Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
174/19.7T9CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CERTIFICADOS DE REGISTO CRIMINAL DECISÕES DE NÃO TRANSCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 13.º DA LEI N.º 37/2015, DE 05-05
Sumário: I - A não transcrição de condenação no certificado de registo criminal exige o preenchimento dos requisitos descritos no artigo 13.º, n.º 1, da Lei 37/2015, de 05-05 (i. não ter o arguido sido condenado por crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, em que as vítimas sejam crianças menores de idade; ii. tratar-se de condenação de pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade; iii. o arguido não ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza; iv. das circunstâncias que acompanharam o crime presente não se puder induzir perigo de prática de novos crimes).

II – O legislador não quis negar a não transcrição da condenação para o registo criminal em caso de existência de duas práticas de crimes dolosos. Só a prática de um crime doloso de igual natureza poderá operar os efeitos previsto no n.º 3 do artigo 13.º da Lei 37/2015, adiantando-se ainda que aquele normativo apenas pode relevar no âmbito do processo anterior (onde foi autorizada a 1ª não transcrição).

III – São crimes da mesma natureza aqueles que têm essencialmente os mesmos elementos constitutivos, quer objectivos, quer subjectivos, abrangendo os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos elementos que os constituem ou pelos seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns.

IV – Só não se decide pela não transcrição da sentença, quando, das circunstâncias que rodearam a prática do ilícito dos autos em causa, se não puder concluir que não existe perigo da prática de novos crimes, exigindo apenas a lei que não seja efectuado um juízo de prognose desfavorável ao arguido, diverso do juízo de prognose favorável ínsito, por exemplo, na análise dos requisitos para a aplicação de uma pena de suspensão da execução de uma pena de prisão.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
           1. O DESPACHO RECORRIDO

No processo comum singular n.º 174/19.7T9CTB do Juízo Local Criminal de Castelo Branco – Juiz 2 -, foi proferido despacho com a referência n.º 33779446, com o seguinte teor (transcrição): 
«Req. de 29.07.2021: face ao teor do certificado criminal da arguida do qual resulta que a mesma já beneficiou da decisão de não transcrição no âmbito do processo 552/18.9T9CTB e atendendo além do mais, aos factos provados constantes da sentença proferida nestes autos os quais não permitem ao Tribunal formular um juízo de não indução de perigo de prática de novos crimes, indefere-se o requerido – artigo 17º/1 lei 57/98, de 18.08.
Notifique».
Tal despacho foi proferido na sequência de uma peça processual da arguida MA, no qual requeria que a decisão condenatória proferida nos presentes autos pelo JLC de Castelo Branco, posteriormente confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não fosse transcrita no seu registo criminal, ao abrigo do artigo 13º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio (Lei da Identificação Criminal).

            2. O RECURSO
Inconformado, a arguida recorreu do despacho em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A. São três, os critérios/requisitos previstos no n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio:
1.º - Não condenação em pena privativa da liberdade ou de prisão superior a 1 ano;
2.º - Ausência de antecedentes criminais por prática de crime de igual natureza;
3.º - Não se inferir das circunstâncias em que o crime foi praticado o perigo da prática de novos crimes.
B. Salvo o devido respeito por entendimento contrário os mesmos apresentam-se plenamente preenchidos no caso vertente.
C. A arguida ora recorrente foi condenada numa pena de multa de 160 dias à taxa diária de seis euros).
D. O crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º do Código Penal e o crime de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º do Código Penal têm naturezas diferentes.
E. Da estrita análise da factualidade assente como provada na Douta Sentença confirmada pelo Douto Acórdão proferidos nos presentes autos, em nosso humilde entendimento não parece resultar a indução de um juízo de prognose desfavorável quanto à probabilidade de prática de novos crimes pela arguida no futuro.
F. O crime julgado nos presentes autos foi praticado num contexto bastante específico e de difícil repetição.
G. A arguida ora recorrente encontra-se familiar, social e profissionalmente integrada.
H. Os factos constantes na matéria assente como provada na Douta Sentença, confirmada pelo Douto Acórdão proferidos nos presentes autos, datam de finais de 2017, dos quais volveram já cerca de 4 anos.
I. Quanto aos factos constantes da anterior condenação, inseridos via ponto 46 da matéria assente como provada nos presentes autos, os mesmos são contemporâneos dos julgados nos presentes autos.
J. Estando em nosso humilde entendimento até preenchidos os requisitos do artigo 77.º do Código Penal.
L. Dos critérios do n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio, não parece resultar que o facto de já haver beneficiado de igual decisão impede a aplicação deste instituto.
M. Apenas a prática de um crime doloso de igual natureza poderá operar os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio.
N. O n.º 3 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio regula o cancelamento ou revogação da decisão já tomada de não transcrição da condenação para o registo criminal.
O. A jurisprudência tem estabelecido que «O crime anterior com condenação posterior, estando entre si numa relação de concurso real com o dos autos, impõe se conclua que, caso tivesse sido julgado em simultâneo, teria sofrido uma única condenação em pena unitária. Logo deve entende-se e retirar-se da leitura daqueles preceitos legais que, no alcance do seu espírito e objectivo, o nº 3 do artº 17º apenas se refere a condenações posteriores mas por factos posteriores, não sendo impedimento à não transcrição a mera condenação posterior desde que se reporte a factos anteriores à condenação a não transcrever e das circunstâncias do caso não se induza a prática de novos crimes».
P. No caso sub judice não é de aplicar o n.º 3 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio.
(…)
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, em consequência, revogado o douto Despacho Recorrido e em consequência deferido o pedido de não transcrição para o registo criminal da condenação consumada nos presentes autos».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso merece provimento, não defendendo o sentenciado em 1ª instância, aliás em coerência com a sua promoção proferida sob a referência n.º 33760944 que foi no sentido do deferimento do requerido pela arguida, «verificados que estão os pressupostos da não transcrição nos certificados de registo criminal para efeitos de emprego (cfr. artigo 13º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio)».

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido do provimento do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Assim sendo, é esta a única questão a decidir por este Tribunal:
· Estão perfectibilizados os requisitos da lei para o deferimento da pretensão da arguida de não ver transcrito a condenação dos autos no seu CRC para efeitos de emprego?

2. Sobre a sequência de factos processuais:
a) A arguida foi condenada, no âmbito do processo comum singular n.º 552/18.9T9CTB, do Juízo Local Criminal de Castelo Branco – Juiz 2 -, por sentença proferida em 11 de Dezembro de 2019, transitada em julgado no dia 5 de Fevereiro de 2020, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 6, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, por factos levados a efeito em Junho de 2017.
b) A pena referida em a) mostra-se extinta pelo pagamento.
c) No Pº referido em a) foi ordenada a não transcrição da condenação para efeitos de registo criminal, por decisão datada de 24 de Março de 2020 e transitada em julgado no dia 13 de Maio de 2020.
d)  A arguida foi condenada nos presentes autos por sentença proferida em 15 de Fevereiro de 2021, depois confirmada pelo acórdão da Relação de Coimbra datado de 23 de Junho de 2021, transitado em julgado, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 6, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217º, n.º 1 do Código Penal, por factos acontecidos em Outubro e Novembro de 2017.
e) Nestes autos, foi a arguida absolvida do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, constante da acusação do MP, por se ter considerado existir uma situação de caso julgado consubstanciado numa identidade do objecto do processo entre os autos presentes (o 147) e os autos n.º 522/18.9T9CTB, do mesmo Juízo e Juiz, constantes do seu CRC.
f) Na sentença dos presentes autos foi deixado escrito o seguinte para fundamentar a absolvição referenciada em e):
· «Na situação sub judice, a factualidade que levou à imputação à arguida de um crime de falsificação de documento nos presentes autos e aquela que determinou a condenação da mesma pela prática do mesmo tipo de ilícito no processo nº 552/18.9T9CTB, deste Tribunal, constituem a mesma situação.
· Na verdade, o que é falso é o facto comunicado pela arguida aos cheques (caso contrário, estariam reunidos os requisitos para se imputar a pratica do crime com a agravação prevista no nº 3 do artigo 256º do Código Penal).
· Deste modo, foi no relato feito no âmbito da comunicação datada de 29.11.2017, efectuada pela arguida ao aludido banco, sobre o facto falso de extravio dos cheques aí referidos que a falsificação se concretizou.
· A comunicação em apreço (referida no ponto 46.14. e igualmente no ponto 25. dos factos provados) traduz-se num documento particular que declara um facto que não corresponde à verdade, a saber, o extravio dos cheques aí mencionados. É nessa mesma declaração de extravio que reside a falsidade».
g) Nada mais consta do CRC da arguida.
            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
            3.1. Nos presentes autos veio a arguida requerer a não transcrição da condenação que aqui sofreu no seu CRC, para os termos do artigo 13º, n.º 1 da Lei de Identificação Criminal, aprovada pela Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio e que veio revogar expressamente a Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto.
            O Ministério Público promoveu o deferimento da pretensão, tendo a Mª Juíza indeferido a mesma, com dois argumentos lapidares escritas em seis singelas e parcas linhas:
1º- Face ao teor do certificado criminal da arguida, resulta que a mesma já beneficiou da decisão de não transcrição no âmbito do processo 552/18.9T9CTB;
2º- Os factos provados constantes da sentença proferida nestes autos não permitem ao Tribunal formular um juízo de não indução de perigo de prática de novos crimes.
Note-se que a decisão recorrida aplica legislação revogada, no caso, a Lei n.º 57/98, de 18/8, mais especificamente o seu artigo 17º, n.º 1, assente que esta Lei de Identificação Criminal – cuja nova regulamentação surge pela letra do  Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto - tem nova versão desde a Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, de aplicação imediata a partir de 6/5/2015, e já entretanto rectificada pela Lei n.º 28/2015, de 15 de Junho.
É desse despacho que a arguida ora recorre.

3.2. O registo criminal contém os antecedentes criminais de todos os cidadãos, por forma a permitir o respectivo conhecimento, nos termos legais, ou a atestar a ausência de antecedentes criminais.
Este registo criminal contém menção:
· de todas as decisões criminais condenatórias, ou que apliquem medidas de segurança, proferidas por tribunais portugueses e
· das decisões criminais condenatórias de pessoas portuguesas, ou de pessoas estrangeiras residentes em Portugal, proferidas por tribunais estrangeiros, que sejam comunicadas nos termos de acordos internacionais.
Pergunta-se:
Quando existe registo criminal vigente, qual é o conteúdo dos certificados do registo criminal pedidos pela pessoa titular da informação?
1º- Certificados emitidos para emprego ou para o exercício de profissão ou actividade em Portugal, não sujeitas a exigência legal de ausência de antecedentes criminais, ou a avaliação da idoneidade da pessoa:
· decisões que decretem a demissão da função pública;
· decisões que proíbam o exercício de função pública, de profissão ou de atividade, ou que interditem esse exercício.
2º- Certificados emitidos para emprego ou para o exercício de profissão ou actividade, sujeitas a exigência legal de ausência de antecedentes criminais, ou a avaliação da idoneidade da pessoa:
· todas as decisões vigentes, excepto:
ü decisões canceladas provisoriamente pelo Tribunal de Execução de Penas;
ü decisões sobre as quais o Tribunal da condenação haja determinado a não transcrição em certificados, enquanto esta determinação se mantiver.
4º- Certificados emitidos para profissões, empregos, funções ou actividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com «menores» (leia-se «crianças») – cfr. Lei n.º 113/2009, de 17/9, entretanto revista pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto:
· além da observância das regras anteriores, o certificado contém sempre (excepto se o Tribunal de Execução de Penas determinar a sua não transcrição em certificados):
o condenações por crimes de violência doméstica ou de maus tratos, condenações por crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e decisões que apliquem penas acessórias em condenações por crime de violência doméstica ou por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.

3.3. Um juiz, de facto, pode determinar a não transcrição de uma decisão condenatória nos CRC pedidos pelos próprios ou com sua autorização.
E pode fazê-lo nos termos do artigo 13º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.
Estatui tal normativo o seguinte:

Artigo 13.º
Decisões de não transcrição

1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º.
2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão.


À luz do anterior regime (Lei n.º 57/98), ocorria a não transcrição automática da respectiva sentença nos certificados do registo criminal, designadamente, para fins de emprego, verificadas que fossem certas condições pressupostas na lei, sendo desnecessário que em tais situações o tribunal determinasse a não transcrição da sentença para os indicados fins.
Note-se que não se trata de ordenar a não transcrição da sentença no registo criminal – a sentença era transcrita no registo criminal mas não se procedia à transcrição da sentença naqueles tipos de certificados de registo criminal referidos no art 11º do diploma mencionado.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio, desaparece a não transcrição automática de que o arguido beneficiava por força da lei, o que obriga a solicitar a mesma pretensão, agora ao abrigo da lei em vigor.
A possibilidade de não transcrição das sentenças condenatórias destina-se, como é conhecido, a evitar a estigmatização de quem sofreu uma condenação por um crime de diminuta gravidade, ou sem gravidade significativa, e as repercussões negativas que a publicidade ou divulgação dessa condenação podem acarretar para a reintegração social do condenado, nomeadamente, no acesso ao emprego. (cfr. Acórdão da Relação de Évora de 5/12/2017, Pº 1580/14.9PBSTB-A.E1).

3.4. A não transcrição de condenação no certificado de registo criminal está prevista no citado artigo 13.º n.º 1, cuja aplicação exige que se encontrem preenchidos os seguintes requisitos:
· a)- não ter o arguido sido condenado por crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, em que as vítimas sejam crianças menores de idade[1];
· b)- tratar-se de condenação de pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade;
· c)- o arguido não ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza; e
· d)- das circunstâncias que acompanharam o crime presente não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.
A decisão recorrida indeferiu a pretensão da recorrente com base na alínea d), argumentando ainda que já havia ela beneficiado de uma não transcrição.
Quanto a este último argumento, só pode ser rebatido pois é a própria lei a não limitar a um o pedido em causa – de facto, dos critérios explanados na norma em causa não resulta que o facto de já haver antes beneficiado um arguido de igual decisão impeça a aplicação do instituto.
Como se bem refere na peça recursória, o legislador prevê e aceita a existência de anteriores condenações e apenas entende como limitação à aplicação de decisão de não transcrição o facto dessas condenações dizerem respeito à prática de crimes de igual natureza.
E nem se diga que o n.º 3 do artigo 13º inculca a adopção da tese da decisão recorrida.
De facto, estatui tal normativo que o cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão.
Contudo, o legislador não quis negar a não transcrição da condenação para o registo criminal em caso de existência de duas práticas de crimes dolosos, parecendo-nos que só a prática de um crime doloso de igual natureza poderá operar os efeitos previsto nesse n.º 3 [por aplicação das mais elementares regras de interpretação sistemática da norma, em coerência com todo o diploma e com o critério explanado acima em c)], adiantando-se ainda que esse n.º 3 apenas pode relevar no âmbito do processo anterior (onde foi autorizada a 1ª não transcrição) e nunca nestes autos.

3.5. Olhando para o caso vertente, e para os 4 critérios acima explanados, diremos que estão perfectibilizados os 3 primeiros requisitos – a arguida foi condenada nestes autos em crime não previsto nos artigos 152.º (crime de violência doméstica) e 152.º-A (crime de maus tratos) e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal (crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual), em pena não privativa da liberdade (multa) e pela prática de um crime de diferente natureza da do crime referenciado no anterior Processo 552/18.9T9CTB.
De facto, o crime anterior pelo qual foi condenada a arguida foi o de falsificação ou contrafação de documento [artigo 256º, n.º 1, alínea d) do CP].
Nestes autos, está em causa o crime de burla simples (artigo 217º do CP).
De facto, estando em causa um crime de burla e um crime de falsificação, estamos em face de tipos legais distintos que visam proteger bens jurídicos diversos.
Na burla - constante do elenco dos crimes contra o património previstos no Título II do Livro II do Código Penal -, o agente, actuando com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que esta, por esse motivo, pratique actos que causam a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial – o bem jurídico aqui protegido consiste, pois, no património, globalmente considerado, sendo a burla um crime de dano, cuja consumação só ocorre com a efectiva lesão do património.
Diga-se ainda que a burla apresenta-se como um crime de resultado cortado ou parcial, já que no plano objectivo basta o prejuízo patrimonial (ou de terceiro) e, no plano subjectivo, exige-se que o agente actue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo que não carece de concretização objectiva, bastando para o efeito que se observe o empobrecimento da vítima.
Já quanto à falsificação – constante do elenco dos crimes contra a vida em sociedade previstos no Título IV do Livro II do Código Penal -, importa salientar que é um crime contra a vida em sociedade, em que é protegida a segurança e confiança do tráfico probatório e a verdade intrínseca do documento enquanto tal, como bem jurídico, sendo um crime de perigo (o mero acto de falsificação põe em perigo a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório) abstracto (basta que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido).
Estamos na falsificação perante um crime intencional em que o agente necessita de actuar com «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo», não se exigindo, no entanto, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico.
Mas, como se deixou já escrito, «é um crime em que deve ser devidamente enfatizada a essencialidade da existência ou possibilidade de um prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, sendo que o benefício e o prejuízo podem ser de ordem económica ou moral».
Tanto são diversos os bens jurídicos em causa que o STJ, em acórdão uniformizador de jurisprudência, datado de 2013, determinou que:
A alteração introduzida pela Lei 59/2007 no tipo legal do crime de falsificação previsto no artigo 256 do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efectivo de crimes”.
 Como tal, os dois crimes praticados pela arguida, embora aparentados[2], não são de igual natureza[3], tal bastando para afirmar e concluir que está perfectibilizado o requisito acima explanado em c) (cfr. ponto 3.4. deste aresto).

3.6. Analisemos agora o 4º requisito.
Das circunstâncias que acompanharam o crime de burla pelo qual foi julgada nestes autos pode ou não induzir-se legítimo perigo de prática por parte desta específica arguida de novos crimes no futuro?
A decisão recorrida entendeu que os factos provados constantes da sentença proferida nestes autos não permitem ao Tribunal formular um juízo de não indução de perigo de prática de novos crimes.
Discordamos em absoluto.
Estes dois processos, os únicos constantes do CRC da arguida, estão em íntima relação maiêutica um com o outro, tendo até sido a arguida absolvida do crime de falsificação nestes autos por existência da excepção de caso julgado na anterior condenação no Pº 552.
Ocorreram ambas as factualidades em momentos absolutamente paralelos e contemporâneos (Junho e Outubro/Novembro de 2017).
É a própria sentença destes autos que deixa escrito, quando discute a dosimetria da pena a aplicar à arguida:
«De acordo com a factualidade provada, e não obstante a necessidade de consciencialização da comunidade para a gravidade dos crimes desta natureza (desde logo atenta a frequência com que são praticados), julgamos que não é necessária a condenação da arguida em pena de prisão para se assegurar a tutela das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e, bem assim, para ir ao encontro da finalidade de ressocialização da agente deste crime, tendo em conta que a mesma se mostra familiar e profissionalmente inserida e que apenas sofreu uma condenação criminal, não se tratando de um “verdadeiro antecedente”, atenta a data da prática dos factos em apreço e a data dos factos em análise nos presentes autos».

Ninguém duvida que o comportamento da arguida em 2017 foi ilícito e culposo, censurável por isso.
Mas não podemos dizer, como o afirma peremptoriamente a decisão recorrida, que os factos provados constantes da sentença proferida nestes autos não permitem ao Tribunal formular um juízo de não indução de perigo de prática de novos crimes, entrando até em flagrante contradição quando refere que a anterior condenação da arguida no Pº 552 não constitui um verdadeiro antecedente criminal.
Os factos provados nestes autos indicam à saciedade que a ilicitude constante destes dois processos está localizada no tempo e no espaço, podendo esta mulher ter sido julgada em conjunto no mesmo processo, em aplicação da regra do artigo 77º do CP (praticou dois crimes, um de burla e um de falsificação de documento, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, não havendo qualquer sucessão de crimes mas uma nítida situação de concurso de crimes, a exigir até um cúmulo jurídico de penas[4])
Recorramos de novo ao aresto do Tribunal da Relação de Évora atrás citado (sublinhado nosso):
«É sabido que o fundamento do juízo de prognose, favorável ou desfavorável, quanto à existência, ou não, do perigo de, no futuro, o arguido cometer novos crimes só pode fundar-se em conclusões extraídas das circunstâncias que acompanharam o crime.
Aliás, da fórmula negativa usada pelo legislador, “não se puder induzir perigo de prática de novos crimes”, deve concluir-se que a lei apenas exige que não seja efectuado um juízo de prognose desfavorável, de aferição das hipóteses de não verificação do perigo, o que é diferente de outras expressões utilizadas, como, por exemplo, a do nº1 do Artº 50 do C. Penal – “concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”- que denunciam a necessidade de um juízo de prognose favorável.
Daí que seja correcto afirmar que este juízo de prognose favorável não se confunde com o que é formulado a propósito da suspensão da execução da pena, não só porque o tribunal não está obrigado a determinar a não transcrição da sentença sempre que esta não seja superior a 1 ano de prisão ou tenha a sua execução suspensa, mas também por tal diferença se compreender por a medida prevista no Artº 13, nº 1, da Lei n.º 37/2015, ser de carácter administrativo e precária, dado o teor do seu n.º 3 onde se diz que ”o cancelamento previsto no n.º1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida decisão”, o que quer dizer que o legislador criou um mecanismo de correcção automática da decisão tomada ao abrigo do nº 1 do Artº 13, em caso de frustração do juízo de prognose efectuado pelo juiz».
Ou seja:
Só não se decide pela não transcrição da sentença, quando, das circunstâncias que rodearam a prática do ilícito, se não puder concluir que não existe perigo da prática de novos crimes.
Dito de outra forma:
Tendo em consideração as circunstâncias da prática do crime, a não transcrição da sentença em certos certificados do registo criminal pode ordenar-se desde que não se conclua que há perigo de o agente praticar novos crimes, o que implica não um juízo valorativo positivo, mas antes que não se faça um juízo negativo sobre o comportamento futuro.
Tentando densificar melhor o conceito, o Acórdão da Relação de Guimarães datado de 20/1/2014 (Pº 1454/00.0TBBRG-A.G1) doutrinou que tal juízo de prognose deverá, assim, ter por base as circunstâncias que acompanharam o crime, isto é, a culpa do arguido, as exigências de prevenção e a sua atitude perante os factos pelos quais foi condenado.
Partindo então do pressuposto seguro de que o crime – de diferente natureza, já o vimos - pelo qual foi condenada a arguida em 2019 (por factos contemporâneos a estes) não nos perturba e não impede, de per si, a aplicação directa do artigo 13º/1 da LIC, há que indagar se existe na factualidade dada como provada nestes autos algum dado que nos possa fazer pensar de que esta mulher vai voltar a prevaricar.
A resposta só pode ser negativa – ou seja, não pode este tribunal de recurso proferir um juízo de prognose desfavorável quanto ao futuro comportamento desta arguida que está inserida social, profissional, económica e familiarmente e que, tendo apenas prevaricado no específico contexto do final do ano de 2017, tendo sido devidamente sancionada em dois processos que reflectem factualidades quase cruzadas e absolutamente contemporâneas uma da outra (vem-nos à memória a frase batida de que «um erro na vida não significa uma vida de erros»), tem as seguintes condições familiares e económicas, segundo veredicto do tribunal recorrido:
«38. A arguida é técnica superior de controlo de qualidade e aufere, em média, cerca de €900 mensais
39. Efectua igualmente traduções, das quais retira, em média, entre € 400 e € 500 mensais;
40. Conta ainda com o auxílio económico dos seus pais;
41. Vive em casa arrendada, ascendendo o valor da renda a € 750 mensais;
42. Tem um filho de quinze anos de idade, estando estabelecido quanto ao mesmo o regime de guarda partilhada;
43. É dona de um veículo de marca Volkswagen, modelo Polo, do ano de 2004;
44. É licenciada em física e química»

Por conseguinte, aferidas em concreto as circunstâncias que acompanham o crime, só se pode concluir que delas não decorre a indução do perigo da prática de novos crimes, pelo que a ora recorrente pode beneficiar da não transcrição no registo criminal da condenação em apreço, para os fins a que se referem os nºs 5 e 6 do artº 10º da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio[5].

3.7. Em sumário da nossa decisão:
1º- A não transcrição de condenação no certificado de registo criminal está prevista no artigo 13.º n.º 1 da LIC, cuja aplicação exige que se encontrem preenchidos os seguintes requisitos:
· a)- não ter o arguido sido condenado por crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal;
· b)- tratar-se de condenação de pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade;
· c)- o arguido não ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza; e
· d)- das circunstâncias que acompanharam o crime presente não se puder induzir perigo de prática de novos crimes.
2º- O legislador não quis negar a não transcrição da condenação para o registo criminal em caso de existência de duas práticas de crimes dolosos, parecendo-nos que só a prática de um crime doloso de igual natureza poderá operar os efeitos previstos nesse n.º 3 [por aplicação das mais elementares regras de interpretação sistemática da norma, em coerência com todo o diploma e com o critério explanado acima em c)], adiantando-se ainda que esse n.º 3 apenas pode relevar no âmbito do processo anterior (onde foi autorizada a 1ª não transcrição) e nunca nestes autos.
3º- São crimes da mesma natureza aqueles que têm essencialmente os mesmos elementos constitutivos, quer objectivos, quer subjectivos, abrangendo os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos elementos que os constituem ou pelos seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns.
4º- Só não se decide pela não transcrição da sentença, quando, das circunstâncias que rodearam a prática do ilícito dos autos, se não puder concluir que não existe perigo da prática de novos crimes, exigindo apenas a lei que não seja efectuado um juízo de prognose desfavorável ao arguido, diverso do juízo de prognose favorável ínsito, por exemplo, na análise dos requisitos para a aplicação de uma pena de suspensão da execução de uma pena de prisão.

3.8. Se assim é, e pelos fundamentos acima descritos, só pode proceder este recurso intentado em boa hora, revogando-se uma decisão infundamentada, de facto e direito, e tomada com base até em legislação revogada.
 
            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e, em consequência, autoriza-se nos termos requeridos e dentro do âmbito elencado nas previsões dos artigos 13º e 10º, n.ºs 5 e 6 da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, a não transcrição da condenação dos presentes autos nos certificados de registo criminal solicitados pela recorrente MA para fins de emprego.

            Sem custas.

Coimbra, 2 de Fevereiro de 2022
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94.º, n.º2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)

 Paulo Guerra (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)


[1] A lei é clara em referir que as excepções dos artigos 152º, 152º-A e crimes sexuais são sempre referenciados ao diploma que constitui a Lei n.º 113/2009, de 17/9, que estabelece medidas de protecção de menores, em cumprimento do artigo 5.º da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças).
De facto, e concordando-se com o teor do aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/9/2019 (Pº 171/17.7PBMTA-A.L1-9), entendemos que a restrição prevista no art.° 2°/4-a) da Lei n.º 113/2009, de 17/09, não se aplica às condenações pelos crimes previstos nos artigos 152.°, 152.°-A ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, quando as vítimas não sejam menores, como decorre directamente do artigo 1° da Lei n.º 113/2009, de 17/09, conjugada com os artigos 152.°, 152.°-A e 163° a 177° do Código Penal.
Na verdade, a Lei n.º 113/2009, de 17/09, tem por objecto o estabelecimento de "... medidas de protecção de menores em cumprimento do artigo 5.° da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças...." (art.° 1°) e, portanto, só faz sentido a sua aplicação nos casos em que as vítimas desses crimes sejam menores.

[2] Pode mesmo defender-se, como o faz Rui Meirinhos, em artigo publicado na Revista CEJ 2020-I, «Falsificação e Burla: ainda em torno da questão do concurso de crimes» que «esta pretensa diversidade formal de bens jurídicos subjacentes aos tipos legais em apreço é discutível».
A este propósito, lê-se no Acórdão do STJ de 27.04.2011, Processo n.º 456/08.3 GAMMV, disponível in http://www.dgsi.pt, que “a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou do seu nome, elementos que deverão também ser considerados […] só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação, se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos […]”.
E continua Rui Meirinhos:
«A plena compreensão do elemento subjetivo especial da falsificação – “a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo” – permite aproximar, na perspetiva do bem jurídico protegido, este crime da burla, pois também esta comporta um elemento subjetivo especial – a intenção de enriquecimento ilegítimo –, cuja configuração tem pontos de convergência com o da falsificação (embora o benefício almejado nesta não tenha de ser patrimonial), o que desde logo deixa perceber que a falsificação pode proteger os prejuízos causados a interesses dos particulares, que assim configuram um dos objetos imediatos desta incriminação.
É certo que o crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, é prevalecente ou predominantemente protegido. Mas não é o único bem jurídico particularmente protegido com a correspondente incriminação: sempre que pela falsificação se procure obter um benefício ilegítimo, com prejuízo de outra pessoa, o tipo legal protege não só o bem coletivo segurança e confiança do tráfico probatório, mas também o património do concreto prejudicado com ela. Estamos aqui perante situações em que a prática do crime de falsificação de documento visa exclusivamente a realização do crime de burla, em prejuízo de uma pessoa, protegendo aquele tipo legal, em tal caso, simultaneamente, a segurança e confiança no tráfico probatório, mas também o património da pessoa visada pela burla.
Concluímos, assim, que no crime de falsificação de documento pode vislumbrar-se uma confluência ou concorrência de bens jurídicos diferentes, inclusive os protegidos em parte com a incriminação da burla, pelo que não pode afirmar-se, sem mais, que os bens jurídicos tutelados por aqueles tipos legais sejam completamente autónomos, perfeitamente distintos, sem hipótese de margens de contacto ou interligação, sendo criticável a apontada como inultrapassável diversidade de bens jurídicos protegidos na burla e na falsificação.
Por isso, compreender-se-ão melhor os reais bens jurídicos tutelados por cada norma incriminadora à luz da apreciação da situação factual concreta. Ou seja, será a interpretação do tipo legal – mas por referência ao facto concreto do agente – que deverá permitir, caso a caso, a averiguação dos efetivos interesses e bens jurídicos violados naquele “pedaço de vida”, pelo que não poderá concluir-se que os crimes de falsificação e de burla estejam sempre entre si “condenados” ao concurso efetivo. Tudo dependerá, afinal, da configuração no caso concreto dos ilícitos singulares concorrentes face ao sentido social do ilícito global e da concreta lesão dos bens jurídicos protegidos por cada uma das normas incriminadoras».
Olhando para o caso presente, e para o contorno das duas acções praticados pela arguida nos 2 processos, poderemos encontrar similitudes. Sempre se dirá, contudo, que mesmo a considerar-se que o contorno das duas acções, nos dois processos, da arguida é semelhante, não chega para se considerar que estamos perante um típico caso de crimes da mesma natureza, capaz de obviar à aplicação directa do artigo 13º em causa com base nesse argumento.
O Professor Marnoco e Sousa defende que são crimes da mesma natureza aqueles que tem essencialmente os mesmos elementos constitutivos – ora, os elementos constitutivos do crime de burla e do crime de falsificação não são, manifestamente, os mesmos. Recorde-se até, como exemplo paradigmático, o Assento n.º 5/1960 do STJ que estabeleceu que «os crimes culposos de homicídio e de ofensas corporais não são da mesma natureza, para efeitos de reincidência».
Veja-se até a definição no Código Penal Brasileiro de 1940, criado pelo Decreto-Lei n.º 2.848, de 7/12/1940 que nos pode dar uma ajuda preciosa - «Consideram-se crimes da mesma natureza os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns».
Como tal, atrevemo-nos a gizar uma possível definição de «crimes da mesma natureza» - são crimes da mesma natureza aqueles que têm essencialmente os mesmos elementos constitutivos, quer objectivos, quer subjectivos, abrangendo os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos elementos que os constituem ou pelos seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns.
[3] Tendo ainda como assente que também se costuma falar na natureza dos crimes de acordo com a fonte do impulso para instauração de procedimento criminal (sendo eles assim classificados como crimes públicos, semi-públicos e particulares), estando todos de acordo que a «natureza» aludida no artigo 13º em causa não passa por este critério.
[4] Nos termos do art. 77.º, n.º 1, do Código Penal (CP), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo nesta considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Por conseguinte, são dois os pressupostos que a lei exige para a aplicação de uma pena única:
1º- prática de uma pluralidade de crimes pelo mesmo arguido, formando um concurso efectivo de infracções, seja ele concurso real, seja concurso ideal (homogéneo ou heterogéneo);

2º- que esses crimes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, ou seja: a decisão que primeiro transitar em julgado fica a ser um marco intransponível para se considerar a anterioridade necessária à existência de um concurso de crimes.
Se o crime ou crimes forem praticados depois do trânsito, já a pluralidade ou concurso de crimes não dá lugar à aplicação de uma única pena, mas sim a penas ou cúmulos sucessivos, eventualmente considerando-se a agravante da reincidência, se se verificarem os respectivos pressupostos do art. 75.º do CP.
Portanto:
1- Há lugar a cúmulo jurídico de penas e à aplicação de uma pena unitária no caso de conhecimento superveniente do concurso, quando o agente praticou dois ou mais crimes antes do trânsito da condenação por qualquer deles, e a situação só vem a ser conhecida depois do trânsito em julgado da primeira condenação.  
2- O momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes é, pois, o do trânsito em julgado da primeira condenação.
3- Desta forma: se todos os crimes foram praticados antes do trânsito da condenação por qualquer deles, encontram-se todos numa relação de concurso a ser objecto do mesmo cúmulo jurídico, a sancionar com uma pena única.
Ou seja:
1. O pressuposto para o conhecimento superveniente do concurso e o cúmulo jurídico das penas, é a prática pelo agente de diversos crimes antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles;
2. O trânsito em julgado da primeira das condenações é o pressuposto temporal do concurso de penas em que se fixa a data a partir da qual os crimes não estão em concurso com os anteriores para efeitos de cúmulo jurídico - só se podem cumular juridicamente penas relativas a infracções que estejam em concurso e tenham sido praticadas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, só sendo cumuláveis penas em concurso, pois o art. 78.º não pode ser interpretado desligado do art. 77.º do CP;
3. Os crimes praticados depois do trânsito em julgado da primeira condenação ficam excluídos do cúmulo realizado antes daquele trânsito, havendo lugar nestes casos a execução sucessiva de penas.



[5] Caso ela volte a prevaricar, temos sempre a válvula de escape legal do n.º 3 do citado artigo 13º (revogação da decisão de não transcrição), podendo o sistema jurídico respirar de alívio.