Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FERNANDO CHAVES | ||
Descritores: | UTILIZAÇÃO ABUSIVA DO PROCESSO | ||
Data do Acordão: | 03/16/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA (INSTÂNCIA CENTRAL – INST. CRIMINAL) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 277.º DO CPP | ||
Sumário: | I - Fazer uma utilização abusiva do processo penal mais não é, em substância, do que “fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal” – alínea d) do n.º 2 do artigo 456.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Reforma operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho. II - O legislador prevenir e reprimir um uso destinado a desvirtuar o processo da sua função própria, que é a regulamentação jurídica do direito penal substantivo, logo, a realização da justiça criminal, pervertendo-o em instrumento de desígnios que são alheios. III - O uso abusivo do processo terá de ser uma actividade conduzida no sentido do desvio dos seus fins em prejuízo de outrem, não visando sancionar meros erros técnicos, os quais, na nossa tradição jurídica, sempre foram punidos através do pagamento de custas, para além, naturalmente, das consequências que tivessem no desfecho das questões. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO 1. Nos autos de inquérito (Actos Jurisdicionais) n.º 1936/15.0T9CBR.C1 que correm termos no Tribunal da Comarca de Coimbra – Coimbra – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – J3, foi proferido despacho que condenou a denunciante A.... na multa de 6 (seis) UC, nos termos dos artigos 277.º, n.º 5 e 520.º do Código de Processo Penal. 2. Inconformada com a decisão, recorreu a denunciante, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «A - No âmbito do processo supra identificado, entendeu a magistrada que a ora recorrente e denunciante fez um uso abusivo do presente inquérito ao queixar-se de expressões proferidas pelo relator numa acusação de processo disciplinar de que a mesma foi alvo, confrontando o presente processo com outro inquérito em que a denunciante também se queixou de expressões proferidas sobre a mesma situação, o Inquérito 65/12.2TACNT. B - Ora, salvo o devido respeito, os processos intentados pela ora recorrente nada têm nada a ver um com o outro, tanto mais que os denunciados são diferentes, os factos são diferentes embora relacionados com a mesma situação, ocorreram em tempo diferente tendo durante o lapso de tempo decorrido entre eles havido conhecimento de ocorrências que tornaram a situação do presente inquérito completamente diferente do anterior. C - Acresce que no presente inquérito não houve sequer averiguação da situação para se verificar o contexto das expressões proferidas pelo denunciado B... , que faltando à verdade que já conhecia (no processo disciplinar estavam já nessa altura provas de que o que ocorreu no dia dos factos não o foi por culpa da denunciante mas por avaria técnica que não lhe pode ser imputável) atribuiu uma conduta dolosa à denunciante que sabe não ter acontecido, o que é manifestamente ofensivo do seu bom nome profissional. D - Ora na nota de culpa do processo disciplinar, tal como em qualquer acusação formal, não pode o relator faltar a verdade, nem inventar considerações apenas para alargar o âmbito da produção de prova e de uma eventual condenação; isso não é cumprir os seus deveres de acusador (como parece tolerar-se no despacho de arquivamento), que estão sempre limitados por boas regras legais, de verdade e de boa-fé. E – É que o despacho de que ora se recorre diz que o denunciado se limitou a descrever “os pressupostos típicos de uma infracção disciplinar, tendo actuado no estrito cumprimento das suas funções de vogal de Conselho Disciplinar Regional do Centro da Ordem dos Médicos F - Mas, não é assim pois o objecto da queixa não é o relato simples, do que pode ser uma infracção disciplinar, mas sim o modo injurioso como o relator o faz, ultrapassando por isso as suas funções e deveres a que está adstrito. G - Na verdade, a denunciante sentiu-se ofendida e pré-julgada pelo denunciado no relato que o mesmo apresentou, daí ter feito queixa nos termos que a lei lhe permite e ao queixar-se de expressões concretas, proferidas pelo ora denunciado, que são ofensivas e não correspondem a verdade - e que nada têm a ver com o Inquérito 65/12.2TACNT - a denunciante exerceu o direito de queixa de forma legal, sem qualquer uso abusivo do processo e sem qualquer intuito doloso ou negligente, pelo que não pode nem deve ser penalizada com uma condenação em custas muito menos agravada. H - Neste âmbito, estatui o artigo 277.º do Código de Processo Penal, nos seus n.º l e 5, que: “1 - O Ministério Publico procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado o crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento. 5 - Nos casos previstos no n.º 1, sempre que se verificar que existiu por parte de quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa, uma utilização abusiva do processo, o tribunal condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC sem prejuízo do apuramento de responsabilidade penal.” I - Mais esclarecendo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2014, que: “Nos termos e para os efeitos previstos no n.º 5 do artigo 277.º do CPP, existe utilização abusiva do processo, reveladora de má-fé, quando o denunciante, em dois momentos temporais distintos, apresenta denúncia pelos mesmos factos, perante diferentes Serviços do Ministério Público, não obstante ter obstante ter sido notificado de que os factos objecto da primeira denúncia não constituíam qualquer ilícito penal.” J - Que, como foi demonstrado, anteriormente, manifestamente não aconteceu nem na denúncia anterior, nem na presente. L - Mais acrescentando a este propósito o artigo 520.º do Código de Processo Penal, que: “Paga também custas o denunciante, quando se mostrar que denunciou de ma fé ou com negligência grave.” M - o que, também, não aconteceu no presente processo. Nestes termos requer-se que seja dado provimento ao presente recurso e anulada a decisão da primeira instância que condena a ora denunciante em custas agravadas e seja substituída por uma nova decisão que não tenha esse condenação nos termos acima expostos. Por ser legal» 3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência. 4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, acompanhando a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento. 5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, a denunciante reiterou a posição anteriormente assumida na motivação de recurso. 6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
* II - Fundamentação 1. É o seguinte o teor do despacho recorrido: «A denunciante apresentou queixa contra B... nos termos constantes de fls. 1. Todavia, os factos descritos na queixa apresentada não integram a prática de qualquer ilícito criminal, limitando-se o denunciado a descrever os pressupostos típicos de uma infração disciplinar, tendo atuado no estrito cumprimento das suas funções de vogal de Conselho Disciplinar Regional do Centro da Ordem dos Médicos. Verificamos, assim, que a denunciante exerceu um alegado direito de queixa de forma abusiva e manifesta má-fé. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 5 e 520.º do Código de Processo Penal, condeno a denunciante na multa de 6 UC.» * 2. Apreciando Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pe-lo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimen-to oficioso. Assim, a única questão a decidir consiste em saber se existiu, ou não, uma utilização abusiva do processo por parte da denunciante na queixa que apresentou contra B..., Vogal do Conselho Disciplinar Regional do Centro da Ordem dos Médicos. O artigo 277.º do Código de Processo Penal estabelece o seguinte: «Arquivamento do inquérito 1 - O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento. (...) 5 - Nos casos previstos no n.º 1, sempre que se verificar que existiu por parte de quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa, uma utilização abusiva do processo, o tribunal condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC, sem prejuízo do apuramento de responsabilidade penal.» Da leitura da disposição em causa resulta que a utilização abusiva do processo é referida à denúncia e ao exercício do direito de queixa – é de um desses actos processuais que resultará a utilização abusiva – e que a circunstância de não ter havido crime ou de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento não determina automaticamente a verificação de ter havido utilização abusiva do processo, sendo necessário algo mais. A condenação no pagamento da referida soma pecuniária tem natureza sancionatória, é uma sanção por utilização abusiva do processo, ou, como anota Paulo Pinto de Albuquerque, é uma sanção “que tem natureza disciplinar e ordenadora”([1]). O conceito de utilização abusiva do processo penal foi introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, correspondendo à necessidade que se fazia sentir de sancionar comportamentos com contornos semelhantes àqueles que moldam a figura jurídica da litigância de má fé em processo civil. Fazer uma utilização abusiva do processo penal mais não é, em substância, do que “fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal” – alínea d) do n.º 2 do artigo 456.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Reforma operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho Assim, tanto faz uma utilização abusiva do processo aquele que apresenta uma queixa ou uma denúncia cuja falta de fundamento não ignora, ou não devia ignorar, ou que altera conscientemente a verdade dos factos, como aquele que usa o processo para conseguir um objectivo ilegal ou reprovável([2]). Com a introdução desta figura quis o legislador prevenir e reprimir um uso destinado a desvirtuar o processo da sua função própria, que é a regulamentação jurídica do direito penal substantivo, logo, a realização da justiça criminal, pervertendo-o em instrumento de desígnios que são alheios. A utilização abusiva do processo aproxima-se da figura da denúncia caluniosa mas o uso abusivo do processo terá de ter uma abrangência mais ampla – e de menor gravidade – do que a daquela figura que é tipificada como crime. O uso abusivo do processo terá de ser uma actividade conduzida no sentido do desvio dos seus fins em prejuízo de outrem, não visando sancionar meros erros técnicos, os quais, na nossa tradição jurídica, sempre foram punidos através do pagamento de custas, para além, naturalmente, das consequências que tivessem no desfecho das questões. O que está em causa é a própria opção de lançar mão do processo penal. Este processo teve origem numa queixa apresentada por A... contra B..., a quem imputou a prática de factos que, no seu entender, configurariam a prática de um crime de difamação. A queixosa atribuiu a B..., enquanto Vogal do Conselho Disciplinar Regional do Centro da Ordem dos Médicos e relator no âmbito do Processo Disciplinar n.º 8/2011 da Ordem dos Médicos, em que a queixosa era arguida, uma atitude difamatória por ter feito constar na acusação que aquela se quis eximir, o que conseguiu, às obrigações de prestar assistência médica urgente aos doentes internados no Hospital e que dela necessitassem e que violou (…) com dolo, os deveres consagrados nos artºs 5.º, n.º 1 e 31.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, cometendo infracção disciplinar, de acordo com o art. 2.º do EDM. Segundo a queixosa, com tais afirmações, aquele colocou em causa o seu bom nome, idoneidade, competência e reputação profissional quando não tinha necessidade de o fazer para o cumprimento dos deveres a que estava adstrito no âmbito das suas funções de relator do processo disciplinar em causa. Como refere o despacho recorrido, os factos descritos na queixa apresentada não integram a prática de qualquer ilícito criminal, limitando-se o denunciado a descrever os pressupostos típicos de uma infração disciplinar, enquanto entidade actuante no âmbito de um processo de natureza disciplinar. Estando em causa a eventual prática pela queixosa de uma infracção disciplinar naturalmente que os factos narrados na acusação lhe são desfavoráveis e são negativos para o seu bom nome e reputação profissional mas a forma de contra eles reagir situa-se no âmbito do processo disciplinar e não através da apresentação de queixa-crime contra o seu autor que, na descrição dos factos e no seu enquadramento em termos disciplinares, não extravasa o necessário para a aplicação de uma sanção. Sendo a queixa uma declaração através da qual o titular do respectivo direito exprime a vontade de que se verifique procedimento criminal por crime cometido ele, torna-se evidente que só havendo, pelo menos, alguns indícios da prática de crime, mesmo que se desconheça o seu agente, estará justificada e, portanto, será legítima a apresentação de queixa. Não foi manifestamente o que ocorreu neste caso, pois a queixosa sabia perfeitamente que o denunciado B..., ao deduzir acusação, enquanto relator no âmbito do processo disciplinar n.º 8/2011 da Ordem dos Médicos, em que lhe imputou factos susceptíveis de integrarem a prática de infracção disciplinar, não tinha qualquer intuito difamatório, sendo tais factos os necessários para o enquadramento da sua conduta do ponto de vista disciplinar, tanto mais que a queixa se mostra subscrita por ilustre advogado. A queixosa sabia perfeitamente que não havia qualquer fundamento para imputar ao denunciado B... uma conduta susceptível de integrar o crime de difamação mas quis fazê-lo para colocar em causa o que consta de uma acusação em processo disciplinar, fazendo uma utilização do processo crime para um fim diverso do que foi concebido. Assim, por ter feito do processo crime um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, a queixosa, ora recorrente, não podia deixar de ser, como foi, sancionada nos termos do despacho recorrido que não merece qualquer censura. * III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto por A... e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida. * Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. * (O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.) * Coimbra, 16 de Março de 2016
(Fernando Chaves - relator) (Orlando Gonçalves - adjunto)
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