Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA PILAR DE OLIVEIRA | ||
Descritores: | FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO FALSIFICAÇÃO INTELECTUAL FALSAS DECLARAÇÕES PERANTE AUTORIDADE PÚBLICA | ||
Data do Acordão: | 03/18/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU (INSTÂNCIA CENTRAL CRIMINAL - J2) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 356.º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CP | ||
Sumário: | O segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” apenas inclui a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, e não a mera declaração de factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório No processo de instrução 768/12.1TAVIS.C1 da Comarca de Viseu, Instância Central de Instrução Criminal foi proferida, em 6 de Maio de 2014, a seguinte decisão instrutória: Declaro encerrada a Instrução. Mantém-se a competência do tribunal, a legitimidade dos sujeitos processuais, inexistindo quaisquer nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa. * No âmbito dos presentes autos, no termo do inquérito, e por ter entendido não se colherem indícios suficientes da prática pelos arguidos A... , B... e C... dos crimes da prática do crime de abuso de confiança que lhes vinha imputado pela assistente na queixa apresentada nos autos, foi proferido pelo Ministério Público, no termo do inquérito, despacho de arquivamento dos autos, nos termos e com os fundamento de fls. 132 e ss., que se dão por integralmente reproduzidos. Inconformada com o arquivamento dos autos, veio a assistente D... , requerer a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia dos arguido pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido nos termos do artigo 205º do Código Penal, nos termos constantes do requerimento de abertura de instrução de fls. 96 e ss.. No âmbito do processo n.º 617/12.0TAVIS (apenso aos presentes autos), foi, no termo do inquérito proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público relativamente à queixa apresentada pela assistente A... contra as arguidas D... e E... , por se considerar não resultarem indícios suficientes da prática, pelas arguidas, do crime imputado. Inconformada com o despacho de arquivamento dos autos, veio a assistente, a fls. 201 e ss. dos autos, requerer a abertura de instrução, nos termos e com os fundamentos constantes do RAI, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia das arguidas D... e E... pela prática, em co-autoria, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º do código Penal e de um crime de falsas declarações, previsto e punido nos termos do artigo 360º do código Penal e 97º do Código do Notariado, nos termos e com os fundamentos constantes do RAI, que se dão por integralmente reproduzidos.
Foi declarada aberta a instrução. Procedeu-se à inquirição da testemunha G.... Procedeu-se à realização de debate instrutório. * A instrução destina-se, tal como o estabelece o artigo 286º do Código de Processo Penal, à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. O artigo 308º do Código de Processo Penal estabelece, no seu n.º 1 que, se até ao encerramento de instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. Consideram-se suficientes os indícios, nos termos do disposto no artigo 283º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Quanto a este conceito, escreve Figueiredo Dias que, os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição, acrescentando este autor que, logo se compreende que a falta delas, “provas”, não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova tem que ser sempre valorada em função do arguido. Pugna a assistente A... pela prolação de despacho de pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal. De acordo com o disposto no artigo 205º n.º 1 do Código Penal, quem, ilegitimamente, se apropriar de coisa móvel que lhe foi entregue por título não translativo de propriedade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. São elementos típicos deste tipo de crime a apropriação ilegítima, de uma coisa móvel, entregue ao agente por título não translativo de propriedade. Apropriar-se é fazer sua coisa alheia. Na apropriação ilegítima, esta sucede à posse ou detenção legítimas, pois que, tal posse ou detenção têm origem numa entrega válida ao agente da coisa, passando este a detê-la de forma lícita a título precário ou temporário. Como referem Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal Anotado, II vol., pág. 686, de início, o agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus. Deixa então de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não a restituir[1], ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer. A entrega será aquela que, não implicando transferência da propriedade, não justifique a apropriação, sendo entregue com a constituição de uma obrigação de afectação a um uso ou fim determinado, ou com a constituição de obrigação de restituição. A entrega terá que ser, assim, válida, ou seja, decorrente de razão justificada, terá que decorrer de acto do seu proprietário, de detentor legítimo ou de terceiro obrigado à entrega, com a obrigação de a restituir. A consumação do crime dá-se com a apropriação, isto é, com a inversão do título da posse, situação que ocorre quando, estando a coisa em causa na posse ou na detenção do agente por modo legítimo, embora a título não translativo de propriedade, ele se apropria do mesmo actuando como seu dono[2], ou seja, quando o agente passa de possuidor legítimo em nome alheio a possuidor ilegítimo em nome próprio. A apropriação tem que ser traduzida por actos objectivos reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como sua, designadamente pela não entrega injustificada da coisa, quando solicitada tal entrega. Alega a assistente D... que, no dia 18 de Fevereiro de 2012 faleceu K..., no estado de casado em primeiras e únicas núpcias com a arguida A... , tendo o K... falecido sem deixar testamento e não fez qualquer doação em vida, tendo-lhe sucedido como herdeiros A... , B... , D... , E... , F... e B... , permanecendo a herança deixada por óbito de K... ilíquida e indivisa; que à data da morte de K... existiam na Caixa Geral de Depósitos as contas bancárias com os números 0035 0930073962220, 0742006038820, 0930073962500 e 0742006038000, nas quais se encontrava depositada a quantia total de € 93.326,00; que no dia 22 de Fevereiro de 2012, a arguida A... , acompanhada pelo arguidos B... e C... , dirigiu-se à agência de Viseu da Caixa Geral de Depósitos e transferiu todo o dinheiro existente nas referidas contas para uma conta que abriu em seu nome com o número 930152372300, tendo, nessa mesa data, efectuado nova transferência para uma outra conta no valor de 90.000,00€; que no dia 28 de Março de 2012, foi levantada a quantia de € 2.800,00 da nova conta, ficando esta apenas com € 536,00; no dia 28 de Março de 2012, foi reposta na conta n.º 930152372300 a quantia de € 67.500,00 e no imediato foi levantada a quantia de € 10.000,00, seguindo-se mais levantamentos no montante de € 5.000,00, no dia 2 de Abril, de € 10.000,00 no dia 3 de Abril, de € 5.000,00 no dia 4 de Abril, de € 10,000,00 no dia 5 de Abril e de € 10.000,00 no dia 9 de Abril de 2012, no total de € 50.000,00, alegando que tais levantamentos foram feitos em parcelas inferiores a € 10.000,00 para não serem justificados. Mais refere a assistente que em 8 de Maio de 2012, a arguida A... apenas tinha nas suas contas as quantias de € 18.039,00 à ordem e € 22.50,00 a prazo, não lhe sendo conhecidas outras contas bancárias, havendo suspeitas de que o dinheiro em falta tivesse ficado na posse de B... e C... , sem que fosse sua intenção entrega-lo à herança. No termo do inquérito concluiu o ministério Público pela falta de indiciação dos elementos típicos do crime imputado aos arguidos pela assistente D... , considerando que, da conjugação de todos os elementos de prova que constam dos autos não resulta que os arguidos, designadamente A... tenham agido com intenção de se apropriar das quantias monetárias depositadas nas aludidas contas bancárias, até porque, na prática, pertencia à arguida A... , na medida em que esta era co-titular das contas bancárias, pelo que falece um dos elementos do tipo de crime em apreciação. Da prova colhida nos autos em sede de inquérito, não resulta, ao contrário do alegado pela assistente D... do RAI, a manifesta e inquestionável intenção dos arguidos em se apropriarem do dinheiro pertencente à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de K... , pois que os depoimentos que referem que não era intenção dos arguidos restituírem tais quantias resultam da queixosa, da sua irmã E... e dos maridos destas, sendo que os arguidos negaram tal intenção. A falta de intenção, por banda da arguida A... , em se apropriar de tais quantias, resulta indiciada, desde logo em face do requerimento por esta apresentado, que deu origem ao processo de inventário n.º 1569/12.2TBVIS, a correr termos do 3º Juízo Cível deste Tribunal, no qual figura a arguida A... como cabeça de casal, cargo que lhe cabe por ser cônjuge sobreviva (artigo 2080º, n.º 1, al. a) do Código Civil), e como tal, cabendo-lhe administrar a herança nos termos previstos no artigo 2079º e 2087º do Código Civil, tendo a arguida, aquela qualidade de cabeça de casal, na relação de bens que apresentou nos identificados autos, relacionado as quantias monetárias em questão, como fazendo parte do acervo hereditário, tal como resulta de fls. 341 a 379. Ademais, importa ainda referir que, da aludida quantia de € 93.326,00, por a arguida A... ser cônjuge e em face do regime de bens, atento o disposto no artigo 1724º ou 1732º do Código Civil, em abstrato, metade desse valor cabia-lhe por direito, por ser cônjuge meeira, fazendo assim parte da sua meação, não entrando metade na partilha dos demais herdeiros. Dos autos não se mostra ainda possível concluir que as quantias monetárias a cujos levantamentos se procedeu tenham sido entregues aos arguidos B... e C... , por falta de indiciação nesse sentido, uma vez que as quantias foram levantadas pela arguida A... , sendo ainda que tais valores irão entrar na partilha a realizar, não tenso sido determinado qual o valor que cabe a cada herdeiro, valor esse que pode ser preenchido com outros bens pertencentes da herança, razão pela qual, e fazendo as quantias monetárias em causa parte da herança, juntamente com os demais bens, não é possível falar em abuso de confiança, sendo que, da parte que pertence à arguida A... como meeira, que é sua, a mesma pode dispor dela livremente, entregando-a a quem bem entender. Pelo exposto, e tal como se concluiu no termo do inquérito, dos autos não resultam indícios suficientes da prática pelos arguidos A... , B... e C... da prática do crime de abuso de confiança, previsto pelo artigo 205º do Código Penal. * Relativamente ao crime de Falsas declarações, imputado pela assistente no requerimento de abertura de instrução às arguidas D... e E... , importa referir o seguinte: Através da leitura do artigo 97º do Código do notariado resulta, após interpretação, que quem prestar falsas declarações perante notário é punido com a pena prevista para o crime de falsidade de declarações perante notário. Ou seja, não se faz a remissão para os elementos típicos do crime de falsidade de testemunho, mas tão só para a sua moldura penal, quer do n.º 1 quer do n.º 3, caso tenha existido a prévia advertência, razão pela qual, para a verificação do tipo de crime previsto pelo artigo 97º do Código do Notariado, não tem sequer de se proceder à análise dos elementos típicos do artigo 360º do Código Penal, mas apenas para os elementos do artigo 97º do Código do Notariado, sendo esta norma, e salvo o sempre devido respeito por opinião em contrário, a norma incriminadora, que remete, a sua punição e tão só esta, para o crime previsto pelo artigo 359º ou 360º do Código Penal, daí ser irrelevante, para efeito do preenchimento do tipo de crime em causa, a intervenção na qualidade de outorgantes, declarantes ou testemunhas, sendo apenas de exigir que tais pessoas, perante notário, tenham prestado declarações e afirmações que sabiam serem falsas e daí decorrer o prejuízo para terceiros, que se indicia nos presentes autos, em face dos elementos de prova indiciária. Questão diferente é a da interpretação da norma punitiva para a qual o artigo 97º do Código do Notariado remete, pois que do catálogo dos crimes previstos no Código Penal, inexiste qualquer norma que puna expressamente a falsidade de declarações perante oficial público, tal como resulta da leitura do artigo 360º do Código Penal, bem como do artigo 259º do citado diploma legal, daqui podendo efectivamente decorrerem dificuldades interpretativas quanto à concreta norma punitiva, e que poderão levar, em situações idênticas, à aplicação, por remissão do artigo 97º do Código do Notariado, de punições distintas, o que vai contra o princípio da legalidade e o princípio da igualdade. O artigo 97º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, que contém a previsão de um tipo legal de crime autónomo que remete para as penas da falsidade de testemunho indicadas no artigo 360.°, n.° 1, do Código Penal, tem o seguinte teor: “Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura” (sublinhado nosso). É, assim, elemento do tipo, o “prejuízo de outrem”, de tal modo que, não havendo nem podendo haver prejuízo causado pelas falsas declarações, estas nem sequer são ilícitas. As meras falsas declarações (como as previstas no art. 359.º, n.º 2, do Código Penal, quanto à identificação do arguido) são punidas quer haja ou não prejuízo para terceiros, pois aí tem-se em vista, apenas, a “realização da justiça”. Já as falsas declarações perante notário ou conservador consistem ou visam uma forma de aquisição de direitos. Numa tal situação, em que as falsas declarações são, efectivamente, um meio através do qual se causa um real e efectivo prejuízo a terceiro, justifica-se que tal prejuízo de terceiro seja elemento do tipo. Daí resulta a diferença que permitiria a autonomização do crime do artigo 97º, n.º 2 do Código do Notariado em relação aos tipos legais definidos nos artigos 359º e 360º do C. Penal. Resta saber qual o tipo de crime a que se refere ou para cuja punição remete o artigo 97º do Código do Notariado quando alude ao “crime de falsas declarações perante oficial público”. Há jurisprudência que defende que tal conduta, não obstante advertidos pelo notário nos termos do artigo 97º do Código do Notariado, acabam por prestar declarações que sabiam não corresponderem à realidade, não integrará o crime previsto e punido pelos artigos 359º n.ºs 1 e 2, porquanto os outorgantes e intervenientes nessa escritura não prestaram tais declarações na qualidade de partes, de assistente ou de partes civis em processo penal ou na qualidade de arguidos sobre a sua identidade ou antecedentes criminais, nem foram ajuramentados. Assim, e com a alteração que deu origem à actual redacção do artigo 97º do Código do Notariado, defendia-se que essa conduta não seria susceptível de integrar qualquer tipo legal de crime. Há ainda quem defenda que as falsas declarações podem integrar, em abstracto, a prática de um crime de falsas declarações previsto e punido nos termos dos artigos 97º do Código Notariado e artigo 360°, n° 1, do Código Penal, por ser essa a interpretação quer com recurso ao elemento sistemático, quer quanto ao elemento histórico. Há também quem defenda que tal actuação configura a prática de um crime de falsificação (ideológica de documentos), prevista e punida nos termos do artigo 256º do Código Penal. Importa ainda referir que a mesma actuação imputada às arguidas não as poderá fazer incorrer, em concurso efectivo de infracções na prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.º 1, al. d) do Código Penal e na prática de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 360º do Código Penal e artigo 83º, n.º 2 e 97º do Código do Notariado Pese embora o nosso entendimento, e não ignorando a flutuação jurisprudencial nesta matéria, e que por nós tem sido perfilhado em várias decisões, que o artigo 97º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, contém a previsão de um tipo legal de crime autónomo que remete para as penas da falsidade de testemunho previstas no artigo 360°, n.° 1 do Código Penal, somos de admitir, pela bondade dos fundamentos aduzidos no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012 e pelos fundamentos supra expostos, que a norma incriminadora não é certa, uma vez que não remete para um tipo de crime específico. * Dos autos, não resultaram indícios que permitissem concluir de forma suficiente pela verificação dos elementos típicos dos crimes imputados aos arguidos, os elementos constantes dos autos não se mostram suficientes, a nosso ver, para alicerçar uma acusação ou, um despacho de pronúncia, sendo mais provável, em sede de julgamento uma absolvição do que uma condenação dos arguidos quanto aos factos constantes dos requerimentos de abertura de instrução. Os elementos são frágeis e pouco consistentes e não se mostram suficientes para, em sede de julgamento, alicerçar uma condenação, pelo que se decide pela não pronúncia dos arguidos A... , B... e C... , assim se determinando o oportuno arquivamento dos autos nesta parte, nos termos do disposto no artigo 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal. * Pela instrução é devida taxa de justiça, da responsabilidade da assistente A... , a qual se fixa em duas UC e da responsabilidade da assistente D... , a qual se fixa em três UC’s. Notifique.
Inconformada parcialmente com a decisão instrutória de não pronúncia, dele veio recorrer a assistente A... , condensando a respectiva motivação nas seguintes conclusões: A. Após encerrado o Inquérito veio o Ministério Público determinar o arquivamento dos autos, e por não se conformar com a decisão de arquivamento proferida, veio a ofendida A... , também constituída Assistente, requerer a abertura de instrução, requerendo a pronúncia das arguidas E... e D... , por fortes e seguros indícios existentes de as mesmas terem cometido, em autoria e comparticipação, um crime de falsificação de documento, p. e p. na alínea d) do n.º 1 do art.º 256.º do Código Penal e um crime de falsas declarações p. e p. no artigo 360.º n.º 1 do C.P. e artigo 83.º n.º 2 e 97.º do Código do Notariado. Dos Factos B. Em Fevereiro de 2012 a arguida D... e a arguida E... compareceram na conservatória do Registo Civil de Viseu. C. E no âmbito de Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros, a arguida D... declarou perante a senhora oficial adjunta da conservadora do Registo Civil de Viseu que a sua mãe e o seu irmão mais velho não tinham disponibilidade para assumir o cargo de cabeça de casal, declarando ser a arguida D... a cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de K... , até por tera consentimento de todos os herdeiros. D. A arguida D... não só bem sabia que tais factos eram falsos (Já que nem a mãe, nem o irmão mais velho haviam manifestado qualquer indisponibilidade) como bem sabia que não era ela a cabeça de casal nem tinha o consentimento de todos os herdeiros para assumir tal cargo. E. Ademais, efetuou mesmo declarações em tal qualidade na dita Escritura de Habilitação de Herdeiros. F. A arguida declarou perante Oficial Público e fez, por isso, constar de Escritura Pública (documento autêntico) a existência de um facto - a arguida D... reunir as condições legais para ser cabeça de casal - que bem sabiam que não correspondia à verdade. G. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente ao outorgar na escritura pública nos termos supra referidos, o que fez com vista a criar um documento a que fosse atribuída fé pública, sabendo que o que declarava e fazia constar no mesmo era juridicamente relevante e não correspondia à verdade e quis fazer constar desse documento esse facto falso. H. A arguida sabia que, dessa forma, obtinham para si um benefício ilegítimo a que não tinha direito traduzido na nomeação da arguida D... como cabeça de casal da herança, facto com relevância jurídica, e inscrito em documento que produziu uma alteração no mundo do Direito, tendo passado a ser a arguida D... durante algum tempo, a legal administradora da herança e de todos os bens que integram o acervo hereditário. I. Impossibilitando ainda que a pessoa com direito legal de ocupar tal cargo o pudesse ter de imediato feito e pudesse ter passado a assumir desde logo a administração dos bens da herança, nomeadamente junto de Bancos e das repartições de finanças e de registo predial. J. A arguida tinha assim consciência que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, não obstante, agiu livre e conscientemente, tendo a sua vontade determinada para a prossecução da conduta acima descrita. K. A arguida prestou declarações e afirmações que sabiam serem falsas, decorrendo daí prejuízo para terceiros, no entanto, não se coibiu de informar e declarar perante a Oficial da conservatória do Registo Civil de Viseu que por acordo, inexistente, de todos os herdeiros, seria a arguida D... o cabeça de casal. L. Ora, mediante um juízo de interpretação, quer com recurso ao elemento sistemático, quer com recurso ao elemento histórico, rejeitase a consideração de base do supra referido Despacho de Não Pronúncia, deve considerar-se que as falsas declarações prestadas, in casu, integram um crime de falsas declarações p. e p. nos termos dos artigos 97.º do Código do Notariado e 360.º n.º 1 do Código Penal. M. Como deve também considerar-se conforme à constituição a norma incriminadora constante do artº 97º do Código do Notariado. N. De facto tendo a primeira formulação da norma incrlrntnatórla surgido na versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto - Lei n.º 47619, de 31 de Março de 1967 - logo, um diploma anterior à constituição de 1976 - o vício de constitucionalidade orgânica estará afastado, desde que possa ser convincentemente alegada uma linha de continuidade na evolução legislativa posterior, uma correspondência substancial do conteúdo regulador da disposição originária com o das normas resultantes das alterações posteriores. O. Efetivamente, jurisprudência existe neste sentido (cf. por exemplo, o Acórdão n.º 114/2008). P. Esta questão foi já apreciada e desenvolvida no Acórdão n.º 340/2005, que, considerando não inovatório o regime do artigo 97.º do Código do Notariado, decidiu, em aplicação daquela orientação, não julgar organicamente inconstitucional a norma em causa. Q. O mencionado aresto começou por comparar as pequenas diferenças de redação entre o artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado e o atual artigo 97.º do mesmo diploma, no que concerne à fixação dos elementos de incriminação, tendo concluído que essas alterações «não se afiguram relevantes, parecendo resultar de mera alteração de estilo sem aptidão para consubstanciar uma modificação do conteúdo da norma que no preceito se contém». R. Pelo que dessas diferenças - todas, praticamente, atinentes às formas verbais ou aos referentes terminológicos utilizados - não resulta uma alteração do comportamento punido, sendo exatamente o mesmo, em todos os elementos constitutivos, o tipo de conduta que se incrimina. S. Mas as duas normas também divergem no que diz respeito à determinação da pena aplicável à conduta nelas tipificadas. Embora ambas se sirvam de uma técnica remissiva, para outra norma sancionadora, o artigo 107.º fá-lo para as "penas aplicáveis ao crime de falsidade", ao passo que o artigo 97.º prescreve que os agentes incorrem "nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público". T. Não obstante, em apreciação desta alteração, também do ponto de vista do seu alcance inovatório, o Acórdão n. º 340/2005 relacionou-a pertinentemente com mudanças de sistematização e de enquadramento normativos, no âmbito do Código Penal, tal como refere. (Cf. Acórdão n.º 340/2005). U. Para além do crime de falsas declarações, veio a ora Requerente denunciar as arguidas pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto no art. 256.º, do Código Penal, pune com pena de prisão até três anos ou com pena de multa: "1 - quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime (...) d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante (...)." V. O artigo 255.º do Código Penal define documento como "a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.” W. O artigo 256.º n.º 1 do Código Penal indica como elemento do tipo subjetivo, a intenção por parte do agente de “causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”. X. Sendo que constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se alcance através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado. Y. Deste modo, o crime de falsificação de documentos visa proteger como bem jurídico a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico. Z. A arguida agindo livre, voluntária e conscientemente ao outorgar na escritura pública nos termos supra referidos, o que fez com vista a criar um documento a que fosse atribuída fé pública, sabendo que o que declarava e fazia constar no mesmo era juridicamente relevante e não correspondia à verdade, logrando assim constituir a arguida D... na qualidade de cabeça de casal da herança utquroa e indivisa aberta pelo óbito de K... , de modo a permitir que esta pudesse movimentar as contas bancárias da herança e administrar os demais bens móveis e imóveis da mesma. AA. Bem como por forma a impossibilitar que quer a ora Requerente, na qualidade de esposa do falecido, ou o seu irmão mais velho, na qualidade de herdeiro, pudessem assumir o cargo de cabeça de casal. BB. E tanto assim é que a arguida D... , fazendo uso da qualidade de cabeça de casal que tal escritura lhe conferiu, praticou atos junto de contas bancárias pertencentes à herança na Caixa Geral de Depósitos que lhe estavam vedados, bem como junto da Repartição de Finanças ali fez constar a sua qualidade de cabeça de casal e identificou os bens da herança para efeitos fiscais através da declaração Modelo 01 de imposto de selo. CC. Cumpre ainda esclarecer que, ainda assim, e em qualquer caso, o crime de falsificação de documento trata-se de um crime de perigo abstrato, sendo que, para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo (de violação do bem jurídico); basta que se conclua, a nível abstrato, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico. DD. Ora, ao nível do tipo objetivo, o documento é falso quando não corresponde à realidade, como ocorre com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), e como ocorre com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação intelectual), nesta última, a declaração é conforme com a vontade, todavia contra a verdade dos factos - contra a vontade real - como ensina Helena Moniz. EE. Resulta pois da factualidade acima referida que a arguida declarou perante Oficial Público e fez constar de Escritura Pública a existência de um facto - a arguida D... ser cabeça de casal - que não correspondia à verdade. FF. Em concreto, o ato permitiu uma alteração no mundo do Direito, traduzida na nomeação da arguida D... como cabeça de casal da herança, com o consequente benefício, que no caso tem relevância patrimonial direta, traduzido-se no facto de ter passado a ser esta, durante algum tempo, a legal administradora dos bens da herança, t. é., se traduziu num benefício (poderes de administração da herança) que de outra forma não lograriam, com a intenção de causar prejuízo a outras pessoas. GG. Relativamente ao concurso de crimes esclarece o art. 30.º do Código Penal, um princípio geral de solução, o qual define que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime é preenchido pela conduta do agente. HH. Ora, o critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados, e efetivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. II. Pelo que o critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efetivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efetivo (pluralidade de crimes através de uma mesma ação ou de várias ações) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efetivo concurso de crimes tos casos de concurso aparente e de crime continuado. JJ. Ora, quanto ao crime de falsificação de documento in casu, p. e p. pelo art. 256º do Código Penal está construído como crime de perigo abstrato, em que a lei previne o risco de uma lesão que coincide com a própria atividade proibida, sendo que a realização do tipo basta-se com a mera colocação em perigo de bens jurídicos e pode consistir simplesmente no motivo da proibição. KK. Neste crime, a justificação da tutela penal e a carência de pena estão, assim, ligadas à perigosidade típica para bens jurídico oenaimente tutelados que podem ser afetados pela simples detenção - os valores da ordem, segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório, no que respeita à prova documental. LL. Basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico, fazendo reverter para um campo de risco de afetação. MM. Quanto ao crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 360.º C. Penal o interesse imediato que a lei penal quis proteger é a boa administração da justiça, i. é proteger a administração da Justiça como função do Estado, traduzindo o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão futura. NN. Pelo que ocorrerá lesão de tal bem jurídico quando alguém faz uma declaração (falsa) em oposição à realidade verificada e demonstrável. OO. O crime de falsas declarações tutela interesses ou bens jurídicos de cariz individual, não obstante, tutela um valor supra individual, designadamente a realização da justiça. PP. Assim, a razão teleológica para determinar as normas efetivamente violadas ou os crimes efetivamente cometidos, que só pode encontrarse na referência a bens jurídicos que sejam efetivamente violados e distintos, é verificada ln casu., uma vez face o exposto, facilmente se identifica que os bens jurídicos protegidos são distintos num e outro dos crimes. OO. Pelo exposto, cometeu cada uma das arguidas, em coautoria, em coautoria material, um crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256.º n.º 1 alínea d) do CP e um crime de falsas declarações p. e p. no artigo 360.º do C.P. e artigo 83.º n.º 2 e 97.º do Código do Notariado. Nestes termos, e nos melhores de direito que V/ Exas. doutamente suprirão, deverão as alegações de recurso apresentadas ser julgadas procedentes e consequentemente, revogada a decisão de não pronúncia e substituída por outra que pronuncie a arguida D... pelos factos e incriminação constante do requerimento de abertura de instrução, assim se fazendo como sempre JUSTIÇA
Foi proferido despacho de admissão do recurso. Notificados, o Ministério Público e a arguida D... responderam ao recurso, concluindo que deve improceder. Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento. Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta. Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir. *** II. Apreciação do Recurso Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal). Assim, o recurso interposto suscita as questões de saber se as declarações falsas prestadas perante notário (em escritura de Fevereiro de 2012) integram a prática de um crime previsto no artigo 97º do Código de Notariado e de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, devendo por consequência a arguida D... ser pronunciada pela autoria de tais crimes. No despacho recorrido, seguindo a jurisprudência constitucional já existente sobre a matéria, considerou-se que o artigo 97º do Código de Notariado padecia de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da legalidade e igualdade como também se considerou que a actuação da arguida de declarar facto não correspondente a realidade perante notário e para constar em escritura pública não era susceptível de integrar o crime de falsificação de documento previsto no artigo 256º do Código Penal, razões que determinaram a prolação de despacho de não pronúncia. Entretanto, o Tribunal Constitucional no acórdão 96/2015, publicado no DR Iª série de 3 de Março de 2015, veio a declarar a inconstitucionalidade orgânica com força obrigatória geral do artigo 97º do Código de Notariado. Não deixou de equacionar também a questão da inconstitucionalidade material que apenas não foi declarada face à recente inclusão no Código Penal de um crime de falsas declarações, como resulta do trecho que a seguir se transcreve e que como veremos tem total pertinência também para a análise sobre se os factos em causa podem integrar o crime de falsificação de documento do artigo 256º do Código Penal: “Verificando-se haver, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, mais de três decisões deste Tribunal no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto, encontra-se preenchido o pressuposto da generalização do juízo de inconstitucionalidade, previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição. Todavia, importa ter em atenção que o campo da tutela penal da autonomia intencional do Estado e da responsabilidade criminal por falsas declarações perante autoridade pública ou funcionário público no exercício de funções, ponderado nos julgamentos subjacentes ao impulso de generalização em apreço a partir dos dados dos casos vertentes, sofreu modificação superveniente relevante, na perspetiva problemática ancorada na dimensão material do princípio da legalidade penal. A Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, aditou ao Código Penal o artigo 348.º-A, com a epígrafe “Falsas declarações”, prevendo no seu n.º 1 a punição com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal, de “quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios”, cabendo, nos termos do n.º 2 do preceito, moldura penal agravada – pena de prisão até dois anos ou pena de multa – “se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico”. Como pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 75/XII, que conduziu à aprovação do diploma, a intenção do legislador foi, aqui, não apenas a de “clarificar o tipo do crime de falsa declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos”, mas, igualmente, a de dar “conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime”. Denota-se, assim, o propósito de superar a notada ausência de um crime geral de falsas declarações perante entidades públicas, suscetível de dar conteúdo material às diversas normas que remetem a punição das condutas nelas referidas para um tipo de falsas declarações (alertando para essa necessidade, cfr. Paulo Dá Mesquita, “Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública”, Revista do Ministério Público, n.º 134, abril/junho 2013, pp. 79-116, em especial pp. 100-101; note-se que o Autor defendeu, a par da criação de um “tipo genérico de falsas declarações”, uma intervenção legislativa ao nível das normas jurídicas remissivas). Face a estes dados, coloca-se a interrogação sobre se a remissão feita pelo artigo 97.º do Código do Notariado, ora em questão, pode encontrar correspondência nesta nova norma, que assume como epígrafe a mesma expressão ali utilizada. A resposta deve ser positiva. Sem cuidar de saber se a conduta do outorgante em escritura de justificação notarial que preste ou confirme declarações falsas se subsume ao crime agora constante do artigo 348.º-A - questão aqui irrelevante, por estar em jogo o reenvio para as “penas aplicáveis”, e não para os pressupostos da punição – resulta viável entender que a remissão operada pelo artigo 97.º do Código do Notariado, em exame, deve considerar-se feita para o novo artigo 348.º-A do Código Penal. De facto, por um lado, trata-se do único tipo legal de crime constante do Código Penal que contém na sua epígrafe a expressão “falsas declarações”, a qual passou ainda a constar da designação da secção em que o artigo se insere - “Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública” -, por força de alteração sistemática igualmente operada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro. Por outro lado, dos seus elementos constitutivos faz parte a conduta que consiste em declarar falsamente à autoridade pública, mesmo que circunscrita às declarações que tenham como objeto a identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios. Nessa medida, a partir do aditamento ao Código Penal do artigo 348.ºA, não são mais invocáveis os argumentos, em que se baseou o juízo constante do Acórdão n.º 379/2012, no sentido de que o tipo legal de crime para que o artigo 97.º remete “não corresponde à epígrafe, nem ao conteúdo, de qualquer incriminação do Código Penal ou de qualquer legislação extravagante que se conheça (...). O estabelecimento de correspondência entre a fórmula ‘crime de falsas declarações perante oficial público’ e um determinado tipo legal de crime é, assim, tarefa interpretativa, que, no entanto, se depara com dificuldades e incertezas incompatíveis com o princípio da legalidade, na vertente de nula poena sine lege certa. (...) Não cumpre, manifestamente, esta exigência contida no princípio da legalidade criminal a remissão para a pena do crime de falsas declarações. Do catálogo tipificados não faz parte nenhum com esta designação. (...) Como se vê, são múltiplas e inultrapassáveis as barreiras que obstam à objetiva determinabilidade, com um mínimo de certeza, da pena que cabe a uma conduta sujeita a incriminação pelo artigo 97.º do Código do Notariado”.
O Tribunal Constitucional entendeu, não obstante os acórdãos fundamento terem declarado a inconstitucionalidade material, que nada obstava à declaração com força geral da inconstitucionalidade com fundamento diferente, como fez. Obviamente porque a referida alteração ao Código Penal é posterior ao facto em apreço não lhe pode ser aplicável, como igualmente não é aplicável a norma declarada inconstitucional. Resta equacionar se a conduta em causa será susceptível de integrar a prática de crime de falsificação de documento, como pretende o recorrente. Já anteriormente tomámos posição sobre tal questão na senda de anteriores acórdãos desta Relação, negando a possibilidade de falsa declaração perante notário poder integrar tal tipo de crime. No acórdão que relatámos proferido no processo 18/10.5TATND, publicado em 26.3.2014, citando parecer de Paulo Dá Mesquita enviado ao Ministério da Justiça para ser tido em consideração na reforma de 2013 do Código Penal (também citado pelo TC) referimos entre o mais que: “Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão documento com informação sobres factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento …» Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objectivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante. Reportando-nos ao tema que suscitou a presente consulta, considera-se que na legislação portuguesa a tutela penal de declarações para efeitos de processo judiciário ou extra-judiciário que funcionário faz constar de documento com força pública se opera por eventuais tipos de falsas declarações e não de falsificação …» Daí que no caso do arguido que, por exemplo, presta falsas declarações sobre factos juridicamente relevantes e relativamente aos quais tem o dever de depor com verdade, ao que se sabe, nunca foi problematizada a eventual integração de um crime de falsificação por via de as mesmas constarem de auto com força de documento autêntico. Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações perante autoridade esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações. Ainda que se adopte uma ênfase (que no plano da interpretação do tipo objectivo nunca pode ser exclusivista) na função probatória do documento, a mesma cinge-se à sua força para a prova da ocorrência do evento documentado (que se disse) e não sobre a asserção (o que se disse), cuja força subsiste inalterada por via da documentação levada a cabo por terceiro. (…) Em termos sintéticos, não é a documentação do facto presenciado por agente estadual, que conforma os deveres dos particulares envolvidos (sejam de não atingir o património alheio ou de falar com verdade relativamente à sua identificação civil).» E citando o acórdão desta Relação relatado pela Exmª Desembargadora Maria José Nogueira, de 18.12.2013, publicado em www.dgsi.pt mais referimos que: “Pensamento que, no seio de alguma conturbação doutrinária e jurisprudencial, temos por mais adequado atento o princípio da tipicidade, o qual se nos afigura não dispensar, utilizando as palavras do Autor, «um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento» - que no caso não ocorreu -, sendo certo que o subsequente uso da escritura de justificação para o registo e venda do imóvel a terceiro, não faz incorrer o agente no crime de falsificação de documento da alínea e) – também convocada no requerimento de abertura da instrução - na medida em que não se trata de «documento a que se referem as alíneas anteriores». De facto, fosse a conduta em causa posterior à entrada em vigor das alterações ao Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, por certo não estaríamos a discutir a questão em função do novo artigo 348.º - A - integrando, agora, a Secção I, do Capítulo II, do Título V, do Livro II do dito compêndio normativo com a epígrafe «Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública» -, o qual sob a designação «Falsas declarações», dispõe: «1 – Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. 2 – Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa» [destaques nossos]. Preceito que não podemos ler desligado do «Estudo» que vimos de citar – tendo até presente a respectiva «Nota Introdutória» -, em cuja conclusão 19. o Autor alerta para que «A ausência de tutela pública das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente, nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios»., aspecto, desde então [da entrada em vigor do sobredito preceito], concretamente no que tange à questão controversa, sanado." Mais mencionamos que posteriormente esta mesma orientação foi seguida nos Acórdãos de 19.02.2014, da mesma Relatora e do Relator, Exmº Desembargador Luís Coimbra, mas já anteriormente no Acórdão de 19.06.2013 do Exmº Desembargador Brízida Martins havia decidido no mesmo sentido nesta Relação. Em suma e sintetizando, o segmento normativo da alínea d) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal "fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante" apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. Esta última acção consistente apenas em declarar facto falso para que conste em documento, extravasa a tipicidade que exige concomitantemente a feitura do documento. Com efeito, o que o tipo de crime de falsificação prevê e pune é a falsa declaração de quem materialmente a incorpora em escrito. Do que decorre que a acção dos arguidos de declararem factos falsos para constarem em escritura de justificação lavrada por notário não integra a prática do crime de falsificação (…). Continuamos a defender a presente tese pelo que há que concluir que o recurso não merece provimento, devendo ser mantida a decisão instrutória de não pronúncia. *** III. Decisão Pelo exposto acordam em negar provimento ao recurso interposto pela assistente e, em consequência, manter a decisão instrutória de não pronúncia. Pelo seu decaimento em recurso vai a assistente condenada em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em três UC. *** Coimbra, 18 de Março de 2015 (Texto processado e integralmente revisto pela relatora). (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora) (José Eduardo Fernandes Martins) |