Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
488/21.6T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
QUEDA DURANTE OPERAÇÃO DE CARGA
MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
COMUNICAÇÃO DO SEGURADOR
NÃO ASSUNÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 10/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º, N.º 1, 38.º, N.º 2, E 40.º, N.ºS 1 E 2, DO REGIME DO SISTEMA DO SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DLEI N.º 291/2007, DE 21-08
Sumário: I – Encontramo-nos perante um acidente de viação e não de laboração, quando o veículo composto por trator/trelado, com o motor a trabalhar, estava a ser carregado com molheiros de cortiça para posterior transporte, quando o motorista o colocou em movimento, desequilibrando o autor e fazendo-o cair do veículo.

II – A informação da seguradora de que “ainda não nos é possível pronunciar quanto à responsabilidade na produção do sinistro. O nosso processo encontra-se em fase de instrução e a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo (…), pelo que oportunamente voltaremos ao seu contacto, não contém qualquer posição final e definitiva de não assunção de responsabilidade para efeitos do nº1 do art. 40º do DL 291/2007, de 21 de agosto.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: José Avelino Gonçalves
2º Adjunto: Arlindo Oliveira

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra A... – Companhia de Seguros, S.A.,

Pedindo a condenação da Ré a pagar ao Autor a quantia global de € 182.206, 50,

englobando:

a) O valor de € 25.500,00 previsto no n.º 2 do artigo 40.º do DL n.º 291/2007, de 21.08;

b) € 4.500 de lucros cessantes relativos a dois meses, em virtude do abandono da atividade de extração de cortiça que se previa continuar por, pelo menos, mais dois meses;

c) € 70.599, 60 a título de danos patrimoniais futuros;

d) € 1.606, 90 a tútulo de danos patrimoniais imediatos;

e) € 80.000, 00 a título de danos não patrimoniais; quantia essa acrescida dos juros de mora vincendos a contar da citação, no dobro da taxa legal sobre o valor que vier a ser fixado pelo tribunal a partir do 1.º dia de atraso, nos termos do n.º 2 do artigo 38.º do DL n.º 291/2007, de 21.08.

Alegando, para tal e em síntese:

 a 28-05-2020, pelas 10h00, na Herdade ..., ..., ..., o Autor encontrava-se em cima do reboque, na parte traseira, do veículo/tractor segurado na Ré, a ajeitar cortiça por conta da firma B..., LDA.; a viatura encontrava-se imobilizada e, sem nada o fazer esperar, o seu motorista colocou a mesma em movimento, o que fez com que o Autor se desequilibrasse e tivesse caído desamparadamente;

após a queda do Autor e de ter embatido com a cabeça numa pedra, foi transportado para o Hospital de Castelo Branco, onde foi submetido a intervenção cirúrgica de urgência para fechar a ferida, tendo sido de seguida transportado para o Hospital da Universidade de Coimbra.

em consequência da queda, sofreu politraumatismos, hematoma sub-aracnoideu com trauma da cisterna com extensão ao canal cervical, pequenas lesões dispersas bi-hemisféricas agudas traumáticas da base do crânio;

esteve internado entre 28 de Maio e 5 de Junho de 2020 e entre 28 de Junho e 8 de Julho de 2020;

como consequência direta do acidente em causa, resultou para o Autor perda completa de visão no seu olho esquerdo, perda completa de audição no seu ouvido esquerdo e perda completa do olfato; apresenta ainda cervico-braquialgias bilateriais com rigidez cervical e dor que irradia a zona dorsal, cefaleias frequentes, principalmente do lado esquerdo, com necessidade de medicação, amaurose direita, desequilíbrio e vertigens, com necessidade frequente de se segurar, e as lesões descritas no artigo 88.º da petição inicial;

o Autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral de 43,58%; como consequência do acidente, deixou de poder auferir como molheiro € 75,00 por dia durante mais dois meses (€ 4.500,00); previsivelmente, o Autor retomaria a actividade florestal no sector de vindimas, vinhas, olivais e regas, por conta da C..., Lda, em Agosto de 2020, atividade na qual auferia habitualmente € 720,00.

A Ré apresentou Contestação, alegando, em síntese, que o sinistro em causa não se reconduz a um acidente de viação, mas a um acidente de trabalho, uma vez que o Autor estava a trabalhar em cima do atrelado, estando excluindo da cobertura do seguro de responsabilidade civil automóvel por constituir um risco da laboração (em funções meramente agrícolas), concluindo pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

Realizada audiência final, foi proferida Sentença, que termina com o seguinte dispositivo:

VII. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos:

1) Julga-se parcialmente procedente a ação e, em consequência, decide-se:

1. Condenar a Ré A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. a pagar ao Autor AA a quantia global de € 151.710,90 (cento e cinquenta e um mil, setecentos e dez euros e noventa cêntimos) acrescida de juros de mora vencidos e vincendos contados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, com a penalização do pagamento do dobro da taxa de juro sobre aquele valor, nos termos dos artigos 38.º, n.º 2, e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007;

2. Absolver a Ré A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. do demais peticionado pelo Autor AA.

2) Julga-se improcedente o pedido formulado pelo Autor de condenação da Ré A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., como litigante de má-fé, absolvendo-se do peticionado pelo Autor no requerimento de 24-05-2021;

3) Condena-se o Autor e a Ré, nas custas processuais, na proporção do decaimento, que se fixa em 27,00% e 73,00%, respetivamente (cfr. artigos 527.º, n.º 1 e 2, e 607.º, n.º 6, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

4) Condena-se o Autor no pagamento das custas relativas ao incidente de litigância de má-fé deduzido pelo mesmo, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


*

Inconformada com tal sentença, a Ré dela interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

(…).

*
O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto – se o ponto 11 dos factos dados como provados se encontra incorretamente julgado
2. Se o sinistro configura não um acidente de viação, mas de laboração, excluído, como tal do âmbito do seguro celebrado com a Ré
3. Em caso negativo:
a. se o valor da indemnização fixada a título de dano biológico é exagerada, não devendo ser computada em mais de 65.000 €.
b. Se os danos patrimoniais não devem ser fixados em quantia superior a 25.000 €
c. Se não há razão para o arbitramento da indemnização a que alude o artigo 40º, nº1, al. d) do DL nº 291/2007, de 21 de agosto
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de facto

Na sentença recorrida foi proferido o seguinte julgamento quanto à matéria de facto:

A. FACTOS PROVADOS

Da instrução e discussão da causa resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1) O Autor nasceu no dia ../../1964.

2) A firma C..., Lda., na qualidade de locatária, celebrou um contrato de locação financeira relativamente ao veículo tractor com reboque de matrícula ..-XG-.. com a financeira D..., S.A., na qualidade de locadora, com início em 22-03-2019 e fim em 22-03-2022.

3) (…).

4) No dia 28-05-2020, mostrava-se transferida a responsabilidade civil contra terceiros emergente da circulação do tractor agrícola >50 HP, marca Deutz Fahr, matrícula ..-XG-.., para a Ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice  n.º ...97.

5) Das condições particulares do contrato de seguro a que se alude em 3), encontra-se  excluída da cobertura o risco de laboração.

6) No dia 28-05-2020, por volta das 6h00, o Autor iniciou o seu dia de trabalho como «molheiro», por conta da firma C..., Lda., no âmbito da atividade florestal de extração de cortiça levada a cabo por esta.

7) O Autor havia iniciado funções por conta da citada empresa, como «molheiro», transportando e atirando molhos de cortiça, há apenas três dias, desde o dia 25-05- 2020, encontrando-se à experiência.

8) A referida atividade de extração de cortiça era levada a cabo pela C..., Lda., no dia 28-05-2020, no lugar da Herdade ...”, em ..., ....

9) A hora não concretamente apurada, mas seguramente antes das 7h46, o Autor  encontrava-se em cima do reboque do veículo/tractor segurado na Ré, de marca Deutz, modelo Fahr, de matrícula ..-XG-.., na sua parte traseira, a ajeitar cortiça, juntamente com outro trabalhador BB.

10) O veículo/trator encontrava-se a trabalhar, porém, imobilizado, estando em curso a referida atividade de ajeitar a cortiça com vista ao posterior transporte dos  molhos de cortiça e dos molheiros no reboque.

11) O motorista CC colocou o trator de matrícula ..-XG-.. em movimento, de forma não concretamente apurada, súbita e sem aviso.

12) Como consequência do descrito em 11), o Autor desequilibrou-se, tendo caído desamparado do local em que se encontrava, batendo com a cabeça numa pedra existente no solo.

13) Na sequência desta queda, o Autor foi levado pela ambulância do INEM para o Hospital de Castelo Branco, no qual foi submetido a uma intervenção cirúrgica de urgência para fechar a ferida com que tinha ficado na cabeça em consequência do acidente.

14) Posteriormente foi enviado de urgência para o Hospital da Universidade de Coimbra.

15) A 05-07-2020, o Autor apresentava HSA, fratura da base do crânio e de D7, amaurose do olho esquerdo e diminuição da acuidade auditiva à esquerda, como consequência da queda descrita em 12).

16) O Autor esteve internado nos CHUC, Serviços de HUC – Neurocirurgia, entre 28- 05-2020 e 05-06-2020, durante o qual foi submetido a exames de RX e TAC, apresentando hematoma sub-aracnoideu, com trauma da cisterna com extensão ao canal cervical, pequenas lesões dispersas bi-hemisféricas agudas traumáticas da base do crânio, tendo-lhe sido colocado um dorso-lombostato, e sido observado por Oftalmologia (Amaurose do olho esquerdo) e por ORL por perda de acuidade  auditiva à esquerda.

17) O Autor esteve internado nos CHUC, Serviços de HUC – Neurocirurgia, entre 26-06-2020 e 06-07-2020, no decurso do qual foi reavaliado por perda de líquido raquidiano pelo nariz (rinorraquis da narina esquerda) por fístula central.

18) No decurso do internamento referido em 17), foi colocado ao Autor tamponamento e posteriormente drenagem, com nova alta atribuída a 06-07-2020.

19) A 19-03-2021, em consulta com o Dr. DD dos HUCNeurocirurgia, o Autor mantinha episódio de cefaleia moderada e cervicalgia e apresentava:

a. Continuidade entre o endocrânio e o seio esfenoidal esquerdo, encontrando-se este último parcialmente opacificado por preenchimento tecidual de etiologia duvidosa;

b. Continuidade entre o endocrânio e célula etmoidal superior esquerda, associando-se também pequeno preenchimento tecidual de características semelhantes ao descrito no seio esfenoidal ipsilateral;

c. anósmia, isto é, perda do olfacto.

20) Como consequência direta da queda descrita em 12), resultou para o Autor:

a. Perda completa de visão no seu olho esquerdo;

b. Perda completa de audição no seu ouvido esquerdo;

c. Perda completa do olfato;

21) A 25-01-2021, o Autor apresentava:

a. cervico-braquialgias bilateriais com rigidez cervical e dor que irradia a zona dorsal;

b. cefaleias frequentes, principalmente do lado esquerdo, com necessidade de medicação;

c. Amaurose direita;

d. Sem audição no ouvido esquerdo com acufenos;

e. desequilíbrio e vertigens, com necessidade frequente de se segurar.

22) A Ré entendeu não ser necessária qualquer avaliação do dano corporal, não observando o Autor.

23) Desde o dia 28-05-2020, após a queda referida em 12), até à data do seu segundo internamento, a 26-06-2020, o Autor perdeu líquido raquidiano pelo nariz.

24) O Autor usou um colete de contenção da mobilidade da coluna cervico-dorsolombar durante cerca de 6 meses em virtude da queda descrita em 12).

25) O sinistro em questão nos autos foi participado na Agência da Ré, em ..., a 1 de Junho de 2020.

26) A 08-06-2020, o mandatário do sinistrado/autor, remeteu à Ré e-mail (doc. n.º 1 –patenteado nos autos a fls.23), em que anexa procuração outorgada a seu favor pelo Autor e ainda “Nota de Alta” e “História Clínica” deste, passadas pelo C.H. Universitário de Coimbra, E.P.E.

27) A 06-07-2020, a Ré respondeu ao signatário referindo que o processo de sinistro ainda se encontrava em fase de instrução, solicitando o envio de determinados documentos.

28) A esta solicitação da Ré, o signatário respondeu logo no dia seguinte (7 de Julho de 2020), solicitando àquela que concretizasse algumas situações, nomeadamente no que às declarações escritas quanto às circunstâncias do evento dizia respeito.

29) Tal concretização chegou ao signatário por e-mail remetido pela Ré a 10-07- 2020.

30) As informações solicitadas e bem assim a declaração assinada pelo Autor seguiram no dia 20-07-2020.

31) A 30-07-2020, a Ré veio informar o signatário de que o processo ainda se encontrava em fase de instrução e que, nessa medida, ainda não seria possível pronunciar-se quanto à responsabilidade pela produção do sinistro, e que entendia não ser necessária a avaliação do dano corporal.

32) Solicitou ainda a Ré informação quanto ao número da apólice de acidentes de trabalho e respetiva seguradora.

33) No mesmo dia 30 de Julho, o Autor, por intermédio do seu mandatário, respondeu à Ré referindo-lhe, em resumo, o seguinte (doc. n.º 9 – patenteado a fls.27, cujo conteúdo se dá por reproduzido):

a) Que estaríamos perante uma situação de ocorrência, em simultâneo, de acidente de viação e de trabalho;

b) Que ignorava qual o número da apólice de acidentes de trabalho, se a mesma existia de fato e se a firma B..., LDA., havia ou não participado o acidente como de trabalho;

c) Que, nos termos do artigo 131.º do CE e artigo 1.º do DL n.º 522/85, o seguro obrigatório de responsabilidade civil se reporta aos veículos terrestres a motor, aos seu reboques e semirreboques;

d) Que o seguro do veículo – trator – garante os danos causados pelo respetivo reboque ou semirreboque, com o fundamento de que constituem um veículo único e que o DL 522/85 só exige um único seguro para ambos;

e) Que, tratando-se de um acidente que é simultaneamente de viação e de trabalho, ao Autor é facultada a possibilidade de optar por um ou por outro;

f) Solicita-se ainda uma avaliação do dano corporal com a maior urgência face à gravidade das lesões;

34) A 09-09-2020 e após o mesmo lhe ter sido disponibilizado pelo Hospital da Universidade de Coimbra, o mandatário do Autor remeteu à Ré Relatório de Episódio de Urgência/Informação clínica do Autor, conforme lhe havia sido solicitado.

35) O mandatário do Autor enviou nova comunicação à Ré, no dia 08-10-2020.

36) Na qual, em resumo, é salientada a existência atraso na comunicação de uma posição definitiva quanto à responsabilidade pela produção do sinistro, chamando a atenção da Ré para o fato de todos os prazos previstos no DL n.º 291/2007, de 21.08 se encontrarem há muito ultrapassados.

37) Sublinhando-se ainda que tudo havia sido feito por parte do Autor no sentido duma resolução amigável do processo, mas que, caso não houvesse uma definição da responsabilidade, seria forçado a avançar judicialmente.

38) Na sequência de contacto telefónico por parte da empresa de averiguação de sinistros E..., designadamente do seu perito averiguador EE e da comunicação deste do dia 14-10-2020, foram novamente solicitados documentos que o Autor já havia enviado à Ré há alguns meses atrás, a saber, declarações escritas sobre as circunstâncias do acidente e episódio de urgência.

39) Documentos que, no mesmo dia 14-10-2020, foram remetidos pelo Autor ao mencionado perito averiguador.

40) A 10-11-2020, o mandatário do Autor enviou nova comunicação à Ré pugnando por uma rápida definição de responsabilidade.

41) A 13-11-2020, a Ré respondeu dizendo uma vez mais que ainda não estaria em condições de comunicar a sua posição e que o processo teria sido submetido à Direção para análise.

42) A 23-11-2020, o mandatário do autor enviou nova comunicação à Ré na qual, em resumo, refere o seguinte (doc. n.º 16 – fls.32-v a fls.33):

a) Que, segundo informações prestadas pelo perito averiguador EE, a investigação do sinistro estaria concluída, tendo este já ouvido em declarações uma das testemunhas presenciais do acidente, de nome BB;

b) Que, segundo informações prestadas pelo citado perito, este já havia remetido as suas conclusões finais para a Ré e que nenhumas dúvidas restavam quanto à dinâmica do acidente e à responsabilidade pela sua produção;

c) Que, todos os elementos solicitados haviam sido enviados;

d) sinaliza-se a instauração de ação judicial;

43) O mandatário do Autor voltou a insistir junto desta a 14-12-2020 no sentido de procurar saber se já havia ou não uma posição definitiva quanto à responsabilidade pela produção do sinistro.

44) Na mesma comunicação manifestou o seu mais profundo desagrado e indignação pela falta de consideração profissional consubstanciada no facto da Ré, não só não se dignar a responder aos vários e-mails enviados, como nenhuma das inúmeras chamadas telefónicas realizadas ter sido devolvida, não obstante as várias promessas nesse sentido efetuadas por quem ia fazendo o atendimento por parte da seguradora;

45) A 21-01-2021, a Ré enviou uma comunicação ao mandatário do Autor, referindo apenas que o processo ainda se encontrava em fase de instrução «(…) estando a aguardar um parecer internamente solicitado.»

46) A esta comunicação o mandatário do Autor respondeu logo no dia seguinte, ou seja, a 22-01-2021, dando conta de que o processo já se arrastava há cerca de 8 meses e que, uma vez concluída a peritagem e enviados todos os documentos solicitados.

47) O mandatário do Autor enviou à Ré ainda uma comunicação datada de 08-02-2021, junta como doc. n.º 20 a fls.35-v, cujo conteúdo se dá por reproduzido, com o seguinte teor:

«(…)

Decorridos quase 9 meses sobre a data do sinistro sem qualquer definição de responsabilidade e para que fique registado, nomeadamente para efeitos judiciais, venho informar V. Exas. que a ação judicial se encontra já elaborada e concluída e que - independentemente da suspensão de prazos judiciais que se verifica presentemente - caso não haja qualquer comunicação por parte dessa companhia seguradora até à próxima sexta-feira, dia 12 de fevereiro, será dada entrada à mesma em juízo.

Com os m/cumprimentos,»

48) Recebendo uma resposta por parte da Ré a 23-02-2021, junta como doc. n.º 21 –fls.36, cujo conteúdo se dá por reproduzido, com o seguinte teor:

«V/ Constituinte: AA

Exmo. Sr. Dr. FF,

Com referência ao assunto em epígrafe, informamos V. Exa. de que temos vindo a analisar atentamente todos os factos e a documentação que suporta o pedido de pagamento das quantias seguras no âmbito da apólice  n.º ...97.

Todavia, desconhecem-se ainda todas as circunstâncias relacionadas com o sinistro, o qual, conforme V. Exa. sabe, não foi participado de forma completa e que permita uma decisão rápida e incontestável.

Nessa medida, gostaríamos de reforçar a necessidade de clarificação do sucedido, sendo necessário o envio por V. Exas. de documentação necessária que nos permita atestar e compreender o seguinte: se a viatura por nós garantida estava, ou não, a ser utilizada como máquina em laboração e se o V/ Constituinte era efetivamente trabalhador da empresa segura.

Sem os acima mencionados esclarecimentos e sua comprovação, não nos é possível esclarecer de forma cabal as causas e circunstâncias do sinistro em questão e, por conseguinte, concluir quanto ao eventual acionamento e respetivos moldes da apólice em apreço, tal como previsto nos arts. 100.9 e ss. do DecretoLei n.º 72/2008, de 16 de abril.

Terminamos manifestando o n/compromisso na resolução do presente processo de sinistro, bem como a n/compreensão pelos interesses que V/Exa. representa, contudo, tal como resulta de lei, a realização da prestação pelo segurador não pode deixar de se fazer após o adequado apuramento dos factos que o determinam, o que, no caso vertente, não se afigurou possível até ao momento.

(…)».

49) A tal comunicação respondeu o Autor nos termos do documento patenteado nos autos a fls.36-v a fls.37, datado de 25-02-2021, cujo conteúdo se dá por reproduzido, e com o seguinte teor:

«Ex. ma Senhora,

GG

A... SEGUROS

Presente o seu e-mail infra, que nos mereceu a melhor atenção, porém a maior estranheza e até alguma indignação.

Antes de mais, cumpre fazer um pequeno reparo à afirmação constante do primeiro parágrafo, já que nenhum pedido de pagamento de "quantias seguras" foi ainda efetuado pelo sinistrado.

No entanto, aquilo que resulta à saciedade e por demais evidente da sua comunicação é a constatação de que, passado quase um ano, tudo continua a ser feito por parte dessa seguradora no sentido duma não definição de responsabilidade pela produção do sinistro, violando todos os prazos legais previstos para o efeito e empurrando a sinistrado para um inevitável litigio judicial.

Com efeito, passado quase um ano sobre a data do sinistro com troca de dezenas de e-mails, com a realização de inúmeros telefonemas por parte do signatário - sem nunca conseguir chegar à fala com ninguém responsável ou ter havido sequer o respeito e a consideração de uma devolução de chamada - e com uma peritagem levada a cabo pela empresa "E... e nomeadamente pelo seu perito HH, é no mínimo incompreensível e inaceitável vir ainda numa altura destas questionar sobre se a viatura segura se encontrava ou não em laboração e se o m/constituinte era ou não trabalhador da empresa segura.

Permita-me recordar V. Exa. de duas situações: a primeira é de que, na sequência do seu e-mail de 10 de julho de 2020, isto é, de há 7 meses, todas as informações ai solicitadas foram efetivamente prestadas, designadamente no que se refere à situação da viatura se encontrar em laboração e de qual a posição que o m/constituinte ocupava nessa viatura no momento do sinistro; a segunda é de que, segundo informação prestada pelo Sr. HH da "E...", toda a peritagem estaria concluída, não lhe tendo restado quaisquer dúvidas sobre a responsabilidade pela produção do sinistro/acidente de viação em causa. Mais referiu ao signatário o mencionado perito que até já teria remetido o relatório de peritagem à seguradora com todas as conclusões a que tinha chegado.

(…)

Nesta medida, e porque em nosso entender não existem nesta fase quaisquer factos que careçam de apuramento, ora porque todos os elementos solicitados foram oportunamente enviados, ora porque informados da conclusão da peritagem - conclusão pela qual se entendeu por bem aguardar- e bem assim porque se há algumas dúvidas havia sobre a incapacidade manifesta, porém com toda a certeza deliberada, dessa seguradora tomar uma decisão final sobre a responsabilidade, tais dúvidas dissiparam-se face ao conteúdo do e-mail infra, informo V. Exas, que, definitivamente, consideramos não existir quaisquer condições de continuar a pugnar por uma resolução extrajudicial e negociada do presente sinistro, avançando-se de imediato com a instauração da competente ação judicial, a ser distribuída logo que a presente suspensão de prazos processuais seja levantada.

Com os m/cumprimentos,

O Advogado, ...».

50) O Autor continua e continuará para o futuro com falta de visão e de audição no seu lado esquerdo e com falta de olfato.

51) À data da queda descrita em 12), o Autor encontrava-se a auferir a título de subsídio de desemprego a quantia de € 501,00 por mês.

52) A atividade de extração de cortiça dura normalmente até ao final do mês de Julho.

53) O Autor iria retomar a sua atividade florestal no sector de vindimas, vinhas, olivais e regas, por conta da referida firma C..., Lda., no final do mês de Agosto de 2020.

54) O Autor auferia habitualmente a importância mensal de € 720,00, no âmbito da atividade florestal no sector de vindimas, vinhas, olivais e regas.

55) O Autor despendeu a importância de € 110,45 em aquisição de medicação, em virtude da queda descrita em 12).

56) O Autor despendeu a importância de € 60,00 em consulta médica, em virtude da queda descrita em 12).

57) O Autor despendeu a quantia de € 290,00 na consulta de avaliação do dano e respetivo relatório.

58) O Autor despendeu a importância de € 750,45 na aquisição de óculos, em virtude da queda descrita em 12).

59) Como consequência da queda descrita em 12), o Autor sentiu angústia e medo, e receou pela própria vida.

60) Como consequência da queda descrita em 12), o Autor sofreu dores.

61) Como consequência da queda descrita em 12), o Autor teve cefaleias frequentes e intensas com necessidade de medicação.

62) Como consequência da queda descrita em 12), o Autor perdeu líquido raquidiano pelo nariz durante aproximadamente um mês.

63) Como consequência da queda descrita em 12), o Autor sofre de vertigens frequentes com necessidade de se segurar.

64) O Autor era, até à data do acidente, saudável e feliz.

65) Em virtude da queda descrita em 12), o Autor sofreu tristeza e desgosto.

66) Antes da queda descrita em 12), o Autor tinha como passatempo a prática da caça, desde os seus 18 anos.

67) Antes da queda descrita em 12), o Autor praticava desporto, a saber: corrida e ciclismo.

68) Em virtude das sequelas de que padece em consequência da queda, o Autor ficou impedido de praticar o acto venatório com espingarda e de andar de bicicleta.

69) A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor é fixável no dia 03-12-2021.

70) O Autor apresenta as seguintes sequelas em consequência do embate referido em 12):

- ao nível do crânio, surdez total à esquerda e surdez parcial à direita, acufenos; alteração do equilíbrio por vertigem;

- ao nível da face, amaurose à esquerda, e anosmia;

- ao nível do ráquis, uma deformidade por diminuição da altura do corpo da sétima vértebra dorsal;

71) O défice funcional temporário total é fixável no período de 20 dias.

72) O défice funcional temporário parcial é fixável no período de 535 dias.

73) A repercussão temporária na atividade profissional total é fixável no período de 555 dias.

74) O Autor sofreu de um quantum doloris de grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

75) O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do Autor é fixável em 56,02 pontos.

76) As sequelas de que o Autor ficou portador são, em temos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo, no entanto, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional.

77) O dano estético permanente sofrido pelo Autor é fixável no grau 2, numa escala com sete graus de gravidade crescente.

78) As sequelas de que o Autor ficou portador são, em temos de Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer, fixáveis no grau 2 numa escala com sete graus de gravidade crescente


*

1. Impugnação da matéria de facto.

(…).


*

B. O Direito.

2. Se o sinistro configura, não um acidente de viação, mas de laboração, excluído, como tal, do âmbito do seguro celebrado com a Ré.

A decisão recorrida, de um modo perfeitamente claro e devidamente fundamentado, considerou que a situação trazida aos autos configura “um acidente de viação/circulação, ainda que o mesmo tenha surgido num contexto de laboração agrícola”, e que aqui reproduzimos, uma vez que, a mesma é tratada de um modo tão exaustivo e completo, que aderindo à mesma, nada haveria, nesta parte, a acrescentar:

“A questão central desta acção consiste em saber se o acidente descrito nos autos se integra no âmbito da «circulação de veículos» [e que desencadeia a responsabilidade prevista nos arts. 3.º, parágrafo 1.º da Directiva (Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009) e 4.º, n.º 1, do Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, sucessivamente alterado], ou, pelo contrário, se constitui um «acidente de laboração», não abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Impõe-se, pois, principiar por dilucidar se se está na presença de um acidente de laboração ou de um acidente de circulação.

(…).

Dando resposta ao repto comunitário, o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, aprovou o regime jurídico do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs, parcialmente, para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio.

O conceito de veículo é definido no artigo 1.º, n.º 1, da referida directiva, nos termos do qual deve entenderse por «veículo» na acepção desta directiva «qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser accionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados» (redacção mantida pela Directiva n.º 2009/103/CE, de 16 de Setembro de 2009).

Um tractor com reboque enquadra-se nessa definição: «a este respeito, importa salientar que esta definição é independente da utilização que se faça, ou possa fazer, do veículo em causa. Por conseguinte, o facto de um trator, eventualmente com reboque, poder, em determinadas circunstâncias, ser utilizado como máquina agrícola não afeta a constatação de que um veículo desse tipo se enquadra no conceito de «veículo» que figura no artigo 1.º, n.º 1, da Primeira Diretiva» Acórdão de 4 de Setembro de 2014, Damijan Vnuk c. Zavarovalnica Triglav d.d. (C-162/13, EU:C:2014:2146). Também na jurisprudência nacional, veja-se com interesse o Acórdão do STJ, de 16-03-2023, Proc. 5130/20.0T8VIS.C1.S1: «[u]m tractor agrícola, por ser necessária a obtenção de uma licença habilitadora da sua condução, integra o conceito de veículo terrestre a motor (de propulsão a gasóleo, com dois eixos e quatro rodas), para efeitos do disposto no artº 4 nº1 do D.L. 291/2007 e 1º nº1 da Directiva 2009/103/CE (obrigação de segurar).»

Neste seguimento, o artigo 4.º, n.º 1, do referido diploma legal consagrou a obrigatoriedade de celebração de um seguro de responsabilidade civil que assegure a cobertura dos riscos próprios da circulação de veículos automóveis, para os quais seja exigida uma licença de condução, aí prevendo que «Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade».

Por seu turno, esclarece o n.º 4, do mesmo preceito que ficam excluídos do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, os eventos danosos que decorram, exclusivamente, da utilização de veículos em funções meramente agrícolas ou industriais (os chamados «acidentes de laboração»).

À semelhança do consagrado na legislação comunitária sobre a matéria (atualmente, codificada na Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009), a delimitação do âmbito do seguro obrigatório é estabelecida por apelo ao conceito de «circulação de veículo». O alcance do conceito de «circulação de veículos» não depende das características do terreno em que o veículo automóvel é utilizado (Proc. C514/16 - Rodrigues de Andrade).

A este propósito cumpre esclarecer que, embora o legislador nacional não faculte uma definição para este conceito, a mesma resulta do artigo 1.º-A da Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, na redação conferida pela Directiva (UE) 2021/2118, aí se esclarecendo que deve entender-se por «circulação de veículo» qualquer utilização de um veículo que esteja em conformidade com a função habitual desse veículo enquanto meio de transporte aquando do acidente, independentemente das características do veículo e independentemente do terreno em que o veículo automóvel seja utilizado, e quer se encontre estacionado ou em movimento.

Refira-se, inclusivamente, que a referida noção encontra-se em consonância com a jurisprudência anteriormente firmada pelos Tribunais Judiciais da União Europeia, de acordo com a qual o conceito de «circulação de veículo» deve abranger «qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo» (Acórdão Vnuk, de 04.09.2014, Proc. C-162/139), ficando excluídos os casos em que, no momento do acidente, o veículo não está a ser utilizado como meio de transporte, mas como máquina de trabalho para gerar a força motriz necessária ao desempenho de uma atividade agrícola ou industrial (Acórdão Rodrigues de Andrade, de 28-11-2017, Proc. processo C514/16). No Acórdão de 4 de Setembro de 2014, Damijan Vnuk c. Zavarovalnica Triglav d.d. (C-162/13, EU:C:2014:2146), relativo a uma manobra de marcha atrás efectuada por um tractor agrícola, o Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «circulação de veículos» abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. A função habitual de um veículo é estar em movimento. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito de «circulação de veículos» a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, o que cabe ao tribunal nacional verificar – nestes termos, Processo C162/13, Damijan Vnuk c. Zavarovalnica Triglav d.d.

O facto de o veículo envolvido no acidente se encontrar imobilizado no momento em que este ocorreu não exclui, por si só, que a utilização deste veículo nesse momento possa estar abrangida pela sua função de meio de transporte e, em consequência, pelo conceito de «circulação de veículos», na acepção do artigo 3.º, n.º 1, da Primeira Directiva. Por outro lado, a questão de saber se o seu motor estava ou não em funcionamento no momento em que o acidente ocorreu não é determinante a este respeito.

Assim tem sido, igualmente, considerado na jurisprudência nacional (vide, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ tirados nos seguintes processos: Processo n.º 5130/20.0T8VIS.C1.S1, de 16-03-2023; Processo n.º 3130/16.3T8AVR.P1.S1, de 05.04.2022; Processo n.º 312/11.8TBRGR.L1.S1, de 17-12-2015; Processo n.º 254/08.4TBODM.E1.S1, de 08-05-2013; Processo n.º 630/2001.P1.S1, de 12-09-2013; Processo n.º 719/2002.G1.S1, de 01-07-2010).

Resulta do exposto que o critério delimitador assenta na concreta utilização que está a ser dada ao veículo no momento da eclosão do sinistro, assumindo particular relevância o circunstancialismo em que o acidente ocorreu, por forma a determinar se decorreu dos riscos próprios da circulação do veículo ou dos riscos próprios da laboração agrícola/industrial.

Por outro lado, para qualificar um acontecimento como «acidente de viação» exige-se a mobilidade do veículo envolvido no acidente, na altura em que este ocorre, e do qual resultam danos para terceiros.

Existem veículos de natureza «mista», utilizados simultaneamente como meio de transporte e como simples máquinas geradoras de força motriz, que são susceptíveis de causar, enquanto tais, danos a terceiros, não só quando circulam, mas também em resultado da sua função quando estejam parados, como máquinas geradoras de força motriz.

Tecidas estas considerações e revertendo ao caso que nos ocupa.

Provou-se que:

a) No dia 28-05-2020, no lugar da Herdade ...”, em ..., ..., a hora não concretamente apurada, mas seguramente antes das 7h46, o Autor encontrava-se em cima do reboque do veículo/tractor segurado na Ré, de marca Deutz, modelo Fahr, de matrícula ..-XG-.., na sua parte traseira, a ajeitar cortiça, juntamente com outro trabalhador BB.

b) O veículo/tractor encontrava-se a trabalhar, porém, imobilizado, estando em curso a referida actividade de ajeitar a cortiça com vista ao posterior transporte dos molhos de cortiça e dos molheiros..

c) O motorista CC colocou o tractor de matrícula ..-XG-.. em movimento, de forma súbita, sem aviso. Como consequência do atrás descrito, o Autor desequilibrou-se, tendo caído desamparado do local em que se encontrava, batendo com a cabeça numa pedra existente no solo.

No que se refere a veículos que, como o tractor em causa, se destinam, além da sua utilização habitual como meio de transporte, a ser utilizados, em certas circunstâncias, como máquinas de trabalho, importa determinar se, quando ocorreu o acidente no qual tal veículo esteve envolvido, esse veículo estava a ser usado principalmente como meio de transporte, caso em que esta utilização é susceptível de estar abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.º, n.º 1, da Primeira Directiva (Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972), ou como máquina de trabalho, caso em que a utilização em causa não é susceptível de estar abrangida por este mesmo conceito.

Como se afirma no Acórdão do TRG, de 23-06-2016, Proc. 36/11.6TBSBR.G1, «Os veículos, de natureza mista, utilizados simultaneamente como meio de transporte e como máquina, nas mais diversas áreas de actividade (agrícola, construção civil, industrial) poderão causar danos a terceiros, decorrentes dessa utilização, não só quando circulam mas também em resultado da sua função regular de máquina, estando imobilizados».

Da factualidade assente, resulta que o tractor estava a ser utilizado, no contexto em apreço, como máquina de trabalho, mas igualmente máquina de transporte. Na verdade, o atrelado servia como depósito dos molhos de cortiça (depreende-se que iam ali sendo depositados à medida que passavam por sobreiros ou por locais onde estivessem molhos de cortiça). Mas igualmente o tractor servia como transporte dessa mesma cortiça e dos molheiros que se encontravam no atrelado.

Não se pode, pois, afirmar que a utilização do tractor, no caso dos autos, está principalmente associada à função como máquina de trabalho, e não como meio de transporte.

Pelo contrário, da factualidade assente é patente que o tractor servia como meio de transporte e, por conseguinte, está abrangido pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.º, n.º 1, da Primeira Directiva (Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972).

O caso dos autos é, pois, distinto de outros casos com tratamento na jurisprudência, por exemplo, a situação em que um trator agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que oacidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para acionar a bomba de um pulverizador de herbicida (e que no Acórdão Rodrigues de Andrade, de 28-11-2017, Proc. C514/16 se entendeu estar subtraído à previsão do conceito de «circulação de veículos» a que se alude no artigo 3.º, n.º 1, da Primeira Directiva).

Ademais, diga-se que a Directiva n.º 2009/103/CE, de 16 de Setembro de 2009, manteve a definição de veículo constante na primeira Directiva a que se já se fez referência («qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser accionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados» – artigo 1.º, n.º 1), e a obrigatoriedade de constituição de um seguro de responsabilidade civil que cobrisse os riscos decorrentes da circulação de veículos.

Também não há dúvidas de que um tractor, sendo um veículo terrestre dotado de um motor de propulsão a gasóleo, com dois eixos e quatro rodas, que exige para a sua condução um título específico (artigos 108.º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada e 7.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, (na redacção do Decreto-Lei n.º 40/2016 de 29 de Julho), integra o conceito de veículo, para efeitos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007 e 1.º, n.º 1, da Directiva 2009/103/CE – ver de forma proficiente o Acórdãos do TRE, de 11-01-2018, Proc. 187/13.2TBMRA.E1, do TRC, de 09-11-2022, Proc. 5130/20.0T8VIS.C1, do STJ, de 16-03-2023, Proc. 5130/20.0T8VIS.C1.S1.

Continua-se no mesmo aresto que «só devem ser considerados incluídos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, os eventos danosos em que se possa afirmar a existência de um nexo causal com os riscos próprios do veículo/tractor, excluindo aqueles em que o evento decorra dos riscos próprios da laboração de uma alfaia agrícola a ele acoplada, por via do disposto no nº4 do artº 4 do D.L. 291/2007 e 3º § 1 da Directiva 2009/103/CE» (Acórdão do TRC, de 09-11-2022, Proc. 5130/20.0T8VIS.C1).

Importa agora aferir se os danos produzidos se geraram na esfera de perigo (e seus riscos próprios de concretização) de um evento de locomoção ou de circulação do veículo a que o reboque se encontrava atrelado.

O veículo/tractor encontrava-se a trabalhar, porém, imobilizado, estando em curso a referida actividade de ajeitar a cortiça com vista ao posterior transporte dos molhos de cortiça e dos molheiros.

O motorista CC colocou em movimento, de forma não concretamente apurada, súbita e sem aviso, o aludido tractor. Significa isto que nos reportamos a um perigo ligado à circulação e locomoção do tractor – este movimentou-se por via de uma actuação do condutor.

Como consequência da actuação do condutor, o Autor desequilibrou-se, tendo caído desamparado do local em que se encontrava, batendo com a cabeça numa pedra existente no solo.

Verifica-se a produção do perigo ou risco próprio inerente (enquanto unidade circulante autónoma) à condução (ou utilização) de um «veículo de circulação terrestre» que implica a aplicação do regime do artigo 503.º do Código Civil (com indemnização de danos em conexão com os riscos específicos de um meio de circulação ou transporte terrestre como tal): (i) o atrelado e o tractor (enquanto unidade circulante) comportaram-se como veículo no desempenho funcional com que foram utilizados, ao qual se imputa o facto de concretização do perigo que veio a produzir os danos; (ii) o veículo tractor a que se associa o atrelado tem predomínio sobre a função principal da actividade do atrelado/reboque, e à qual se deveu o facto lesivo; (iii) o atrelado assume-se como um complemento instrumental e acessório do tractor, mas não para a concretização de função mecânica de qualquer outra máquina: acompanha solidariamente o tractor, pese embora possa ter lateralmente a função de armazenamento de molhos de cortiça, sendo certo que estes são transportados no reboque.

O Autor desequilibrou-se e embateu com a cabeça no chão em virtude do movimento do tractor causado pelo seu condutor.

Ou seja, não entrevemos que no caso dos autos se deva excluir do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel os eventos danos verificados, visto que estes não decorrem dos riscos próprios de laboração do tractor: antes decorrem dos riscos próprios do tractor enquanto meio de transporte – o mesmo terá dado um solavanco por actuação do condutor, o que se depreende pela queda abrupta descrita no facto 12) – vd. a contrario artigo4.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 291/2007 e 3.º, § 1, da Directiva 2009/103/CE, e também a contrario Acórdão do STJ, de 16-03-2023, Proc. 5130/20.0T8VIS.C1.S1. Veja-se que no Acórdão do TRE, de 11-01-2018, Proc. 187/13.2TBMRA.E1, se decidiu que, mesmo que se verifiquem os dois riscos (de laboração e de transportação/viação), não se mostra excluída a responsabilidade da seguradora nos termos do artigo 4.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 291/2007: «[o]correndo o acidente quando o tractor não desempenhava exclusivamente a sua função agrícola, sendo também utilizado na sua função acessória de transporte rodoviário, não se mostra excluída a responsabilidade da Seguradora nos termos do artigo 4.º, n.º 4, do mesmo diploma».

Entende a Ré que o sinistro em causa está relacionado com a específica missão agrícola, ou de índole laboral - «risco de laboração» -, estando o Autor a executar uma tarefa de recolha de cortiça no reboque acoplado ao tractor, com vista à sua laboração agrícola que se ia realizar, precisamente, no interior da Herdade ....

O exercício daquela actividade agrícola/laboral e o local privado em que o veículo se encontrava não retiram a característica de circulação automóvel, ou seja, a sua função de veículo circulante.

O acidente ocorrido deve qualificar-se, por tudo isto, como de circulação automóvel e, consequentemente, como acidente de viação. cfr Acórdãos do STJ, de 11-02-2003, Proc. Processo: 488/21.6T8CTB03A029, do TRG, de 15-03-2011, Proc. 3700/09.6TBBRG.G1, do TRL, de 02-06-2016, Proc. 758/11.1TBAGH.L1-8, e vd. Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, Ano XVI, Tomo I, p. 175.

Para efeitos de inclusão no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relevam acidentes que podem ocorrer tanto nas vias públicas como nas particulares e, até, em locais não destinados à circulação e que não é o facto de o veículo se encontrar parado que impede que como tal se considerem, exigindo-se que o veículo tenha sido causa directa ou indirecta do evento, isto é, que o acidente tenha relação com os perigos que a sua utilização efectivamente comporte.

Como se dá nota no Acórdão do TRL, de 12-05-2022, Proc. 165/20.5T8VFC.L1-2, «[a] jurisprudência portuguesa tem admitido que acidentes causados por máquinas de trabalho sejam cobertos pelo regime da responsabilidade civil automóvel ainda que o sinistro ocorra no decurso da utilização da máquina dentro da função que lhe é específica, se, concomitantemente, o aparelho estiver a desempenhar também a sua função de circulação, numa manifestação dos riscos da atividade viária. Nesses casos estar-se-á ainda perante um acidente de viação».

Nestas circunstâncias, como a responsabilidade civil pelos danos provocados no Autor pelo tractor agrícola emerge de acidente de viação, o mesmo está a coberto do contrato de seguro celebrado com a Ré.”

Sem contestar o enquadramento legal que suporta a decisão recorrida, os conceitos de “veículo”, e a delimitação que aí é feita entre “acidentes de viação” e “acidentes de laboração”, e sem invocar qual a(s) norma(s) jurídica(s) violada(s), a Apelante insurge-se contra o decidido, sustentado tratar-se de um acidente de pura laboração, com base nos seguintes fundamentos:

no exato momento em que ocorreu o acidente, o conjunto formado pelo trator e atrelado estavam a ser utilizados como máquina: o trator estava parado com o reboque a ser carregado de cortiça, que era achegada do chão ao Autor que estava em cima daquele e da carga, o qual, juntamente com outro trabalhador a ia acamando; o veículo não estava em circulação, nem a fazer naquele momento preciso, nenhum transporte.

esta atividade ou trabalho de colocar e acamar a cortiça no reboque era o que o autor estava a levar a efeito, quando inesperadamente o conjunto trator/reboque deu um solavanco;

o acidente que consistiu na queda em altura do autor quando o conjunto deu tal solavanco não é, pois, um acidente de circulação ou de viação, como aliás, resulta do que foi decidido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-09-2022. Proc. 1066/19.5T8VRL.G2 atrás citado e seguido;

a concreta utilização que estava naquele preciso momento a ser dada ao veículo era a de ser carregado, parado, com cortiça, com o autor e um colega em cima da carga, sendo suposto, como é de lei, que o mesmo só iniciaria a sua marcha quando aqueles se apeassem do mesmo.

Não é de dar qualquer razão à Apelante.

Não se pode afirmar que, no momento do acidente, o conjunto do trator/reboque estivesse a funcionar como “máquina”, como defende a apelante: o veículo composto por trator/atrelado estava a ser carregado de molheiros de cortiça, para posterior transporte da mesma, ou seja, tal como se afirma na decisão recorrida, estava a ser utilizado como “meio de transporte”.

Ainda assim, no circunstancialismo fáctico em causa, podemos cindir duas atividades a ocorrer em simultâneo: por um lado, temos o autor em cima do reboque/trator a ajeitar a cortiça, juntamente com outro trabalhador; e, ao mesmo tempo, temos o condutor dentro do trator com o motor do veículo ligado, a aguardar que os dois trabalhadores terminassem o seu serviço.

E, o sinistro não ocorreu por qualquer causa relacionada com a tarefa que o autor e o seu colega se encontravam a executar (como o seria, por ex., se algum molho de cortiça se tivesse deslocado, provocando a sua queda para fora do trator): o autor só caiu na sequência de – estando o trator imobilizado, mas com o motor a trabalhar –, por causa não concretamente apurada, o motorista ter colocado o trator em movimento, subitamente e sem avisar, desequilibrando o autor e fazendo-o cair do veículo.

Quanto ao Acórdão de 15-09-2022[1], citado pela Apelante, reporta-se a uma situação diferente, em que uma retroescavadora executava a tarefa de movimentar uma pedra em granito para ser fixada ou apoiada em cima das ombreiras ou laterais de um edifício em construção, em manobras de avanço e recuo, até conseguir acertar com o melhor momento para apoiar ou fixar a pedra de granito, tendo o sido numa dessas manobras de avanço e recuo que o retroescavadora acerta na pedra com os dentes da máquina, fazendo-a cair em cima do sinistrado. Nessa situação, concordamos em que, podendo constituir um veículo de circulação terreste, a retroescavadora se poderia considerar na sua vertente de máquina industrial a laborar.

Improcedem, assim, as conclusões formuladas pela Apelante a tal respeito.


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3. Se o valor da indemnização fixada a título de dano biológico é exagerado, não devendo ser computado em mais de 65.000 €

Discorda a Apelante da decisão do tribunal que fixou a indemnização a título de dano biológico no montante de 90.000 €, sustentando que o mesmo não deve ser superior a 65.000,00 €, com a seguinte argumentação:

o critério utilizado pelo Juiz a quo, ao multiplicar o que considera a perda de capacidade de ganho pelo número de anos que o autor ainda poderá viver até aos 78 anos e dividir depois por 2 é um critério sem rigor, aleatório: por que razão considerar todos esses anos e dividir por 2 (50%) porque recebe o capital de uma vez? qual a base cientifica por que dividiu por 2 e não por qualquer outro número;

hoje há fórmulas acessíveis a todos para se poder fazer a projeção do capital necessário para garantir a perda de capacidade de ganho, cujo resultado permite depois ser temperado com juízos de equidade.

a perda da capacidade de ganho do autor não se reflete até aos 78 anos, mas apenas durante a previsível vida ativa do autor.

aliás, nem o próprio Autor, depois de ampliar o pedido, ousou pedir a indemnização de 90 000,00 que lhe foi arbitrada.

Cumpre apreciar cada uma das razões de discordância do Apelante.

Desde logo, há que referir que a Apelante se insurge contra a forma de cálculo de que o tribunal se socorreu como auxiliar para fixar a indemnização com base no critério na equidade, sem que proponha qualquer outra, de entre as muitas “fórmulas acessíveis” que, genericamente, alega existirem.

Quanto à circunstância de se ter em consideração a idade de 78 anos, tal como é dito na decisão recorrido, corresponde à esperança média de vida, e não ao período de vida profissionalmente ativo, precisamente, porque, a quantificação do dano biológico não tem por objetivo ou medida as perdas salariais, correspondendo antes a uma compensação pela violação do direito à integridade física e psíquica, independentemente de dela decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais. O dano corporal, dano à saúde ou à integridade física, porque reportado a toda a atividade pela qual se realiza a atividade do individuo, vai para lá do termo da vida laboral, abarcando todo o tempo de vida do lesado.

Tal entendimento, não só, não levanta dúvidas na doutrina e jurisprudência, como corresponde ao pensamento do legislador que, na indicação dos critérios orientadores para efeitos de apresentação aos lesados de acidente de viação de proposta razoável para indemnização do dano corporal – entendido como violação do direito à integridade física e psíquica –, prevê a atribuição de tal compensação para quem tem “70 anos ou mais”, ou seja, muito para lá da idade legal de reforma (cfr., Portaria 377/2008, de 26 de maio, atualizada pela Portaria 679/2009, de 25 de Junho.

Quanto ao facto de o juiz a quo ter chegado a um valor de 187 625,34 €, pela aplicação de cálculos aritméticos, assentes no valor dos rendimentos do autor, esperança de vida e grau de incapacidade, e de a final, com base no critério da equidade – único e verdadeiro critério para a fixação da compensação do dano biológico, nos termos do artigo 566º, nº3, do Código Civil –, ter fixado a indemnização pelo dano biológico em apenas 90.000,00 €, não se atinge como é que a crítica que a Apelante dirige ao facto de tal redução ser aleatória, pode sustentar a sua pretensão a ver reduzida tal indemnização ao montante de 65.000 €.

Por fim, peticionando o autor a importância de 83.492,00 € a título de “danos patrimoniais futuros, com base numa incapacidade funcional de 56,02 pontos”, e a importância de 80.000 € a título de danos não patrimoniais, nada impede o juiz de fazendo a sua própria avaliação e qualificação dos danos dados como provados, fixe a compensação do dano biológico no montante de 90.000 € e a compensação pelos danos não patrimoniais em 35.000 €, desde que a indemnização atribuída ao autor não ultrapasse no seu todo, não o montante global do pedido formulado pelo autor, na quantia de 206.834,90 €.


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4. Se o valor da indemnização por danos morais deve ser fixado em 25.000 €, em vez dos 35.000 € atribuídos na decisão recorrida.

Como vem sendo entendimento do Supremo Tribunal de Justiça[2], sendo o montante da indemnização por danos “morais” fixado segundo um critério de equidade, nos termos do nº4 do artigo 496º do Código Civil, tal juízo de equidade, “assente numa ponderação, prudencial e casuística das circunstancias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que, situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspetiva atualística vêm sendo adotados, em termos de poder por em causa a segurança na aplicação do direito e o principio da igualdade”.

Não adiantando a Apelante por que motivo a indemnização por danos morais, fixada pelo tribunal no montante de 35.000 €, deve ser reduzida para os 25.000 € por si propostos, nada haverá aqui a apreciar.


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5. Se não há razão para o arbitramento da indemnização a que alude o artigo 40º, nº1, al. d) do DL nº 291/2007, de 21 de agosto

A decisão recorrida condenou a Ré numa indemnização de € 25.500,00, nos termos dos artigos 36.º, n.º 1, als. a) e e), 38.º, n.º 1, 39.º, n.º 1, 40.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, acrescida da penalização do pagamento do dobro da taxa de juro, nos termos da remissão que o artigo 39.º, n.º 2 faz para o artigo 38.º, n.º 2.

Tal condenação assentou na consideração de que “a Ré nunca chegou a cumprir o dever de comunicar a não assunção da responsabilidade, nos termos previstos nas disposições identificadas nos n.ºs 1 dos artigos 38.º e 39.º (que se consubstancia numa resposta fundamentada em todos os pontos invocados no pedido nos seguintes casos: a) A responsabilidade ter sido rejeitada; b) A responsabilidade não ter sido claramente determinada; c) Os danos sofridos não serem totalmente quantificáveis).”

Para o juiz a quo, dos factos descritos sob os pontos 25 a 49, resulta que a seguradora, não só, não apresentou uma proposta de indemnização ao lesado, como “nem assumiu a responsabilidade pelo acidente, nem nada declarou quanto a este aspeto (não assumiu nem deixou de assumir)”.

Sustenta a Apelante não haver razão para ser arbitrada a indemnização a que alude o artigo 40º, porquanto, a carta que a Ré enviou ao A. em 30/7/2020 cumpre a exigência estabelecida no art. 40º, nº 1 alínea b), do citado diploma: nesta carta, a recorrente informou o A. "para os efeitos previsto na alínea b), do nº 1 do art. 40º do Decreto Lei 291/2007 que ainda não era possível pronunciar-se quanto à responsabilidade" e que o seu processo se encontrava "em fase de instrução a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, verbete da intervenção do INEM e relatório do episódio de urgência do Hospital de castelo branco "(...), sendo que, a dúvida se se tratava de um acidente de viação foi-se mantendo até que o autor instaurou a ação e mesmo depois disso manteve-se.

O que se encontra aqui em causa é o cumprimento de dever de previsto nos artigos 36º, nºs. 1, al. e) e 5, e 37º, nº1, al. c) e 2, als. A) e b), do DL 291/2007, de “comunicar a assunção ou não assunção da responsabilidade”, nos prazos aí previstos, informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por documento escrito ou por documento eletrónico.

E o nº1 do artigo 40º explicita os termos em que deve ser cumprido esse dever de comunicação final, da assunção ou não da responsabilidade:

1 - A comunicação da não assunção da responsabilidade, nos termos previstos nas disposições identificadas nos n.os 1 dos artigos 38.º e 39.º, consubstancia-se numa resposta fundamentada em todos os pontos invocados no pedido nos seguintes casos:

a) A responsabilidade tenha sido rejeitada;

b) A responsabilidade não tenha sido claramente determinada;

c) Os danos sofridos não sejam totalmente quantificáveis.

Ora, embora invocando o disposto no nº1 do artigo 41º, a comunicação que a seguradora envia ao segurado a 20-07-2020, não contém uma resposta final.

Aí não se afirma, nunca, que não se assume a responsabilidade por terem ficado factos por apurar, mas que “cumpre-nos informar que ainda não nos é possível pronunciar quanto à responsabilidade na produção do sinistro. O nosso processo encontra-se em fase de instrução a fim de obter os elementos necessários à conclusão do mesmo, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, verbete de intervenção do INEM, e relatório do episodio de urgência do Hospital de Castelo Branco, pelo que, oportunamente voltaremos ao seu contacto.”

Tal comunicação não contém qualquer posição final e definitiva de não assunção de responsabilidade (ainda que esta pudesse ter por fundamento que a responsabilidade não tenha ficado claramente apurada), limitando-se a informar que ainda não dispõe os elementos necessários e que o apuramento de responsabilidades ainda encontra em fase de instrução.

A apelação é de improceder, na sua totalidade.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da Apelação a suportar pela Apelante.

Notifique.

             Coimbra, 08 de outubro de 2024                                             

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…).


[1] Acórdão relatado por José Cravo, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Acórdão do STJ de 21-01-2016, relatado por Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt.