Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
436/14.0GBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: IN DUBIO PRO REO
DECISÃO ABSOLUTÓRIA
Data do Acordão: 03/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL DO FUNDÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 127.º E 425.º, N.º 5, DO CPP
Sumário: I - O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 11 de Outubro de 2001, decidiu que o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória.

II -A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir «pro reo», tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária.

III - Uma dúvida como a do tribunal a quo, que se apoia na circunstância de existirem duas versões contraditórias sobre a realidade dos factos e de não existirem razões para que, de modo objectivo, se possa conferir maior credibilidade a uns depoimentos em relação a outros, é uma dúvida que não pode deixar de se considerar objectivada e, portanto, tem a virtualidade de, racionalmente, convencer quem quer que seja da bondade da sua justificação.

IV - Um só testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. Nos autos de instrução n.º 436/14.0GBFND que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Fundão – Instância Local – Secção Criminal – J1 foi proferido despacho de não pronúncia do arguido A..., no termo da instrução requerida pelo assistente B... – visando a pronúncia do arguido pela prática, como autor material e na forma tentada, de um crime de homicídio – face ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, nos termos do n.º 2 do artigo 277.º do Código de Processo Penal.

2. Inconformado com a decisão instrutória, dela interpôs recurso o assistente, concluindo a motivação nos seguintes termos (transcrição):

«- O assistente participou os factos constantes de fls. 3, 4 e 8 dos autos, que ocorreram no exercício da sua profissão de Advogado.

- Tais factos, resumidamente, consistem no seguinte: no dia 24.10.2014, pelas 11:35, o assistente deslocou-se á propriedade de um cliente seu, sita na Estrada da Pola, Peroviseu, concelho do Fundão, com o intuito de resolver de forma extra judicial uma questão de canalização de águas, tendo entrado no prédio do arguido com a autorização da companheira deste, com o qual pretendeu falar.

- A determinada altura da conversa que mantinha com o arguido e sem que nada o fizesse prever, este sentou-se no tractor, que tinha atrelado um arado e iniciou de forma brusca e repentina a marcha atrás em direcção ao assistente, com a intenção de o atropelar, o que só não conseguiu em virtude deste ter dado um salto para o lado esquerdo, desviando-se assim do tractor.

- Os factos participados ocorreram no local, data e hora supra referidos e na presença de duas testemunhas, C... e D... , os quais, tendo sido inquiridos a fls 16 e 17, 18 e 19, respectivamente, confirmaram a essencialidade da versão do assistente.

- A versão dos factos apresentada pelo assistente foi corroborada por duas testemunhas, cuja presença no local e veracidade dos depoimentos não foi posta em crise.

- O Tribunal recorrido, porém, decidiu não pronunciar o arguido, entendendo que existem duas versões contraditórias: a do assistente e a da companheira do arguido.

- Entendeu ainda o Tribunal a quo que, “a discrepância de versões (…) leva-nos à mesma concreta posição defendida pelo M.P. no final do inquérito, não havendo razões para que, de modo objectivo, se possa dar maior credibilidade aos depoimentos em primeiro lugar referidos em detrimento do último mencionado”.

- Não sendo feita no despacho de não pronúncia qualquer alusão, por mais pequena que seja, à falta de credibilidade ou à existência de dúvidas ou contradições insanáveis nas declarações do ofendido e nos depoimentos das duas testemunhas que o acompanhavam e que presenciaram e narraram os factos, não basta para afastar a existência de “indícios suficientes de prova” dos quais resulte um juízo de prognose do qual se extraia ser mais provável a futura condenação do arguido do que a sua absolvição, que os autos contenham a “versão” de uma outra testemunha (companheira do arguido) que, confirmando embora a presença no local do assistente e das testemunhas, se limita a negar a tentativa do atropelamento.

9ª- Consideram-se “indícios suficientes” nos termos e para os efeitos previstos no artigo 308º, nº 1, do CPP as declarações do assistente, corroboradas por duas testemunhas que presenciaram os factos, mesmo quando os mesmos não são totalmente confirmados por uma testemunha indicada pelo arguido.

10ª- In casu, o depoimento de uma só testemunha, que é a companheira do arguido, não pode ter uma valoração tal, ao ponto de servir de fundamento à total desconsideração que, sem mais, o Mº Pº e o Tribunal a quo conferiram às declarações do ofendido/assistente e aos depoimentos de duas testemunhas que se encontravam no local no momento da prática dos factos e que os presenciaram.

11ª- Os autos contêm, pois, indícios suficientes de que os factos ocorreram nos moldes descritos pelo assistente na participação e no requerimento de abertura de instrução.

Nestes termos e com base no que acima se deixa alegado e propugnado deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto despacho recorrido e, consequentemente, pronunciar-se o arguido A... pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 131º e 132º n.º 2, alínea l) do Código Penal, tudo com as legais consequências, assim sendo feita, uma vez mais,

                                                                                                                       Justiça!»

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1. Não existe nenhum motivo de facto e de direito para dar valor às declarações do assistente e das testemunhas C... e D... ;

2. A existirem aqueles motivos, será, precisamente, em sentido contrário, dado que também eles são marido e mulher e têm litígio com o arguido;

3. Existe contradição insanável, porque insuperável, entre o depoimento da mulher do arguido e das testemunhas C... e D... , e da demais prova produzida, não existem outros indícios que apontem a versão do assistente como a mais provável, bem pelo contrário;

4. Existindo dúvida séria e inultrapassável, como é o caso dos autos, é necessário lançar mão do princípio do in dubio pro reo;

5. Os indícios recolhidos não permitem fazer um pré juízo favorável a uma forte possibilidade de o arguido ser condenado;

6. Por outro lado, não existe um único indício que aponte para a vontade de matar do arguido, nem esse era o sentimento do assistente até ao arquivamento dos autos;

7. Não é crível a versão do assistente face à realidade normal dos eventos, e mesmo a considerar-se tal hipótese, não concretizada nos autos, não existem atos de execução de acordo com o disposto no artigo 22.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas b) e c), do Código Penal;

8. Não foi violado nenhum preceito legal;

9. O arguido não deverá ser pronunciado, fazendo-se JUSTIÇA.»

4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, subscrevendo na íntegra a resposta à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido que não deve ser dado provimento ao recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - Fundamentação

1. A decisão instrutória objecto de recurso (transcrição):

«I. Relatório:

Findo o Inquérito, em 09.12.2014, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, concluindo que os indícios trazidos aos autos são manifestamente insuficientes para apontar ao arguido A... a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 143.º, n.º1 e 145.º, n.º1, alínea a), com referência aos arts. 132.º, n.º2, alínea l), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, tanto mais que é aplicável o princípio do in dubio pro reo (cfr. folhas 25 a 26).

                                                        *

Não se conformando com o referido despacho de arquivamento, o assistente B... veio requerer a abertura de instrução (cfr. folhas 33 a 42), pugnando para que seja proferido despacho de pronúncia contra o arguido A... pela prática, como autor material e na forma tentada, de um crime de homicídio, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º2, alínea l), todos do Código Penal.

                                                        *

Por despacho proferido em 19.03.2015, foi declarada aberta a instrução.

                                                        *

Foi indeferida a realização das diligências instrutórias requeridas.

                                                        *

II. Saneamento:

Inexistem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à prolação da presente decisão (art. 308.º, n.º3, do Código de Processo Penal).

                                                        *

III. Fundamentação:

3.1. Da Análise dos Indícios Recolhidos:

O art. 286.º do Código de Processo Penal dispõe, no seu n.º1, que:

«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Nos termos do n.º1 do art. 308.º do Código de Processo Penal, «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Em termos gerais, na fase processual da instrução (autónoma e de carácter facultativo) visa-se a comprovação judicial ou controlo jurisdicional das seguintes decisões:

i) da acusação do Ministério Público, a requerimento do arguido;

ii) da acusação do assistente, em procedimento por crime particular, a requerimento do arguido; e/ou

iii) do despacho de arquivamento do Ministério Público, nos procedimentos por crime público ou semipúblico, a requerimento do assistente.

Com efeito, «a instrução não se destina a repetir ou a “completar” o inquérito ou a sindicar a investigação, apenas a fiscalizar a decisão que põe termo ao inquérito» (cfr. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pp. 999), resultando num despacho de pronúncia quando forem recolhidos indícios suficientes da prática do crime pelo arguido, ou num despacho de não pronúncia quando os indícios forem insuficientes ou quando se conheçam e se declarem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa (quanto a este último aspecto, cfr. ponto II. da presente decisão).

No que respeita à apreciação da suficiência, ou não, dos indícios, o n.º 2 do art. 283.º do Código de Processo Penal preceitua que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Assim, “na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia). A jurisprudência, por seu lado, afinou a compreensão do conceito através da definição e enunciação de elementos de integração que se podem hoje rever na noção legal. Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado. O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade.” (cfr. ac. TRC de 10.09.2008, proc. n.º 195/07.2GBCNT.C1, disponível em www.dgsi.pt).

A existência de dúvida fundada e séria quanto à suficiência dos indícios deve ser decidida a favor do arguido, porquanto o princípio in dubio pro reo tem aplicação em todas as fases do processo - cfr., neste sentido, o ac. TRL de 16.11.2009, proc. n.º 3555/09.TDLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação se cita, além do mais, o ac. do Tribunal Constitucional n.º 439/02, que considerou que “a interpretação normativa dos arts. 286.º, n.º1, 298.º e 308.º, n.º1, todos do Código de Processo Penal, que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32.º, n.º2, da Constituição”.

No caso concreto, o ofendido/assistente relatou os factos em conformidade com o que decorre de fls. 3, 4 e 8, numa versão em tudo decalcada nos depoimentos das testemunhas C... (fls. 16 e 17) e D... (fls. 18 e 19).

Analisando a versão assim trazida aos autos este Tribunal, desde logo não se pode considerar como indiciariamente demonstrado que o arguido tivesse agido "com o propósito deliberado de atropelar o assistente e de lhe tirar a vida" (cfr. ponto 3 do RAI), porquanto tal elemento subjetivo não se extrai de qualquer um dos referidos depoimentos, nem mesmo destes conjugados com as regras da experiência comum.

Por outro lado, a versão assim trazida aos autos, quanto à concreta actuação do arguido, afirma-se diametralmente oposta àquela que decorre do depoimento prestado por E... , cuja presença no local dos factos não foi infirmada, mas antes confirmada, pelo assistente.

Assim, para além da ausência da demonstração de uma atitude dolosa do arguido visando tirar a vida do ofendido - como já acima apontado - a discrepância de versões - igualmente aludida - leva-nos à mesma concreta posição propugnada/defendida pelo Ministério Público no final do inquérito, não havendo razões para que, de modo objectivo, se possa dar maior credibilidade aos depoimentos em primeiro lugar referidos em detrimento do último mencionado.

Assim sendo e em homenagem ao princípio fundamental do in dubio pro reu, julgo indiciariamente não demonstrados os factos melhor descritos no RAI, para os quais se remete nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 307.º do C.P.Penal, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos.

                                                        *

3.1. Da Qualificação Jurídica:

Não resultam indiciados nos autos factos susceptíveis de preencherem o tipo incriminador imputado ao arguido, nada mais restando do que não pronunciá-lo pela prática, como autor material e na forma tentada, do crime de homicídio, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º, 131.º 132.º, n.º 2 alínea l), todos do C.Penal.

                                                        *

IV. Decisão:

Pelo exposto, e nos termos dos acima citados normativos legais, decido:

a) Não Pronunciar o arguido A..., nascido em 27-02-1945, viúvo, agricultor, filho de (...) e de (...) , natural do Fundão e residente no (...) Alcaria, pela prática dos factos e crime constantes do requerimento para abertura de instrução.

                                                        *

Custas da responsabilidade do assistente, fixando-se a taxa de justiça devida em 1 (uma) UC, considerando o reduzido número de questões decididas pela presente decisão.

                                                        *

Proceda ao registo da presente decisão instrutória em livro próprio para o efeito – cfr. Deliberação do C.S.M. de 08.01.2013, constante da Acta n.º1/2013, www.csm.org.pt.

                                                        *

Após trânsito em julgado da presente decisão, e sem prejuízo do disposto nos arts. 309.º e 310.º, ambos do Código de Processo Penal, arquivem-se os autos.

                                                        *

Notifique.»

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

A questão essencial a decidir no presente recurso consiste em saber se os autos contêm indícios suficientes para submeter o arguido A... a julgamento pela prática do imputado crime de homicídio, na forma tentada.

O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 11 de Outubro de 2001, decidiu que o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo, consequentemente, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça([1]).

E repetiu este julgamento em acórdão de 29 de Novembro de 2000 (Proc.º n.º 2113/00-3), de 5 de Abril de 2001 (Proc. n.º 870/01-5), de 15 de Novembro de 2001 (Proc. n.º 3652/01-5), de 6 de Fevereiro de 2002 (Proc. n.º 3133/01-3), de 7 de Fevereiro de 2002 (Proc. n.º 122/02-5), de 26 de Junho de 2002 (Proc.º 4224/01-3), de 12 de Dezembro de 2002 (Proc. n.º 4414/02-5), de 8 de Julho de 2003 (Proc. n.º 2304/03-5) e de 2 de Maio de 2006 (Proc. n.º 849/2006-5), entre outros.

Pode pois afirmar-se com segurança que constitui jurisprudência uniforme a que caracteriza o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia como acórdão absolutório para os efeitos previstos no artigo 400.º, n.º 1, al. d) e, consequentemente, no artigo 425.º do Código de Processo Penal.

Por isso, havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, a decisão recorrida é de não pronúncia.

Ora, analisados os autos, nomeadamente a decisão instrutória e a motivação do recurso, afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece censura, quer quanto à decisão quer quanto aos respectivos fundamentos, de facto e de direito.

Ainda assim dir-se-á o seguinte:

Como resulta dos autos o assistente, quer na denúncia, quer no depoimento prestado no âmbito do inquérito, não referiu que o arguido o queria matar, antes referiu temer pela sua integridade física (auto de denúncia de fls. 3 a 4), o que reafirmou no auto de inquirição de fls. 8, ao declarar «que (…) sente receio que possa sofrer novamente qualquer atentado à sua integridade física por parte de denunciado».

A versão de que o arguido agiu com o propósito deliberado de atropelar o assistente e de lhe tirar a vida só surgiu no requerimento de abertura de instrução, sem que, entretanto, algum facto novo tivesse sido trazido aos autos ou o assistente tivesse alterado a sua versão inicial dos factos.

Por outro lado, ao contrário do que parece entender o recorrente, há muito deixou de vigorar a velha regra unus testis, testis nullius, ultrapassado que está o regime da prova legal ou tarifada, substituído pelo princípio da livre apreciação da prova – artigo 127.º.

Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, como salienta Carrington da Costa, advertindo para que «todo aquele que tem a árdua função de julgar, fuja à natural tendência para considerar a concordância dos testemunhos como prova da sua veracidade», devendo antes ter-se sempre bem presente as palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se»([2]).

Ora, se é certo que a testemunha E... é companheira do arguido, não menos certo é que as testemunhas D... e C... , indicadas pelo assistente, são casadas entre si e ambas estão em litígio com o arguido, sendo representadas pelo aqui assistente, não se vislumbrando razões objectivas para conferir maior credibilidade aos seus depoimentos em detrimento do depoimento prestado por aquela.

Como salienta a decisão recorrida, o assistente relatou os factos em conformidade com o que decorre de fls. 3, 4 e 8, numa versão em tudo decalcada nos depoimentos das testemunhas C... e D... .

Aliás, diga-se que os depoimentos destas testemunhas são também o decalque um do outro, não existindo qualquer diferença entre ambos, a que acresce a circunstância de nenhuma destas testemunhas ter acompanhado o assistente quando este se deslocou ao terreno do arguido, antes tendo permanecido no seu terreno.

A prova pessoal produzida apontou em dois sentidos ou direcções completamente distintas: a versão trazida aos autos pelo assistente, secundada pelas referidas testemunhas, e a versão que decorre do depoimento da testemunha E... , cuja presença no local dos factos não foi infirmada, antes pelo contrário, pelo assistente.

O princípio in dubio pro reo é unanimemente reconhecido entre nós como princípio fundamental do direito processual penal que respeita às consequências da não realização da prova sobre a verdade de um facto, ou seja, à falta de convicção do tribunal sobre a verdade ou falsidade de um facto, isto é, situação de dúvida, de non liquet.

O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois.

Como acentua Jescheck “serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do direito que surjam numa situação probatória incerta”([3]) ou, dito de outro modo, significa que a persistência de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido([4]).

A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir «pro reo», tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal([5]) ([6]).

Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio([7]).

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável([8]).

Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção) e, por outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

No caso em apreço, sendo os meios de prova constituídos essencialmente por prova por declarações, não se vislumbra que a decisão recorrida padeça de errada apreciação e apreensão (críticas) da prova indiciária recolhida, posto que, em face da divergente prova produzida na fase de inquérito, mantendo-se tais elementos de prova em sede de julgamento, não logrará o Tribunal convencer-se, para além de qualquer dúvida razoável, da realidade da actuação imputada ao arguido.

Uma dúvida como a do tribunal a quo, que se apoia na circunstância de existirem duas versões contraditórias sobre a realidade dos factos e de não existirem razões para que, de modo objectivo, se possa conferir maior credibilidade a uns depoimentos em relação a outro, é uma dúvida que não pode deixar de se considerar objectivada e, portanto, tem a virtualidade de, racionalmente, convencer quem quer que seja da bondade da sua justificação.

O mesmo é dizer que, por se mostrar racional, razoável e insuperável, tal dúvida legitima a aplicação do princípio in dubio pro reo pelo que não merece censura o seu uso pelo tribunal a quo ao considerar que não resultam indiciados nos autos factos suceptíveis de preencherem o tipo legal de crime imputado ao arguido.

Assim, porque a decisão recorrida não nos merece qualquer reparo, entendemos fazer uso do disposto no n.º 5 do artigo 425.º do Código de Processo Penal, remetendo para os fundamentos da mesma e negando, consequentemente, provimento ao recurso do assistente.

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III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)

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Coimbra, 9 de Março de 2016

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IX, tomo III, página 196.
[2] - Psicologia do Testemunho, in Scientia Juridica, p.337.
[3] - Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edição, pág. 127.
[4] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, edição de 1974, pág. 215.
[5] - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166.
[6] - No mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 05.02.2009, 14.10.2009 e de 15.04.2010, proferidos nos processos nºs 2381/08 - 5, 101/08.7PAABT.E1.S1 - 3 e 154/01.9JACBR.C1.S1 - 5, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos/secçãocriminal.
[7] - Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
[8] - Neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), pág. 25.