Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5063/09.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONFISSÃO
VALOR PROBATÓRIO
COMPRA E VENDA
ENTREGA
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 879º C. CIVIL.
Sumário: 1. A confissão tácita ou presumida assume força probatória plena, pelo que o respectivo facto provado não pode ser infirmado pela prova testemunhal.

2. A confissão ficta (e a consequente força probatória) pode ser questionada ou infirmada através da nulidade ou anulabilidade da confissão, por aplicação directa ou analógica do art. 359º do CC à admissão por acordo, ou ainda por meio do art. 506º CPC (articulado superveniente), quando haja um conhecimento tardio da inexistência dos factos inimpugnados e erroneamente se haver pensado que se tinham verificado.

3. No contrato de compra e venda (art. 879º, b) do CC) a obrigação de entrega tem natureza obrigacional, e com ela pretende-se que o vendedor realize aquilo que for necessário para que o comprador possa efectivamente exercer o direito que adquiriu pelo contrato e, nessa medida, ela é executiva do próprio contrato.

4. A obrigação de entregar a coisa não se confunde com a obrigação de transmitir a propriedade da mesma e muito menos com a própria transmissão do direito.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- O Autor – G…- instaurou na Comarca de Leiria acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus – M… e P…, Lda , com sede em  ...

            Alegou, em resumo:

O Autor contactou o Réu M… com o objectivo de adquirir um bungalow para colocar nas instalações de Vagos da sociedade “C…, Lda.” (da qual o Autor é sócio gerente) tendo-lhe proposto ali constituíssem um mini parque de bungalows direccionado para os adeptos da piscicultura, no qual o Autor arcaria com os custos da infra-estrutura do parque e o Réu instalaria outros dois bungalows e faria a angariação de clientes através da Ré “P…” e da agência de viagens “A…, Lda”.

O Autor, por ter ficado convencido que seria um bom negócio, encomendou à Ré “P…” (representada pelo 1º Réu, sócio gerente) um bungalow da marca Trigano tipo T3 Zefir, no valor de €22.000,00, que pagou, no dia 20/9/2007, por cheque, que deveria ser entregue em 90 dias, mas que nunca sucedeu.

            O Autor fez no local algumas obras, gastando € 7.500,00, e a não entrega implicou um prejuízo patrimonial.

Pediu a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de € 29.500,00, acrescido de € 6.116,77 de juros de mora vencidos, a que acrescerão os juros de mora vincendos à taxa legal até efectivo pagamento.

Contestou o Réu M…, defendendo-se, em síntese, por impugnação, dizendo que o contrato que o Autor fez foi com a Ré P…, e não com ele, que apenas interveio na qualidade de legal representante da sociedade. O preço acordado foi de € 42.000,00, o Autor teve conhecimento dos motivos da demora na entrega, sendo que o recusou receber mais tarde e a pagar o remanescente do preço.

            1.2.- Por despacho de 6/172012 foi declarada extinta a instância em relação à Ré P…, Lda, visto ter sido decretada a sua insolvência, e ordenado o prosseguimento da acção apenas contra o Réu M...

            1.3.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente e absolver o Réu M… do pedido.

            1.4.- Inconformado, o Autor recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

            Contra-alegou o Réu no sentido da improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso

As partes no contrato de compra e venda ( a impugnação de facto );

O contrato de compra e venda e a responsabilidade do Réu pela entrega.

            2.2. – Os factos provados

2.4. – As partes no contrato de compra e venda

O tribunal deu como provado, por acordo das partes, o facto alegado no ponto 10 da petição inicial, ou seja que no “ No mês de Setembro de 2007 o A. encomendou à sociedade “P…” um bungalow da marca “Trigano”, tipo T3 “Zefir” “, e admitido pelo Réu.

Conforme consta da fundamentação, justificou com base no acordo das partes, tanto assim que este facto foi dado como assente (cf. alínea A) da matéria assente).

O Apelante pretende a alteração, no sentido de se julgar não provado, dizendo que o negócio foi realizado entre o Autor e o Réu M…, indicando os depoimentos das testemunhas ...

O facto assente na alínea A) foi admitido por acordo, pois tendo sido alegado pelo Autor não foi objecto de impugnação, sendo que o Réu o admitiu expressamente (cf. art.4º contestação).

O acordo das partes ou admissão por acordo, tanto por falta de contestação (art.484 nº1 CPC/61, então em vigor), como pela não impugnação dos factos (art. 490 nº2 CPC/61), tem sido concebida como uma confissão tácita ou presumida (fita confessio), ainda que distinta da confissão, sendo, no entanto, fonte de prova legal, ao assumir força probatória plena (cf., por ex., Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, 1961, pág. 703; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 142).

Mas, contrariamente à confissão (expressa), que é irretractável (art. 567 CPC), o mesmo não sucede quanto à admissão por acordo, sendo este um dos pontos divergentes entre ambos os regimes.

Admite-se, assim, que a confissão ficta (e a consequente força probatória) possa ser questionada ou infirmada através da nulidade ou anulabilidade da confissão, por aplicação directa ou analógica do art. 359 do CC à admissão por acordo, ou ainda por meio do art. 506 CPC (articulado superveniente), quando haja um conhecimento tardio da inexistência dos factos inimpugnados e erroneamente se haver pensado que se tinham verificado (cf., por ex., Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 267 e segs.), o que manifestamente não sucede aqui.

Por isso, assumindo força probatória plena, o facto provado não pode ser infirmado pela prova testemunhal.

Diga-se, porém, e em abono da verdade, que após audição integral da prova (produzida em audiência ), também se pode concluir que os depoimentos das testemunhas indicadas não impunham decisão diversa.

Contrariamente ao alegado, as testemunhas … não revelaram “profundo conhecimento“ do negócio em causa.

Aquele afirmou, além do mais, não estar presente no momento da celebração do negócio, nem assistiu à assinatura do documento, sabe o que o filho lhe comunicou (“ ele foi-me comunicando”), esclarecendo que o Autor só lhe pediu opinião numa altura em que “ já tinha as coisas completamente já bastante avançadas”. Esta, disse não estar presente na negociação, tendo sido o Autor quem lhe transmitiu (“ não estive presente, mas porque o sr. G… me transmitiu a base do negócio”).

2.5.- O contrato de compra e venda e a responsabilidade do Réu pela entrega

É sabido que todo o negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido ( art.406 nº1 do CC) e no cumprimento das obrigações, assim como no exercício correspondente, devem as partes proceder de boa fé (art.762 nº2 do CC).

            No nosso ordenamento jurídico, postulando-se o chamado “sistema do título“, à produção dos efeitos reais basta o acto pelo qual se estabelece a vontade dessa constituição ou transferência, pelo que o negócio é um e único, obrigacional e real, como negócio real “quoad effectum“.

            O primeiro dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda é o efeito real, cuja transferência se opera por força do contrato, segundo o princípio da consensualidade (art.408 nº 1 e 879 a) do CC ).

            Além deste efeito real, a compra e venda produz ainda dois outros efeitos essenciais de carácter obrigacional: a obrigação que recai sobre o vendedor de entregar a coisa e a obrigação que impende sobre o comprador de pagar o preço (art.879 b) e c) do CC).

Ao criar a obrigação de entrega, a lei pretende que o vendedor realize aquilo que for necessário para que o comprador possa efectivamente exercer o direito que adquiriu pelo contrato, e, nessa medida, ela é executiva do próprio contrato. Por isso, a obrigação de entregar a coisa não se confunde com a obrigação de transmitir a propriedade da mesma e muito menos com a própria transmissão do direito, sendo que a obrigação de entrega abrange, salvo estipulação em contrário, os documentos relativos à coisa ou ao direito (art.882 nº2 do CC), designadamente os títulos de propriedade ou licença de circulação (cf. Raul Ventura, O Contrato de Compra e Venda, ROA ano 43, pág.630 ).

A sentença recorrida absolveu o Réu dos pedidos argumentando, em síntese, que o negócio jurídico (contrato de compra e venda do bungalow) foi celebrado entre o Autor (comprador) e a sociedade P…, Lda (vendedora), e não com o Réu (a título pessoal). Na verdade, este recebeu o pagamento do preço, através de cheque, na qualidade de legal representante da sociedade vendedora.

Por isso, não sendo o Réu parte no contrato, não pode ser responsabilizado pelo incumprimento do dever de entrega.

É certo provar-se que o Réu assumiu e responsabilizou-se pessoalmente pela entrega ao Autor do bungalow, mas a sentença considerou que “ tal posição mais não é que um compromisso, se se quiser de honra, do qual não se podem retirar quaisquer consequências jurídicas, nos termos pretendidos pelo A., isto é, substituir-se o R. às obrigações que recaíram sob a P… Aquela posição do R. não configura nenhuma das garantias previstas na lei, designadamente as previstas nos art.os 601.º e segs. do Código Civil. Por outro lado, e relativamente ao R., não estão provados factos que permitam integrar a conduta do R. no art.º 78.º do Código das Sociedades Comerciais.”

Poder-se-á enquadrar, quiçá, na assunção da dívida, que é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem (art. 595 CC).

A transmissão singular de dívidas pode ocorrer através de duas modalidades: (a) por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (sendo necessária a intervenção dos três sujeitos) ou (b) por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.
A assunção de dívida, liberatória do antigo devedor só tem lugar havendo expressa declaração do credor nesse sentido. Não existindo essa declaração, estar-se-á perante uma assunção cumulativa da dívida, também designada por co-assunção da dívida, adjunção à dívida ou adesão à dívida, continuando o antigo devedor a responder solidariamente com o novo obrigado.
Apesar de ser essencial para o credor a pessoa do devedor, a lei estabelece uma medida de protecção, pois, ao não exonerar o antigo devedor, poderá exigir de qualquer deles o cumprimento da obrigação. É que podendo o credor aceitar a prestação de terceiro (art.767 do CC), o acordo entre ele o assuntor pode fazer-se independentemente da intervenção do antigo devedor, sendo que o contrato de assunção de dívida está sujeito ao princípio da consensualidade ou da liberdade de forma ( art.219 do CC ) e se distingue da fiança (cf., por ex., Vaz Serra, “ Assunção de Dívida”, BMJ 72, pág.189 e segs., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª ed., pág.346 e segs.).

Não obstante a escassez de facto, ainda que se qualifique, como uma assunção cumulativa da obrigação da entrega e, consequentemente, numa interpretação complementadora, pela indemnização moratória, a verdade é que, contrariamente ao alegado pelo Autor, não ficou provado o prejuízo económico.

Por outro lado, debalde a responsabilização do Réu com base no enriquecimento sem causa (art. 473 CC), pela clara ausência dos respectivos requisitos legais, a começar pela “falta de causa”. Ademais está demonstrado que o recebimento do cheque se deu na qualidade de legal representante da sociedade, pelo que nem sequer houve deslocação patrimonial para si mesmo.

Improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

2.6.- Síntese conclusiva

1.A confissão tácita ou presumida assume força probatória plena, pelo que o respectivo facto provado não pode ser infirmado pela prova testemunhal.

2. A confissão ficta (e a consequente força probatória) pode ser questionada ou infirmada através da nulidade ou anulabilidade da confissão, por aplicação directa ou analógica do art.359 do CC à admissão por acordo, ou ainda por meio do art. 506 CPC (articulado superveniente), quando haja um conhecimento tardio da inexistência dos factos inimpugnados e erroneamente se haver pensado que se tinham verificado.

3. No contrato de compra e venda (art.879 b) CC) a obrigação de entrega tem natureza obrigacional, e com ela pretende-se que o vendedor realize aquilo que for necessário para que o comprador possa efectivamente exercer o direito que adquiriu pelo contrato, e, nessa medida, ela é executiva do próprio contrato.

4. A obrigação de entregar a coisa não se confunde com a obrigação de transmitir a propriedade da mesma e muito menos com a própria transmissão do direito.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.

2)

            Condenar o Apelante nas custas.

            Coimbra, 17 de Dezembro de 2014.


( Jorge Arcanjo - Relator )

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )