Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
260/07.6TBMLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO JESUS
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 268º, 320º, 324º, E 327º CPC
Sumário: I – Após a citação do réu, a instância deve manter-se imutável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, ressalvadas as modificações consignadas na lei (artº 268º CPC).

II – Este normativo consagra o princípio da estabilidade da instância, que é susceptível de ser afectado por virtude de uma modificação subjectiva, seja em consequência da substituição de alguma das partes primitivas, seja por via da intervenção de terceiros.

III – Sendo a intervenção de terceiros deduzida em articulado próprio, seguem-se a este os mesmos trâmites indicados para o incidente da intervenção principal espontânea requerida em articulado, e nessa conformidade o juiz, não obstante ter admitido o chamamento aquando da prolação do despacho a que alude o nº 1 do artº 327º CPC, poderá rejeitar a intervenção, nos termos do artº 324º, nº 1, e terá de ordenar a notificação das primitivas partes para os efeitos do mesmo artigo.

IV – Apresentado o articulado próprio do chamado, seja a sua intervenção activa ou seja passiva, deve ser indeferida caso o interveniente não esteja em nenhuma das condições do artº 320º CPC.

V – Não havendo motivo para indeferimento liminar, deve o juiz mandar notificar as partes primitivas.

VI – Perante a reacção das partes primitivas, o interveniente poderá vir a perder a qualidade de parte na causa e a ser excluído dela se vier a ser julgada procedente a oposição de qualquer delas ao seu ingresso na causa.

VII – É que o trânsito em julgado do despacho liminar que não tenha rejeitado liminarmente o incidente não obsta a que qualquer das partes se oponha ao mesmo pelas razões que deveriam ter determinado o seu indeferimento in limine.

VIII – Esta oposição e admissibilidade da intervenção do chamado devem ser apreciadas no despacho saneador, se o processo o comportar (artº 324º, nº 4, CPC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I--RELATÓRIO


                 

Na acção com processo ordinário nº 260/07.6TBMLD que A... move à B... Companhia de Seguros, S.A., foi proferida uma primeira decisão em 26/03/08, transitada em julgado, que admitiu a intervenção principal de C..., Lda, como associada do autor.

Posteriormente, outra decisão de 24/09/08, igualmente transitada em julgado, admitiu de novo a intervenção de C..., Lda, agora como oponente espontânea.

            No despacho saneador considerou-se ocorrer uma contradição entre as duas decisões, dando-se sem efeito a segunda delas, e consequentemente por não escritos os articulados subsequentes relacionados com essa oposição.

             

            É inconformada com esta decisão que a interveniente C..., Lda dela agravou concluindo da seguinte forma as alegações que apresentou:

[…………………………………..]

Não foram oferecidas contra - alegações.

No despacho de sustentação manteve-se o agravado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


ª

As conclusões da recorrente - balizas delimitadoras do objecto do recurso ( arts. 684º nº3 e 690º nº 1º do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os artigos por diante citados sem menção de origem) - consubstancia a seguinte questão:

 Se tendo sido admitida a intervenção por despacho proferido em cumprimento do disposto no nº 1 do art. 327º, vindo o chamado após ser citado a oferecer articulado próprio, nos termos conjugados dos artigos 327º, nº 3, e 324º o Tribunal a quo tinha de proferir nova decisão sobre a admissibilidade do incidente de intervenção provocada.

                                                                 ª


II— FUNDAMENTAÇÃO


DE FACTO

Os factos a ter em conta no presente recurso são os seguintes:

1. O autor A...intentou acção declarativa de condenação contra a seguradora B... peticionando o valor de 51.132,78€, para ressarcimento de dano contratual e extracontratual decorrente de furto de veículo automóvel de que era locatário, com base no contrato de seguro com a apólice (...).

2. Por chamamento daquele autor, justificando pretender assegurar a sua legitimidade, em 26/03/08, foi proferido despacho, transitado em julgado, que admitiu a intervenção de C..., Lda, como associada do autor.

3. Citada a C..., Lda, veio esta em 8/07/08, em articulado próprio, opor-se ao chamamento como associada do autor por considerar serem contrapostos os seus interesses aos do autor.

4. Este articulado próprio não foi objecto de apreciação por parte do Julgador.

5. Entretanto, em 24/07/08, a C..., Lda, alegando a qualidade de proprietária e locadora do veículo, deduziu incidente de oposição espontânea pretendendo fazer valer na acção um direito que pelo menos parcialmente e em grande medida é incompatível com o que é exercido pelo autor A....

6. Na sequência de tal pedido foi proferida em 24/09/08, igualmente transitada em julgado, decisão que admitiu de novo a intervenção de C..., Lda, agora como oponente espontânea, com a posição de parte com os direitos e responsabilidades inerentes.

7. Posteriormente, no despacho saneador considerou-se ocorrer uma contradição entre aquelas duas decisões, deu-se sem efeito a de 24/09/08 que admitira a intervenção da C..., Lda como oponente espontânea, e consequentemente por não escritos os articulados subsequentes relacionados com essa oposição.


ª

DE DIREITO

Como se disse, a questão suscitada neste recurso reside em saber se tendo sido admitida a intervenção por despacho proferido em cumprimento do disposto no nº 1 do art. 327º, vindo o chamado após ser citado oferecer articulado próprio, nos termos conjugados dos artigos 327º, nº 3, e 324º o Tribunal a quo tinha de proferir nova decisão sobre a admissibilidade do incidente de intervenção provocada.

Ora, após a citação do réu, a instância deve manter-se imutável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, ressalvadas as modificações consignadas na lei (art. 268º).

Este normativo consagra o princípio da estabilidade da instância, que é susceptível de ser afectado por virtude de uma modificação subjectiva, seja em consequência da substituição de alguma das partes primitivas, seja por via da intervenção de terceiros (cfr. art. 270º).

Esta última modificação adjectiva-se através de um incidente processual típico, a Intervenção de Terceiros (arts 320º a 359º).

No quadro geral dos incidentes de intervenção de terceiros integram-se a intervenção principal, a intervenção acessória e a oposição.

No primeiro tipo, ou seja, na intervenção principal, o que importa ao tema do recurso, ela integra os casos em que o terceiro se associa (intervenção principal espontânea), ou é chamado a associar-se (intervenção principal provocada), a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais (cfr. o preâmbulo do DL 329-A/95).

O interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu (art. 321º).

A intervenção principal, espontânea ou provocada, não é, naturalmente, admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha. Princípio em que se alicerça a interveniente no articulado próprio que apresentou após citada.

Sobre o âmbito da intervenção principal provocada, rege o art. 325º do CPC, do seguinte teor:

1. Qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

2. Nos casos previstos no art. 31º-B, pode ainda o autor chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido.

3. O autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar”.

Prevê o nº1 deste artigo o chamamento a juízo do interessado com direito a intervir na causa e estatui que qualquer das partes primitivas pode provocá-lo, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

Assim como o autor pode chamar a intervir alguém, seja na posição de autor, seja na posição de réu, também o réu pode chamar a intervir alguém em posição paralela à sua ou à do autor.

Começa este incidente com um requerimento apresentado pela parte que pretenda chamar à causa principal determinada pessoa que, nos termos do art. 320º, pudesse intervir espontaneamente.

O requerente da intervenção deve alegar e justificar, sem possibilidade de apresentação de prova, a legitimidade do chamando e que ele está, face à causa principal, em alguma das situações previstas no art. 320º.

Como a intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual pretende associar-se tenham interesse igual na causa, não é de admitir a intervenção apenas destinada a prevenir a hipótese de a parte primitiva não ser titular do interesse invocado[1].

Alinhados os princípios normativos, vejamos, então, o caso concreto.

O autor A...intentou a acção declarativa de condenação contra a seguradora B... peticionando uma quantia para ressarcimento de dano contratual e extracontratual decorrente de furto de veículo automóvel de que era locatário, e a ré seguradora, com base no contrato de seguro com a apólice (...).

O mesmo autor chamou a juízo a interveniente/apelante C... justificando pretender assegurar a sua legitimidade para os termos da acção.

Ouvida a ré seguradora (nº 2 do art 326º) não deduziu oposição, e decidiu-se por justificada a requerida intervenção ordenando-se a citação da interveniente /apelante. Trata-se da primeira decisão de 26/03/08.

Citada nos termos do disposto no artigo 327º, nº 1, a apelante apresentou articulado próprio no qual expôs razões para a inadmissibilidade da sua intervenção como associada do autor/apelado, porquanto são contrapostos os seus interesses aos daquele[2], tendo, consequentemente, requerido que a mesma não fosse admitida.

Este articulado próprio não foi objecto de apreciação por parte do Julgador e o processo prosseguiu seus termos.

 Surge, então, a interveniente, em 24/07/08, em consonância com a posição assumida naquele articulado, a deduzir incidente de oposição espontânea alegando pretender fazer valer na acção um direito incompatível com o que é exercido pelo autor A..., pedindo a condenação da ré B... a pagar-lhe 37.973,72€ a título de indemnização pelo furto do veículo, ou, subsidiariamente, o autor a pagar-lhe 30.979,87€ se se provar não ser aquela ré a responsável.

É na sequência deste pedido que foi proferida em 24/09/08, igualmente transitada em julgado, a decisão que admitiu de novo a intervenção da interveniente/apelante C..., Lda, agora como oponente espontânea, com a posição de parte com os direitos e responsabilidades inerentes.

Estaremos, na realidade, perante duas decisões finais contraditórias de dois diferentes incidentes? Cremos que não, que assiste razão à apelante, e passamos a demonstrar.

Sobre os termos em que se processa a intervenção provocada rege o artigo 327°, dispondo o nº 3 que após a citação e a apresentação pelo chamado do seu articulado, a forma de intervenção que aqui nos interessa, observa-se “com as necessárias adaptações, o disposto para a intervenção espontânea”.

Assim, sendo a intervenção deduzida em articulado próprio seguem-se a este os mesmos trâmites indicados para o incidente de intervenção principal espontânea requerida em articulado, e nessa conformidade o juiz não obstante ter admitido o chamamento aquando da prolação do despacho a que alude o nº 1 do art. 327º, poderá rejeitar a intervenção nos termos do artigo 324º, nº 1, e terá de ordenar a notificação das primitivas partes para os efeitos do mesmo artigo[3].

Então, apresentado o articulado próprio do chamado, seja a sua intervenção activa ou seja passiva, deve ser indeferida caso o interveniente não esteja em nenhuma das condições do artigo 320º. A falta de “interesse igual ao do autor ou do réu” importa ilegitimidade do interveniente; não poder ele “coligar-se com o autor”importa ilegal coligação.”[4].

Mas não havendo motivo para indeferimento liminar, deve o juiz mandar notificar as partes primitivas. Explica Eurico Lopes Cardoso, a págs. 219, que essa audição, ainda que tenha sido alguma delas a requerer o chamamento ou tenha sido ouvida e não se tenha oposto, se justifica porque “…só a dedução da pretensão do interveniente dará elementos seguros para se verificar a ilegitimidade da intervenção, bem podendo suceder que o interveniente seja chamado à causa para um fim e aproveite o chamamento para outro”.

E, perante a reacção das partes primitivas, o interveniente poderá vir a perder a qualidade de parte na causa e a ser excluído dela se vier a ser julgada procedente a oposição de qualquer delas ao seu ingresso na causa. É que o trânsito em julgado do despacho liminar que não tenha rejeitado liminarmente o incidente não obsta a que qualquer das partes se oponha ao mesmo pelas razões que deveriam ter determinado o seu indeferimento in limine.[5]

Esta oposição e admissibilidade da intervenção do chamado devem ser apreciadas no despacho saneador, se o processo o comportar como é o caso (nº 4 do art. 324º).

Tal apreciação deverá ser feita mesmo que as partes primitivas não tenham deduzido oposição, porque, por um lado já vimos que o trânsito do despacho liminar não resolve as questões que podiam justificar a rejeição, e por outro lado o juiz tem de conhecer oficiosamente tanto da legitimidade do interveniente como da sua ilegal coligação nos termos dos arts. 494º, als. e) e f), e 495º [6].

Aqui chegados, feito este excurso pelos procedimentos a observar quando apresentado articulado próprio pelo interveniente, evidencia-se, com excepção da apreciação liminar de 26/03/08, a total inobservância dos mesmos nos autos. O despacho liminar a que alude o nº 1 do art. 327º proferido em 26/03/08 não pode ser considerado como a decisão final do incidente tal como foi interpretado pela decisão recorrida.

Sendo assim, não se pode considerar haver duas decisões finais contraditórias.

Em boa verdade, neste momento os autos ainda aguardam que seja proferida a decisão final referente ao incidente de intervenção principal provocada.

 Haverá que conhecer no despacho saneador deste incidente, o que não aconteceu como ressalta do teor do mesmo certificado de fls. 106 a 111. Impõe-se, assim, ao Tribunal a quo, a prolação de decisão sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade da intervenção principal provocada suscitada, em face do alegado pela interveniente, ora recorrente, no seu articulado próprio.      

Concluindo, assiste razão à agravante, procedem as conclusões do recurso.

                       


III — DECISÃO

Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido que considerando existir contradição entre as decisões de 26/03/08 e 24/09/08 deu sem efeito esta última que admitira a apelante como oponente espontânea e por não escritos os articulados subsequentes com esta oposição relacionados, e, consequentemente, ordenar o prosseguimento do incidente de intervenção principal provocada suscitado pelo autor com a notificação das partes primitivas para responderem ao articulado próprio apresentado pela chamada [7] e posterior prolação de admissibilidade ou inadmissibilidade da intervenção.

Sem custas.

[1] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 1999., pags. 102 e segs.
[2] Em breve síntese, alegou ser proprietária do veículo automóvel em causa da marca ..., que foi objecto do contrato de aluguer nº 200059 celebrado com o autor em 7/05/02, e que do contrato de seguro por sua vez por este celebrado com a ré B..., com a apólice (...), era ela a beneficiária como locadora. No termo do contrato de aluguer o autor A...não restituiu o aludido veículo à interveniente/apelante nem procedeu à sua aquisição como em alternativa se previa nesse contrato, tendo mesmo já sido condenado por sentença transitada em julgado proferida na acção ordinária nº 3260/06.0TVLB, que correu termos pela 1ª Secção da 2ª Vara Cível de Lisboa, a restituir o mencionado veículo à interveniente. Considera, por isso, escandaloso que o autor nesta acção venha exigir para si o valor do veículo do qual apenas foi mero detentor enquanto o contrato de aluguer vigorou, pretendendo apropriar-se de um valor a que não tem direito, de modo a que a interveniente não só ficaria sem o veículo como sem o valor do mesmo.
[3] A conjugação da disciplina destas duas modalidade da intervenção principal é explicada no domínio da anterior redacção, mas ainda com inegável interesse e que por isso aqui se segue de perto, por Eurico Lopes Cardoso, no seu Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 2ª edição, pág. 219, de que a apelante se socorre e cita.
[4] Eurico Lopes Cardoso, ob.cit., pág. 201.
[5] No mesmo sentido se pronuncia Salvador da Costa, na ob. cit., a págs 113.
[6] Cfr. Lopes Cardoso, na ob. cit., pág. 207.
[7] Pressupõe-se que não o tenham sido pois que o recurso subiu em separado e as peças enviadas bem como o conteúdo das decisões proferidas apontam nesse sentido.