Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
43/13.4TASBG-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: CRIME PARTICULAR
NOTIFICAÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
ASSISTENTE
Data do Acordão: 04/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 119.º, 122.º, 284.º E 285.º, DO CPP
Sumário: I - Nos crimes públicos e semi-públicos, o MP deve acusar em primeiro lugar, podendo o assistente deduzir a sua acusação nos termos do artigo 284.º do CPP; nos crimes particulares, o assistente é que deve acusar primeiro, devendo o MP usar da faculdade do disposto no artigo 285.º, n.º 4, do CPP.
II - Se nos crimes públicos e nos crimes semi-públicos a falta de acusação pelo MP corresponde a uma falta de promoção processual, logo, constitui a nulidade do artigo 119.º, alínea b), do CPP, também a falta de promoção do MP com vista à dedução de acusação particular pelo assistente, tem de conduzir ao mesmo vício e resultado.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I
Nos autos de processo nº 43/13.4tasbg-B, sob apreciação, constam os seguintes elementos:
1. Em 24 de Abril de 2013, os assistentes apresentaram queixa/denúncia contra os arguidos C... e D... , ids. nos autos, na qual denunciavam os crimes de difamação, falsas declarações e outros conexos – v. fls. 63 a 65 (fls. 1, 2 e 3 dos autos principais).
2. Em 27.1.2014, pelo Ministério Público foi proferido o despacho de fls. 18 a 28, no qual determinou o arquivamento do processo, tendo-se pronunciado sobre a questão que compete apreciar neste recurso, o seguinte:
“Não obstante, face à redacção da denúncia que deu origem aos presentes autos, os factos aí descritos eram susceptíveis de consubstanciar também a prática de um crime de difamação, tendo aliás o inquérito sido registado sob essa qualificação jurídica.
Nessa medida, os denunciantes foram admitidos a constituir-se assistentes e a consultar os autos sempre que o requereram.
Assim, independente da qualificação jurídica dos factos feita no despacho de arquivamento ora proferido, cremos que importa dar conhecimento do respectivo teor aos denunciantes.
Em conformidade, cumpra o disposto no artigo 277.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, comunicando aos arguidos e aos denunciantes a prolacção do presente despacho final de inquérito”.
3. Após este despacho de arquivamento e apesar de os assistentes não terem sido notificados para deduzir acusação particular quanto ao crime de difamação de que apresentaram queixa, ou seja, apesar de pelo Ministério Público não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 285º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, os assistentes dentro do prazo de dez dias contados da data em que lhes foi notificado o despacho de arquivamento (em 11.2.2014) deduziram a acusação particular e pedido civil dirigidos ao juiz – v. fls. 42 a 44v.
4. Em 14/02/20 14, o M°P° ordenou o desentranhamento do pedido civil e a acusação particular, com o fundamento de que os factos denunciados foram por si qualificados de crime de falsidade de testemunho, o qual não é particular e por tal não se deu cumprimento ao art.285° n°1 do CPP – v. fls. 30.
5. Os assistentes reclamaram de tal despacho para o juiz de instrução criminal em 03/03/2014 juntando a acusação particular e o pedido civil que já haviam apresentado.– v. fls. 33.
6. Em 10/03/2014, o M°P° proferiu novo despacho em que aprecia o requerimento dos assistentes e ordena, novamente, o desentranhamento dos articulados, dizendo, sobre a questão, o seguinte:
“No que à acusação particular diz respeito, importa não esquecer a redacção do artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal:
Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias querendo, acusação particular.
Da simples leitura do preceito extrai-se que o prazo de dez dias para a dedução de acusação particular conta-se da notificação do assistente para esse específico propósito, não da dedução de despacho de arquivamento.
Ademais, a notificação é da iniciativa do Ministério Público, a quem cabe a direcção do inquérito e a quem compete deduzir despacho de encerramento de tal fase processual.
Assim, a acusação particular terá de ser deduzida perante o Ministério Público, tendo aliás em conta o disposto no n.º 4 do artigo 285.º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual o Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.
Cumpre ter igualmente presente que até à remissão dos autos para a fase de instrução ou de julgamento o processo mantem-se sob a alçada do Ministério Público.
No decurso do inquérito, o juiz de instrução intervém a título excepcional, apenas nos casos taxativamente previstos nos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, com o fito de assegurar o respeito dos direitos, liberdades e garantias dos visados pela investigação.
Uma vez mais, da simples leitura dos dois preceitos ora mencionados, facilmente se constata que o juiz não tem competência para receber e apreciar acusações particulares antes do saneamento do processo, previsto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, o qual ocorre já na fase de julgamento.
Ora, é a lei processual penal que define a competência dos magistrados – judiciais ou do Ministério Público – para receber e apreciar determinado requerimento.
O facto de uma peça processual ou um requerimento ser dirigido ao juiz (como é o caso dos requerimentos em apreciação no presente despacho de fls. 411, 421, 422 e 423 e seguintes) não tem o efeito de retirar a competência do Ministério Público (que lhe é atribuída por lei) e de a conferir ao juiz.
Pelo exposto, no que diz respeito à acusação particular e ao pedido de indemnização novamente apresentados a fls. 423 e seguintes, renovo inteiramente o despacho de fls. 387, não admitindo a sua junção e determinando o respectivo desentranhamento e devolução aos requerentes”.

7. Na sequência de tal despacho os articulados foram, de novo, desentranhados e devolvidos aos assistentes.
8. Em 28 de Março de 2014, os assistentes, por requerimento dirigido ao Sr. Juiz de instrução criminal, manifestaram-se mais uma vez contra o desentranhamento ordenado pelo Ministério Público da acusação particular e do pedido civil, invocando o não cumprimento do artigo 285º, nºs 1 e 2 do CPP, requerendo que fossem admitidos quer a acusação particular quer o pedido civil – v. fls. 41.
9. Sobre este requerimento foi proferido o despacho judicial de 3.4.2014 – v. fls. 45 a 47 -, onde sobre esta questão foi decidido o seguinte:

“Determina o artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias querendo, acusação particular”.
Da referida norma legal resulta, desde logo, que o prazo de dez dias para a dedução de acusação particular conta-se da notificação do assistente para esse específico propósito e não da dedução de despacho de arquivamento.
Por sua vez, dispõe o n.º4 do artigo 285.º do Código de Processo Penal, que “O Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles”.
Verifica-se, pois, que a acusação particular terá de ser deduzida perante o Ministério Público, o qual pode, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.
Acresce que, até à remissão dos autos para a fase de instrução ou de julgamento o processo mantém-se sob a alçada do Ministério Público, tendo o juiz de instrução intervenção a título excepcional, nos casos previstos nos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, com vista a assegurar o respeito dos direitos, liberdades e garantias dos visados pela investigação.
Ora, conforme resulta das normas legais citadas, o juiz não tem competência para receber e apreciar acusações particulares antes do saneamento do processo, previsto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, o qual ocorre na fase de julgamento.
Cumpre ainda referir, que a terem existido quaisquer nulidades processuais na fase de inquérito as mesmas são apreciadas na fase de instrução.
Assim sendo, não assiste qualquer razão aos assistentes, pelo que deve ser indeferido o ora requerido.
3. Pelo exposto, indefere-se o requerido pelos assistentes A... e B... .

10. Deste despacho recorrem agora os assistentes, formulando as seguintes conclusões:

10.1. Os presentes autos tiveram origem em queixa formulada pelos assistentes, pela qual denunciavam os crimes de difamação, falsas declarações e outros conexos.

O M°P° proferiu nos autos despacho de arquivamento quanto aos denunciados crimes de falsidade de testemunho.

No mesmo despacho de arquivamento, in fine, o representante do M°P° refere que os presentes autos se iniciaram com a queixa dos assistentes e que os autos podem consubstanciar um crime de difamação, tendo o inquérito sido registado com essa qualificação jurídica, sendo omisso quanto a qualquer outra factualidade.

10.2. Os assistentes após o despacho de arquivamento não foram notificados para deduzir acusação particular quanto a este crime particular nem para deduzir pedido de indemnização civil, nem lhes foi comunicado se foram recolhidos ou não indícios suficientes para a verificação do crime particular.

Apesar, de tal omissão os assistentes dentro do prazo de dez dias contados da data em que lhes foi notificado o despacho de arquivamento deduziram a acusação particular e o pedido civil dirigidos ao meritíssimo juiz de direito.

10.3. O M°P° ordenou, em 14/02/2014, o desentranhou do pedido civil e a acusação particular, invocando que os factos denunciados foram por si qualificados de crime de falsidade de testemunho, o qual não é particular e por tal não se deu cumprimento ao art.285° n°01 do CPP.

Os assistentes reclamaram de tal despacho para o juiz de instrução criminal em 03/03/2014, juntando a acusação particular e o pedido civil que já havia apresentado. Acontece, que por despacho de 10/03/2014, o M°P° veio ordenar, novamente, o desentranhamento de tais articulados invocando que o juiz não tem competência para receber e apreciar acusações particulares antes do saneamento do processo e que apesar de os articulados estarem dirigidos ao juiz tal não retira a competência ao M°P°.

Na sequência de tal despacho os articulados foram, de novo, desentranhados e devolvidos aos assistentes.

10.4. Nos termos do art.285° n°01 do CPP, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, o M°P° notifica o assistente para que este deduza em 10 dias acusação. Após a apresentação da acusação particular o M°P° acusa pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.

Não tem o M°P° o poder de considerar se a queixa apresentada pelos recorrentes consubstancia ou não um crime de natureza particular e arquivar os autos como o fez “saltando” todas estas formalidades.

10.5. Nos termos do art.285° n°02 do CPP, o que o M°P° pode fazer, e deve, é informar se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime.

Posteriormente, acompanhar a acusação particular ou não, caso seja deduzida, a qual estará sujeita a eventual abertura de instrução.

10.6. Face a esta atitude do M°P° violadora do preceituado nos art.285° n°01, 02 e 04 do CPP os recorrentes reclamaram por duas vezes para o juiz de instrução, por forma a que seja assegurado o respeito dos direitos, liberdades e garantias dos intervenientes processuais, sendo que a primeira reclamação dos assistentes foi desentranhada e a segunda reclamação deu origem ao despacho ora recorrido.

O despacho recorrido veio confirmar a posição do M°P°.

10.7. Acontece, que os recorrentes não se conformam com tal despacho, pois deduziram acusação particular e pedido de indemnização civil nos autos, dentro do prazo de dez dias contados da data do arquivamento proferido nos autos, apesar de não terem sido notificados para o efeito e de não lhes ter sido comunicado se existiam indícios suficientes da verificação do crime.

Porém, consideram os assistentes de que tal se trata de irregularidade processual que está sanada (cfr. arts. 123° do CPP), devendo ser admitida a acusação particular e o pedido cível, isto é mantendo-se tais articulados nos autos, notificando o MP nos termos e para os efeitos do art.285° n°04 do CPP.

Nestes termos, requerem a V. Exas. se dignem considerar procedente por provado o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, e em consequência admitida a acusação particular e o pedido cível, isto é mantendo-se tais articulados nos autos, notificando-se o MP nos termos e para os efeitos do art.285° n°4 do CPP. 11. O Ministério Público respondeu, dizendo sobre o objecto do recurso:








12. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, dizendo em síntese que,

Os assistentes não têm razão uma vez que, conforme consta do despacho recorrido, o juiz de instrução não tem competência para receber e apreciar acusações particulares antes do saneamento do processo, previsto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, o qual ocorre na fase de julgamento.

13. Foram os autos a vistos e procedeu-se a conferência.

II

Questão a apreciar:

1. A admissibilidade ou não da acusação particular deduzida pelos assistentes e respectivo pedido de indemnização civil.

III

Cumpre apreciar:
1. É inquestionável que ao Ministério Público cabe exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática – artigo 219º, da CRP.
Por sua vez, nos termos do artigo 48º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º.
Assim, o artigo 49º daquele diploma exige que, quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo. Ou seja, não havendo a dita queixa, o MºPº não pode promover o processo, logo não pode investigar nem deduzir qualquer acusação pois falta-lhe legitimidade processual para o fazer.
De igual modo, nos termos do artigo 50º, nº 1, do CPP, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular. Ou seja, também aqui, a legitimidade processual do MºPº está dependente da verificação destes requisitos.
Acrescenta o nº 2 do artigo 50º que o Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis à descoberta da verdade e couberem na sua competência, participa em todos os actos processuais em que intervier a acusação particular, acusa conjuntamente com esta e recorre autonomamente das decisões judiciais.
Ora, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação – artº. 262º, nº 1, do CPP.
Inquérito este que é efetivamente dirigido pelo Ministério Público – art. 263º, nº 1, do CPP – e que este (o MºPº) pratica os atos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no nº 1 do artigo 262º, nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes.
Nessas restrições cabem, desde logo, os atos a praticar pelo juiz de instrução – artigos 268º e 269º, do CPP.

2. Definidas as linhas gerais da legitimidade de intervenção/investigação do Ministério Público quando o procedimento criminal depende de queixa (situação em que tem que existir queixa por parte do ofendido) ou de acusação particular (situação em que é necessário que o ofendido ou as outras pessoas, se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular), cabe agora analisar a tramitação processual depois de realizadas todas as diligências de prova. E como o que está em causa é um crime de natureza particular é este que essencialmente releva no presente caso.
2.1. Nos processos em que estão em causa crimes de natureza pública ou semi-pública (com a respectiva apresentação de queixa), realizadas as respectivas e necessárias diligências de prova, o Ministério Público:
- deduz despacho de arquivamento se se verificarem os pressupostos do artigo 277º, do CPP.
- ou deduz acusação se se verificarem os pressupostos do artigo 283º, do CPP.
Se o MºPº proferir despacho de arquivamento, o assistente pode requer a abertura da instrução – artigo 287º, nº 1, alínea b), do CPP.
Se o MºPº deduzir acusação, o assistente pode igualmente deduzir acusação, no prazo e nos termos do artigo 284º, do CPP.
O que o MºP não pode é nada fazer. Como titular da ação penal, tem o poder/dever da promoção processual. O processo não pode ficar simplesmente parado, sem o Ministério Público tomar uma posição ativa sobre a sua tramitação, o seu destino.
Este poder/dever da promoção processual pelo MºPº refere-se quer aos crimes de natureza pública, quer semi-pública, quer particulares.
Nos crimes de natureza pública ou semi-pública tem nomeadamente o dever de deduzir acusação, entendendo-se mesmo que constitui falta de promoção processual o facto de o MºPº, em vez de acusar, acompanhar tão só a acusação deduzida pelo assistente – v. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, UCP, 2ª edição, fls. 302, nota 4 (em anotação ao art. 119º) e o Assento n.º 1/2000 com o seguinte teor:
“Integra a nulidade insanável da alínea b) do artigo 119.º do Código de Processo Penal a adesão posterior do Ministério Público à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública ou semi-pública e fora do caso previsto no artigo 284.º, n.º 1, do mesmo diploma legal”.
Bem como o ac. do TRL de 7-04-2010:
“II. No momento processual próprio o Ministério Público, ao invés de deduzir acusação, ordenou a notificação da assistente nos termos e para os efeitos do artº 285º, nº1 do CPP e, posteriormente, acompanhou a acusação particular por aquela deduzida que, incorrectamente, qualificou os factos como integrando o crime de injúrias simples p. e p. pelo artº 181º, nº1, do CP.
III. Acontece que integra a nulidade insanável da alínea b) do artº 119º do CPP a adesão posterior do Ministério Público à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública ou semi-pública e fora do caso previsto no artº 284º, nº1, do mesmo diploma legal. cfr. Assento nº1/2000, in DR Série I-A, de 6/1/2000.
IV. Isto porque, a ordem da sucessão das acusações do MP e do assistente é imperativa, surgindo, no tocante aos crimes públicos e semi-públicos, a deste necessariamente na sequência da acusação proferida por aquele e condicionada a esta (artº 284º, nºs 1 e 2). A subsequente adesão do MP à acusação do assistente não supre a nulidade decorrente da omissão inicial da acusação pública, tal como a acusação do Ministério Público em crime particular não sana a inexistência da acusação que deve ser formulada pelo assistente.
Acresce que a lei, ao contrário do que dispõe relativamente aos crimes particulares (artº 284º, nº2, al. a), não prevê que a acusação pública possa limitar-se à adesão da acusação do assistente (artº 285º, nº3).

2.2. Mas o que está em causa nos presentes autos é um crime particular Crime de difamação, conforme teor da queixa. – relativamente ao qual o ofendido apresentou queixa e constituiu-se assistente -, que teve o impulso ou promoção processual do MºPº até determinada fase mas relativamente ao qual, quando profere o despacho de arquivamento de 27.1.2014 – fls. 18 a 29 – não toma a iniciativa a que se refere o artigo 285º, nº 1, do CPP. Limita-se a dizer apenas o seguinte:
“Não obstante, face à redacção da denúncia que deu origem aos presentes autos, os factos aí descritos eram susceptíveis de consubstanciar também a prática de um crime de difamação, tendo aliás o inquérito sido registado sob essa qualificação jurídica.
Nessa medida, os denunciantes foram admitidos a constituir-se assistentes e a consultar os autos sempre que o requereram.
Assim, independente da qualificação jurídica dos factos feita no despacho de arquivamento ora proferido, cremos que importa dar conhecimento do respectivo teor aos denunciantes.
Em conformidade, cumpra o disposto no artigo 277.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, comunicando aos arguidos e aos denunciantes a prolacção do presente despacho final de inquérito”.
Entende-se que cabe ao Ministério Público fazer mais, cabe ao Ministério Público, no exercício do seu poder/dever de titular da promoção processual, cumprir os atos legalmente obrigatórios.
E, neste caso ou situação, a lei é clara, dizendo o artigo 285º do CPP:
1 - Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular.
2 - O Ministério Público indica, na notificação prevista no número anterior, se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes.
Paulo Pinto de Albuquerque in obra cit., fls. 747, nota 1 (anotação ao artigo 285º do CPP), descreve deste modo a tramitação a seguir:
“No final do inquérito, o MP toma posição relativamente aos crimes públicos e semi-públicos indiciados nos autos. Em relação aos crimes particulares, o MP deve notificar o assistente para, querendo, deduzir acusação particular. Portanto, havendo concurso de crimes públicos ou semi-públicos e particulares, o MP deve deduzir acusação ou arquivar os autos em relação aos crimes públicos ou semi-públicos e, em simultâneo, notificar o assistente para os efeitos do artigo 285º O arguido é notificado conjuntamente do despacho do MP e da acusação do assistente”.

2.3. Segundo o teor do despacho do MP onde determinou o arquivamento dos autos, não deu o mesmo cumprimento ao disposto no artigo 285º, nºs 1 e 2 do CPP, porque entendeu qualificar os factos constantes da queixa do assistente, de modo diferente. Embora reconheça que “face à redacção da denúncia que deu origem aos presentes autos, os factos aí descritos eram susceptíveis de consubstanciar também a prática de um crime de difamação”.
A questão que se segue é se pode o MP proceder nos termos em que procedeu, ou seja, qualificar de modo diferente os factos objecto da queixa por crime particular e no seguimento dessa diferente qualificação, não dar cumprimento aquela disposição (artigo 285º), não dando a oportunidade ao assistente de formular a acusação particular.
Entendemos que não pode. Se assim não fosse, seria subverter toda a filosofia e tramitação inerente aos crimes particulares relativamente aos quais a lei exige a apresentação formal de queixa, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular.
Digamos que neste tipo de crimes, passa-se exatamente o inverso dos crimes públicos e semi-públicos: nestes, o MP deve acusar em primeiro lugar, podendo o assistente deduzir a sua acusação nos termos do artigo 284º do CPP; naqueles (particulares), o assistente é que deve acusar primeiro, devendo o MP usar da faculdade do disposto no artigo 285º, nº 4, do CPP:
4 - O Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles.
Ilustrativo desta posição é, mais uma vez, o procedimento descrito por Paulo Pinto de Albuquerque in obra cit., fls. 152, nota 7, quando diz:
“O inquérito relativo a crime particular não pode ser arquivado pelo Ministério Público por não se ter obtido indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os seus autores, podendo apenas o MP fazer uso da faculdade prevista no artigo 285º, nº 4”.
Efetivamente, é em primeiro lugar a queixa e depois a acusação particular V. neste sentido, o ac. deste TRCoimbra de 211.1.2015, proferido no proc. nº 15/12.6GAMMV.C1:
I - A legitimidade para promover a acção penal nos crimes particulares depende da existência de queixa, da constituição do ofendido como assistente e, finalmente, da dedução de acusação particular.
II - Só pode ser levado à acusação particular, deduzida em crime de natureza particular, em sentido estrito, o facto transmitido na respectiva queixa, pressuposta a sua relevância jurídico-penal. Quando tal não acontece, quando não existe correspondência – com a amplitude supra delimitada – entre o facto transmitido na queixa e o facto acusado, resta concluir pela não verificação da mencionada condição de procedimento.
, que deve delimitar e fixar o objecto do processo.
Apesar de o procedimento criminal não revestir a natureza de um procedimento privatístico, pois o MP continua a proceder oficiosamente a todas as diligências de prova depois da apresentação da queixa e da constituição como assistente – v. Paulo Pinto de Albuquerque in obra cit., fls. 151, nota 2 – na fase da acusação predomina o disposto no artigo 285º, do CPP, que deve ser observado e cumprido pelo MP.
Numa primeira fase, o MP deve observar o disposto nos nºs 1 e 2 daquele preceito e depois da acusação particular, agir nos termos do nº 4, do mesmo preceito.
A este propósito decide-se em ac. deste TRCoimbra de 21.3.2012, proferido no proc. nº 597/11.0T3AVR.C1:
1.- Tratando-se de crime de natureza particular, é ao assistente que compete deduzir acusação particular - de forma autónoma e exclusiva;
2.- O MP carece de legitimidade para lhe aditar factos essenciais para a definição do crime imputado;
3.- O aditamento de matéria de facto, pressuposto essencial do crime imputado, representa uma alteração substancial dos factos;
4.- Sendo a acusação particular omissa quanto aos factos integradores do tipo subjetivo, é nula, devendo ser rejeitada por manifestamente infundada.

3. Depois de todas estas considerações, cumpre agora analisar em termos concretos e efetivos, o que fazer quanto quer à atitude do MP em mandar desentranhar a acusação particular e quanto ao teor do despacho recorrido.
Sabe-se que existiu uma omissão do MP ao não dar cumprimento ao disposto no artigo 285º, nºs 1 e 2 do CPP. Entendemos que o cumprimento deste preceito se insere no poder/dever de o MP promover a ação penal, sem o cumprimento do qual o assistente fica sem a faculdade de poder acusar.
Repare-se que não está, neste momento, em causa, uma apreciação jurídica e substantiva sobre o conteúdo da acusação particular, nomeadamente se a mesma é fundada ou infundada. Sobre essa parte se pode pronunciar o MP, nos termos do nº 4, acompanhando ou não tal acusação e dizendo os motivos por que o não faz, bem como a apreciação feita pelo juiz de julgamento ao proferir o despacho do artigo 311º, do CPP, sendo certo que a mesma pode ser rejeitada por manifestamente infundada – nº 2, alínea a) e nº3, daquele preceito. Isto, sem prejuízo de o arguido poder requerer a abertura da instrução – art. 287º, nº1, alínea a), do CPP.
Ou, dito de outro modo, qual o vício, seu modo de suprimento e quais as respectivas consequências processuais, que estão na base da inobservância daquele preceito legal.
Sobre a não promoção da ação penal, nos crimes de natureza particular se pronuncia o ac. do TRPorto de 23.4.2014, proferido no proc. nº 792/10.9GDVFR.P1, onde se decide:
I - Não é a queixa ou a denúncia quem fixa o objeto do processo, mas apenas a acusação, ou a pronúncia, se tiver havido instrução Conforme supra se apontou, se é acusação que fixa o objecto final do processo, esta, por sua vez, está sujeita e condicionada pelo facto ou factos constantes da queixa ou denúncia..
II – Se os crimes investigados são de natureza particular teria a ofendida de ser advertida da obrigatoriedade de se constituir assistente e dos procedimentos a observar, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 246º do Código de Processo Penal.
III – Caso viesse a constituir-se assistente dentro do prazo legal, deveria ser também notificada para, querendo, deduzir acusação particular, como prescreve o artigo 285º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
IV – Se o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento dos autos, sem dar oportunidade à ofendida de se constituir assistente e deduzir acusação particular, não a tendo notificado nos termos dos preceitos legais citados, não promoveu o processo nos termos e segundo as regras legais do artigo 48º do Código de Processo Penal (que remete expressamente para o artigo 50º quanto aos crimes particulares).
V – A falta de promoção de processo por crime particular integra a nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 119º do Código de Processo Penal, tornando inválido o acto em que se verificou, acarretando a invalidade do próprio despacho de arquivamento e de tudo o que foi praticado posteriormente ao arquivamento, designadamente as notificações efetuadas, toda a instrução e o próprio despacho de não pronúncia.

Com uma posição diferente sobre a omissão do MP em não dar cumprimento ao artigo 285º, nº 1, do CPP se pronuncia o ac. do TRP de 27-06-2012 :
I. Nos crimes particulares, o MP só ordena a notificação prevista no art.º 285º do CPP se não arquivar o inquérito por falta de pressupostos processuais, ou na sequência do conhecimento de questões prévias ou incidentais que impedem o conhecimento do mérito.
II. A falta de notificação ao assistente para deduzir acusação particular configura a nulidade sanável referida na alínea d) do n.º 2 do art.º 120º do CPP.

3.1. Da forma como interpretamos o poder/dever de promoção processual do MP, entendemos que o vício de falta de promoção deve ser o mesmo quer nos crimes públicos, quer nos crimes semi-públicos quer nos crimes particulares.
Para todos eles existem regras específicas que têm que ser observadas.
Se é de entender que nos crimes públicos e nos crimes semi-públicos a falta de acusação pelo MP corresponde a uma falta de promoção processual, logo, constitui a nulidade do artigo 119º, alínea b), do CPP, também a falta de promoção do MP com vista à dedução de acusação particular pelo assistente, tem de conduzir ao mesmo vício e resultado. Também nesta situação, a observância pelo MP das disposições legais – com a notificação obrigatória ao assistente -, é requisito essencial para que seja deduzida a respectiva acusação particular. Sem a notificação do assistente para este fim e a consequente dedução da acusação, o processo não atinge a sua finalidade principal.
Com certeza que, depois de deduzida a acusação particular (ou eventual não dedução, se o assistente assim o entender, com as respectivas consequências em termos de custas – v. art. 515º, nº1, alínea d), do CPP -), o MP tomará a sua posição nos termos já apontados do art. 285º, nº 4, acompanhando ou não tal acusação, bem como pode o arguido requerer a abertura da instrução.
E, por último, fica ainda tal acusação sujeita ao saneamento do artigo 311º, do CPP.

3.2. Sendo esta a nossa posição sobre o vício pelo não cumprimento pelo MP da obrigação de notificação do artigo 285º, nºs 1 e 2, do CPP, cumpre analisar qual a consequência daí decorrente.
Dispõe o corpo do artigo 119º, do CPP que as nulidades insanáveis devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.
Daqui se retira que, contrariamente à posição do Sr. Juiz de instrução quanto ao pedido dos assistentes, a seguir aquela via, o mesmo poderia ter declarado esta nulidade. E nem seria necessário esperar para o seu eventual conhecimento, a fase da instrução, conforme referido no despacho recorrido.
Por sua vez, dispõe o artigo 122º, do CPP:
1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.
Estando em causa uma nulidade por omissão de um ato do MP em que não ordenou a notificação dos assistentes para os termos do artigo 285º, do CPP e tendo, todavia, estes mesmos assistentes, já deduzido acusação e formulado o respectivo pedido civil, mandam os princípios da economia e celeridade processual, que tais peças possam ser aproveitadas, em vez de sujeitar o MP a cumprir aquela disposição legal e os assistentes a apresentarem novas peças processuais de igual teor.
Pelo que se entende, que este ato já praticado pelos assistentes, se possa aproveitar processualmente, o mesmo é dizer que a acusação e pedido civil podem/devem ficar nos autos.
A partir daqui, importa, quanto a este crime particular pelo qual os assistentes deduziram acusação, cumprir as demais formalidades:
Desde logo, o MP deve pronunciar-se nos termos do artigo 285º, nº 4, do CPP.
A que se seguirá a notificação, aos arguidos, quer do teor da acusação particular quer da posição do MP tomada na sequência do artigo 285º, nº 4, do CPP.
Bem como toda a tramitação processual legal posterior a estes atos.
IV
Decisão
Por todo o exposto, decide-se:
Conceder provimento ao recurso dos recorrentes A... e B... e, consequentemente:
1. Devem ficar nos autos quer a acusação particular quer o pedido civil deduzido pelos assistentes/recorrentes.
2. Deve o MP deve pronunciar-se sobre a acusação particular nos termos do artigo 285º, nº 4, do CPP.
3. Ao que se seguirá a notificação, aos arguidos, quer do teor da acusação particular quer da posição do MP tomada na sequência do artigo 285º, nº 4, do CPP, bem como toda a tramitação processual legal posterior a estes atos.
Sem custas.
Coimbra, 22 de Abril de 2015

(Luís Teixeira - relator)

(Calvário Antunes - adjunto)