Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
287/17.0T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: LIVRANÇA
AVAL
RELAÇÕES IMEDIATAS
VIOLAÇÃO DO PACTO DE PREENCHIMENTO
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 05/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO (EXTINTO)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO (EXTINTO)
Sumário: I – É inaplicável ao aval de uma livrança em branco posteriormente preenchida, a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2001, de 23.1.2001 (DR I-A Série, de 8.3.2001), segundo a qual é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.

II – Isto porque não são transponíveis para o aval as razões que determinaram o dito Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2001, relativo à fiança genérica de obrigações futuras.

III – Enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil..

Decisão Texto Integral:      







       Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

 M (…), residente em (…), (...) , veio por apenso aos autos de execução nº 287/17.0T8VIS deduzir embargos de executado contra o Exequente, “N (…)S.A.”, com sede na (...) , (...) , pedindo que os presentes embargos sejam julgados procedentes por provados e, em consequência seja decretada a extinção da execução.

Para tanto, alega que, a livrança que serve de base à execução foi entregue à exequente em branco, sendo que, a mutuária “A. (…)” não efetuou o pagamento da prestação vencida em 14 de Fevereiro de 2007, nem qualquer outra prestação, sendo nessa data o valor do capital em divida de € 14.855,12. Ora, o preenchimento da livrança com data de vencimento em 09/12/2016, ou seja, nove anos depois do efetivo incumprimento não cabe no pacto de preenchimento assinado pela executada, o que determina a nulidade do titulo, tudo se passando como se o titulo não existisse.

                                                             *

Os embargos foram recebidos, ordenando-se a notificação do exequente para contestar.

O exequente apresentou contestação, pedindo que os embargos sejam julgados improcedentes, por não provados.

                                                             *

Elaborou-se despacho despacho saneador, onde foram aferidos pela positiva todos os pressupostos processuais relevantes, enunciado o objecto do litígio e os temas de prova, despacho esse que não foi objeto de reclamação.

Procedeu-se a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respectiva ata.

*

Na sentença, considerou-se, em suma, que se verificava, no vertente caso, um abuso no preenchimento da livrança (por violação do pacto de preenchimento), no que respeita à data do vencimento que nela foi aposta, pois que importava concluir, em face dos factos provados, que o banco embargado, no uso dos poderes que lhe foram concedidos, a deveria ter preenchido com uma data de vencimento reportada a 14 de Fevereiro de 2007, mas na medida em que estava igualmente provado que os juros calculados até 7 de Novembro de 2012 haviam sido liquidados com o produto da venda do imóvel da obrigada principal, os juros devidos (4%, de acordo com a Portaria nº 291/2003) só podiam ser contabilizados a partir dessa data, mais se concluindo que a execução podia prosseguir na parte não afetada, isto é, que a livrança era passível de ser aproveitada no tocante ao capital em divida aí englobado (€ 14.855,14), imposto de selo e selagem da livrança, calculados sobre o valor do capital (sendo que os juros devidos só podiam ser calculados a partir de 7 de Novembro de 2012), acrescendo que a igual conclusão importava chegar à luz do enquadramento através do abuso do direito (por a exequente haver injustificadamente demorado nove anos a proceder ao preenchimento da livrança que tinha na sua posse para ser preenchida aquando do incumprimento), donde também por esta vertente teria tal pedido que ser reduzido ao montante do capital na data do incumprimento (pois a executada vinculou-se ao seu pagamento), bem como aos juros de mora à taxa legal de 4% desde 7 de Novembro de 2012 (uma vez que os juros até essa data estão liquidados), termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«V- Decisão:

Por tudo o exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, julgo parcialmente procedente por provados os presentes embargos de executado e, em consequência determino o prosseguimento da execução no tocante ao valor de € 14.855,12 (catorze mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e doze cêntimos), correspondente ao capital em divida, acrescido de juros desde 7 de novembro de 2012, à taxa legal de 4%, até integral pagamento, acrescida dos valores relativos a imposto de selo e selagem da livrança (calculados sobre o capital).

Custas dos embargos a cargo da executada e da exequente na proporção do decaimento, cuja responsabilidade se fixa em 70% para a executada/embargante e 30% para a exequente.

Notifique e registe.»

                                                           *

Inconformada, apresentou a Embargante recurso de apelação, que finalizou com as seguintes conclusões:

(…)

            Apresentou a Exequente/Embargada contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

(…)

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso[2] cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - nulidade da sentença [als. c) e d) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil];

- impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que levou ao incorreto julgamento de factos como “provados”, a saber, os factos constantes dos pontos “1)”, “10)” e “12)” [para os quais reclama uma redacção diversa, que enuncia];

            - desacerto da decisão que julgou improcedentes os embargos, porquanto do preenchimento abusivo da livrança devia ter-se retirado necessariamente a invalidade do título, a qual igualmente decorria de não ser o mesmo determinável face ao respetivo pacto de preenchimento, acrescendo que da aplicação do abuso do direito se retirariam as mesmas conclusões?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

 Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de “factos provados”:

«1-O exequente/embargado N (…), S.A, é portador de uma livrança, na qual consta como data de emissão o dia, como data de vencimento o dia, com o montante de € 21.690,56 (vinte e um mil, seiscentos e noventa euros e cinquenta e seis cêntimos), figurando como avalista a executada/embargante M (…) dando-se aqui por integralmente reproduzida a livrança constante de fls. 13 da execução a que os presentes autos se encontram apensos, a qual foi subscrita em branco pela executada/embargante e foi inteiramente preenchida pela exequente.

2- No dia 14 de fevereiro de 2001, foi celebrada escritura pública intitulada “Mútuo com Hipoteca”, no 1º Cartório Notarial de (...) , na qual intervieram como primeiro outorgante a sociedade comercial AA (…) e como segundo outorgante o Banco (…), S.A., pelo qual foi “ajustado (entre os outorgantes) um contrato de empréstimo de onze milhões de escudos (…) do qual se confessa devedora a partir de hoje”, conforme documento de fls. 25 a 31 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3 – No âmbito da escritura aludida em 2) foi ainda declarado que “Para caução e garantia de todas as responsabilidades assumidas nos termos do presente contrato, juros e todas as demais despesas inerentes a mutuária constitui hipoteca sobre o seguinte imóvel: Fração autónoma designada pela letra E, correspondente a cave, destinada a armazém composto por um compartimento amplo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na (...) , concelho de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 1 (...) º e descrito na Conservatória do registo predial sob o n º 846”.

4 – A executada/embargante assinou pelo seu punho o documento datado de 14 de fevereiro de 2001, cuja cópia consta de fls. 32 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido intitulado “Autorização”, do qual consta que “Para garantia e segurança do cumprimento das obrigações decorrentes da operação de obras de beneficiação de espaço comercial que o Banco (…), S.A., nos concedeu no montante de PTE 11.000.000$ (onze milhões de escudos), à data do seu vencimento ou das suas eventuais prorrogações, compreendendo o saldo que for devido à data do reembolso, acrescido de comissões e juros contratuais e de mora, nós abaixo assinados, A.J. (…), L.da (…) junto remetemos uma livrança por nós subscrita e avalizada por J (…) e cônjuge M (…)  (…) a favor do Banco (…), S.A., ficando este, desde já, pela presente, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, autorizado a completar o preenchimento do titulo, quando o considerar oportuno, fixando o seu vencimento para a data que entender, e a prócer ao seu desconto, se nisso tiver interesse (…) ”.

5 - As obrigações emergentes do contrato aludido em 3) foram consideradas pela exequente/embargada definitivamente incumpridas em 14/02/2007.

6 – O bem imóvel aludido em 4) foi penhorado no âmbito do processo de execução fiscal n º 37005010299599 que correu termos no Serviço de Finanças de (...) .

7 – Tendo o embargado sido citado no âmbito do processo aludido em 6) reclamou em 28/03/2007 créditos no montante de € 16.228,11 (sendo € 16.014,37 referente a capital e € 213,74 relativo a juros vencidos calculados à taxa de 10,5% desde 14/02/2007), conforme documento de fls. 32 verso a 48 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

8 – Após a data aludida em 7) foram realizados pagamentos por conta da dívida: a) o montante de € 398,31 em 16/04/2007; b) o montante de € 392,24 em 15/05/05/2007; c) € 398,29 em 15/06/2007; d) o montante de € 398,34 em 17/07/2007; e) o montante de € 0,70 à data de 16/08/2007.

9 – Os montantes aludidos em 8) foram imputados a juros, imposto de selo e capital, tendo ficado integralmente pagos os juros de mora e imposto de selo vencidos até 17/07/2007, tendo sido abatido uma parte ao capital, permanecendo em dívida o montante de € 15.154,20 a titulo de capital, a quantia de € 131,93 a titulo de juros e a quantia de e 5,27 a titulo de imposto de selo sobre os juros.

10 – Procedeu-se à realização da venda do imóvel aludido em 4) no âmbito do processo aludido em 6), tendo sido entregue à exequente a quantia de € 9.538,78 relativa ao produto da venda de tal imóvel, conforme documento de fls. 49 a 53 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

11 – A exequente remeteu à executada/embargante a carta datada de 18 de novembro de 2016, cuja cópia consta de fls. 18 de novembro de 2016 a dar conta do preenchimento da livrança aludida em 1).

12 – O capital em divida ascende ao montante de € 14.855,12 (catorze mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e doze cêntimos).»

                                                           *

3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada nulidade da sentença, sendo certo que a mesma decorre, alegadamente, «por a decisão ser contraditória com a fundamentação da mesma; bem assim por omissão de pronúncia». 

Será, então, que ocorre a arguição de nulidade da sentença consistente em os seus “fundamentos se encontrarem em oposição com a decisão” [1ª parte da al.c) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil]?

 A resposta a esta questão é claramente negativa – e releve-se este juízo antecipatório! – aliás, só se compreendendo a sua arguição por um qualquer equívoco ou deficiente interpretação dos conceitos legais.

É que segundo a referida alínea c) do citado art. 615º, nº1 do n.C.P.Civil, a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, mas, obviamente que quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão; está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto.

Na verdade, o que está em causa nesse normativo é a contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão (dispositivo da sentença) seguir caminho oposto ou direção diferente[3], inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos art.os 667º e 668º do C.P.Civil[4], e atualmente nos art.os 614º e segs. do n.C.P.Civil, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal.

Ora, compulsada a sentença, o que se constata é que, ao invés do sustentado, isto é, que não foram retiradas consequências do preenchimento abusivo da data da livrança, na sentença recorrida, depois de se aludir e perfilhar o entendimento de que ocorria o vício do “abuso no preenchimento da livrança (por violação do pacto de preenchimento)”, se aduziu muito expressa e claramente – complementado a linha de raciocínio – que a execução podia prosseguir na parte não afetada, mais concretamente, que podia prossegui por quantia inferior, com aproveitamento dos actos praticados [in casu, com a livrança passível de ser aproveitada no tocante ao capital em divida aí englobado (€ 14.855,14), imposto de selo e selagem da livrança, calculados sobre o valor do capital, embora com os juros devidos a só poderem ser calculados a partir de 7 de Novembro de 2012].

Sendo certo que, no “dispositivo”, foi precisamente deste concreto e específico sentido a decisão determinada.

Dito de outra forma: só fazendo uma interpretação enviesada ou redutora da linha de fundamentação seguida na sentença se poderia sustentar que foi cometido este vício – com referência à “decisão” constante do “dispositivo”...

Por outro lado, e por igualdade de razões – senão mesmo por maioria delas! – também não se vislumbra como aderir ao invocado no sentido de ter ocorrido “omissão de pronúncia”.

É que, consabidamente, nos termos da al. d) do mesmo art. 615º, nº1 do n.C.P.Civil, verifica-se a nulidade da sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Assim, com referência à 1ª parte da citada al.d), do nº1, do art. 615º do n.C.P.Civil, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – art. 608º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil.

Sendo que a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

De referir que tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, que apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

“Questões” submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.

Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art. 615º nº1, al.d), do n.C.P.Civil: daí que, se na sua apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.

Como já foi doutamente sublinhado a este propósito, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda[5].

Aliás, no mesmo sentido foi-nos anteriormente ensinado que “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”[6].

Donde, tendo na sentença recorrida sido claramente expresso que ocorria o vício do preenchimento abusivo da livrança [quanto à data de vencimento], na medida em que mais se sublinhou que, não obstante, podia a execução prosseguir com a redução da quantia exequenda nos termos que foram determinados, manifestamente não se pode concluir que ocorreu qualquer “omissão de pronúncia” neste particular…

Termos em que improcede claramente esta via de argumentação aduzida pela Embargante/recorrente como fundamento para a procedência do recurso.

                                                           *

3.3 – A Embargante/recorrente deduz impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que levou ao incorreto julgamento de factos como “provados”, a saber, os factos constantes dos pontos “1)”, “10)” e “12)” [para os quais reclama uma redacção diversa, que enuncia].

Vejamos um por um cada um dos apontados pontos de facto.

Sustenta concretamente a Embargante/recorrente, quanto à factualidade constante do ponto “1)”, que «enquanto e pese a remissão  para documento (sem efeito, s.m.o, no que respeita a dar como provado ou não provado um facto…), deste facto não constam as datas de emissão e vencimento referentes a Livrança dos Autos».

Que dizer?

Efetivamente, confrontando o teor literal do dito ponto de facto “provado” sob “1)”, não pode deixar de se constar que do mesmo não consta a referência expressa às datas de emissão e vencimento referentes à Livrança ajuizada

Neste particular, cremos não poder considerar-se tal dispensável ou suficientemente cumprida a exigência legal pela circunstância de na redacção literal consignada constar a alusão a «(…) dando-se aqui por integralmente reproduzida a livrança constante de fls. 13 da execução a que os presentes autos se encontram apensos(…)».

Na verdade, perfilhamos o entendimento de que relativamente a todos e cada um dos factos relevantes para a decisão, devem os mesmos ser expressa e integralmente reproduzidos, pelo que, sem necessidade de maiores considerações e visto que a omissão pode ser seguramente suprida pelo confronto com o teor do título que em fotocópia certificada acompanhou os autos em recurso (cf. fls. o teor de fls. 117 e segs., mais concretamente a fls. 126), determina-se que o dito ponto de facto “provado” sob       “1)” passe a figurar com o seguinte teor:

«1-O exequente/embargado N (…), S.A, é portador de uma livrança, na qual consta como data de emissão o dia 2001.02.14, como data de vencimento o dia 2016.12.09, com o montante de € 21.690,56 (vinte e um mil, seiscentos e noventa euros e cinquenta e seis cêntimos), figurando como avalista a executada/embargante M (…), dando-se aqui por integralmente reproduzida a livrança constante de fls. 13 da execução a que os presentes autos se encontram apensos, a qual foi subscrita em branco pela executada/embargante e foi inteiramente preenchida pela exequente.»

                                                           ¨¨

Passando ao ponto de facto “provado” sob “10)”.

Neste particular, sustenta a Embargante/recorrente que «(…) deste facto não consta a data – 7 de novembro de 2012 – de recebimento por banda da exequente da quantia de € 9.538,78 relativa ao produto da venda do imóvel referido em 3), conforme documentos de fls. 49 a 53 dos autos, consonantes os depoimentos das testemunhas:

(…)

Será assim?

É certo que não consta deste dito ponto de facto “provado” sob “10)” a data do recebimento (pelo Exequente) da quantia nele referida, sendo que, quanto a nós é esse aspeto de facto efetivamente um dado factual também com interesse e relevância para a decisão de mérito, pelo que, na medida em que ele estava insofismavelmente comprovado/adquirido por ter sido alegado no articulado de contestação da Exequente e nestes termos aceite pela Embargante, sem necessidade de maiores considerações, determina-se que o dito ponto de facto “provado” sob “10)” passe a figurar com o seguinte teor:

«10 – Procedeu-se à realização da venda do imóvel aludido em 4) no âmbito do processo aludido em 6), tendo sido entregue à exequente, em 7 de Novembro de 2012, a quantia de € 9.538,78 relativa ao produto da venda de tal imóvel, conforme documento de fls. 49 a 53 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.»

                                                           ¨¨

Vejamos, para finalizar, o ponto de facto “provado” sob “12)”.

Quanto a ele, sustenta a Embargante/recorrente que em vez do montante de «€ 14.855,12 (catorze mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e doze cêntimos)» nele consignado, «O capital em divida ascende ao montante de € 8.838,91 (oito mil, oitocentos e trinta e oito euros e noventa e um cêntimos)», sendo que como fundamento para tal, passa a apresentar/explicitar os seus cálculos e razões.

Que dizer?

Que olvidou manifestamente a Embargante/recorrente de invocar e socorrer-se dos depoimentos da testemunhas ou de qualquer prova documental junta aos autos para sustentar o por si alegado.

Ora, na “motivação” constante da sentença recorrida foi neste particular apresentado, para além do que foi o depoimento da testemunha (…) [recuperador de créditos na exequente], designadamente na medida em que este  «Disse que, a livrança compreende juros desde 7 de novembro de 2012. O valor da venda do imóvel (7 nov 2012) de 9.538,78 foi abatido à divida e 5 pagamentos/amortizações feitas pelo avalista. O Banco reclamou a totalidade da divida na execução fiscal (16.014,37 capital). O capital corresponde ao montante de € 14.855,12», igualmente que, «Conjugados com tais depoimentos tiveram-se em consideração os factos aceites pelas partes nos respectivos articulados, bem como os documentos de fls. 4 verso a 14, 25 verso a 55, bem como o de fls. 13 dos autos de execução».

Não vislumbramos, assim, como com base em dados de interpretação subjectiva e pessoal por parte da Embargante/recorrente questionar o que foi a convicção expressa na sentença recorrida.

Na verdade, neste conspecto, não se compreende de todo como é que a Embargante/recorrente intenta ver evidenciado que houve um erro notório na apreciação da prova.

Isto porque nem sequer foram invocados em abono da sua pretensão quaisquer meios de prova…

Naturalmente que é por assim ser que não nos merece em nenhuma medida acolhimento a crítica feita neste particular.

Desde logo porque o controlo da matéria de facto tem por objeto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa perceção própria do material que lhe serve de base (arts. 604º, nº 3 e 607º, nº 5 do n.C.P.Civil).

A esta luz, importa sempre ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Senão vejamos: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico».[7]

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais.

Nesta conformidade – e como em qualquer atividade humana – existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável: o que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos – saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade – a qual não está ao alcance do tribunal ad quem.[8]

Donde se sancionar plenamente os meios de prova documentais e testemunhais credibilizados pela decisão recorrida, que o mesmo é dizer, bem andou, assim, o Exmo. Juiz de 1ª instância em integrar o dito facto constante do ponto “12)” no elenco dos factos “provados”, com a redacção que ao mesmo conferiu, opção esta que, por tais razões, se entende manter nos seus precisos termos.

O que tudo serve para dizer que por não se constatar qualquer erro de julgamento neste último particular, conclui-se, sem necessidade de maiores considerações, pela improcedência da pretensão da Embargante/recorrente quanto ao facto “provado” sob “12)”.

                                 *                   

4 –  FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa no presente recurso aferir e decidir do desacerto da decisão que julgou improcedentes os embargos, porquanto do preenchimento abusivo da livrança devia ter-se retirado necessariamente a invalidade do título, a qual igualmente decorria de não ser o mesmo determinável face ao respetivo pacto de preenchimento, acrescendo que da aplicação do abuso do direito se retirariam as mesmas conclusões.

Ao que é dado perceber, a grande linha de argumentação do Embargante/recorrente assenta no entendimento de que o alegado preenchimento abusivo da livrança invalida o título cambiário, que não pode produzir efeitos como livrança.

Sucede que a tal entendimento não se pode dar mínimo acolhimento.

Na verdade, perfilhamos quanto a este particular o entendimento de que o preenchimento de valor superior ao resultante do contrato não torna a livrança nula apenas havendo que reconduzi-la aos valores pela qual podia legitimamente ser preenchida, o que se enquadra e tem tutela na redução dos negócios jurídicos, nos termos do artigo 292º do C.Civil.

Este é o entendimento que vem sendo perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça, v.g. através da seguinte linha de raciocínio:

«A excepção do preenchimento abusivo não interfere na totalidade da dívida, confinando-se aos limites desse preenchimento. Por isso, se o subscritor inicial entregou a livrança em branco de quantia superior ao convencional, a livrança vale segundo a quantia inferior, aproveitando-se os actos jurídicos praticados.

Isto porque, no âmbito das relações imediatas, a obrigação cartular está sujeita ao regime comum das obrigações e, nos termos do artº 292º do CC, a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.»[9]

Como igualmente já foi sublinhado que «a livrança incompletamente preenchida não é nula, sendo anulável se, em violação do pacto de preenchimento, lhe foi inscrito um montante diverso do acordado, mantendo-se válida relativamente aos limites do preenchimento.»[10]

Donde, na feliz síntese de douto aresto do nosso mais alto Tribunal,

«I- Como se tem vindo a entender, de forma consensual, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

Para reforço desta afirmação, citemos mais um aresto deste Supremo Tribunal, desta feita, relatado pela Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, assim sumariado:

«Tendo o beneficiário respeitado qualitativamente o acordo de preenchimento, a inscrição, numa livrança subscrita em branco, de um montante superior ao devido à data do preenchimento não a inutiliza como titulo executivo» (Cfr. no texto a identificação de tal aresto).

II- Nesta, como nas demais decisões deste mais alto Tribunal, fez-se apelo ao disposto no artº 292º do Código Civil, por força da aplicação do vetusto princípio «utile per inutile non vitiatur» que ganhou especial ênfase no domínio jurídico-privado.

Segundo o saudoso Prof. Mota Pinto, «trata-se de uma “redução teleológica” no sentido de ser determinada pela necessidade de alcançar plenamente as finalidades visadas pela norma imperativa infringida».

III- «Redução teleológica» significa redução imposta pela finalidade ou escopo normativo (do grego, thelos = fim, finalidade) e este é o emergente do artº 10º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças ao visar unicamente, como se disse, impedir que um terceiro de boa-fé que recebe o título (por endosso) já preenchido se veja confrontado com a excepção de preenchimento abusivo, mas não regular o instituto quando o título ainda está nas relações imediatas e, portanto, sujeito às regras gerais do negócio jurídico, como doutamente se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal, acima citado.»

IV- De resto, também por razão de ordem pragmática e decorrente da natureza das coisas (ex natura rerum), a solução teria que ser esta, pois, sendo a diferença entre a quantia efectivamente devida e a quantia constante do título, meramente quantitativa e não qualitativa, um majus e não um aliud, a quantia em dívida se contém na que foi escrita nos títulos – o que não é refutado pelos Recorrentes – pelo que se impõe apenas a eliminação ope judicis dessa diferença para a obtenção da exactidão daquela que é, efectivamente, devida.»[11]

De referir que foi precisamente uma solução de redução do valor constante da livrança ajuizada que teve lugar na sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento da execução para cobrança desse valor reduzido, donde nada haver que censurar a uma tal opção e critério. 

Assente isto, vejamos agora do subsequentemente sustentado nas alegações recursivas nesta sede e para este efeito, a saber, que havia igualmente invalidade do título, por não ser o mesmo determinável face ao respetivo pacto de preenchimento.

Sendo certo que a Embargante/recorrente invocou em abono desta sua posição a tese de que «o pacto de preenchimento desta livrança constituiu um negócio jurídico sujeito ao princípio geral da boa fé, como bem nota a Sentença, mas outrossim tem de ser sujeito ao crivo da determinabilidade enunciado no citado artigo 280.º/1, do Código Civil», pelo que, entendendo que não o era, «tem de ser considerado nulo, não escrito – face a patente indeterminabilidade.»

Assim, e tanto quanto se percebe, está a sustentar a Embargante/recorrente serem transponíveis para o aval os motivos, normas e princípios que, relativamente a uma situação de fiança, presidiram à prolação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, de 23/01/2001.[12]

Mais uma vez – e releve-se o juízo antecipatório! – não assiste qualquer razão à Embargante/recorrente.

Na verdade, olvida seguramente a mesma que o entendimento prevalecente quanto a esse particular é o de que «diz o artº 280º, nº 1 do C. Civil que é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja… indeterminável. E o acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2001, de 23.1.2001 (DR I-A Série, de 8.3.2001) decidiu que é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.

Todavia, não se deve confundir o aval com a fiança, sendo ininvocável no caso vertente a doutrina do citado acórdão uniformizador, já que o regime da fiança é diferente do relativo ao aval. É preciso não perder de vista que o recorrente não foi demandado como fiador do negócio jurídico subjacente à livrança, mas como avalista da subscritora desta, como garante apenas da obrigação cambiária assumida pela subscritora, desencadeando o aval uma obrigação, independente e autónoma, de honrar o título cambiário, ainda que só caucione outro co-subscritor – princípio da independência do aval (artº 32º, aplicável ex vi artº 77º, ambos da LULL. Como refere Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, 1966, vol. III, pág. 195 e segs.), a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado, mas solidária, pelo que ele não goza do benefício da excussão prévia, mantendo-se a sua obrigação, nos termos do § 2º do artº 32º da LULL, mesmo no caso de a obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma, não se comunicando a nulidade intrínseca da obrigação avalizada à do avalista, assistindo ao avalista, se pagar o título, o direito de regresso contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude do título (artº 32º, § 3º da LULL).

A data do vencimento, o local do pagamento e o valor não constavam da livrança aquando da emissão dela e do aval, mas ficaram determinados com o completo preenchimento do título de crédito, sendo irrelevantes as relações extracartulares.

Como se escreveu no acórdão de 5.12.2006, no processo 2.522/06 (com relato do Cons. Urbano Dias), o regime da fiança é diferente do relativo ao aval, tendo aquela a ver com a obrigação principal, substantiva, dependente da respectiva causa, ao passo que o aval representa a obrigação cartular, nada tendo a ver com a relação subjacente, só se consolidando o aval no mundo dos negócios após o completo preenchimento do título em branco, momento em que se constitui como dívida cambiária perfeitamente determinada.

Naufraga a nulidade do aval por alegada indeterminabilidade do objecto, visto que do simples exame da livrança preenchida se comprova, sem necessidade de recurso a quaisquer elementos externos, qual o montante da responsabilidade do avalista.»[13]

Assim sendo, resta-nos apreciar a sub-questão do abuso do direito.

Argumentou-se quanto a tal pela seguinte forma na decisão recorrida:

«Por último, diremos que, foi invocado o abuso de direito como forma de extinção da execução.

Uma vez que, o abuso de direito é de conhecimento oficioso e foi expressamente invocado, importa apreciar, se o mesmo se verifica.

Dispõe o art.º 334 do C. Civil, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A concepção de abuso de direito adoptada no nosso ordenamento jurídico é objectiva, não sendo necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites ( vd. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, 4ª ed., vol. 1º, p. 298). Esta asserção não torna irrelevantes as considerações de índole subjectiva, as quais não devem ser alheias à ponderação do abuso da conduta daquele que exerce o seu direito.

O excesso cometido tem de ser manifesto e para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes têm de ponderar-se as concepções ético-jurídicas dominantes na comunidade envolvente. Quanto ao fim social e económico do direito, há que buscar os juízos de valor positivamente consagrados na lei. “Se para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para juízos de valor positivamente consagrados na própria lei “ ( vd Antunes Varela, das Obrigações em geral”, 6ª ed., vol. I, p. 516).

De entre as diversas tipologias de actos abusivos a que em causa se pode equacionar insere-se, como classifica Menezes Cordeiro, in, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral I, Tomo I, 2ª Edição, 2000, p. 265 “na última categoria de comportamentos abusivos, constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas. Três sub-hipóteses podem ser consideradas: - o exercício danoso inútil (…) – o dolo agit qui petit quod statim redditurus est: é contrário à boa fé exigir o que de seguida se deva restituir (…) – a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem: tal desproporcionalidade, ultrapassados certos limites é abusiva”.

Tal regime jurídico do abuso de direito é válido para o exercício do direito de acção ou qualquer outro direito processual, que se encontram sujeitos, aos limites impostos pela proibição de abuso de direito, como sustenta Pedro Albuquerque, in, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Atos Praticados no Processo, p. 67 e seguintes. No mesmo sentido Meneses Cordeiro, in, obra citada, p. 283, considera não se limitar o artigo 334º do Código Civil a abranger direitos subjectivos, compreendendo igualmente outras posições jurídicas, incluindo as permissões genéricas de atuação como a autonomia privada e o direito de acção.

Ora, face ao que resulta provado diremos que, a exequente demorou nove anos a proceder ao preenchimento da livrança que tinha na sua posse para ser preenchida aquando do incumprimento, pelo que, os juros incluídos na mesma de valor superior ao valor do capital, sempre seria abusivo peticioná-los e inclui-los no valor da livrança, pelo que, também por esta vertente teria tal pedido que ser reduzido ao montante do capital na data do incumprimento (pois a executada vinculou-se ao seu pagamento), bem como aos juros de mora à taxa legal de 4% desde 7 de novembro de 2012 (uma vez que os juros até essa data estão liquidados).»

A esta argumentação contrapõe a Embargante/recorrente o seguinte:

«Da aplicação do Abuso de Direito, retiraríamos as mesmas conclusões, s.m.o – bem assim em matéria de juros. Assim,

É inaceitável, s.m.o, que a exequente tenha demorado nove anos a proceder ao preenchimento da livrança que tinha na sua posse para ser preenchida aquando do incumprimento, pelo que, os juros incluídos na mesma de valor superior ao valor do capital, sempre seria abusivo peticioná-los e inclui-los no valor da livrança.

Seja como for: a questão de saber a quanto ascende o valor em dívida falece em face da questão prévia da verificação, no caso, do preenchimento abusivo e concomitante invalidade do título dado à execução.»

Salvo o devido respeito, nem se consegue inteiramente percecionar a linha de argumentação da Embargante/recorrente quanto a este particular, tendo em conta que esta questão já tinha sido suscitada na 1ª instância e a ela foi dada solução na sentença recorrida, sendo que nas alegações não se dissente verdadeiramente da linha de fundamentação constante da decisão de 1ª instância, ou, pelo menos, nada se contrapõe validamente relativamente ao entendimento e opção de reduzir o montante inscrito na livrança – quanto ao qual pode prosseguir a execução – ao capital na data do incumprimento, acrescido dos juros de mora à taxa legal de 4% desde 7 de novembro de 2012.

Sem embargo do vindo de dizer, temos que face aos dados de facto que subsistem apurados nos autos, designadamente ascender efetivamente o capital em divida ao montante de € 14.855,12, montante este determinado após os pagamentos/liquidações parciais que tiveram lugar, sendo o último deles operado em 7 de Novembro de 2012 [cf. factos “provados sob “12)” e “10)”, respetivamente], não vislumbramos como sustentar a verificação do abuso do direito quanto ao que foi deferido como o montante para cuja cobrança podem prosseguir os autos.

Dito de outra forma: o instituto do abuso do direito já operou na redução/mitigação do valor pelo qual se autorizou a prossecução da execução, e em termos que não merecem qualquer censura.

O que tudo serve para dizer que não se vislumbra possível tutela ou acolhimento para o que foi invocado nas alegações em referência!

            Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, improcede inapelavelmente o recurso.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – É inaplicável ao aval de uma livrança em branco posteriormente preenchida, a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2001, de 23.1.2001 (DR I-A Série, de 8.3.2001), segundo a qual é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.

II – Isto porque não são transponíveis para o aval as razões que determinaram o dito Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2001, relativo à fiança genérica de obrigações futuras.

III – Enquanto o título permanecer no domínio das relações imediatas, o preenchimento de uma livrança, pelo tomador, de valor superior ao resultante do contrato de preenchimento, não torna a livrança totalmente nula, aplicando-se-lhe as regras da redução dos negócios jurídicos contempladas no Código Civil.

                                                                       *

6 – DISPOSITIVO

            Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pela Embargante/recorrente.

                                                                       *

                                                                                   Coimbra, 8 de Maio de 2019

                                                 Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

                                        António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] De referir que já nesta instância de recurso, aquando do despacho de admissão do recurso, como “questão prévia”, foi decidido que improcedia o que havia sido suscitado/peticionado pela Exequente/recorrida nas suas contra-alegações, a saber, o indeferimento do recurso por falta de conclusões.
[3] Assim o acórdão do STJ de 14.01.2010, no proc. nº 2299/05.7TBMGR.C1.S1, com sumário disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., por todos, o acórdão do STJ de 23.05.2006, no proc. nº 06A1090, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Assim por AMÂNCIO FERREIRA, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª Edição, a págs. 57.
[6] Citámos agora ALBERTO DOS REIS, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, a págs. 143.
[7] Assim no acórdão do STJ de 11.12.2003, no proc. nº 03B3893, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[8] Neste sentido o acórdão do STJ de 23.04.2009, no proc. nº 09P0114, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
                                                                        
[9] Citámos agora o acórdão do STJ de 24.05.2005, no proc. nº 05A1347, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[10] Assim no acórdão do mesmo STJ de 20-05-2010, no proc. nº 11683/06 -8TBOER.A.L1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[11] Trata-se do acórdão do STJ de 29-11-2012, no proc. nº 10781/06.2YYPRT-B.P1.S1, também ele acessível em www.dgsi.pt/jstj. 
[12] Segundo o qual, recorde-se, é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.
[13] Cf. o acórdão do STJ de 06.03.2007, proferido no proc. nº 07A205; no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 31.03.2009, proferido no proc. nº 08B3815, ambos eles acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.