Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA QUALIFICAÇÃO CULPOSA ADMINISTRADOR DE DIREITO DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 10/11/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
Legislação Nacional: | ARTS.18, 20, 186 CIRE, 64, 72 CSC | ||
Sumário: | 1.O primeiro dever de um administrador é o de exercer, de facto, as funções para as quais foi nomeado, pelo que a circunstância de se manter afastado da administração da sociedade e o desconhecimento da situação económico-financeira da mesma, não o ilibam, por si só, de quaisquer responsabilidades no eclodir ou no agravar de uma situação de insolvência. 2. Assim, a circunstância de nunca ter participado de facto na administração da devedora, não o isenta do cumprimento das obrigações legais que sobre ele impendem enquanto vogal do conselho de administração, constituindo a ignorância e o alheamento relativamente aos destinos da sociedade, por si só, uma violação de tais deveres. 3. Se a violação de tais deveres se concretizar num comportamento por omissão, como são o caso dos deveres de elaboração e aprovação das contas e respetivo registo e o de apresentação à insolvência, o administrador de direito será de considerar afetado pela qualificação da insolvência quando tal obrigatoriedade se mostre incumprida. 4. Independentemente de não se provar o facto base da presunção inilidível prevista no artigo 18º, nº3 – decurso do prazo de três meses desde o incumprimento generalizado de algum dos tipos de obrigações previsto na al. g), do nº1 do artigo 20º –, para efeitos de aferição do incumprimento do dever de apresentação à insolvência, a situação de insolvência e o conhecimento da mesma poderão ainda ser demonstrados pela prova de qualquer um dos fatores índices previstos nas restantes alíneas do artigo 20º. 5. O facto de as contas elaboradas durante os anos de 2009 e de 2010, e levadas a registo, apresentarem “reservas” – sem que dos autos conste qualquer elemento do qual resulte que o estado da contabilidade tenha dificultado ou impedido a análise da situação económico-financeira da devedora e das causas que levaram à sua insolvência e dos seus responsáveis –, é insuficiente para concluir por uma violação substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada. 6. Um mero atraso de três meses no depósito das contas respeitantes aos anos de 2009 e de 2010, surge também como insuficiente para considerar preenchido o circunstancialismo previsto na al. b), do nº3, do art. 186º. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO Decretada a insolvência de R (…) S.A., por sentença de 30 de março de 2013 e realizada assembleia de apreciação do relatório, a Administradora da Insolvência veio emitir parecer nos termos do artigo 188º, nº1, CIRE, pronunciando-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa, por verificação dos requisitos constantes das alíneas a), b), d), g) e h), do n.º 2 do artigo 186º e das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE (falta de apresentação à insolvência e não cumprimento da obrigação de elaborar e depositar as contas anuais de 2011), propondo deverem ser abrangidos pela qualificação os administradores A (…), M (…) e F (…). O Ministério Público manifestou o seu acordo ao parecer do A.I.. Citada a devedora e os demais requeridos, apenas F (…) veio deduzir oposição, alegando não ser administrador, de facto ou de direito, à data em que foi requerida a insolvência, requerendo o seu afastamento das pessoas abrangidas pelo incidente de qualificação da insolvência como culposa. * Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a: 1. Qualificar a insolvência da “R (…), S.A.”, como CULPOSA; 2. Determinar que ficam afetados pela qualificação supra efetuada A (…) (Presidente do Conselho de Administração), M (…) (Vogal) e F (…) (Vogal), com as moradas que se fixaram nas residências onde foram citados nestes autos; 3. Em consequência, declarar A (…), M (…) e F (…)inibidos para o exercício do comércio, o primeiro durante um período de 6 (seis) anos, a segunda durante um período de 4 (quatro anos) e o terceiro durante um período de 2 (dois) anos, bem como a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; 4. Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamentos desses créditos. * Não se conformando com a mesma, o requerido F (…), dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões: (…) * O Ministério Público, apresenta contra-alegações no sentido da manutenção do decidido. Cumpridos que foram os vistos legais ao abrigo do disposto no nº2, in fine, do art. 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são unicamente as seguintes: 1. Contradição insanável entre os factos dados como não provados sob os pontos 4º e 5º e os factos dados como provados sob os pontos 63º a 68º. 2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto – relevância do facto por si alegado no art. 98º da oposição e se o mesmo deve ser dado como provado. 3. Contradição entre os factos dados como provados e a fundamentação relativamente às al. a) e b), do nº3 do art. 186º CIRE 4. Se a qualificação da insolvência como culposa deve abranger o requerido/Apelante. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO A. Matéria de Facto: São os seguintes, os factos dados como provados pelo tribunal recorrido: 1. Os autos principais de insolvência, de que estes são apenso, deram entrada em juízo, via eletrónica, a 10 de Fevereiro de 2012, tendo sido os credores F (…) e M (…) a requerer a declaração da insolvência da R (…), S.A., com fundamento no incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda que com esta celebraram, alegando ser titulares de um crédito que ascenderá pelo menos ao valor de € 80.000,00; 2. A requerida não deduziu oposição; 3. Por sentença proferida a 30 de Março de 2012, foi declarada a insolvência da R (…) S.A, com sede na Rua (...) Coimbra; 4. A R (…), S.A. é uma sociedade anónima matriculada em 12.08.2003 na Conservatória do Registo Comercial de Pombal sob o nº (...) , cujo objecto social era a compra e venda de imóveis, revenda dos adquiridos para esse fim, urbanização e construção de imóveis e a sua revenda em bloco ou propriedade horizontal e arrendamento de imóveis. 5. O capital social era de € 4.200.000,00; 6. A forma de obrigar a sociedade era com a assinatura do Presidente do Conselho de Administração ou com a assinatura conjunta de dois administradores; 7. O Conselho de Administração era composto por: - Presidente: A (…); - Vogal: M (…) (mulher daquele); - Vogal: F (…). 8. Era o Presidente A (…) quem diariamente representava a R (…) junto dos clientes, fornecedores e credores; 9. Desde o dia 01.02.2012 que o requerido A (…) deixou de estar contactável, não comparece na sede da insolvente e ter-se-á ausentado do país, para parte incerta, abandonando a sociedade e todos os negócios em que a mesma estava envolvida; 10. Em 22.01.2007, a insolvente prometeu vender F (…) e mulher (requerentes da insolvência) o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 15 (...) , inscrito na matriz da freguesia de (...) sob o artigo 1660, pelo valor de € 77.500,00, tendo nessa data recebido € 40.000,00; 11. A restante parte do preço deveria ser paga no acto da escritura de compra e venda a realizar ate 30.12.2007; 12. Comprometeu-se a celebrar a escritura até 30.12.2007, ou nos termos do contrato até 30.12.2008, nunca tendo até hoje distratado as hipotecas para o efeito tendo de acordo com o credor já prometido vender a outro o mesmo prédio; 13. Em 14.02.2012 foi registado um arresto sobre 25 frações e prédios pertencentes à insolvente, requerido pelos credores A (…) e M (…). 14. Em 14.03.2012, foi registado arresto sobre 25 frações e prédios da insolvente, requerido por I (…) e J (…) e outros; 15. Em 07.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu dois prédios descritos na Conservatória do Registo Predial das Caldas da Rainha sob os nºs 3334 e 3372, à empresa C (…), Ldª; 16. A sociedade C (…), Ldª. tem como sócio e gerente F (…) (ora requerido), o qual é também administrador da insolvente; 17. Estes prédios (identificados em 11) foram apreendidos como verbas nºs 66 e 67; 18. Em 09.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu a F (…), a fração C do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 6579, por € 160.000,00; 19. A referida fração tem registada uma hipoteca a favor da Caixa Económica Montepio Geral, que indicou como valor desta fração € 200.000,00; 20. Tal prédio foi apreendido no processo como verba nº 25; 21. Em 10.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu a J (…), o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 7613; 22. Este prédio foi apreendido no processo como verba nº 30; 23. Em 13.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu a J (…), dois prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob os nºs 2086 e 2130; 24. Estes prédios foram apreendidos no processo como verbas nºs 43 e 44; 25. Em 13.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu a M (…) e L (…), a fração “S” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 6578; 26. Tal prédio foi apreendido como verba nº 22; 27. O referido prédio tem hipoteca a favor da Caixa Económica Montepio Geral, sendo que o valor atribuído à fração por este credor foi de € 325.000,00; 28. Em 13.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu a J (…) o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o nº 1379, a fracção “A” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 592, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha sob o nº 33 (...) , o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 550 e a fracção “DI” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 5; 29. Estes prédios foram apreendidos como verbas nºs 51, 41, 68, 29 e 90; 30. Em 13.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu a I (…) e C (…) (por permuta) o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 1174; 31. Recebeu, em troca, como parte do preço a fracção “A” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 6582; 32. Nesse mesmo dia, vendeu esta fração a M (…) e I (…). 33. Estes prédios foram apreendidos como verbas nºs 42 e 26 respetivamente; 34. Em 10.02.2012, a administradora da insolvente M (…), na qualidade de procuradora da insolvente, vendeu a A (…) fração “C” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Velho sob o nº 34 (...) ; 35. Este prédio foi apreendido como verba nº 77; 36. Em 13.02.2012, foi registada a aquisição a favor de O (…), S.A o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o nº 675; 37. Este prédio foi apreendido como verba nº 46; 38. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 592 e referido em 24 tinha sido prometido vender a O (…), S.A.; 39. Em 28.08.2007, a insolvente prometeu vender aos credores M (…) e D (…), pelo preço de € 300.000,00, metade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 234; 40. Em 14.08.2007, a insolvente prometeu vender a A (…), pelo preço de € 300.000,00, metade do mesmo prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 234; 41. Em 14.02.2012, este prédio inscrito na matriz da freguesia da Sé Nova sob o nº 736, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 234, foi vendido na totalidade a A (...) , pelo preço total de € 350.000,00; 42. As certificações de contas efetuadas pelo Revisor Oficial de Contas, referentes às contas de 2009 e 2010 (apresentadas em cada um dos anos subsequentes, respetivamente) apresentavam reservas; 43. A sociedade insolvente apenas depositou contas até 2010; 44. Em 14.02.2012, a requerida M (…) vendeu a V (…) os artigos rústicos 357, 358 e 359 da freguesia de Condeixa-a-Nova, descritos sob os nºs 386, 128 e 677, concelho de Condeixa-a-Nova, por € 110.000,00, cumprindo anterior contrato promessa com o referido V (…) e não o cumprindo com outros credores; 45. Estes prédios foram apreendidos como verbas nºs 48, 49 e 50; 46. Em 15.02.2012, a requerida M (…) vendeu a A (…), Ldª, o prédio urbano 993, da freguesia de (...) , concelho de Coimbra, descrito sob o nº 14, pelo valor de € 100.000,00, valor que declarou já ter recebido, cumprindo anterior contrato promessa com a identificada A (…), Ldª e não o cumprindo com outros credores; 47. Este prédio não foi apreendido; 48. Em 04.11.2011, a requerida M (…) celebrou permuta com A (…) e M (…)Ldª, dando o artigo 4459, da freguesia de (...) , concelho de Coimbra, pelo valor de € 225.000,00 e recebendo a fracção I do artigo 1838º da freguesia de (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o artigo 63..., pelo valor de € 90.000,00 (recebendo o remanescente de € 132.500,00 em dinheiro); 49. Na mesma data e no mesmo Cartório, a requerida M (…) vendeu a N (…) tal fração I do artigo 1838º da freguesia de (...) e o prédio urbano 2758 da freguesia de (...) descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº 431, tudo pelo valor de € 90.000,00; 50. Estes prédios não foram apreendidos; 51. A insolvente entrou em incumprimento com os seus credores vários meses antes da entrada do presente processo de insolvência; 52. Os membros do Conselho de Administração da Insolvente identificados em 6 foram designados para o quadriénio 2003/2006; 53. Por deliberação de 24 de Julho de 2007, foram estes membros do Conselho de Administração reconduzidos nos seus cargos para o quadriénio 2007/2010; 54. Na certidão da insolvente da Conservatória do Registo Comercial de Pombal não constam os membros do Conselho de Administração para o quadriénio 2011/2014; 55. O requerido F (…) é natural da freguesia de Abiul, tendo emigrado para França, país onde conheceu o requerido A (…), tendo ambos estabelecido uma relação de amizade que se manteve após o regresso de ambos a Portugal; 56. A par desta relação de amizade, existia entre ambos uma relação profissional, uma vez que ambos estavam ligados ao sector da construção civil, sendo hábito o requerido A (…) contratar o requerido F (…) para a execução de trabalhos vários naquele sector de atividade; 57. O requerido F(…) tinha pelo requerido A (…)estima, admiração pessoal e como empresário; 58. Foi neste quadro de relacionamento pessoal e profissional que o requerido A (…) convidou o requerido F (…)para integrar o Conselho de Administração da sociedade que ia constituir – a ora insolvente; 59. F (…) aceitou e no mesmo dia em que assinou os documentos necessários à constituição da sociedade, assinou um contrato de compra e venda de ações pelo qual declarou vender a A (…), pelo preço de dez mil euros, dez mil ações; 60. O requerido F (…) assinou uma ficha para abertura de uma conta bancária da sociedade ora insolvente e assinou as actas nºs 1 e 2 do Conselho de Administração, datadas de 2 de Junho de 2005; 61. As actas do Conselho de Administração encontram-se exaradas em 3 livros numerados e rubrica 62. O requerido F (...) nunca esteve em reuniões do Conselho de Administração nem em Assembleias Gerais da insolvente, nem era convocado para as mesmas, nunca aprovou quaisquer contas ou estas foram submetidas à sua apreciação; 63. Era o requerido A (…) que tratava de todos os assuntos relativos à sociedade insolvente, encetava contactos e concluía negociações, representava a insolvente junto de clientes, fornecedores e credores; 64. O requerido F (...) nunca participou na administração da insolvente, entrando e saindo dos escritórios da insolvente nas mesmas condições de um qualquer outro trabalhador ou empreiteiro; ninguém lhe pedia a opinião sobre os negócios e contratos da insolvente, não lhe prestando qualquer informação sobre os mesmos; 65. O identificado F (…) era, na qualidade de único sócio e gerente da sociedade “F (…) Unipessoal, Ldª” e enquanto gerente da firma “C (…), Ldª” um fornecedor de bens e serviços e um cliente da insolvente; 66. No apenso H foi reconhecido à sociedade F (…), Unipessoal, Ldª, um crédito no valor de € 176.794,49, dos quais € 129.792,16 revestem a natureza de créditos comuns e o remanescente a natureza de créditos garantidos pelo direito de retenção; 67. F (...) nunca teve na sociedade insolvente um papel activo ou informado dos negócios e contratos por ela celebrados, desconhecendo o activo da insolvente e se este era ou não superior ao passivo e se os bens que esta possuía (de que apenas conhecia alguns) se encontravam ou não onerados com hipotecas; 68. O requerido F (...) desconhecia se as contas da insolvente alguma vez foram submetidas a aprovação e se a certificação de contas efetuada pelo ROC referente às contas de 2009 e 2010 apresentavam reservas, desconhecendo também se a insolvente cumpria ou não a obrigação de manter contabilidade organizada, não tendo acesso a quaisquer elementos da contabilidade; 69. O Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Distrital de Coimbra reclamou créditos no montante total de € 6.565,73, sendo que € 6.343,42 referem-se a contribuições dos meses de Outubro de 2011 a Janeiro de 2012; 70. A Fazenda Nacional reclamou créditos no montante de € 65.336,42, sendo que € 1250,16 venceram-se em 07.11.2011, € 3.011,04 venceram-se em 15.09.2011, € 1848,05 na mesma data e € 43.247,60 também em 15.09.2011, € 3.938,91 em 11.10.2011 e € 934,75 na mesma data. * 1. Contradição insanável entre os nºs. 4º e 5º dos factos dados como não provados e os factos dados como provados sob os ns. 63º, 64º, 65º, 67º e 68º.Defendem os apelantes que, dando-se como provados os factos constantes dos pontos 63, 64, 65, 67 e 68, não se pode dar como “não provados” os factos constantes dos ns. 4 e 5 dos factos não provados, porquanto os factos dados como provados absorvem a factualidade nestes números. Mais alega que, para a prova do facto constante do nº4, contribui ainda o relatório de exame pericial de escrita de fls. 301 a 425, que conclui que “provavelmente" a assinatura aposta com o nome do apelante, nas atas de 12.08.2005 em diante, não é do punho do mesmo. Lidos os pontos da matéria de facto alegadamente em contradição não podemos dar razão aos apelantes: o facto de se dar como provado que era o requerido Armindo quem tratava de todos os assuntos relacionados com a sociedade, que o requerido F (...) nunca participou na administração da insolvente e que não se encontraria a par dos negócios e da contabilidade da insolvente, não impunha a prova da matéria constante dos pontos 4 e 5 da matéria de facto dada como não provada (de que nunca tenha sido consultado ou informado sobre os atos praticados ou a praticar por esta), inexistindo qualquer contradição entre a decisão de dar os primeiros como “provados” e a decisão de considerar os segundos “não provados”. Quanto à dúvida lançada pelo exame pericial relativamente à autoria da assinatura aposta em nome do apelante, não poderia, por si só, levar à prova positiva de que o mesmo nunca tenha sido (previamente) consultado sobre o teor de tais atas ou sobre as deliberações constantes das mesmas: uma coisa será a prova de que participou (ou não) nas reuniões do Conselho de Administração e outra será a prova de que foi (ou não) previamente consultado sobre as questões a discutir e as decisões a tomar em cada uma delas. A pretensão em causa é de improceder. 2. Aditamento à matéria de facto dada como provada do alegado no artigo 98º da sua oposição. No artigo 98º da sua oposição, o requerido alegou ter outorgado, em representação da sociedade “C (…), Lda.”, um contrato de compra e venda dos dois prédios inscritos sob os ns. 3334 e 3372 (ponto 15 dos factos provados), “porquanto os mesmos haviam sido anteriormente prometidos vender aquela sociedade e pelos quais já tinham pago o respetivo preço”. Dada a relevância que tal facto pode acarretar para a decisão da causa, enquanto justificativo da celebração da escritura de compra e venda relativamente a esses dois imóveis três dias antes da entrada em tribunal do pedido de declaração de insolvência da devedora, passamos a analisar a prova produzida nos autos quanto ao mesmo. Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto. Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. A seu favor, o Apelante invoca o depoimento da testemunha (…), e das declarações de parte do próprio Apelante F (…) e das declarações de parte da requerida M (..:). Quanto à testemunha (…), embora das suas declarações resulte que havia um anterior contrato promessa e que já estaria pago parte ou a totalidade do mesmo, tais afirmações são feitas de um modo vago, genérico e reportado à generalidade das escrituras públicas que a administradora M (…) celebrou no espaço de uma semana (entre 7 e 14 de fevereiro): “Fez como fez todas as outras, ou seja, ou já estavam pagos ou estava a totalidade paga ou …” “E que tinham contratos e que tinham provas de pagamento”. Quanto às declarações da M (…) a mesma não soube dizer qual a data da celebração do contrato promessa respeitante aos imoveis em causa, afirmou não ter sido ela quem recebeu o dinheiro dos mesmos, e sabendo apenas que tendo-lhes o requerido vendido um terreno e não tendo dinheiro para lhe pagar a totalidade, venderam-lhe estes lotes. Quanto ao requerido, F (…), embora afirme que à data da escritura os lotes já se encontravam totalmente pagos, e que os pagou através de um lote de terreno que tinha na Caldas da Rainha, da confrontação do contrato promessa por si junto a fls. 488 e 489, com a escritura definitiva que veio a ser realizada a 7 de fevereiro de 2012, constata-se que aquando do contrato-promessa o requerido apenas teria a seu favor um crédito no valor de 75.000,00 €, pelo que faltaria ainda pagar a quantia de 30.000,00 € para perfazer a totalidade do preço acordado para os três lotes; ora, nunca o requerido afirmou como procedeu ao pagamento do restante, ficando-se pela afirmação genérica de “os lotes foram pagos através de um terreno que eu tinha nas Caldas da Rainha”, afirmação que entra em contradição com o por si declarado no contrato promessa relativo a tais lotes. Ora, se parte do preço (no valor de 75.000,00 €, 35.000,00 € por cada um dos lotes), poderia estar paga por compensação do valor que a sociedade devia ao F (...) , como é referido no contrato promessa (fls. 480 e ss.), não há qualquer prova do pagamento do restante valor de 30.000,00 €. E se relativamente a um dos três lotes já anteriormente teriam feito a respetiva escritura, para pagamento dos dois lotes em causa, encontrar-se-ia ainda por pagar a quantia de 30.000,00 €. Assim sendo, e relativamente aos factos alegados pelo requerido no art. 98º da sua contestação, apenas podemos dar como provada a seguinte factualidade, que se aditará à matéria de facto: “A venda identificada em 15 foi realizada no seguimento do contrato promessa de compra e venda outorgado em 17/09/2008, encontrando-se, pelo menos, parte do seu preço pago, no montante de 40.000,00 €, à data da celebração da escritura.” * B. O Direito1. Se o Apelado F (…) deve ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa. O juiz a quo concluiu pela qualificação da insolvência como culposa pelo preenchimento, entre outros, do circunstancialismo previsto nas alíneas a), b), d) e h), do nº2, e das alíneas a) e b), do nº3, do artigo 186º do CIRE. O nº1 do artigo 186º do CIRE dá-nos a seguinte definição geral de insolvência culposa: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Seguidamente, tal definição geral é complementada e concretizada através da enumeração, nos seus ns. 2 e 3, de um elenco de situações tidas como de insolvência culposa: “2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor. b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor, de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionados; (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº2 do art. 188º. 3. Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor, que não seja pessoa singular, tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submete-las à devida fiscalização ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial. 4. (…) Tendo a sentença recorrida declarado a qualificação da insolvência como culposa pelo preenchimento, entre outras, das alíneas a) e b), do nº3 do artigo 186º, o apelante sustenta que, resultando provada a sua ausência de conhecimento da situação da insolvente e de qualquer domínio sobre a mesma, o apelante se se encontrava isento, quer do dever de apresentar a empresa à insolvência, quer de manter a contabilidade organizada, nomeadamente por falta de acesso à mesma, ilidindo a presunção da al. a), do nº3 do art. 186º. É discutível a questão de saber se, e em que termos, um gerente “de direito” que o não é de facto, pode ou não ser abrangido pela qualificação da insolvência como culposa. Antes de mais, salientar-se-á que, com esta previsão, o legislador não visa excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto mas, ao invés, estender a qualificação a atos praticados por administradores de facto[1]. Com isto, não se pretende afirmar, como regra, que seja irrelevante a circunstância de o administrador de direito não exercer as funções de facto, funções estas que serão exercidas por terceiro. Tudo dependerá da natureza das infrações registadas, nomeadamente se a violação dos deveres em causa pressupõe um comportamento ativo ou por omissão: por ex., se nos encontrarmos perante a situação prevista nas alíneas a), b) e c), do nº2 do art. 186º, a qualificação só deverá abranger aqueles administradores ou gerentes (de facto ou de direito) que tenham efetivamente destruído, ocultado ou feito desparecer, no todo ou em parte o património do devedor. Como afirma Rui Estrela de Oliveira[2], o que a lei pretende, por relevantes razões de segurança jurídica, é que haja coincidência, concreta e prática, entre os conceitos de administrador de direito e administrador de facto, pelo que a administração de facto não deixa de ser um fenómeno indesejado: administrador de direito, quando não o é de facto, ainda assim, encontra‐se obrigado a cumprir um conjunto de deveres que impendem sobre os administradores societários em geral. E esse é o caso da obrigatoriedade de elaboração e aprovação das contas. Um dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa é a verificação uma ação ou omissão de um dos seus gerentes de direito ou de facto[3]. E, de acordo artigo 72º, nº 1, do CSC, “os gerentes ou os administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa”. O artigo 72º, nº1, numa manifestação da responsabilidade contratual, prevê a individualização da responsabilidade – os sujeitos responsáveis são os titulares do órgão administrativo (gerentes ou administradores) e não o próprio órgão. E os gerentes, os administradores ou diretores são responsáveis por factos próprios. Como salienta Maria Elisabete Gomes Ramos[4], tal aspeto assume particular importância no contexto das sociedades que têm um órgão de administração de pluripessoal, porque revela que a mera circunstância de uma pessoa não pertencer a um órgão de administração não é suficiente para a sua responsabilização. Contudo, sendo o primeiro dever de um administrador exercer, de facto, as funções para as quais foi nomeado, a circunstância de se manter afastado da administração da sociedade e o desconhecimento da situação económico-financeira da mesma, não o ilibam, por si só, de quaisquer responsabilidades no eclodir ou no agravar de uma situação de insolvência. Como salienta Coutinho de Abreu[5], os administradores têm “poderes-função”, poderes-deveres. Os deveres impostos aos administradores para o exercício correto da administração começam por ser, como atividade, o dever típico e principal de administrar e representar a sociedade[6], densificado nos deveres fundamentais elencados nas als. a) e b), do artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais: o dever de cuidado e o dever de lealdade[7]. A par de tais deveres fundamentais, a lei societária consagra ainda os chamados deveres legais específicos, que impõem uma atuação ou omissão concreta, entre os quais se destacam, no que aqui nos interessa, convocar ou requerer a convocação de assembleia geral na hipótese de perda de metade do capital social (art. 35º), proceder à substituição dos administradores que “faltem definitivamente” no seio do órgão plural de administração (art. 393º); requerer a declaração de insolvência da sociedade (arts. 18º e 19º do CIRE), elaborar e submeter à apreciação dos sócios o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas (arts. 65º, nº1, 263º e 451º); cumprir as obrigações da sociedade relativamente à Administração Fiscal e à Segurança Social. Ricardo Costa[8] chama a atenção para o facto de os deveres legais gerais do art. 64º vincularem como sujeitos passivos, não só, os administradores e gerentes designados pelas formas previstas na lei (designação pela simples qualidade de sócio ou estatutária, nomeação e/ou eleição deliberativa, indicação pelo tribunal, atc.) – os denominados administradores de direito –, mas, também, os administradores de facto, desde que se possam qualificar como tal, em razão da prática de atos próprios do desempenho de funções de administração. As principais manifestações (ou subdeveres) do dever de cuidado consistem no (i) dever de controlar, ou vigiar, a organização e a condução da atividade da sociedade, as suas políticas, práticas, etc.; ii) dever de se informar e de realizar uma investigação sobre a atendibilidade das informações que são adquiridas e que podem ser causa de danos, seja por via dos sistemas normais de vigilância, seja por vias ocasionais (produzindo informação ou solicitando-a por sua iniciativa) – subdeveres que se reconduzem ao dever geral e uno e de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade[9]. Feitas tais considerações, a resposta à questão colocada pelo Apelante só pode ser negativa: os factos constantes dos pontos 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67 e 68, relacionados com a circunstância de o requerido F (...) nunca ter participado, de facto, na administração da insolvente, e com a sua ignorância relativamente à contabilidade da insolvente, não o isentavam das suas obrigações legais, enquanto administrador de direito que foi, de apresentação da sociedade à insolvência ou de proceder à aprovação das respetivas contas ou de se assegurar que tais obrigações eram cumpridas, constituindo essa ignorância e alheamento dos destinos da sociedade, por si só, uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto Vogal do Conselho de Administração[10]. À pergunta sobre se a redação e os interesses tutelados no artigo 186º, nº 1, do CIRE, permitem que o administrador de direito, que não o é de facto, se exonere da responsabilidade na criação ou agravamento do estado de insolvência, Rui Estrela de Oliveira[11] responde afirmativamente, desde que prove que: - em face de determinada conduta do administrador autor do facto, cumpriu todos os deveres a que estava obrigado societária e legalmente; - e que não teve culpa na produção ou agravamento do estado de insolvência. * Dando por assente que um administrador de direito que o não seja de facto pode ser também ele afetado pela qualificação de insolvência como culposa, nomeadamente quando se encontre em causa um comportamento omissivo dos deveres que sobre o mesmo impendiam enquanto fazendo parte do órgão de gestão da devedora, a qualificação da insolvência como culposa por via da subsunção às alienas a), b) e d), do nº2 do artigo 186º não o pode afetar, por pressuporem o seu envolvimento e participação no desaparecimento de bens da insolvente ou na disposição de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros, participação essa que não se tem por demonstrada. Com efeito, encontrando-se demonstrado que nunca este administrador de direito (nomeado vogal) participou de facto na administração da devedora, o único envolvimento que teve nos negócios de disposição de bens da devedora foi enquanto gerente da “C (...) , Lda.”, na qualidade de compradora de dois imóveis relativamente aos quais havia sido outorgado um contrato promessa no ano de 2008, e relativamente aos quais se encontraria já paga, pelo menos, a quantia de 40.000,00 €, à data da celebração da escritura. Por outro lado, chama-se a atenção de que também ele foi um dos credores prejudicados com a situação de insolvência da requerida, enquanto gerente da “F (…), Unipessoal, Lda.”, fornecedora de serviços à devedora, em cuja representação reclamou créditos na insolvência no valor de 176.794,49 €. * Restará, assim, a eventual afetação da qualificação da insolvência como culposa por via do preenchimento da alínea h), do nº2, e das alíneas a) e b), do nº3, do artigo 186º do CIRE e que passará pela resposta as duas seguintes questões: 1. Se a factualidade dada como provada nos permite dar como verificado o circunstancialismo previsto em alguma dessas alíneas. 2. Em caso afirmativo, se haverá ainda que demonstrar o nexo de causalidade entre a violação dos devedores em causa e a criação ou agravamento da situação de insolvência. * Comecemos pela alínea a), do nº3 do artigo 186º - violação do dever de apresentação à insolvência. Defende o apelante que, face à matéria dada como provada (pontos 69º e 70º, dos factos dados como provados) não se pode dizer que a devedora ou os seus administradores tenham falhado com o dever de apresentação à insolvência – as 1ªs dívidas fiscais vencidas datam de 15 de setembro de 2011, pelo que só a 15 de dezembro se presume o conhecimento da situação de insolvência, e o prazo de 60 dias para a apresentação à insolvência só terminaria a 15 de fevereiro de 2012. Vejamos a situação em apreço. É verdade que, dos factos dados como provados, não podemos reconhecer um incumprimento generalizado das obrigações fiscais em data anterior a 15 de setembro de 2015. Assim sendo, só três meses depois, em 15 de dezembro de 20012, se presumiria iniludivelmente, por força do nº3 do artigo 18º do CIRE, o conhecimento da situação de insolvência por parte da devedora e dos seus administradores. Como tal, seguindo o raciocínio do apelante, tendo o prazo de 60 dias para se apresentarem à insolvência, encontrar-se-ia ainda em prazo, quando, a 10.02.2012, os seus credores deram entrada do requerimento de insolvência em tribunal. Contudo, o facto de não nos poderemos valer da presunção do nº3 do artigo 18º do CIRE para darmos como assente o conhecimento da situação da insolvência em data anterior a 15 de setembro de 2015, isso não quer dizer que se não possa provar pelos meios de prova comuns que, já em data anterior, a devedora tinha conhecimento, ou tinha obrigação de ter conhecimento, de que se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações. Dispunha o artigo 18º, CIRE[12], sob a epígrafe “Dever de apresentação à insolvência”: 1. O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º ou à data em que devesse conhecê-la. (…) 3. Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º.” As obrigações cujo incumprimento generalizado dão azo à “presunção inilidível” do nº3 do art. 18º, e que se encontram previstas na al. g) do nº1 do artigo 20º, são as seguintes: i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente ao local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência. O prazo de apresentação à insolvência conta-se do conhecimento da situação ou, sendo anterior, do momento em que o devedor a devia conhecer. Este dever de conhecimento tem de ser apreciado nos termos gerais, por referência ao devedor médio colocado na situação concreta do agente. Para facilitar a prova de tal conhecimento, o nº3 do art. 18º prevê uma presunção inilidível do conhecimento da insolvência quando ocorra, há pelo menos três meses o incumprimento generalizado de qualquer das obrigações referidas na al. g) do nº1 do art. 20º. E, como salientam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[13], pelo modo como se acha redigido o preceito, resulta que está em causa o incumprimento do tipo de obrigações e não somente uma insatisfação total das obrigações decorrentes de uma certa fonte concreta, mantendo-se, todavia, o cumprimento generalizado das obrigações da mesma espécie emergentes de outras fontes. Esclarecendo tal afirmação, tais autores referem que se um devedor celebrou e tem em curso vinte contratos de locação, que impõem prestações mensais, e deixa de pagar as de um, mantendo o pagamento das dos restantes, não se preenche a previsão do nº3 do artº 18º; se, porém, mantém o pagamento das rendas de um, mas deixa de pagar as dos outros, por mais de três meses, aí ocorre uma situação que obriga à apresentação. A circunstância de se atribuir carater “inilidível” à presunção tem por consequência que, uma vez demonstrado o facto base – incumprimento generalizado de determinado tipo de obrigações que se prolongue por mais de três meses – não poder o devedor alegar factos demonstrativos do desconhecimento da situação de insolvência. Contudo, a situação de insolvência, em si, pode ainda ser demonstrada através dos factos enunciados no nº1 do artigo 20º (factos índice). Sendo através deles que a situação de insolvência se manifesta ou exterioriza, a verificação de qualquer deles permite presumir a situação de insolvência do devedor e é condição necessária para a iniciativa processual de certos sujeitos. A diferença, relativamente à verificação do fator previsto no nº 3 do art. 18º, reside em que, nos demais casos, o devedor pode ilidir tal presunção provando que, não obstante a ocorrência de um ou mais factos do tipo enunciado, a insolvência se não verifica, ou que, apesar da sua verificação, não tinha possibilidades de se aperceber da mesma. Vejamos, assim, se temos por verificado algum desses fatores índice e a partir de que data o mesmo se manifestou com clareza, a fim de concluirmos a partir de que momento poderemos afirmar com segurança que a devedora se encontrava já em estado de insolvência. De entre os factos dados como provados pelo tribunal a quo, são os seguintes os factos que, de um modo mais óbvio e direto, nos surgem com interesse para a decisão em apreço: “51. A insolvente entrou em incumprimento com os seus credores vários meses antes da entrada do presente processo de insolvência”. 69. O Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Distrital de Coimbra reclamou créditos no montante total de € 6.565,73, sendo que € 6.343,42 referem-se a contribuições dos meses de Outubro de 2011 a Janeiro de 2012; 70. A Fazenda Nacional reclamou créditos no montante de € 65.336,42, sendo que € 1250,16 venceram-se em 07.11.2011, € 3.011,04 venceram-se em 15.09.2011, € 1848,05 na mesma data e € 43.247,60 também em 15.09.2011, € 3.938,91 em 11.10.2011 e € 934,75 na mesma data.” Dada a formulação vaga dada ao ponto 51 da matéria de facto, por se referir a um atraso de “vários meses” nos pagamentos, teremos de analisar comparativamente a entrada em incumprimento dos créditos fiscais, ocorrida a partir de 15 de setembro de 2011, com os demais elementos constantes dos autos. Da análise da Relação de créditos elaborada pela A.I. nos termos do artigo 129º CIRE, constata-se encontrarem-se reclamados créditos referentes a faturas vencidas e não pagas essencialmente desde junho de 2011 (embora haja algumas faturas vencidas em 2010 – crédito relacionado sob o nº 31), englobando quer faturas de pequeno valor quer de valor elevado: créditos relacionados sob os ns. 5 (março de 2010 a março de 2012, num total de cerca de 132.000 €), nº 10 (faturas de setembro de 2010 a abril de 2012, num total de 137.000 €); nº 13 (uma fatura, datada de março de 2011, no valor de 7.373 €), nº 28 (faturas de junho e julho de 2011, no valor de 21.622 €), nº 31, faturas de 2010 e 2011, no valor de 85.320 €; nº 47, fatura de maio de 2011, no valor de 6.500 €; nº 55, faturas de 18.10.2011 e 27.01.2012; nº 59, fatura de 30.12.2011; crédito nº 75, faturas de março e abril de 2011, num total de 11.000 €; faturas datadas de 08.08.2011 a 02.03.2012 (crédito 77). Em Novembro de 2011, a devedora deixou de pagar as prestações devidas à Caixa Económica Montepio Geral (a 27 e 28 de novembro de 2011 – crédito nº 24), bem como as prestações devidas à Segurança Social (encontrando-se em divida as contribuições de outubro, inclusive, em diante). A TMN só reclama faturas de janeiro a abril de 2012 (crédito 86); os Bancos Popular e Santander, reportam a data de incumprimento a janeiro de 2012 (créditos 20 e 21); os trabalhadores apenas reclamam créditos de salários em atraso relativamente a fevereiro e março de 2012 (créditos descritos sob os ns. 12 e 83); o contrato de aluguer de um veículo celebrado com o BPI aparentemente terá sido cumprido até à declaração de insolvência (crédito nº 16); quanto às prestações do mútuo concedido pelo BCP, a devedora ainda pagou as prestações vencidas a 10.11.2011; entrou em incumprimento com o BES, também relativamente a prestações respeitantes a contratos de mútuo somente a 15.01.2012 e a 16.01.2012 (crédito nº 20); o Deutche Bank só reclama juros desde a data da insolvência, (crédito 32); a EDP só reclama juros a partir de março de 2012; o crédito reclamado sob o nº 38, relativamente a um empréstimo particular, só pede juros de mora desde 1 de fevereiro de 2012. Quanto aos demais créditos relacionados, respeitam essencialmente a contratos promessa de compra e venda de lotes, moradias e frações, não cumpridos, tornando-se mais difícil o apuramento da data a partir do qual ocorreu o seu incumprimento por parte da insolvente. De tal análise, constata-se que, num total de 17.376.556 € de créditos reconhecidos, se os pagamentos aos fornecedores começaram a falhar essencialmente em meados de 2011, a insolvente terá continuado a cumprir grande parte das obrigações respeitantes aos inúmeros mútuos bancários, bem como os salários dos seus trabalhadores até dezembro de 2011. Assim sendo, não dispomos de elementos que nos permitam afirmar com segurança que a ocorrência de uma suspensão generalizada do pagamento das suas obrigações vencidas em data anterior a dezembro de 2011, ou sequer, “uma falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”, um dos fatores índices reveladores da situação de insolvência da requerida previstos na al. b), do nº1 do artigo 20º do CIRE. E, assim sendo, não podemos dar por demonstrado o incumprimento do dever de apresentação à insolvência. Analisemos ainda a eventual responsabilização do apelante por força da verificação das presunções constantes das alíneas h), do nº2, e da al. b), do nº3, do artigo 186º do CIRE. * Sustenta o apelante que a conduta do apelante não preenche a al. h), do nº2, do art. 186º, nem a al. b), do nº3 do art. 186º, por insuficiência da matéria de facto dada como provada, nomeadamente, relativamente a esta última, por falta de nexo causal entre tais condutas e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Tal alegação remete-nos para o debate que tem suscitado, na doutrina e na jurisprudência, a interpretação a dar ao artigo 186º CIRE e a articulação entre os requisitos previstos no nº1 e as diversas hipóteses elencadas nas várias alíneas dos seus ns. 2 e 3. Da noção legal de insolvência culposa constante do nº1, extraem-se os seguintes os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa: Como salienta o Acórdão do TRC de 07.02.2012, a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor ou dos seus administradores e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar essa qualificação, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar a sua existência. Complementando a definição geral dada pelo nº1, o legislador vem enumerar, sob o nº2 da citada norma, um conjunto de situações em que a insolvência se “considera sempre culposa” e, sob o nº3, situações em que se “presume a existência de culpa grave”. De qualquer modo, e antes demais, haverá que determinar se a matéria dada como provada preencherá alguma das citadas alíneas. Descendo à análise do caso em apreço, a discussão centra-se em saber, em primeiro lugar, se os factos dados como provados são suscetíveis de preencher o circunstancialismo descrito sob a alínea h) do nº2 do artigo 186º, nomeadamente, se através deles se pode afirmar encontramo-nos perante um “incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada”: 1. Os autos principais de insolvência, deram entrada em juízo, via eletrónica, a 10 de Fevereiro de 2012, a requerimento dos credores F (…) e M (…). 42. As certificações de contas efetuadas pelo Revisor Oficial de Contas, referentes às contas de 2009 e 2010 (apresentadas em cada um dos anos subsequentes, respetivamente) apresentavam reservas; 43. A sociedade insolvente apenas depositou contas até 2010. Existindo um limite temporal a considerar – só serão relevantes as condutas ocorridas dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência –, e tendo-se o processo iniciado por requerimento de 10 de fevereiro de 2012, os anos a considerar serão os de 2009, 2010 e 2011. Segundo Rui Estrela de Oliveira[15], quando a lei utiliza a expressão “em termos substanciais” quer dizer que a obrigação de manter a contabilidade organizada foi violada em termos tais que não é possível indicar, com segurança, a causa da insolvência e dos seus responsáveis. Não é qualquer incumprimento ou irregularidade contabilística que preenche a presunção em questão: Tem que ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade com influência na perceção que uma tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado[16]. A gravidade do incumprimento terá de ser aferida face às obrigações que o Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente o seu artigo 65º[17] faz impender sobre os gerentes. E, se o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, ou de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial (circunstancialismo que preencheria a al. b), do nº3 do art. 186º), manifesta uma elementar falta de cuidado no cumprimento dos deveres dos administradores – respeitando à obrigação de prestação de contas da gestão realizada[18], na alínea h), do nº2, é a própria obrigação de manter a contabilidade organizada que se encontra em causa[19]. No caso em apreço, os referidos factos dados como provados – que as contas elaboradas relativamente aos anos de 2009 e 2010 apresentavam “reservas” – são, por si só, insuficientes para concluir uma violação substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada –, sendo que, nada é alegado quanto à circunstância de o estado da contabilidade dificultar ou impedir a análise sobre o evoluir da situação económico-financeira da devedora e das causas que levaram à sua insolvência e dos seus responsáveis. Não se tendo por preenchida a factualidade prevista na al. h), do nº2 do artigo 186º do CIRE, não é de qualificar a insolvência como culposa por força da referida alínea. Vejamos, agora, se tal factualidade integra a previsão da alínea b), do nº3 do artigo 186º – incumprimento da obrigação de proceder ao depósito das prestações de contas de cada ano civil na conservatória de registo comercial. E aqui consta-se que relativamente aos anos civis de 2009 e 2010, as contas se mostram depositadas, registando-se um mero atraso no respetivo depósito: as contas respeitantes ao ano de 2009 foram registadas a 07 de outubro de 2010, e as respeitantes ao exercício de 2010 só o foram a 29 de setembro de 2011, quando deviam ter sido objeto de registo até 30 de junho[20]; quanto às contas do exercício findo a 31 de dezembro de 2011 (e é na ausência de depósito das contas de 2011 que o parecer do A.I. faz assentar o preenchimento da al. b) do nº3 do art. 186º), encontrava-se ainda a decorrer o prazo para a sua aprovação. Um mero atraso de cerca de três meses no depósito das contas respeitantes quer a 2009 quer a 2010, parece-nos insuficiente para considerar preenchido o circunstancialismo previsto na al. b), do nº3 do artigo 186º. Sobretudo quando esse atraso se reporta à contabilidade dos anos de 2009 e de 2010, anos durante os quais não se têm por demonstrados incumprimentos significativos nas obrigações da devedora. A falta de preenchimento do circunstancialismo previsto na al. h), do nº2, e nas alíneas a) e b), do nº3, do art. 186º, dispensar-nos-á de proceder à análise da questão da eventual necessidade da prova do nexo de causalidade entre a ocorrência de tais circunstâncias e a criação ou agravamento do estado de insolvência. * Ficando de pé unicamente a qualificação da insolvência por força do preenchimento das alíneas a), b), e d), do nº2 do artigo 186º do CIRE, o requerido/Apelante não deverá ser afetado pela declaração da insolvência como culposa. * A apelação será de proceder, revogando-se a sentença recorrida. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, revogando-se parcialmente a decisão recorrida, exclui-se o apelante F (...) da qualificação da insolvência como culposa. Sem custas.
Coimbra, 11 de outubro de 2016
Maria João Areias ( Relatora) Vítor Amaral Luís Cravo
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC. 1. A circunstância de nunca ter participado de facto na administração da devedora, não o isenta do cumprimento das obrigações legais que sobre ele impendem enquanto vogal do conselho de administração, constituindo a ignorância e o alheamento relativamente aos destinos da sociedade, por si só, uma violação de tais deveres. 2. Se a violação de tais deveres se concretizar num comportamento por omissão, como são o caso dos deveres de elaboração e aprovação das contas e respetivo registo e o de apresentação à insolvência, o administrador de direito será de considerar afetado pela qualificação da insolvência quando tal obrigatoriedade se mostre incumprida. 3. Independentemente de não se provar o facto base da presunção inilidível prevista no artigo 18º, nº3 – decurso do prazo de três meses desde o incumprimento generalizado de algum dos tipos de obrigações previsto na al. g), do nº1 do artigo 20º –, para efeitos de aferição do incumprimento do dever de apresentação à insolvência, a situação de insolvência e o conhecimento da mesma poderão ainda ser demonstrados pela prova de qualquer um dos fatores índices previstos nas restantes alíneas do artigo 20º. 4. O facto de as contas elaboradas durante os anos de 2009 e de 2010, e levadas a registo, apresentarem “reservas” – sem que dos autos conste qualquer elemento do qual resulte que o estado da contabilidade tenha dificultado ou impedido a análise da situação económico-financeira da devedora e das causas que levaram à sua insolvência e dos seus responsáveis –, é insuficiente para concluir por uma violação substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada. 5. Um mero atraso de três meses no depósito das contas respeitantes aos anos de 2009 e de 2010, surge também como insuficiente para considerar preenchido o circunstancialismo previsto na al. b), do nº3, do art. 186º.
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