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Tribunal da Relação de Coimbra – 2.ª Secção
Recurso de Apelação – Processo n.º 2191/16.0T8ACB-B.C1
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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço
1.º Juiz adjunto………José Vítor dos Santos Amaral
2.º Juiz adjunto……….Luís Filipe Dias Cravo
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Sumário:
I. Quando em documento que suporta um contrato de mútuo – artigo 1142.º do Código Civil –, parcialmente pré-elaborado pela entidade mutuante, o mutuário preenche com um «x» uma quadrícula declarando que estava a aderir ao contrato de seguro de grupo anteriormente celebrado entre a mutuante e uma determinada seguradora, os dois contratos ficam interligados e estabelece-se a partir daí uma relação trilateral entre mutuante, mutuário e seguradora.
II. Mutuante e mutuário emitiram declarações de vontade através das quais moldaram as futuras relações neste sentido: verificada alguma das hipóteses previstas no contrato de seguro, é à seguradora que, em primeiro lugar, será pedido o pagamento do capital em dívida.
III. Quando é instaurada execução contra o mutuário, sem previamente o exequente exigir o pagamento do capital mutuado em dívida à seguradora, que assumiu através de contrato de seguro de grupo, o pagamento desse capital, tal postura configura uma infração aos direitos e deveres contratualmente estabelecidos entre as três partes.
III. Neste caso, os executados têm o direito contratual de recusar o pagamento até se verificar que a seguradora não solverá a dívida, invocável nos termos do artigo 731.º (Fundamentos de oposição à execução baseada noutro título) do Código de Processo Civil.
IV. A interpelação extrajudicial da seguradora não é meio eficaz para provocar a interrupção da prescrição (artigo 323.º do Código Civil).
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Recorrentes/Executados………………….S (…); e
………………………………………………..R (…);
Recorrida/Exequente………………………S (…), S. A.
Todos melhor identificados nos autos.
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I. Relatório
a) O presente recurso respeita aos embargos de executado que os ora recorrentes, na qualidade de executados, deduziram à execução que a S (…) S. A., lhes move com o fim de obter o pagamento coercivo da quantia de €11.431,12, constituída por capital e juros.
Concluíram a petição de embargos pedindo a declaração de ineptidão do requerimento executivo por falta de título e consequente absolvição da instância dos executados ou, em todo o caso, que seja admitida a intervenção provocada da seguradora M (…) – Sucursal em Portugal.
Como fundamento do que é pedido referiram que a livrança dada à execução apenas pode valer como quirógrafo, mas para isso era necessário que a exequente tivesse alegado no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, o que não fez, pelo que a petição é inepta.
Relativamente ao pedido de intervenção, dizem que A (…) mãe dos embargantes, contraiu o mútuo junto da exequente para aquisição de um veículo automóvel, tendo contratado igualmente um seguro de vida com cobertura por morte ou invalidez na companhia de seguros A (…), para garantir o cumprimento do referido contrato.
A exequente sabe que devido a esse contrato de seguro, caso viesse a falecer A(…), como sucedeu, os executados não seriam os responsáveis pelo pagamento da dívida exequenda, mas sim a seguradora.
A exequente contestou referindo, em resumo, que o título é constituído pela livrança que acompanhou a petição executiva e os factos que fundamentam o pedido resultam da livrança, não sendo desnecessário indicá-los no campo que o requerimento executivo destina à exposição dos factos.
Quanto ao seguro, diz que que a existência de um seguro de vida não exime os executados do pagamento da dívida reclamada na execução.
Foi admitida a intervenção principal de M (…) – Sucursal em Portugal.
A interveniente contestou alegando a sua ilegitimidade, uma vez que não é parte na relação cartular, e arguindo a ineptidão do requerimento de embargos, dado que os executados não formulam qualquer pedido contra si.
Além disso, invocou a prescrição do direito que os executados pretendem exercer contra si e, subsidiariamente, afirma que A (…) prestou falsas declarações quando aderiu ao contrato de seguro de grupo, o que determina a anulabilidade do contrato de seguro.
Os executados responderam mantendo a sua posição, alegando que não ocorreu a prescrição porque esta foi interrompida pela interpelação que fizeram oportunamente à seguradora.
A exequente não se pronunciou.
A seu tempo procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal julgar os presentes embargos de executado totalmente improcedentes e, em consequência, determinar o normal prosseguimento da execução.
Custas pelos executados – artigo 527.º, n.º 1, e 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique».
b) E desta decisão que vem interposto recurso por parte dos embargantes, cujas conclusões são as seguintes:
(…)
c) A Exequente contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.
Concluiu deste modo:
(…)
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A interveniente também contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
(…)
II. Objeto do recurso.
De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.
Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:
1 – A primeira questão a apreciar respeita à nulidade da sentença arguida pelos recorrentes, porquanto o tribunal não se pronunciou sobre todas as questões suscitadas – al. d) do n.º 1 do art.º 615.º CPC – relativamente à obrigatoriedade de ter demandado a seguradora em vez dos executados.
2 – Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se a exequente como mutuante pode executar contra o mutuário uma livrança preenchida nos termos de um acordo de preenchimento estabelecido no âmbito de um contrato de mútuo, caso o mutuário tenha celebrado um seguro de vida, contratado com o fim da seguradora assegurar o pagamento da dívida mutuada em caso de morte ou invalidez do mutuário.
Ou seja, se neste caso, assim configurado, o mutuante deve demandar em primeiro lugar a entidade seguradora ao invés de executar o mutuário.
3 – Em terceiro lugar colocam-se as questões suscitadas pela interveniente para o caso de ser julgado procedente o pedido dos executados, no sentido de se decidir que existindo um contrato de seguro de vida, a exequente teria que acionar, em primeiro lugar, a seguradora.
Nesta hipótese, cumpre verificar, nos termos do disposto no art. 636° do CPC, se é caso de proceder à ampliação do objeto do recurso, por forma a que seja apreciada e julgada a prescrição do direito que os embargantes invocam.
Caso assim não se entenda, deverá o objeto do recurso ser ampliado para apreciação das questões oportunamente invocadas relativas à anulabilidade do referido contrato de seguro e à exclusão contratual por patologia pré-existente.
III. Fundamentação
a) Nulidade de sentença
Vejamos se a sentença padece de nulidade, nos termos do n.º 1 al. d) do ar. 615.º do C. P. C., porquanto o tribunal não se pronunciou sobre todas as questões suscitadas – al. d) do n.º 1 do art.º 615.º CPC.
A exequente e a interveniente contrapuseram que a simples leitura da sentença mostra que foi apreciada de forma detalhada a questão relativa ao contrato de seguro de vida, pelo que a sentença não enferma do vício de omissão de pronúncia.
Não ocorre de facto a nulidade invocada.
A este respeito Alberto dos Reis referiu que «Não enferma da nulidade da 1.ª parte do n.º 4 o acórdão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questões de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» - Código de processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143, (reimpressão), Coimbra Editora/1984.
Foi o que ocorreu no caso dos autos.
O tribunal a quo assumiu um determinado entendimento, o qual, caso esteja correto do ponto de vista da lei aplicável resolve o caso dos autos e isso chega para mostrar que não ocorreu omissão de pronúncia, pois a omissão consiste em nada dizer sobre um determinado pedido.
Improcede, pois, a invocação desta nulidade.
b) 1. Matéria de facto – Factos provados
1- Nos autos principais, a exequente pede a cobrança coerciva da quantia de €11.431,12 (onze mil quatrocentos e trinta e um euros e doze cêntimos), sendo €10.704,02 (dez mil setecentos e quatro euros e dois cêntimos) a título de capital e €699,13 (seiscentos e noventa e nove euros e treze cêntimos) a título de juros, e ainda dos juros vincendos.
2- A execução referida em 1) foi intentada com base numa livrança, datada de 7 de janeiro de 2015, subscrita por A (…) a favor da exequente e vencida em 28 de janeiro de 2015, no montante de €10.704,02 (dez mil setecentos e quatro euros e dois cêntimos).
3- Por acordo escrito datado de 26-04-2010 e intitulado «contrato de crédito n.º 664668», a exequente acordou com A (…) emprestar-lhes o montante de €10.177,12 (dez mil cento e setenta e sete euros e doze cêntimos), mais constando do referido acordo a subscrição do plano A (…), com as condições particulares constantes do doc. de fls. 55v, que aqui dou por integralmente reproduzido.
4 – A subscrição do seguro referido em 3) era facultativa.
5 – A (…) faleceu em 10 de setembro de 2011.
6 – Por sentença proferida no apenso A, R (…) e S (…) foram habilitados como herdeiros de A (…).
7 – Entre a exequente S (…) e a empresa A (…) foi celebrado um contrato que denominaram «Seguro de Grupo», com data de 1 de março de 2001, a que corresponde a apólice 37.666-00, no qual se refere como tomador do seguro a empresa S (…), Lda., e pessoas seguras os «Clientes da S (…) que adiram ao Seguro».
A cobertura e capital seguro em caso de falecimento, por pessoa, foi estabelecido até 74.820 euros
Consta da apólice, entre outros dizeres o seguinte:
«Riscos excluídos»
«Na cobertura de falecimento e complementares de invalidez absoluta e permanente e incapacidade temporária:
- doença ou acidente ocorrido anteriormente à data da adesão
- doença atribuída directa ou indirectamente ao vírus HIV ou à Sida;
- Guerra (…):
- Actos de terrorismo (…)».
8 – A (…) quando celebrou o contrato de crédito declarou também que aderia ao «Plano Alico» pagando mensalmente a título de prémio de seguro a quantia de €2,45 e que aceitava as condições referidas na apólice 37.666-00 e que declarava que «estava de boa saúde não se encontrando atualmente impedida total ou parcialmente de trabalhar devido a doença...» e que aceitava que o seguro fosse anulado em caso de falsas declarações da sua parte.
2. Matéria de facto – Factos não provados
Não há.
c) Apreciação das restantes questões objeto do recurso
1 – Vejamos se o mutuante pode executar contra o mutuário uma livrança preenchida nos termos de um acordo de preenchimento estabelecido no âmbito de um contrato de mútuo, caso o mutuário tenha celebrado um seguro de vida contratado com o fim da seguradora assegurar o pagamento da dívida mutuada em caso de morte ou invalidez do mutuário.
Ou seja, se neste caso, assim configurado, o mutuante deve executar a entidade seguradora ao invés de executar o mutuário.
Os executados sustentam o seguinte:
Que a Exequente é a tomadora do seguro e, sendo assim, os executados podem opor-lhe quaisquer exceções fundadas na obrigação causal, nos termos dos artigos 17.º e 77.º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
Que é vontade do declaratário ao contratar um mútuo e um seguro de vida, simultaneamente, e um devido ao outro, assegurar que, em caso de sinistro, seja acionado em primeiro lugar o seguro.
Que estamos perante uma união de contratos, uma dependência funcional entre ambos os contratos.
O contrato de seguro nasce e subsiste ao serviço do contrato de crédito, tendo por fim assegurar o reembolso do capital mutuado no caso da verificação de um sinistro, no caso a morte do mutuário.
A prestação prometida pela seguradora, na hipótese de morte da pessoa segura, não se destina a esta, mas antes ao tomador do seguro, isto é, à Exequente.
Existe inexigibilidade da obrigação em relação aos mutuários, devido à subsidiariedade dessa obrigação perante uma outra que resulta do contrato de seguro.
Que a atuação da Exequente viola o princípio geral da boa fé, prescrito no art. 762.º, n.º 2, do Código Civil.
A exequente argumenta, por sua vez, que foram celebrados dois contratos distintos: um primeiro de crédito, datado de 26-04-2010, em que são partes a exequente e A (…) (bem como a Recorrente S (…) na qualidade de avalista) e um segundo contrato que é um seguro vida, em que é beneficiária a Exequente e seguradora a M (…).
Ocorre que o contrato de mútuo não se encontrava garantido através da celebração do seguro de vida, e, sendo assim, a Exequente não estava obrigada a exigir o pagamento à seguradora.
Resulta das cláusulas particulares do contrato de mútuo celebrado entre a exequente e A (…), que não fez parte das garantias dadas pela mutuária o mencionado seguro de vida, tendo sido apenas, em sede de garantias, reservada a propriedade sobre o veículo automóvel de matrícula XF (…) a favor da Exequente e a constituição de avalista e a subscrição de uma livrança caução em branco (a agora acionada).
Não há violação do princípio da boa fé porquanto a existência de seguro de vida não exime as executadas do pagamento da dívida reclamada pela exequente.
A eventual responsabilidade da seguradora pelo pagamento de uma qualquer indemnização aos Recorrentes, ainda que exista, constitui facto alheio à Recorrida, pois reporta-se a relação jurídica distinta daquela que é e deve ser objeto de discussão no caso em apreço, a tratar em ação autónoma totalmente distinta desta.
E nada ficou estipulado no contrato de crédito firmado entre a Recorrida e A (…) no sentido de que o contrato de seguro seria acionado “preferencialmente” antes de qualquer outra garantia.
Acresce que a ora Exequente não foi reembolsada pela Seguradora da quantia exequenda porquanto a seguradora declinou a responsabilidade alegando prescrição da obrigação e que A (…) aquando da adesão ao contrato de seguro de grupo, prestou falsas declarações, o que determina a anulabilidade do contrato de seguro.
Vejamos então a situação contratual dos autos.
Verifica-se que no mesmo contrato de mútuo celebrado entre a empresa S (…) e A (…) foi exarada uma declaração emitida por esta última no sentido de aderir ao contrato de seguro de grupo previamente celebrado entre a S(…) e a seguradora A (…)
A questão que os executados (sucessores de A (…)) colocam consiste em saber se nestas condições contratuais a mutuante pode demandar em primeiro lugar e isoladamente o mutuário ou se, pelo contrário, deve demandar primeiro a seguradora e só depois o mutuário, mas neste último caso apenas se não tiver sido ressarcida pela via do contrato de seguro.
A resposta afigura-se dever coincidir com esta segunda alternativa, pelas seguintes razões:
(a) Através do contrato de seguro de grupo, no qual a S(…) é tomadora, esta constituiu a seu favor uma garantia de que seria ressarcida dos mútuos que viesse a conceder em caso de morte do mutuário (e em outros casos devido a incapacidades físicas), caso o futuro mutuário viesse a aderir a este seguro, o que ocorreu no caso dos autos.
Com efeito, como já se disse, no mesmo documento escrito que suporta o contrato de mútuo celebrado entre a empresa S (…) e A (…) esta última exarou aí uma declaração dizendo que aderia ao contrato de seguro de grupo anteriormente celebrado entre a S (…) e a seguradora A (…)Life.
(b) Verifica-se que estas declarações de vontade, feitas no uso da liberdade contratual, tiveram determinados objetivos, isto é, quiseram regular as relações futuras entre as partes no caso da mutuária vir a falecer.
Cumpre, por isso, perguntar o que foi que as partes quiseram regular e como?
Afigura-se que a resposta de alguém que esteja fora dos contratos celebrados e que tente alcançar a vontade consensual, comum, das partes intervenientes, será esta: caso a mutuária A (…) venha a falecer, a seguradora A (…) Life pagará, dentro do capital seguro, a dívida que existir nesse momento a cargo da referida mutuária.
Com efeito, se não fosse esta a vontade comum, ou seja, se não existisse a assunção, por parte da seguradora (A (…) Life), do compromisso de pagar a dívida à mutuante (S(…)), no caso de falecimento da mutuária (A (…)), o que é que poderia ter motivado a mutuante S(…) a contratar esse mesmo contrato de seguro de grupo, como tomadora, e a mutuária A (…) a aderir mais tarde ao contrato de seguro?
A resposta só pode ser a de que não se vislumbra outra razão explicativa alternativa a esta que fica dada, isto é, se o mutuário vier a falecer, a seguradora paga ao mutuante a quantia prevista no contrato de seguro.
(c) Ora, se a causa/finalidade da celebração do contrato de seguro de grupo e posterior adesão ao mesmo por parte da mutuante A (…) é esta que fica assinalada, como se afigura ser, então tem de se concluir, logicamente, que a primeira entidade que as partes quiseram que fosse interpelada para pagar não foi a mutuante A (…), mas sim a seguradora A (…) Life.
Só não seria assim se tivesse existido uma separação entre os dois contratos, em termos tais que a mutuante não tivesse tido qualquer participação declarativa na formação do contrato de seguro, como aquela que teve, pois a emissão da declaração de vontade de segurar por parte da mutuária constava já impressa no documento onde se encontra exarado o contrato de mútuo.
Já seria um caso diverso deste se a mutuária A (…) tivesse celebrado por sua iniciativa, em separado, um contrato de seguro destinado a cobrir a sua responsabilidade perante a mutuante caso ela viesse a falecer.
Mas não foi assim, neste caso.
Na execução deste contrato, o mutuante entregou o dinheiro, ao mutuário; este compromete-se a devolvê-lo e a seguradora assumiu a responsabilidade de pagar o capital caso o mutuário não o pudesse fazer, verificadas que estivessem as situações factuais previstas no contrato de seguro, como, por exemplo, a morte do mutuário.
Voltando à questão, postas estas declarações de vontade, em caso de morte do mutuário, quem é que, mutuante, mutuário e seguradora, elegeram como primeiro responsável a ser demandado para pagar ao mutuante?
A resposta é dada, voltando ao que já se disse atrás, verificando qual a finalidade que as partes tiveram em vista ao celebrar o contrato de seguro.
Ora, o mutuante ao celebrar o seguro de grupo quis garantir que em futuros contratos de mútuo o mutuário aderisse ao contrato de seguro e assim ficaria com a garantia, dada pelo contrato de seguro, que receberia o seu capital, caso o mutuário entrasse em incumprimento, por causa de uma das situações factuais previstas no contrato de seguro.
Por sua vez, o mutuário celebrou o contrato de seguro para garantir que, caso entrassem incumprimento, a seguradora assumiria a sua dívida e pagaria ao mutuante, livrando-se da dívida (e até de eventual insolvência).
Ou seja, em ambos os casos, quer o mutuante, quer o mutuário emitiram declarações de vontade através das quais moldaram as futuras relações neste sentido: verificada alguma das hipóteses previstas no contrato de seguro, é à seguradora que, em primeiro lugar, será pedido o pagamento do capital em dívida.
E a seguradora nada tem a dizer quanto a isto porque em nada influi com os seus direitos e obrigações contratualmente assumidas, pois celebrou o contrato assumindo pagar o referido capital ao mutuante caso se verificasse alguma das situações factuais previstas no contrato de seguro.
(d) Concluindo, quando em documento que suporta um contrato de mútuo, parcialmente pré-elaborado pela entidade mutuante, o mutuário preenche com um «x» uma quadrícula querendo assim declarar que aderia ao contrato de seguro de grupo anteriormente celebrado entre o mutuante e uma determinada seguradora, os dois contratos ficam interligados e estabelece-se a partir daí uma relação trilateral entre mutuante, mutuário e seguradora.
Tendo sido estes os objetivos contratuais das partes, tendo sido este o resultado da vontade das partes contratualmente manifestada, qualquer delas auto-obrigou-se a respeitá-la e a lei obriga a respeitar esse compromisso porquanto, como se estabelece no n.º 1 do artigo 406.º do Código Civil, «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei».
Ora, afigura-se que a instauração da execução contra os herdeiros da mutuária, sem primeiramente ser exigido o pagamento à seguradora, configura uma infração ao comportamento contratualmente estabelecido.
Ou seja, mutuária tem o direito contratual de recusar o pagamento até se verificar que a seguradora não solverá a dívida.
Ora, este fundamento de direito substantivo pode ser oposto à execução, porquanto, nos termos do artigo 731.º (Fundamentos de oposição à execução baseada noutro título) do Código de Processo Civil, «Não se baseando a execução em sentença ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração».
Trata-se de uma exceção dilatória, porquanto não é adequada a extinguir o crédito, uma vez que não atua sobre o conteúdo dos direitos e as obrigações contratuais, mas sim e apenas a instância processual, deixando o crédito incólume.
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Outro modo de compreender esta questão consiste na sua análise à luz do instituto do abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil, onde se dispõe que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Seguiu-se esta via no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-11-2014 (Gabriel Catarino), no processo n.º 3220/07.3TBGDM-B.P1.S1 (consultável em www. Dgsi.pt), onde se ponderou:
«Em nosso juízo, o accionamento dos executados por parte de um banco/exequente que, para cobrança de uma divida movimenta acção executiva, fundada em título de crédito, que possui tão só contra os executados, sabendo, por ter tido participação em acção em que os executados intentaram contra a seguradora e o próprio banco/exequente para pedir o resgate da quantia (segurada) correspondente à dívida que pode requestar o pagamento dessa dívida à seguradora, excede os limites da boa-fé e do fim ético-axiológico em que se deve escorar a ordem jurídica (…).
Em termos lhanos, pensamos que o exequente, sendo beneficiário de um seguro – cujo tomador é o executado – não pode accionar um título de crédito fundado em escritura pública de mútuo que possui a seu favor contra o devedor que deixou de cumprir as suas prestações (de pagamento do empréstimo), se tem possibilidade – e já se arrogou desse direito em acção declarativa anterior em que também interveio a seguradora – de obter desta o pagamento – legitimo e em primeira demanda – da seguradora. Em nosso juízo, sendo terceiro beneficiário de um seguro (de grupo) vida, o exequente possui o dever jurídico de obter o pagamento – de que se tinha prevalecido em acção declarativa anterior em acção conjunta com a seguradora – à custa do seguro, excedendo, de forma flagrantemente clamorosa, o direito de obter o pagamento se movimenta contra o tomador do seguro – que não é beneficiário do mesmo – acção executiva com base em título de que seja detentor. O óbito do tomador de seguro permite ao beneficiário do seguro – no caso o banco exequente – solicitar, em primeira demanda, à entidade seguradora a cobrança/pagamento do capital seguro – correspondente ao capital mutuado em dívida».
Pronunciou-se também neste sentido o acórdão do STJ de 24 de novembro de 2016 (Tavares de Paiva), no processo 531/12.8TBMTS-A.P1.S1, onde se ponderou que « (…) II -Tendo o banco celebrado com os executados um contrato de mútuo garantido por hipoteca e com um seguro de vida que impôs aos executados como condição do mútuo, seguro esse de que é beneficiário o Banco EE/ AA e tendo sido informado do sinistro coberto pelo referido contrato de seguro, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, quando em vez de acionar directamente a seguradora com vista à satisfação do seu crédito, exige antes dos executados o pagamento do crédito numa execução pela via da reclamação de créditos, o que configura o exercício ilegítimo do direito enquadrável na previsão do art. 334 do C Civil.
Pronunciou-se também neste sentido o acórdão do STJ de 7 de novembro de 2019 (Sacarrão Martins), no processo 4118/17.2T8GMR-A.G1.S2, onde se refere que «(…) IV - Age com abuso do direito, por violação manifestamente excessiva do princípio da boa fé, o exequente que, num contrato de mútuo com hipoteca, garantido ainda com “Seguro de Vida Grupo” dos mutuários a seu favor, com cobertura de invalidez e morte, sendo informado da incapacidade permanente global de 73% atribuída à executada, move execução contra os mutuários, invocando falta de pagamento das prestações, sem se dirigir primeiro à seguradora».
Opte-se por um ou pelo outro dos fundamentos, a solução prática coincide.
2 – Vejamos agora as questões suscitadas pela interveniente para o caso de ser julgado procedente o pedido dos executados, no sentido de se decidir que existindo um contrato de seguro de vida, a exequente teria que acionar, em primeiro lugar, a seguradora.
Nesta hipótese, cumpre verificar, nos termos do disposto no artigo 636.º do CPC, se é caso de proceder à ampliação do objeto do recurso, por forma a que seja apreciada e julgada a prescrição do direito que os embargantes invocam.
E para o caso desta exceção não proceder, verificar se se deve ampliar o objeto do recurso de modo a apreciar a questão da anulabilidade do contrato de seguro.
(I) Vejamos então a questão da prescrição invocada pela interveniente contra os executados embargantes.
A interveniente argumenta que nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 121.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o prazo de prescrição, que é de 5 anos, contado desde 10 de setembro de 2011, data do falecimento da mutuária A (…), se completou em 10 de setembro de 2016, sem que os apelantes tenham interrompido a prescrição, nos termos e para os efeitos do artigo 323.º do Código Civil, porquanto os embargos deduzidos pelos executados foram apresentados em 14 de dezembro de 2018 e a interveniente só foi citada em 16 de maio de 2019.
Os embargantes, por sua vez contrapuseram que comunicaram à interveniente seguradora, em 2 de janeiro de 2012, o óbito da mutuária e a pretensão de verem a seguradora pagar o capital mutuado em dívida ao respetivo credor, a exequente S(…), o que implicou interrupção da prescrição.
Vejamos então.
Nos termos do artigo 121.º (Prescrição) do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL n.º 72/2008, de 16 de abril), «1. O direito do segurador ao prémio prescreve no prazo de dois anos a contar da data do seu vencimento.
2. Os restantes direitos emergentes do contrato de seguro prescrevem no prazo de cinco anos a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito, sem prejuízo da prescrição ordinária a contar do facto que lhe deu causa».
Face a esta norma, o segurado deve exercer os direitos derivados do contrato de seguro contra a seguradora no prazo de 5 anos a contar da data em que o titular teve conhecimento do direito, sob pena da contraparte poder invocar a prescrição do direito.
Os embargantes afirmam que o prazo de 5 anos não decorreu porque interpelaram extrajudicialmente a seguradora em 2 de janeiro de 2012.
Efetivamente esta interpelação ocorreu, mas a mesma não implicou interrupção da prescrição.
Com efeito, o artigo 323.º do Código Civil, diz o seguinte:
«1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
3. A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.
4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido».
Exige-se, por conseguinte, para que ocorra interrupção da prescrição, que tenha existido um ato de citação ou «qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido».
Ora, a interpelação extrajudicial feita pelos executados não entra no universo dos factos a que se refere o artigo 323.º do Código Civil.
Por outro lado, verifica-se que a seguradora não reconheceu o direito dos executados (artigo 325.º do Código civil), pois remeteu-lhes a carta datada de 11 de julho de 2016, junta pela seguradora em 24-6-2019 (como documento 4, a fls. 91 do processo físico), através da qual comunicou aos executados que não assumia a responsabilidade pelo pagamento do capital mutuado ainda em dívida porque se verificava no caso a causa de exclusão da responsabilidade por motivo de «doença constatada antes da data de efeito das suas garantias», ou seja, pelo facto da segurada ter falecido devido a doença que já conhecia à data em que subscreveu o contrato de seguro de grupo.
Por conseguinte, mesmo não se sabendo a data exata em que os executados tiveram conhecimento de que podiam exercer o direito, seguramente que na data em que enviaram a carta à seguradora, em 2 de janeiro de 2012, já sabiam do direito que lhes assistia, sendo manifesto que decorreu o prazo de prescrição de 5 anos sem que os executados tenham promovido qualquer ato com capacidade para interromper a prescrição, porquanto os presentes embargos deduzidos pelos executados foram apresentados em 14 de dezembro de 2018.
Verifica-se que o prazo da prescrição se completou pelo menos em 2 de janeiro de 2017.
Procede a invocação da prescrição e com a invocação da prescrição extinguiu-se o direito que os executados pretendiam fazer valer contra a seguradora.
Cumpre, pelo exposto declarar a prescrição do direito e manter a decisão que julgou os embargos improcedentes, embora por razões diversas.
A última questão relativa à anulabilidade do contrato de seguro ficou prejudicada.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso dos embargantes improcedente, mantendo-se a decisão recorrida e com base no pedido de ampliação do recurso efetuado pela interveniente, declara-se prescrito o direito dos executados obterem da seguradora interveniente o pagamento do capital mutuado em dívida que é executado na presente execução. Custas pelos embargantes.
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Coimbra, 5 de maio de 2020
Alberto Ruço ( Relator )
Vítor Amaral
Luís Cravo