Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HUGO MEIRELES | ||
Descritores: | INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS BENFEITORIA CRÉDITO DE COMPENSAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 10/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE CALDAS DA RAINHA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1093.º E 1105.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
Sumário: | I – A edificação de uma casa pelos dois cônjuges, na pendência do casamento contraído no regime da comunhão de adquiridos, em terreno próprio de um deles, constitui uma benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) a considerar no momento da partilha.
II – Se esse crédito for relacionado pelo cabeça de casal em inventário subsequente a divórcio e negado pelo cônjuge devedor, a apreciação da respetiva controvérsia está sujeita à tramitação prevista no n.º 3 do art. 1.105º do Código de Processo Civil, não sendo aplicável regime previsto nos n.ºs 6 e 7 da mesma norma (negação de crédito do património comum sobre terceiro). (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA I. Relatório AA, melhor identificado nos autos, instaurou, no Cartório Notarial ..., inventário para partilha de bens subsequente a divórcio, contra BB. Na qualidade de cabeça de casal, em 6 de janeiro de 2020, o identificado requerente do inventário apresentou a relação de bens que integra, do lado ativo, um direito de crédito (benfeitoria), diversos bens móveis, bem como, no lado passivo, uma dívida proveniente de um contrato de mútuo. A solicitação do requerente e cabeça de casal, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 12º. n.º 2, al. b) da lei n.º 117/2019, em 11 de novembro de 2022, foram os autos remetidos ao Juízo de Família e Menores ... onde passaram a correr termos por apenso ao processo de divórcio entre o requerente e a requerida Já o processo corria seus termos no referido tribunal, veio o cabeça de casal apresentar requerimento pelo qual declarou ter direito a ½ do valor das benfeitorias indicadas na relação de bens, quantificando-as no montante de €150.000,00 e requerendo ainda a sua avaliação. Por seu turno, notificada deste último requerimento do cabeça de casal, a requerida, por requerimento de 19 de abril de 2023, que designou de reclamação e oposição “nos termos e para os fins do art. 1.104º, n.º 1, al. d) e e) do CPC”, veio negar o crédito de benfeitorias por aquele relacionado (verba n.º 1), quer quanto à sua existência, quer quanto ao seu valor[1]. Por despacho de 11 de maio de 2023, o Mmº Juiz titular do processo veio expressar o entendimento segundo o qual “o invocado Direito de Crédito por benfeitorias que o Cabeça de Casal relaciona, deveria ter sido relacionado, antes, no passivo da relação de bens” e, concluindo ser complexa a averiguação dos pressupostos fácticos da existência (ou não) desse crédito, suscitou possibilidade, quanto a tal pretensão, da remessa dos interessados para os meios comuns, ordenando que antes de ser proferida a competente decisão, fossem as partes previamente auscultadas para se pronunciarem. Enquanto a requerida se manifestou favoravelmente a esta possibilidade, o requerente/cabeça de casal declarou a sua oposição à remessa para os meios comuns, continuando a requerer que o tribunal levasse a cabo a avaliação da dita benfeitoria. Em 15 de abril de 2024, foi proferido despacho com o seguinte teor: SANEAMENTO do processo A única questão que se suscita é a das benfeitorias relacionadas pelo cabeça-de-casal, tendo como devedor o casal (o património comum, que constitui o objecto da partilha).(resolução de todas as questões susceptíveis de influir na partilha) “Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa” - Art. 216º, nº 1, do Código Civil. Tem interesse saber-se que as benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (nº 2 da disposição citada), bem como que o comodatário é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé - Art. 1138º do Código Civil. Isto porque o possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito. Sendo as benfeitorias despesas, o respectivo reembolso corresponde a um crédito. Como tal, invocar que o casal realizou benfeitorias corresponde a invocar um crédito do casal sobre o proprietário da coisa beneficiada (que neste caso pertence é um dos membros do casal). Se o crédito relacionado pelo cabeça de casal e negado pelo pretenso devedor [como sucede neste caso, em que o devedor é o cônjuge mulher, que negou essa sua putativa dívida] for mantido na relação, reputa-se litigioso - Art. 1105º, nº 6, do CPC. De resto, se o crédito previsto no número anterior for eliminado, entende-se que fica ressalvado aos interessados o direito de exigir o pagamento pelos meios adequados - Art. 1105º, nº 7, do CPC. Como tal, não há que produzir prova sobre o crédito em causa, o qual deve permanecer - caso em que fica ressalvado ao interessado o direito de exigir o pagamento através dos meios processuais comuns (ou seja, nem sequer é necessário remeter os interessados para esses meios). Aliás, como resulta do disposto no Art. 1104º, nº 1, als. d) e e), do CPC, os interessados directos na partilha podem, além do mais, reclamar da relação de bens e impugnar créditos e dívidas da herança (neste caso, vez de herança, trata-se do património comum do casal). Assim, relativamente aos créditos da herança (património comum do casal), os interessados não podem reclamar, mas apenas impugnar - o que determina, como se referiu, que o crédito seja havido como litigioso. Tanto assim é que o legislador apenas regulou a verificação do passivo (dívidas da herança - e não os créditos desta), como resulta do disposto nos Arts. 1106º e 1107º do CPC. Não havendo necessidade de o legislador acautelar os créditos da herança, porquanto estes, sendo activos da herança, estão, tal como os restantes activos, sujeitos às regras da abertura de licitações entre os interessados, na falta de acordo - Art. 1113º do CPC. Por outro lado, a avaliação apenas está prevista relativamente aos bens a partilhar (a parte do activo constituída por bens - coisas - e não por créditos - direitos) - Art. 1114º do CPC. Não sendo admissível a avaliação de créditos! Em face do exposto, nada mais há a decidir, não havendo outras questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar - Art. 1110, nº 1, al. a), do CPC. Pelo que, em obediência ao disposto no Art. 1110º, nº 1, al. b), do CPC, ordeno a notificação dos interessados para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha. Notifique.” * Não se conformando com esta decisão, a requerida BB veio recorrer da mesma, formulando as seguintes conclusões:(…). * O recorrido cabeça de casal não apresentou contra-alegações.* II. Questões a decidirConsiderado o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso - arts 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) – impõe-se apenas decidir sobre o acerto da manutenção na relação de bens, como crédito litigioso, da verba n.º 1 (benfeitorias/direito de crédito) e, não sendo o caso, se a controvérsia sobre tal verba deverá ser resolvida nos meios comuns. * III. Fundamentação de facto1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda os seguintes factos: a) O cabeça de casal e a requerida contraíram casamento um com o outro em ../../1995, sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos; b) O casamento foi dissolvido por divórcio, por decisão de ../../2018, transitada em julgado em 22 de outubro de 2018. c) Consta do ativo da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, em 06-01-2020, a seguinte verba: Verba n.º 1 Benfeitorias/direito de Crédito, que o Requerente e cabeça de casal tem do Prédio Urbano, sito em ..., para Habitação, composto de Cave e Rés do Chão para Habitação, freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...47 (parcela para construção), inscrito na matriz predial da freguesia ..., sob o m.º ...54 (docs. 1 e 2), com o valor patrimonial atribuído de €59.032,40; d) Por requerimento apresentado em 24 de maio de 2023, o requerente e cabeça de casal veio esclarecer que a casa de habitação identificada na verba supra referida foi edificada num terreno que é bem próprio da requerida, na pendência do casamento, com dinheiro obtido através de um crédito bancário que ambos contraíram ainda no estado de solteiros, o qual foi sendo amortizado, com rendimentos comuns, na pendência do casamento; e) A aquisição do imóvel descrito sob o n.º ...47 (freguesia ...) da Conservatória do Registo Predial ..., está inscrita a favor da requerida, pela ap. ...8, de 1994/08/18; f) Sobre este mesmo imóvel está inscrita, pela ap. n.º 19, de 1994/08/18, uma hipoteca voluntária a favor do «Banco 1..., SA» para garantia de empréstimo contraído pelos aqui requerente e requerida; * IV Fundamentação de DireitoO presente processo de inventário foi instaurado em finais do ano de 2019 e, portanto, ao abrigo do regime jurídico do processo de inventário (RJPI) aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5.3 (arts 1º, 2º e 8º). Este diploma foi revogado pela Lei 117/2019 de 13.9 (que vigora desde 01.01.2020 – art.º 15º), mantendo-se, no entanto, aplicável aos processos de inventário pendentes em cartório notarial à data da sua entrada em vigor, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 11º da referida Lei. Por conseguinte, à tramitação dos presentes autos aplicou-se (e aplica-se) primeiro, o regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05.3 (à tramitação anterior à sua remessa a juízo, que ocorreu em 11 de novembro de 2022) e, depois, o preceituado no atual CPC (na redação conferida pela Lei n.º 117/2019, de 13.9 - cf. arts. 11º a 13º). É, portanto, à luz das regras do Título XVI da Parte I, do atual Código de Processo Civil que a questão sob recurso – atinente à reclamação e oposição apresentada pela requerida em 19 de abril de 2023 - deve ser apreciada. Na relação de bens que apresenta em 6 de janeiro de 2020, o cabeça de casal identifica, na verba n.º 1, como “Benfeitorias/direito de crédito”, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...47 (freguesia ...) e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo ...54. Posteriormente vem esclarecer que tal benfeitoria corresponde à casa de morada de família que foi edificada num terreno que é bem próprio da requerida, na pendência do casamento, com dinheiro obtido através de um crédito bancário que ele próprio e a requerida contraíram ainda no estado de solteiros, o qual foi sendo amortizado, com rendimentos comuns, na pendência do casamento. A decisão recorrida qualifica tal benfeitoria como um crédito do património comum do casal sobre um dos interessados no inventário, no caso a requerida, proprietária do imóvel onde aquela construção foi edificada. Perante os elementos disponíveis e a posição de ambas as partes é irrecusável que o prédio onde está edificada aquela que casa de morada de família constitui bem próprio da requerida, já que por ela adquirido antes do casamento com o requerente, que se considera celebrado sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos (art.º 1717º do Código Civil). De resto, para as partes, é incontroverso que o dito imóvel não integra o acervo de bens comuns a partilhar. Questão diversa é saber se a construção da referida habitação (alegadamente) na vigência do casamento, com fundos obtidos através de um empréstimo bancário contraído por requerente e requerida ainda no estado de solteiros, e cujas prestações foram suportadas por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio, com dinheiro que integrava o património comum, configura, como pretende o cabeça de casal, uma benfeitoria (útil) daquele imóvel da requerida. Entendemos que a resposta deve ser afirmativa e cremos também que tal benfeitoria, a existir, “dará lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio da requerida/recorrente), com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa”[2]. E parece-nos também que, a demonstrar-se tal benfeitoria, a natureza comum da mesma impõe que, para efeitos de partilha neste inventário, o seu valor seja considerado na totalidade, e não pela metade que nesse crédito caberia ao cabeça de casal[3]. É esta a posição maioritária da jurisprudência dos tribunais superiores e que, data venia, aqui seguimos. Como se refere no Ac. do STJ de 29-11-2022[4], “(p)resumem-se comuns as benfeitorias efectuadas pelo cônjuge em prédio pertencente ao outro, quando realizadas na pendência do casamento e sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo em conta a aplicação analógica do art.1733 nº2 CC e por força do disposto no art.1723 c) CC, pois na ausência de menção em documento da proveniência do dinheiro, o bem não pode ser exceptuado da comunhão”. Nesta perspectiva, a edificação insere-se na titularidade do proprietário do terreno, por força do princípio dos direitos reais da especialização ou individualização, dando lugar a um crédito de compensação. Tem sido esta a orientação prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, - e que aqui se acolhe - no sentido de que “o valor da construção de um prédio urbano realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, deve ser relacionado, no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum” (cf., por ex., Ac STJ de 27/1/1993, de 23/3/2004, 13/2/2014, de 16/12/2016, de 30/4/2019, de 6/5/2021, de 13/10/2022, disponíveis em www dgsi.pt ).” Entendemos, assim, ser correto o enquadramento efetuado pelo Mmº Juiz a quo quando considerou que a benfeitoria/crédito relacionada sob a verba n.º 1 do ativo da relação de bens – que foi objeto de impugnação pela requerida, aqui recorrente – configurará “um crédito do casal sobre o proprietário da coisa beneficiada”. Tanto mais que, ao contrário do que pretende a recorrente, a existência da anterior decisão judicial no mesmo processo que “apontava” para um entendimento diverso – qual seja o de qualificar tal benfeitoria como um crédito do cabeça de casal sobre a requerida cuja concreta impugnação por esta demandaria, no caso, uma decisão a remeter a resolução da questão nos meios comuns - não obstava a que o Mmº Juiz a quo qualificasse a dita benfeitoria da forma como o fez, nem tampouco lhe impunha que decidisse a remessa dos interessados para os meios comuns. De facto, tal anterior decisão - proferida ao abrigo do dever de gestão processual previsto no art.º 6º do CPC e do princípio do contraditório previsto no art.º 3, n.º 3 do CPC – destinou-se tão só a provocar a pronuncia das partes sobre a anunciada intenção do tribunal remeter para os meios comuns a averiguação da existência das benfeitorias relacionadas pelo cabeça de casal e negadas pela requerida. Através desse anterior despacho, o Mmº Juiz, que à data era o titular do processo, antecipou o seu entendimento no sentido da verificação dos pressupostos da dita remessa para os meios comuns e da qualificação da benfeitoria (verba n.º 1) como um eventual crédito do cabeça de casal sobre a requerida (devendo por isso constar do passivo da relação de bens). Contudo, não chegou ser proferida qualquer (posterior) decisão que materializasse aquele entendimento. Uma vez que o caso julgado formal apenas se forma relativamente a questões que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação, não estava o Mmº Juiz que subscreveu a decisão sob recurso vinculado ao entendimento que foi propugnado naquele anterior despacho. A questão que se coloca é então a de saber se, sendo correta a premissa de que parte o despacho recorrido – de que a benfeitoria constante da verba n.º 1 da relação de bens, de acordo com a configuração dada pelo cabeça de casal (mas negada pela requerida), deve ser considerado um crédito dos bens comuns sobre a requerida - autoriza a conclusão que dela extraiu o Mmº Juiz a quo. Da decisão recorrida resulta o entendimento segundo o qual, por estarmos perante um crédito ativo do património comum que foi negado pela pretensa devedora (através da reclamação contra a relação de bens que apresentou em 19 de abril de 2023), deve aplicar-se o regime previsto nos n.ºs 6 e 7 do art.º 1.105º do CPC (que corresponde ao anterior regime de negação de dívidas ativas), segundo o qual: (n.º 6) Se crédito relacionado pelo cabeça de casal e negado pelo pretenso devedor for mantido na relação repta-se litigioso; (n.º 7) se o crédito previsto no número anterior for eliminado , entende-se que fica ressalvado aos interessados o direito de exigir o pagamento pelos meios adequados. Nessa medida, entendeu que sobre esse crédito não haverá que produzir qualquer prova, devendo, sem mais, permanecer relacionado como crédito litigioso [“caso em que fica ressalvado ao interessado o direito de exigir o pagamento através dos meios processuais comuns (ou seja, nem sequer é necessário remeter o interessado para esses meios) – sic]. Como dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres [5], “o regime estabelecido nos n.ºs 6 e 7 corresponde, no essencial, ao que constava do art. 1351º do Código de Processo Civil de 1961, a propósito da negação de créditos (dívidas activas) da herança. Assim, se o crédito foi relacionado pelo cabeça-de-casal (ou invocado por qualquer outro interessado) for negado, pelo respectivo devedor, cabe ao juiz decidir – perante o teor e a consistência da alegação e dos documentos apresentados pelos interessados – se deve manter-se ou eliminar-se o seu relacionamento. Esta decisão não produz, porém, nenhuns efeitos definitivos, já que, por um lado, a conservação do crédito como relacionado implica a sua consideração como litigioso (n.º 6), pelo que apenas como tal pode vir a ser adjudicado a algum interessado e, por outro lado, a sua eliminação do relacionamento deixa salva aos interessados (e à própria herança indivisa) a possibilidade de exigir o pagamento pelos meios comuns”. Trata-se, como é dito, de um regime em tudo semelhante ao que resultava do art.º 1351º do Código de Processo Civil de 1961, decorrendo de tal disposição que, se uma dívida ativa, relacionada pelo cabeça de casal, for negada pelo pretenso devedor, será de ouvir os demais interessados e o cabeça de casal (é o que resulta da remissão para o art.º 1348º) e, tomados os esclarecimentos tidos por necessários, será proferida decisão sobre se é de manter ou não o relacionamento de tal crédito/débito[6]. Se for mantido o relacionamento do débito, a dívida reputa-se litigiosa, sendo eliminada, entende-se que fica salvo aos interessados o direito de exigir o pagamento pelos meios competentes. Sobre o regime de negação de dívida ativa estabelecido no (imediatamente) anterior Regime Jurídico de Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/13, de março (em moldes semelhantes aos previstos no CPC de 1961), Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita[7], pronunciando-se sobre o art.º 37º do dito diploma legal, parecem entender que, nessa situação, não chega a existir uma apreciação por parte do tribunal: “caso o pretenso devedor negue uma dívida activa relacionada pelo cabeça de casal, deverá apresentar reclamação, requerendo a exclusão de tal crédito da relação, após o que o cabeça de casal será notificado para se pronunciar. Se mantiver o relacionamento da divida em causa, a mesma reputa-se litigiosa (art. 37º, nº2). Mas, se, pelo contrário o cabeça de casal reconhecer razão ao reclamante, excluindo a dívida (crédito da herança) da relação de bens, os interessados mantêm o direito de exigir o pagamento pelos meios comuns (artigo 37º, nº3)”. Numa análise superficial, poder-se-ia dizer, então, que a decisão recorrida observou a tramitação prevista nas mencionadas normas, posto que, considerando as ditas benfeitorias relacionadas pelo cabeça de casal como um crédito do património comum sobre a requerida – o que por esta foi expressamente impugnado - perante a consistência da alegação do dito crédito e os elementos que constam do processo, decidiu mantê-lo na relação de bens como crédito litigioso, possibilitando assim que, com essa natureza (litigiosa), venha a ser licitado por qualquer dos interessados e, não o sendo, a eles adjudicado na proporção dos quinhões, em conformidade com o preceituado no art.º 1.117º do CPC, sustentando ainda que neste caso “não há que produzir prova sobre o crédito em causa” (sublinhado nosso) Podemos assim afirmar que à decisão recorrida subjaz o entendimento segundo o qual se uma dívida ativa, relacionada pelo cabeça de casal, for negada pelo pretenso devedor, nunca a decisão proferida no inventário a tal respeito terá carácter definitivo, podendo sempre os interessados vir a discutir tal questão através dos meios comuns. É certo que esse entendimento nos parece indiscutível quando os devedores da herança, ou do património comum do extinto casal, não são interessados no inventário. Com efeito, nessa hipótese, os supostos devedores não são citados para os termos do inventário, pelo que nunca uma decisão que ali seja proferida sobre a existência, ou inexistência, do crédito ativo da herança (ou património comum) poderá vincular os indigitados devedores, por não poder ter quanto a eles efeito de caso julgado[8]. Já se nos afigura mais duvidoso quanto o titular passivo da dívida da herança (ou do património comum) é ele próprio um dos interessados no inventário. Quer no âmbito do artigo 1386º CPC 1039, quer na vigência do correspondente artigo 1346º do CPC de 1961[9], António Lopes Cardoso sustentava que esta norma detinha um alcance estreito: “Praticamente, poucas ou nenhumas vezes poderá ter aplicação, porque os devedores não são citados para o inventário, não têm conhecimento dele e muito menos da descrição da dívida da sua responsabilidade. A aplicação da regra surgirá principalmente no caso do pretenso devedor ser um dos interessados no inventário (sublinhado nosso), hipótese em que lhe ficará consentido tomar a posição aludida no artigo 1344º, isto no mesmo requerimento em que, porventura, requeira a exclusão de bens[10]”. Coloca-se, assim, a questão de saber se, nos casos, como o vertente, em que o devedor da herança (ou do património comum) é interessado no inventário, deverá ser afastado o regime previsto no citado n.º 5 e 6 do art.º 1105º do CPC, sendo antes aplicável o disposto no n.ºs 3 do mesmo preceito[11], que podemos designar o regime geral de reclamação de bens da herança. Afigura-se-nos que a resposta a esta questão deverá ser afirmativa. Augusto Lopes Cardoso [12], referindo-se à negação dos direitos de crédito da herança e à norma do art. 37º do RJPI, aprovado pela Lei n.º 23/13, 5 de março (cuja previsão corresponde ao atual art. 1105º, n.º 6 e 7 e ao anterior art. 1351º do CPC de 1961), escreve: “(já) assim será quando o devedor da herança seja interessado directo na partilha. Deste modo, a decisão judicial que declara a existência da dívida activa da herança sobre interessado direto na partilha, ou que manda eliminar como não existente, tem força de caso julgado. Dir-se-á, então, que o bem autónomo, que é uma dívida activa está ao nível da reclamação geral a que se reporta o art. 32º do RJPI: a relacionar ou excluir. O regime, pois, subsiste para a situação, também frequente, em que o devedor da herança é o cabeça de casal e este não relaciona a sua dívida. Por isso não tinha de ser contemplado no sistema do art.º 37º do RJPI. É evidente, que, num caso desses, a discussão se trava ao mesmo nível do conteúdo da relação de bens, um dos quais é uma dívida activa: qualquer interessado pode reclamar a inclusão dela na relação de bens”. Também na jurisprudência já se sustentou, distinguindo a situação em que existem dívidas da herança sobre terceiros, dos casos em que está em causa um litigio entre os interessados diretos na partilha acerca de um crédito do património comum sobre um deles, que, nesta última hipótese é de considerar que a decisão proferida no incidente de falta de relacionamento é definitiva, podendo após sentença homologatória da partilha, o interessado a que tal crédito foi adjudicado executá-lo[13]. Admitimos ser mais fácil defender o afastamento da aplicação do regime dos n.º 6 e 7 do art.º 1.105º do Código Civil nas hipóteses em que um interessado no inventário reclama contra falta de relacionação, pelo cabeça de casal, de um crédito da herança (ou do património comum) de que é devedor o próprio cabeça de casal, já que aquele n.º 6 prevê unicamente a hipótese de uma dívida ser relacionada pelo cabeça de casal e negada pelo pretenso devedor[14], e não a hipótese inversa. Contudo, não vemos substancial diferença entre tal situação e aquela em que, tendo sido relacionado pelo cabeça de casal um crédito ativo da herança (ou do património comum), o mesmo é negado pelo suposto devedor que é simultaneamente interessado na partilha. E a verdade é que toda e qualquer decisão relativa ao mérito de cada questão suscitada no inventário, designadamente as que se referem ao acervo de bens/créditos a partilhar, está sujeita às regras gerais sobre a amplitude do caso julgado, não tendo sido integrada na nova regulamentação do processo de inventário a solução que estava contida no n.º 3 do art. 1350º do CPC de 1961, que admitia a prolação com efeitos meramente provisórios[15]. Consequentemente, parece não haver qualquer obstáculo a que, na hipótese de um crédito ativo relacionado pelo cabeça de casal ter sido impugnado pelo indigitado devedor que é simultaneamente interessado na partilha, a questão da existência ou inexistência desse crédito venha ser definitivamente dirimida no processo de inventário, no confronto entre todos os interessados (salvo, naturalmente, as hipótese em que, por se verificarem os pressupostos previstos no n.º 1 do art.º 1.093º do CPC, o juiz, quanto a tal questão, entenda remeter os interessados para os meios comuns, caso em que tal crédito terá de ser excluído do inventário). Por isso, tem nesta sede pleno cabimento o seguinte excerto do Ac. da RC de 10.05.2022[16]: “(d)aí que se nos afigure pertinente a distinção de regime entre os créditos em que o devedor é um terceiro ao inventário e os demais casos em que a reclamação do crédito decorre entre os interessados a que alude o artigo 1327º. Ou seja, tenderíamos à exclusão do artigo 1351º e à sujeição às regras gerais da reclamação de créditos, quando a discussão entre a existência de um crédito da herança é efetuada entre interessados no inventário”. Isto posto, temos de concluir que o Mmº Juiz a quo, ainda que tendo considerado a verba n.º 1 como um crédito ativo da relação de bens cuja existência foi negada pela indigitada devedora, não deveria tê-lo mantido na relação de bens como crédito litigioso. Ao fazê-lo absteve-se de conhecer, como se lhe impunha, da matéria de reclamação contra a relação de bens apresentada pela requerida e da resposta à mesma, tendo em conta os termos preceituados no n.º 3 do art.º 1.105º do CPC (a questão é decidido depois de efectuadas as diligências probatórias requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto no art.º 1.092º e 1.093º). Impõe-se, por conseguinte, a revogação da decisão recorrida para que se proceda à apreciação da controvérsia gerada pela negação pela requerida do aludido crédito por benfeitorias[17], nos termos descritos no parágrafo anterior. Entendemos, por ouro lado, que não é de determinar, nesta sede, como pretendia a recorrente, a remessa da questão controvertida para os meios comuns, uma vez que a averiguação dos pressupostos legais do art. 1.093º do CPC competirá, em primeira linha, à primeira instância no âmbito da decisão que venha a ser proferida sobre a reclamação contra a relação de bens. * Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do CPC):(…). * V. Decisão.Perante o exposto, acordam os Juízes desta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação procedente, revogando o despacho recorrido, devendo proceder-se à apreciação da reclamação contra à relação de bens em conformidade com o preceituado no art.º 1.105º, n.º 3 do CPC. Custas do recurso pelo apelado, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido. * Coimbra, 8 de outubro de 2024
Com assinatura digital: Hugo Meireles Luís Miguel Caldas Anabela Marques Ferreira
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] A requerida havia já apresentado, ainda os autos corriam termos no cartório notarial, uma primeira reclamação onde concluída pela exclusão da verba que corresponde a um veículo automóvel e pela atribuição de um valor inferior à verba atinente ao recheio da habitação, sendo o processo remetido ao tribunal sem que tivesse havido qualquer decisão sobre tal reclamação. |