Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FREITAS NETO | ||
Descritores: | CONTRATO DE FACTORING OPOSIÇÃO DEFESA | ||
Data do Acordão: | 07/17/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | DL 171/95 DE 18/07 E ART.585º DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | 1 – O denominado contrato de “factoring”, cuja disciplina foi instituída, pelo DL 171/95 de 18/07, é um modelo de contrato financeiro substancialmente integrado por uma cessão de créditos em que o “factor” representa o cessionário e o “aderente” tem a posição de credor cedente. 2- Por virtude dessa configuração substancial, e ao abrigo do art.º 585 do CC, é lícito ao devedor opor ao “factor”(cessionário) todos os meios de defesa que até ao momento do conhecimento da cessão podia opor ao “aderente”, isto é, ao precedente credor. 3 – No entanto, pode ser válida e plenamente eficaz a declaração emitida do devedor perante o factor, ou seja, perante o cessionário, na qual, além de confessar determinada dívida, aquele se compromete genericamente a não invocar quaisquer direitos de que dispusesse contra o anterior credor. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: A... , E.M., deduziu oposição à execução comum para pagamento de quantia certa que no Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena lhe move B..., S.A., alegando, em resumo: Os documentos juntos como título executivo não são exequíveis, porquanto, além de conterem uma assinatura ilegível, não estão validamente subscritos pelo Presidente do Conselho de Administração da oponente; Dada a sua posição contratual de factor “com recurso” devia a Exequente ter reclamado o crédito exequendo na insolvência da sociedade aderente C... , LDA; Estando o crédito da Exequente reconhecido na referida insolvência, está a mesma a exigir duas vezes a respectiva importância; Não são devidos juros de mora porque a cedência das facturas ao abrigo contrato de factoring só abrangeu o valor nominativo destas últimas; Só não procedeu ao pagamento das facturas nº 43, 44, 48, 59, 60, 87, 88, 130 e 132 por falta de meios financeiros; Termina, assim, com procedência da oposição. Contestando, veio a Exequente aduzir ser alheia às ocorrências que possam ter surgido no âmbito das relações entre a Executada-oponente e a aderente C..., LDA; que nunca a Executada devolveu ou solicitou a modificação das facturas dadas à execução, nomeadamente, quando, logo em 2008, as mesmas foram emitidas e depois enviadas; como nunca a Executada levantou qualquer objecção às rubricas que foram apostas nos documentos de confirmação de créditos e pagamentos, tendo inclusivamente já pago parte das facturas cedidas; de todo o modo, não são oponíveis à Exequente os alegados vícios de forma na vinculação da Executada; não estava obrigada a resolver o contrato de factoring com a aderente, tal como a resolução que decorreu da respectiva insolvência nunca poderia afectar os efeitos da cessão já operada; não há qualquer tentativa de locupletamento à custa da oponente porque nunca reclamou o seu crédito na insolvência da sociedade aderente. Conclui pela improcedência da oposição. Prosseguindo os autos, foi a final proferida decisão a julgar procedente por provada a oposição quanto à quantia exequenda de € 110.620,92, em consequência do que, nessa parte, foi a execução declarada extinta. Inconformada, deste veredicto recorreu a Exequente B..., recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Dispensados os vistos cumpre decidir. * São os seguintes os factos que foram dados como provados sem qualquer espécie de impugnação: 1. No exercício da sua actividade comercial, a exequente celebrou com a sociedade C..., S.A. um denominado contrato de Factoring n.º 2007/0408, junto com o requerimento executivo como doc. 1, cujo teor se da aqui por integralmente reproduzido; 2. A sociedade C..., S.A. deu conhecimento através dos escritos designados como “notificação do contrato de factoring”, juntos ao requerimento executivo como docs. 2 a 6, do contrato de Factoring atrás referido, informando das condições do contrato e quais os créditos abrangidos pelas facturas, nos termos que constam dos mesmos escritos; 3. O Eng.º D..., na data Presidente da Câmara Municipal de Alcanena e Presidente do Conselho de Administração da Executada, apôs a sua rubrica, na parte destinada ao “Devedor”, na 2.ª folha de cada um dos escritos juntos aos autos como docs. 2 a 6; 4. A Executada emitiu os escritos juntos ao requerimento executivo como docs. 7 a 11 e que o Eng.º D..., na data Presidente da Câmara Municipal de Alcanena e Presidente do Conselho de Administração da Executada, apôs a sua rubrica em cada um deles, na parte reservada à assinatura do Presidente do Conselho de Administração; 5. As facturas abrangidas pelo denominado contrato de factoring atrás referido são as facturas n.ºs 42/2008, 43/2008, 44/2008, 58/2008, 59/2008, 60/2008, 87/2008, 88/2008, 89/2008, 130/2008, 132/2008, 155/2008, 161/2008, 162/2008, 163/2008 e 164/2008, juntas com o requerimento executivo como docs. 12 a 27; 6. Das facturas mencionadas, apenas as facturas 42/2008 e 89/2008 foram cobradas; 7. A Exequente enviou, através de registo postal com aviso de recepção, à Executada, e esta recepcionou em 16/02/2012, a carta junta ao requerimento executivo como doc. 28; 8. A Executada adjudicou à sociedade C..., Lda, em consórcio com a sociedade E... o, S.A., a empreitada denominada “Reconstrução do Edifício do Cine Teatro Alcanena”, tendo o contrato de empreitada sido outorgado; 9. No âmbito do contrato celebrado, a fiscalização dessa empreitada era assegurada pelos serviços técnicos da Câmara Municipal de Alcanena, em concreto pelo respectivo Departamento de Obras; 10. Que na qualidade de acionista maioritário de dispôs a essa intervenção, que assim passou a ser assegurada e se mostrava contratualmente prevista; 11. Dessa forma, o desenvolvimento dessa empreitada era acompanhado por aquele departamento, que igualmente analisava e visava os autos de medição apresentados; 12. Permitindo, após a aprovação dos mesmos, que os empreiteiros emitissem a respectiva factura do trabalho desenvolvido, que posteriormente seria pago pela Executada; 13. À data a Executada tinha a natureza jurídica de sociedade anónima, sendo a sua estrutura de administração composta por um conselho de administração, de 5 elementos, sendo um presidente e quatro vogais; 14. Obrigando-se perante terceiros com a assinatura de dois membros do conselho de administração, sendo uma sempre a do presidente ou, na sua falta, a do vicepresidente; 15. Essa natureza, estrutura e respectivos órgãos mostravam-se inscritos no registo comercial; 16. A sociedade C..., Lda emitiu e remeteu para a Executada as facturas identificadas no art.º 7.º do requerimento executivo; 17. Os autos de medição que estão na base das facturas 161/2008, 162/2008, 163/2008 e 164/2008 e os trabalhos a mais nelas referidos não foram confirmados pela fiscalização da empreitada; 18. A Executada não celebrou o adicional ao contrato de empreitada relativamente aos trabalhos a mais a que se reportam as facturas 161/2008, 162/2008, 163/2008 e 164/2008; 19. O qual constituía condição prévia para a aprovação e realização de qualquer trabalho a mais; 20. A sociedade C..., Lda foi declarada insolvente por sentença proferida em 30/11/2009, no processo que correu os seus termos sob o n.º 1772/09.2TBPMS no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós; 21. A Executada foi contactada pela Exequente em finais de 2011 para proceder ao pagamento do crédito que lhe foi cedido pela sociedade C..., Lda; 22. Nessa Altura solicitou a comprovação dos títulos que legitimavam a reclamação efectuada; 23. Tendo a Exequente remetido a documentação junta como documentos n.ºs 1 a 27 à presente execução; 24. A Executada, até à data de 16/02/2012, não comunicou à Exequente qualquer oposição ou reserva relativamente às facturas identificadas no art.º 7.º do requerimento executivo; 25. A Executada enviou à Exequente, e esta recepcionou, a carta datada de 16/02/2012 que se encontra junta à contestação como doc. 1; 26. A Exequente, em resposta à carta referida em 25), enviou à Executada, e esta recepcionou, a carta datada de 24/02/2012, que se encontra junta com a contestação como doc. 2; 27. A Executada, em resposta à carta referida em 26), enviou à Exequente, e esta recepcionou, a carta datada de 06/03/2012, que se encontra junta com a contestação como doc. 3. * A apelação. Nas conclusões com as quais encerra a respectiva alegação, a recorrente circunscreve o objecto do seu dissídio às seguintes questões: 1º - A de saber por não ter sido observado o que na lei se dispõe quanto ao regime dos contratos de empreitada de obras públicas, nomeadamente no que toca à verificação e fiscalização dos trabalhos a mais através da aprovação dos autos de medição do empreiteiro, não está a Executada-oponente obrigada a pagar à Exequente as facturas objecto de execução; 2º - Assim não se entendendo, se a invocação da falta do aludido procedimento – de verificação/confirmação dos trabalhos a mais facturados – cerca de 4 anos após o momento da apresentação das facturas ofende o princípio da boa fé no cumprimento das obrigações. Contra-alegou a Executada, pugnando pela confirmação da decisão. Sobre a oponibilidade da excepção da ausência de verificação/confirmação dos trabalhos a mais constantes das facturas nºs 161/2008, 162/2008, 163/2008 e 164/2008. Entendeu a decisão recorrida que em relação às quantias inscritas nas quatro facturas dadas à execução – as que permaneceram em discussão, somando € 110.620,92 – a Executada-oponente não era devedora de tais importâncias à sociedade C..., Lda, aderente do contrato de factoring celebrado com a Exequente B.... Para chegar a tal conclusão estribou-se a mesma decisão na inobservância pela empreiteira do preceituado, além do mais, nos art.ºs 203 e 207 do DL 59/99 (diploma que na altura disciplinava o Regime Jurídico das Obras Públicas), uma vez que ficou provado que, ao emitir as facturas referentes à execução da empreitada pública denominada “Reconstrução do Edifício do Cine Teatro Alcanena” – na qual a Executada era dona da obra – a empreiteira C..., Lda, não as fez preceder da fiscalização/confirmação legalmente exigida. Fiscalização/confirmação que dizia respeito aos autos de medição dos trabalhos a mais por aquela realizados. Atentemos, porém, no raciocínio ali exactamente formulado: “No caso dos autos, resultou provado que a Executada não celebrou o adicional ao contrato de empreitada relativamente aos trabalhos a mais a que se reportam as facturas 161/2008, 162/2008, 163/2008 e 164/2008, sendo certo que aquele adicional ao contrato constituía condição prévia para a aprovação e realização de qualquer trabalho a mais. Por outro lado, apurou-se que os autos de medição que estão na base das facturas 161/2008, 162/2008, 163/2008 e 164/2008 e os trabalhos a mais nelas referidos não foram confirmados pela fiscalização da empreitada. A medição de todos os trabalhos executados, ainda quando não previstos no projecto nem devidamente ordenados e independentemente da questão de saber se devem ou não ser pagos ao empreiteiro, era, nos termos do art.º 203.º do referido diploma legal, obrigatória. Com tal obrigatoriedade, pretendeu o legislador permitir, quer ao dono da obra quer ao empreiteiro, o controlo e fiscalização da quantidade dos trabalhos executados e a consequente fixação dos preços da empreitada. Além disso, nos termos do art.º 207.º do citado diploma legal, só depois da liquidação do valor correspondente às quantidades de trabalhos medidos sobre as quais não haja divergências e da notificação dessa liquidação ao empreiteiro é que podia haver pagamento. Apesar de o procedimento habitual seguido pela Executada e pela sociedade Construção C..., Lda (empreiteiro) na empreitada em apreço ser, antes da emissão de qualquer factura por esta, a verificação dos trabalhos realizados e a confirmação dos respectivos autos de medição, tal procedimento não foi seguido por tal sociedade quanto às facturas 161 a 164 porquanto as emitiu sem que antes os autos de medição que estiveram na sua base fossem fiscalizados e fosse confirmada a realização dos trabalhos a que se reportam. Por não ter sido seguido o procedimento habitual (e legalmente estipulado no diploma legal a que nos temos vindo a referir) pela sociedade empreiteira, não foi, nem poderia ser, feita a liquidação pela Executada dos valores eventualmente correspondentes aos trabalhos a mais e, consequentemente, não podia a Executada dar pagamento às facturas referidas.” Contra este raciocínio se rebela a apelante, repaldando-se no que denomina de força probatória plena do declarado pela Executada-oponente nos documentos subscritos em 24 e 26 de Setembro de 2008. É a seguinte o teor é dessa declaração: “Vimos por este meio confirmar que tomamos conhecimento da cessão de créditos pela firma C..., S.A., a V. Exªs dos créditos abaixo relacionados e assumir a obrigação de pagar integralmente os mesmos créditos nas datas dos seus vencimentos, renunciando, nomeadamente a invocar perante V. Exªs quaisquer direitos nossos sobre a empresa cedente que pudessem levar a que tais créditos não fossem total ou parcialmente devidos”. Importa dizer que não surge polemizada, nem pelas partes, nem pelo tribunal recorrido, a exequibilidade dos títulos, nem a admissibilidade da dedução dos fundamentos de oposição agora em apreço, diante do disposto no art.º 816 do anterior CPC, correspondente ao art.º 731 do actual Código. O que a esta instância recursiva cumpre apreciar e decidir, é, apenas, se – tal como foi a orientação acolhida na sentença – a Executada podia efectivamente escudar-se na observância dos aludidos procedimentos para com isso obstaculizar o pagamento dos créditos representados pelas atinentes facturas. Vejamos. O contrato de factoring é um contrato de tipificação legal que encontra a sua regulamentação no DL nº 171/95 de 18/07, onde aparece também identificado como “cessão financeira”. Caracteriza-se pela aquisição de créditos resultantes da venda de produtos ou prestação de serviços por uma instituição financeira, dizendo-se “factor” a entidade que toma os créditos e assume o risco da sua cobrança e “aderente” a entidade que os cede, facultando o seu recebimento do devedor pelo factor, para o que paga um determinado custo ou contrapartida – cfr. os art.ºs 2º, 3º e 4º do citado DL. Pode afirmar-se que o factoring é uma espécie contratual combinada, participando de elementos estruturantes da figura da transmissão ou cessão de créditos e da compra e venda. Embora a lei contemple a possibilidade de pagamento directo ou indirecto ao aderente dos créditos por ele cedidos ainda antes do respectivo vencimento médio ou efectivo, não é admitido o “excesso” da posição credora original do aderente (art.º 8º). De todo o modo, o elemento estruturalmente dominante do factoring é o que o identifica com uma cessão de créditos entre o aderente e o factor, de tal sorte que, afora as especificidades impostas pelo arquétipo legalmente desenhado no DL 171/95, são lhe supletivamente aplicáveis as normas que regulam o instituto civilístico da transmissão de créditos. Com o factoring dá-se tão só uma modificação subjectiva da relação creditícia pelo seu lado activo, isto é, pelo lado do credor. Modificação que só se completa com a notificação da cessão ao devedor ou com a sua aceitação por este – art.º 583, nº 1, do CC. Notificada a cessão ao devedor, ela passa a ser-lhe plenamente eficaz. Trata-se aqui de um mecanismo equivalente, em termos práticos, ao exercício de um direito potestativo, visto que, acordada a cessão, ela pode ser imposta pelo cedente ou pelo cessionário, não sendo aceite oposição pelo devedor, do qual nem sequer se exige o consentimento. Mas desta sujeição não decorre que por força da cessão o devedor possa ficar em posição mais desvantajosa (em relação à que tinha perante o cedente). Vale aqui a regra de que, em princípio, apesar da cessão, o devedor conserva todos os meios de defesa e excepções que podia opor perante o credor cedente. É o que estatui o art.º 585 do CC: “O devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.” Isto é, só os factos posteriores ao conhecimento da cessão pelo devedor, ainda que respeitando à relação com o cedente, é que são considerados res inter alios acta para o cessionário. Como se diz no Ac. desta Relação de 2/07/2013 proferido na Apelação nº 101126/12.7YIPRT.C1: “O art. 585 do C.C. regula, exclusivamente, as relações jurídicas entre o cessionário e o devedor. O devedor pode opor ao factor as excepções que obstem ao nascimento do crédito, nomeadamente a inexistência, a nulidade, a anulabilidade do negócio jurídico celebrado como aderente. Essencial é que os meios de defesa não provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão. O devedor poderá também opor ao factor as excepções que produzam a extinção do crédito, tais como o pagamento ao aderente, a compensação, a novação, a remissão, a confusão, o direito de resolução, de redução ou impugnação do negócio, mas só desde que o facto constitutivo da excepção se tenha verificado antes do conhecimento da cessão (Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2ª ed., pág.637; Mafalda Oliveira Monteiro, Contrato de A em Portugal, pág. 94).” É, por conseguinte, à luz deste quadro institucional que importa proceder à interpretação e aplicação das declarações da Executada-oponente nos documentos de 24 e 26 de Setembro de 2008, acima aludidos. Transparece dessas declarações que, acoplada à notificação da devedora, a cessionária e ora Exequente procurou “ colar” a Executada a duas outras declarações: uma, de teor confessório ou recognitivo da dívida integrada pelas facturas anexas; outra, de teor formalmente abdicativo, no sentido de uma aparente restrição/extinção de meios de defesa que a subscritora já poderia opor ao precedente sujeito activo. O problema reside exactamente nesta segunda disposição. É certo que a confissão ou reconhecimento de uma dívida sem indicação da causa, e sem mais, nos termos do nº 1 do art.º 458 do C. Civil, não inibe o confitente de se defender com os meios que respeitam à chamada relação fundamental. [1] Já o reconhecimento de uma dívida com a concomitante declaração da causa e da validade e exigibilidade dessa causa ou fonte, não pode deixar de, em princípio, implicar ainda a inoponibilidade de factos que limitem ou excluem essa validade e exigibilidade.[2] De novo com os autos. Na realidade, não só a causa da declaração da Executada se extrai sem inequivocidade do contexto dos próprios documentos (veja-se a remissão para as facturas), como, dada a sua qualidade de dona da obra já realizada, já no momento em que os subscreveu, todos os possíveis meios de defesa eram naturalmente para ela cognoscíveis. Não quis a Executada valer-se de qualquer “direito” que pudesse esgrimir contra o credore originário. Tradicionalmente, a renúncia reporta-se à extinção de direitos determinados, pode assumir natureza abdicativa ou atributiva, causal ou abstracta (de causa indiferente), e tem sempre origem num facto jurídico que integra uma declaração com efeito negocial e efeitos legais (neste sentido, veja-se Francisco M. de Brito P. Coelho, A renúncia abdicativa no direito Civil, Stvdia Iuridica 8, Coimbra Ed., 1995, fls. 7-13 e 73-82). E a “obrigação” de não oposição de excepções que têm por base direitos potestativos, como aquela em que o devedor se obriga a não invocar a prescrição do direito ou a exercer a compensação, são verdadeiras renúncias de direitos potestativos que até têm eficácia absoluta, e não meramente inter-partes[3]. Sucede que a Executada nunca se afirmou titular de um direito de crédito. Sempre se tomou como devedora da empreiteira aderente C...a, Lda. Ora, não se divisam razões de ordem pública que impeçam o devedor de abdicar do exercício de direitos de mera “conformação da relação negocial” de que se considere já detentor, como o direito à compensação, à resolução do contrato, etc. Nada na lei – nomeadamente no art.º 585 da lei civil acima citado – proíbe a abdicação pelo devedor de direitos de conformação da relação creditícia já dedutíveis (embora já nos pareça, pelo menos, duvidoso, admitir a renúncia abdicativa do devedor quanto a direitos ou meios de defesa com pressupostos ainda a constituir). Acontece que nenhuma renúncia de direitos (ou excepções) a constituir (no futuro) é objecto das declarações inegavelmente complexas da devedora. Nas declarações subscritas pela Executada não há uma qualquer abdicação de oposição de factos futuros, hipotéticos ou eventuais, e, por isso, desconhecidos da declarante. Nem tão pouco nelas se constata a expressão da vontade da Executada-devedora do não uso de este ou aquele concreto meio de defesa. O que ali há é antes – como melhor se demonstrará – um reconhecimento da obrigação de pagar uma certa quantia, que igualmente se estende ao reconhecimento da plena eficácia da relação que constitui a respectiva fonte. Não é susceptível de controvérsia a qualificação dos procedimentos prévios à facturação da empreiteira C... que foram identificados na sentença como meios de defesa da Executada, dona da obra, e, como tal, devedora àquela da correspondente retribuição. Pelo que não repugna – antes se antolha como inteiramente cabida – a inclusão desses meios ou excepções no conceito de meios de defesa a que se reporta o já citado art.º 585 do CC. Também é insofismável que os factos em apreço, ou seja, os concretos procedimentos que teriam sido omitidos pela empreiteira aderente, são necessariamente anteriores à notificação da cessão dos créditos relacionados nas facturas identificadas. Desse modo, poderiam tais factos cair no objecto da oponibilidade proclamada no acima transcrito art.º 585 do CC. Questão que poderia adquirir pertinência seria a que se prende com o determinar se o fez lícitamente, uma vez que, se situados em espaço de livre auto-conformação do conteúdo da relação creditícia (art.º 406, nº 1, do CC), nada especialmente tolheria o devedor de manifestar a sua vontade com essa amplitude. Para isso impõe-se indagar o que a Executada quis dizer com a declaração de “renúncia” ínsita nos documentos de 24 e 26 de Setembro de 2008. E a ter existido uma intenção negocial de libertar o novo credor de quaisquer empecilhos à satisfação dos créditos adquiridos, que relevância se deve conferir à expressão dessa vontade. Isto é, o saber se essa disposição é válida e operante no caso em apreço. E – já o adiantamos – julgamos que sim. É inegável que a disciplina criada pelo Regime Jurídico das Obras Públicas previsto no DL 59/99 de 02/03, respondeu a princípios de transparência e rigor na gestão da coisa pública, pelo que o respeito e observância dos preceitos aí estatuídos, designadamente no tocante aos procedimentos a seguir na celebração de contratos públicos, foi necessariamente ditado pelo objectivo essencial da prossecução de um indiscutível interesse público. Nesse âmbito podemos situar os preceitos invocados pela decisão recorrida – os art.ºs 26, 203 e 207 do aludido DL 59/99 – normativos que, por um lado, impunham a celebração de um “adicional” atinente a trabalhos a mais a efectuar pelo empreiteiro, e, por outro, garantiam a fiscalização dos autos de medição dos trabalhos executados, previamente à fixação dos preços (e à emissão das facturas). No entanto – como, de resto, bem, lembra a recorrente – o fundamento da oposição da Executada não podia ser apreciado fazendo-se “tábua rasa” das aludidas declarações de Setembro de 2008 e da interpretação que elas deveriam concitar ao tribunal. Para este fim, há que convocar as regras de interpretação das declarações negociais do art.ºs 236 e seguintes do CC. Sob este conspecto, não se nos afigura outra coisa senão isto: temos por patente que, com a redacção das declarações em causa, e porque não interveio no contrato de empreitada, teve a Exequente unicamente em vista salvaguardar-se contra a hipótese de a Executada, em momento posterior, vir a invocar excepções ou quaisquer factos por si ignorados, que total ou parcialmente pudessem obstar à satisfação dos créditos que tomara da aderente C..., Lda. Com efeito, não vislumbramos que diferente sentido poderia extrair um declaratário normal – colocado na posição real da Exequente – da expressão (ali inserta): “(…) renunciando, nomeadamente a invocar perante V. Ex.ªs quaisquer direitos nossos perante a empresa cedente que pudessem levar a que tais créditos não fossem total ou parcialmente devidos.” Nada impedia a Executada de se limitar receber a notificação das facturas, sem, simultaneamente, aceitar a obrigação, opondo reservas ou negando o reconhecimento da dívida. Bastava-lhe que, recusando a confissão da dívida, desse conhecimento de que se considerava notificada dos crédito relacionados. Isto é, não deixava de estar ao seu alcance o diligenciar pela averiguação do cumprimento de todos os procedimentos legais que justificavam a emissão das facturas. Obtida a informação, uma de duas: estando as facturas em ordem, podia ter certificado, subscrito e remetido à Exequente os documentos em causa com a redacção que deles constava; na hipótese contrária, cingir-se-ia a dar-se por notificada da cessão. Simplesmente, a Executada-oponente, assentiu ou concordou em assinar o reconhecimento da dívida, aí ao mesmo tempo declarando”renunciar” à invocação de quaisquer excepções (a expressão “direitos” tem, como se viu, o alcance também abrangente de quaisquer “direitos de conformação da relação negocial”, compreendendo possíveis excepções ou meios de defesa do devedor relativamente ao cumprimento da obrigação). Ao ser notificada das facturas, a Executada e dona da obra podia e devia ter conferido as quantidades e qualidades dos trabalhos facturados. Nada foi por ela alegado a tal respeito na oposição que deduziu, o que só pode levar à conclusão de que efectuou a respectiva confirmação física antes de produzir as declarações supra aludidas, sem embargo da preterição da prévia fiscalização dos autos de medição (cfr. o provado em 17). A não celebração do aditamento ao contrato inicial e a falta de fiscalização prévia dos autos de medição não consentem a ilação de que os valores facturados poderiam não estar conformes aos trabalhos acordados e efectuados, nem que a Executada não tenha aceite essa conformidade, ainda que a posteriori. A este propósito temos por oportuno recordar o que está consignado no acervo fáctico relativamente à entidade fiscalizadora: O Eng. D... era ao tempo [o “tempo” é o da execução da empreitada] simultaneamente Presidente do Conselho de Administração da Executada e Presidente da Câmara Municipal de Alcanena; A fiscalização da empreitada era assegurada pelos Serviços Técnicos (Departamento de Obras) da Câmara Municipal de Alcanena; Câmara que, como accionista maioritária [da dona da obra, ora Executada], se dispôs a essa intervenção; Cujos Serviços analisavam e visavam os autos de medição apresentados. Com este enquadramento, não se vê como a Executada, através do Presidente do Conselho de Administração, não dispusesse de todos os elementos para a aceitação dos autos de medição e das quantidades e preços facturados. Ou seja, não se descortina como a ausência dos procedimentos prévios aludidos na sentença poderia ter conduzido a um resultado diverso daquele que seria obtido com a sua verificação. Ao afirmar que “renunciava” à invocação de quaisquer “direitos”, nos moldes em que o declarou, a Executada dispôs-se, afinal e tão somente, a reconhecer a dívida e a eficácia da relação de que esta promanava, o que continha o propósito de contra ela não esgrimir qualquer defesa. E a transmitir, assim, ao novo credor que, sem levantar entraves, acataria o cumprimento das suas obrigações (ou seja, pagaria os créditos titulados pelas facturas). Daí que a declaração de “renúncia” que consta dos dois documentos de Setembro de 2008 subscritos pela Executada deva ser interpretada, de harmonia com as regras legais, como uma aprovação das quantidades e preços facturados em função dos autos de medição realizados. Mais do que reconhecer a dívida, a Executada reconheceu ali a plenitude da causa respectiva. Em suma: mais de que renunciar à invocação de concretos meios de defesa ou excepções, o que a Executada exprimiu na declaração inserta naqueles documentos foi antes de tudo o reconhecimento da boa execução da prestação da empreiteira e, consequentemente, da correcção das facturas de que estava a ser notificada. Por conseguinte, apesar da natureza ínvia ou omissiva dos procedimentos adoptados, de tal circunstância nenhum prejuízo adveio para a dona da obra, ora Executada, em face da posição que por ela veio a ser tomada. Queda, portanto, inutilizada a subsidiária questão do abuso do direito. Sendo de acolher a primeira questão suscitada, a oposição da Executada tem de ser julgada improcedente e, em função disso, a decisão recorrida não se pode manter. Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a decisão recorrida; em consequência do que julgam a oposição improcedente, devendo a execução prosseguir os seus termos em relação ao montante respectivo. Custas pela apelada. Freitas Neto (Relator) Carlos Barreira Barateiro Martins [1] Como advertem Pires De Lima e A. Varela, in CC. Anotado, Vol. I, em anotação a este preceito, ao devedor-confitente, não fica portanto, vedada a invocação de vícios da relação subjacente como a nulidade ou anulabilidade do negócio-fonte da obrigação, a excepção do não cumprimento, a resolução, etc. [2] Ressalvando-se aqui, como é óbvio, a livre arguição de vícios da vontade da própria declaração. [3] Neste sentido, F. M. de Brito Pereira Coelho, ob. e ed. citadas, p. 64 e seguintes, que discorda da qualificação de meras “obrigações” que autores como Ferri, Messineo e Vaz Serra (estes dois apenas a propósito da prescrição) atribuem a essas declarações unilaterais não receptícias do devedor. |