos de carência e a redução dos valores das prestações devidas - mas não o logram conseguir. 2. A exoneração de que se trata no Capítulo I do Título XII, do CIRE [“Exoneração do passivo restante”], traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente.[5] O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art.ºs 235º e seguintes[6], específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo o seu objectivo final a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica[7]. Com a publicação do CIRE, o legislador explicitou qual o propósito de consagração do instituto de exoneração do passivo, referindo: O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do ´fresh start´ para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta [sublinhado nosso] que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.[8] Decorre do regime instituído o propósito de contrabalançar os interesses em presença, de um lado, o sacrifício, inerente à concessão do dito benefício, dalguns dos créditos reclamados (por vezes, de parte significativa) e, do outro, o estabelecimento de certos requisitos/pressupostos, embora pela negativa, de cuja verificação depende a exoneração, nomeadamente, atinentes aos comportamentos do devedor conexos com a situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.[9] Assim, para ser proferido despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e, desde logo, que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta pela ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta.[10] A integridade, o comportamento conforme os valores sociais estruturantes de uma sociedade civilizada, são, afinal, a pedra de toque do benefício da exoneração do passivo restante - o prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante pressupõe, além do mais, a rectidão do comportamento anterior do insolvente no que respeita à sua situação económica.[11] É pois necessário um especial cuidado e rigor na apreciação da conduta dos insolventes “apertando-a, com ponderação de dados objectivos”. A mesma deve apresentar-se transparente e sem qualquer indício de má fé sob pena de se estar a proceder a um verdadeiro branqueamento de dívidas, impondo o Estado danos aos credores, sem qualquer contrapartida. Daí que se conclua que o incidente de exoneração do passivo restante não pode traduzir-se num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido’[12]. 3. Para além de alguns requisitos formais, previstos nos art.ºs 236º e 237º, e cuja verificação não é posta em causa na presente apelação, o pedido (de exoneração do pedido restante) deve ser indeferido, no caso de verificação de alguma das situações previstas no n.º 1 do art.º 238º[13]. Assim, vista a hipótese relativa ao caso dos autos, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica [art.º 238º, n.º 1, alínea d)]. São três os requisitos previstos no referido normativo, cuja verificação cumulativa impede a concessão do pedido de exoneração do devedor: a) – a não apresentação à insolvência ou apresentação à insolvência para além do prazo de seis meses desde a verificação da situação de insolvência; b) – a existência de prejuízos decorrentes desse incumprimento; c) – o conhecimento de que não havia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica. No caso vertente, os requerentes, enquanto pessoas singulares não titulares de empresa na data em que incorreram na situação de insolvência, não tinham o dever de apresentação (art.º 18º, n.ºs 1 e 2); tinham, no entanto, face ao estatuído na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º, o ónus de apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, e é esse (eventual) incumprimento associado às demais circunstâncias supra referidas que poderá determinar o indeferimento do pedido de exoneração. 4. É bem conhecida a divisão jurisprudencial a respeito da caracterização e verificação/concretização do requisito “prejuízo” (“com prejuízo em qualquer dos casos para os credores”). De um lado, defende-se que a partir do momento em que, estando em situação de insolvência, não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica em que se encontram, a inacção dos devedores, ao não requererem tempestivamente a respectiva insolvência, redunda, em princípio, em prejuízo dos credores, pois que, para além de provocar o avolumar dos montantes em dívida a estes, por via do acumular dos juros remuneratórios e/ou moratórios, possibilita que o património se vá dissipando, diminuído, assim, a garantia que este representa para os credores. E sendo o prejuízo dos credores, em princípio, decorrência normal da circunstância de não se requerer a insolvência tempestivamente, nas ocasiões previstas na alínea d) do n.º 1 do referido art.º 238º, a existência desse prejuízo é conclusão permitida por inferência fundada no princípio “id quod plerumque accidit”, que cumpre ser contrariada por factualidade que o requerente da exoneração do passivo restante deverá fornecer - o ónus da prova da não verificação dos elementos da previsão da norma têm que ser alegados e provados pelo devedor.[14] A corrente jurisprudencial contrária – ao afastar aquela perspectiva – considera que, a ser assim, a inclusão do requisito “prejuízo” na previsão da alínea d) do n.º 1 do art.º 238º se mostraria inútil: não basta o simples decurso do tempo para se poder considerar verificado aquele requisito, designadamente, pelo avolumar do passivo face ao vencimento dos juros, porquanto tal representaria valorizar um prejuízo ínsito ao decurso do tempo, comum a todas as situações de insolvência[15], o que se não afigura compatível com o estabelecimento do prejuízo dos credores enquanto pressuposto autónomo do indeferimento (liminar) do incidente de exoneração do passivo restante (a acrescer aos demais e com exigências distintas das já pressupostas pelos demais requisitos).[16] Refere-se ainda que ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei não visa mais do que os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles comportamentos geradores de novos débitos (a acrescer àqueles que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer), que impossibilitem ou diminuam a possibilidade de os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem ou, ainda, que tenham favorecido alguns credores em detrimento de outros[17]. São estes comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida a possibilidade de se libertar de algumas das suas dívidas, e assim, conseguir a sua reabilitação económica.[18] 5. Relativamente ao ónus da prova - aspecto não menos importante -, esta segunda corrente perfilha entendimento bem diverso, defendendo precisamente o contrário da primeira, porquanto propugna que o devedor não tem que apresentar prova dos aludidos “requisitos”: “ (…) as diversas alíneas do n.º 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração. Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito. Nesta medida, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova – cfr. n.º 2 do art. 342º do CC. Um afloramento deste entendimento pode encontrar-se na alínea e) do referido artigo 238º, quando aí se prevê o caso de para a indiciação da existência a culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência e no caso de não constarem já do processo, os elementos serem fornecidos pelos credores ou pelo administrador da falência.” “(…) têm natureza impeditiva da pretensão formulada pelo requerente do benefício de exoneração do passivo restante os factos integrantes dos fundamentos do “indeferimento liminar” previsto no art. 238º do CIRE, bastando-se aquela pretensão com a alegação da qualidade de insolvente e do que exigido se mostra no art. 236º, nº 3 do mesmo Cód.”. [19] 6. O Tribunal recorrido indeferiu “liminarmente” o pedido de exoneração do passivo restante, por considerar verificado o condicionalismo previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238º, discorrendo assim: “Ora, perante as datas de vencimento da maioria das dívidas acima referidas, designadamente Janeiro, Fevereiro, Abril e Setembro de 2009, e montantes das mesmas, teremos de concluir que os devedores não se apresentaram como deviam à insolvência no prazo seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência – posto que o requerimento deu entrada em 15/11/2010 – sendo certo que não deviam ignorar que não tinham perspectiva de melhoria das suas condições económicas, uma vez que apenas dispõem do rendimento proveniente do seu trabalho, o insolvente no valor de 583,56 Euros mensais e a insolvente no valor de 400 Euros mensais (…). Acresce que, objectivamente, se verifica ainda um prejuízo para os credores com o avolumar das dívidas dos requerentes e o protelamento do pagamento dos seus créditos. Salvo o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que os elementos disponíveis não permitem concluir pela verificação de todos os requisitos da mencionada alínea, sobretudo, os dois últimos requisitos supra referidos, sendo verdadeiramente decisiva a afirmação do segundo dos ditos requisitos, que terá necessariamente de radicar em factos objectivos, enquanto o último já poderá encontrar suficiente justificação numa adequada inferência a partir desses dados objectivos. Na verdade, e propendendo-se para a segunda perspectiva aludida em II. 4, 2ª parte, e II. 5, supra - sendo que o entendimento mencionado em II. 4., 1ª parte, por um lado, não explica a razão de ser do elemento prejuízo constante da previsão do art.º 238º, n.º 1, alínea d), autónomo do atraso na apresentação, por outro lado, parte de uma presunção de um prejuízo (potencial…) decorrente do atraso (como se todos os devedores insolventes se inserissem num tipo de devedor que mal se sabe insolvente esconde ou dissipa os bens, actuando em prejuízo dos credores, cabendo-lhes a prova do contrário) e, por último, inverte as regras do ónus da prova dos elementos cumulativos de dita previsão normativa[20] -, vista a factualidade aludida em I. e II. 1., temos por insuficientemente concretizadas, designadamente, a localização temporal e a quantificação das responsabilidades sucessivamente assumidas pelos insolventes, sobretudo, a partir das datas de vencimento dos aludidos créditos, pois nada sabemos, por exemplo, quanto aos encargos mensais que foram sobre ambos impendendo [o que, em bom rigor, também contende com a questão de saber quando os recorrentes ficaram insolventes, ou seja, quando ficaram impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas (art.º 3º, nº 1)][21], razão pela qual, sem quebra do devido respeito por diferente entendimento, não se poderá dar como preenchida a previsão da alínea d) do n.º 1 do art.º 238º. E se é certo que eram diminutos os rendimentos mensais auferidos pelos insolventes, não é menos evidente que se desconhece, por exemplo, como[22] e até quando foram cumprindo as suas obrigações vencidas - ou seja, ignoram-se, e não foram alegadas ou comprovadas nos autos, quaisquer circunstâncias relativas à evolução das dívidas dos insolventes, mormente no período circunscrito pela alínea d) do n.º 1 do art.º 238º -, factos (objectivos) estes inerentes à evolução da situação económico-financeira dos devedores e cuja análise deverá ditar o sentido do despacho inicial em apreço. 7. Ainda que se admita que os elementos disponíveis apontam para a não apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, face, sobretudo, à exiguidade dos rendimentos e do património dos recorrentes e aos montantes das dívidas que se venceram a partir de Janeiro de 2009 - na perspectiva de que aquela situação ocorre quando o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas ou a insolvência é iminente (art.º 3º, n.ºs 1 e 4)[23] -, dúvidas não restam de que os mesmos elementos não possibilitam a apreciação da causação de prejuízos aos credores com o (eventual) protelamento da apresentação à insolvência, bem como a averiguação da ciência dos insolventes quanto à inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, porquanto nada existe nos autos, nem foi sequer alegado, que permita concluir que o eventual atraso na apresentação à insolvência tenha originado prejuízo para os credores (em resultado da abstenção de apresentação dos devedores à insolvência no semestre posterior à verificação da situação de insolvência), pois nenhum facto se apurou que permita concluir que os devedores tiveram (então) qualquer comportamento susceptível de, por exemplo, fazer diminuir o seu acervo patrimonial ou de o onerar ou até de aumentar o seu passivo, sendo óbvio que o acréscimo dos valores em dívida inerente ao vencimento de juros moratórios (e compensatórios) não deverá relevar para esse efeito[24]. Por conseguinte, por se ignorar se o atraso na apresentação dos devedores à insolvência causou prejuízo aos credores [não existem elementos que permitam concluir que em consequência de tal incumprimento os credores viram prejudicada a respectiva situação creditória, no sentido de assim verem dificultada a cobrança/satisfação dos seus créditos], não se justificava o indeferimento (liminar) do pedido de exoneração do passivo restante, antes se impunha a prolação do despacho inicial a que refere o art.º 239º, caso não se verificasse diverso factualismo integrador de alguma das demais situações enunciadas no art.º 238º. E sempre seria problemática a determinação da data a partir da qual os requerentes/insolventes ficaram, ou deviam ficar, cientes da inviabilidade/impossibilidade de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica – além de se desconhecer a dimensão e a evolução temporal do inadimplemento das obrigações vencidas, importava igualmente apurar quando os insolventes deixaram de acreditar numa alteração, para melhor, da difícil situação económico-financeira que os afectava. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso. * III. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, devendo prosseguir o incidente de exoneração do passivo restante com a prolação do despacho a que se refere o art.º 239º do CIRE, se a tanto outra causa não obstar. Sem custas. *
Fonte Ramos ( Relator ) Carlos Querido Virgílio Mateus [1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem. [2] Os autos não revelam melhores elementos quanto à identificação/forma dos processos em causa. O primeiro processo terá sido instaurado pela FGA Capital-Instituição Financeira de Crédito, S. A. e o terceiro por Carlos Manuel Ferreira Rodrigues e respeitam aos créditos nos montantes de € 9 788,43 e € 2 280, respectivamente. [3] Cujo crédito representa 17,38 % do valor total indicado em II. 1. c), supra. [4] Teve-se em atenção o teor do “requerimento de protecção jurídica” de 25.12.2010, reproduzido a fls. 52 e seguinte. [5] Cf., neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, pág. 778. [6] Estabelece o art.º 235º: “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.” Não são porém abrangidos pela exoneração, além de outros, os créditos tributários [art.º 245º, n.º 2, d)]. [7] Vide Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, págs. 102 e seguinte. [8] Cf. o ponto 45 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3. [9] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 784 e, de entre vários, o acórdão da RP de 09.01.2006, in CJ, XXXI, 1, 160. [10] Vide Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 170. [13] O artigo 238º, n.º 1, dispõe que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: a) For apresentado fora de prazo; b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º; f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data; g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração, que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.” [22] Veja-se, a propósito, o sumário do aresto citado na “nota 21”: “Deve ser indeferido o requerimento para exoneração do passivo restante de dois insolventes casados um com o outro que nos dois anos anteriores à declaração de insolvência contraem, sucessivamente, créditos para consumo, muito para além das suas reais possibilidades financeiras, assumindo o pagamento de prestações mensais de montante superior ao rendimento mensal bruto que auferiam, chegando ao ponto de contrair créditos apenas para satisfazer responsabilidades que se iam vencendo, assim protelando uma inevitável insolvência e desse modo criando, com culpa grave, a situação de insolvência iminente em que se vieram a achar.” [23] Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 72: “O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. (…) pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.” |