Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1558/12.7TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: CRIME CONTINUADO
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JC CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 30.º, N.ºS 2 E 3, DO CP
Sumário: I - São requisitos do crime continuado descritos nos nºs 2 e 3 do artigo 30º, do Código Penal:
a) A realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais.

b) Execução essencialmente homogénea das sobreditas violações.

c) No quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa.

d) Um elemento subjectivo que se há-de estender à inteira relação de continuação, abrangendo as hipóteses de um dolo conjunto (planeamento prévio pelo agente das diversas resoluções típicas) ou de um dolo continuado (o plano do agente de que repetiria a realização típica sempre que a ocasião se proporcionasse).

II - O crime continuado distingue-se do concurso real de crimes apenas em razão dos elementos aglutinadores que a lei prevê: unidade do bem jurídico protegido, execução por forma essencialmente homogénea e diminuição considerável da culpa em razão de uma mesma situação exterior.

III - É necessário ser rigoroso na aferição dos requisitos de que depende a figura do crime continuado, sob pena de se premiar e promoverem as carreiras criminosas longas.

Decisão Texto Integral:








 Acordam em audiência, os Juízes, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

            1. Nos autos de processo comum supra identificados, em que é arguida

            A... , divorciada, consultora financeira, nascida a 13/02/1961 em (...) , filha de (...) e de (...) , titular do B. de Id. nº (...) emitido pelo Arq. de Id. de Coimbra em 04/04/2011, com última residência conhecida na Rua (...) Coimbra  

 

      

            Imputando-lhe o Ministério Público como autora material, em concurso real:

            NUIPC 1558/12.7TACBR

            1) dois crimes de abuso de confiança qualificado, ps. e ps. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. a);

            2) dois crimes de falsificação de documento, ps. e ps. pelo art. 256º, nºs 1, als. c) e e) e 3; ambos do Cód. Penal

            NUIPC 1580/11.0TACBR

            1) dois crimes de abuso de confiança qualificado, ps. e ps. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. a);

            2) um crime de falsificação de documento na forma continuada, p. e p. pelas disposições combinadas dos arts. 30º, nº 2 e 256º, nº1, als. a) e c); todos do Cód. Penal

Foi a mesma julgada e a final decidido:

1. Condenam a arguida A... pela prática como autora material e em concurso real nas seguintes penas:

- um crime de abuso de confiança qualificado, ps. e ps. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. a) na pena de 20 (vinte) meses de prisão (relativamente ao ofendido B... );

- um crime de abuso de confiança qualificado, ps. e ps. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. a) na pena de 20 (vinte) meses de prisão (relativamente ao ofendido C... );

- um crime de abuso de confiança qualificado, ps. e ps. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. a) na pena de 20 (vinte) meses de prisão (relativamente ao ofendido D... );

- um crime de abuso de confiança qualificado, ps. e ps. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, al. a) na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão (relativamente ao ofendido E... );

- um crime de falsificação de documento, ps. e ps. pelo art. 256º, nºs 1, als. c) e e) e 3; ambos do Cód. Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão (relativamente ao ofendido B... );

- um crime de falsificação de documento, ps. e ps. pelo art. 256º, nºs 1, als. c) e e) e 3; ambos do Cód. Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão (relativamente ao ofendido C... );

- um crime de falsificação de documento, ps. e ps. pelo art. 256º, nºs 1, als. c) e e) e 3; ambos do Cód. Penal, na pena de 14 (catorze) meses de prisão (relativamente ao ofendido D... )

  EM CÚMULO JURÍDICO DE PENAS na PENA ÚNICA de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses suspensa na sua execução por igual período com a obrigação de a arguida pagar a cada um dos quatro ofendidos a quantia mensal de 100,00 Euros até ao final de tal período ou no caso da demandante E... do pagamento total da quantia devida a título de indemnização por danos não patrimoniais, por transferência bancária para a conta a indicar pelos ofendidos a proceder até ao 8 dia útil de cada mês, iniciando-se no mês seguinte ao trânsito em julgado da presente decisão.

            2. Desta decisão recorre a arguida que formula as seguintes conclusões:

            B1. O presente recurso vem na senda do douto Acórdão que condenou a arguida, aqui recorrente pela prática de quatro crimes de abuso de confiança qualificado, todos p. e p. pelo art. 205º-1-4, al. a) do CP e três crimes de falsificação de documento todos p. e p. pelo art. 256º- 1, c) e e) e 3, do CP,

            B2. Violando, desse jeito, o disposto no n.º 2 do artigo 30º do CP.

            B3. Com efeito, a arguida deveria ter sido condenada apenas na prática de um crime de abuso de confiança e outro de falsificação de documento.

            B4. Na verdade, da conjugação da factualidade dada como provada resulta evidente que a recorrente agiu no quadro da mesma solicitação exterior, de uma forma essencialmente homogénea, atentando contra o mesmo bem jurídico, sendo certo que é da conjugação dos referidos elementos que resulta uma sensível diminuição da culpa do agente.

            B5. De facto, a manutenção do condicionalismo que presidiu à prática do primeiro acto volitivo condicionou fortemente a capacidade do agente se comportar de acordo com o direito e levou-o à reiteração das actividades delinquentes, pelo que estamos perante um exemplo de escola da continuação da actividade criminosa.

            Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das “conclusões” tecidas, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

           

3. Respondeu o Ministério Público, dizendo em síntese, que:

1 – Da matéria de facto considerada assente resulta que a arguida foi adaptando o seu “modus operandi” às especificidades de cada situação e de cada ofendido.

2 – A reiteração de condutas, a que correspondem várias resoluções criminosas, não encontra justificação em qualquer circunstância ou solicitação externa capaz de diminuir a culpa da arguida.

3 – E qualquer circunstância externa que neste âmbito se considere, tem inequivocamente origem na conduta, livre e voluntária da arguida, que assim a criou.

4 – No que aqui se discute, não se verificam os pressupostos de aplicação da figura da continuação criminosa, pois como referido, não se mostra fixado qualquer facto do qual resulte a existência de um condicionalismo exterior à arguida, que tenha facilitado a sua repetida actuação, diminuindo ou mitigando, pois, a sua culpa.

5 – A conduta reiterada da arguida integra efectivamente a prática, em concurso efectivo, dos crimes pelos quais foi condenada, ou seja, quatro crimes de abuso de confiança e três de falsificação de documento.

6 – Não foi violada qualquer norma ou princípio jurídico.

7 - O acórdão impugnado deverá ser mantido nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.           

4. Realizou-se a audiência de julgamento conforme requerido pela arguido, para discussão da questão suscitada.

            5. Nesta, o ilustre defensor nomeado para o efeito antes do seu início, manteve a posição do recurso da arguida

            6. O Ex.mº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da posição assumida pelo Ministério Público em primeira instância, para a qual de algum modo remeteu, defendendo a existência do concurso real de crimes de burla e de falsificação  e não de crimes continuados, devendo ser mantido o decidido.

II

São os seguintes os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida:

Factos Provados da Acusação Pública:

NUIPC 1558/12.7TACBR

A arguida, pelo menos desde 2006 até finais do ano de 2010, exerceu funções de consultora financeira na firma “H..., Lda.”, a qual se apresentava como agente da “ I... , Lda.” e tinha escritórios na Avª (...) , , nesta Cidade e comarca de Coimbra.

1ª PARTE

Foi no âmbito dessa sua actividade que foi contactada por B... e esposa BB... , os quais a mandataram para, em nome deles, efectuar uma operação de mediação financeira que se traduzia na transferência do crédito bancário que aqueles tinham na J (...) para o Banco L (...) , S. A., com vista a que esta entidade bancária lhes permitisse saldar todos os débitos que aqueles tinham em várias instituições bancárias, nomeadamente no S (...) , no T (...) e na R (...) , de forma que os referidos B... e BB... pudessem pagar todos os empréstimos de que na altura eram devedores e passariam a pagar uma só prestação de valor inferior ao somatório das várias prestações que tinham a seu cargo.

Essa tarefa foi concretizada e o empréstimo pretendido acabou por ser aprovado e concedido em Agosto de 2008 pelo Banco L (...) , S. A., tendo, nessa data, esta instituição emitido vários cheques para pagamento de todos os débitos dos ditos B... e BB... àquelas entidades financeiras, ficando estes convencidos que daí em diante apenas eram devedores perante o Banco L (...) , S. A., ao qual têm vindo a pagar todas as prestações que lhes são exigidas.

Tais cheques emitidos pelo Banco L (...) , S. A. ficaram por isso em poder da arguida para esta os entregar às entidades a que se destinavam para assim saldar as dívidas dos ofendidos.

Um desses cheques emitido em 3 de Setembro de 2008 pelo Banco L (...) , S. A. foi o cheque nº (...) que movimenta a conta (...) titulada por essa instituição bancária e no qual foi inscrito o valor de € 14.478,82 e o nome R (...) no campo destinado à identificação do beneficiário, ficando, assim, a arguida incumbida de, com esse cheque, liquidar a totalidade das responsabilidades que aqueles tinham junto da financeira R (...) , pelo que, apesar de a arguida não lhes ter entregue qualquer declaração comprovativa, os mencionados B... e BB... ficaram convencidos de que a arguida iria proceder em conformidade com o combinado e que, dessa forma, ficariam integralmente desresponsabilizados de todas as obrigações que tinha para com a R (...) .

Todavia, e não obstante a arguida saber que a importância monetária inscrita do aludido título de crédito que daquela forma recebeu devia ser entregue à financeira R (...) para pagamento da dívida que aqueles tinham para com essa instituição bancária, decidiu não entregar esse cheque à referida instituição de crédito a quem o mesmo se destinava, passando a retê-lo em seu poder, acabando por se apropriar em proveito próprio da quantia monetária de € 14,478,82 nele inscrita quando, no dia 3 de Setembro de 2008 se dirigiu à agência da J (...) da (...) , nesta Cidade e comarca de Coimbra, e o depositou na conta nº (...) por si titulada na J (...) ..

Para o efeito, a arguida apôs ou mandou apor no verso do dito cheque a seguinte menção: “ R (...) ” e duas assinaturas ilegíveis, após o que ali também inscreveu o seu próprio nome, tudo para fazer crer que esse título de crédito lhe tinha sido endossado pela beneficiária do mesmo.

Agiu a arguida com a intenção alcançada de fazer seu o cheque que os ofendidos B... e BB... lhe entregaram com a finalidade de o fazer chegar à financeira R (...) para pagamento da dívida que aqueles tinham para com essa instituição bancária, bem sabendo que a quantia monetária inscrita nesse título de crédito não lhe pertencia e que, dessa forma, actuava contra a vontade dos seus legítimos proprietários, a quem causou um prejuízo não inferior a € 14.478,14.

Por outro lado, ao apor ou mandar apor no verso daquele cheque a menção “ R (...) ” e duas assinaturas ilegíveis, bem sabendo que as mesmas não tinham sido produzidas pelos representantes daquela financeira, agiu a arguida, prevendo a possibilidade de tal menção e assinaturas serem aceites como válidas pela instituição de crédito onde depositou esse cheque, conformando-se com tal possibilidade, com o propósito concretizado de criar a aparência de que o mesmo lhe tinha sido validamente endossado pela beneficiária do mesmo, consciente de que, dessa forma, causaria, como causou, um prejuízo aos ofendidos na medida em que, nessa sequência, foram responsabilizados pela R (...) pelo pagamento dos valores referentes às prestações que se continuaram a vencer e respectivas penalizações e que julgavam já não existir por terem entregue à arguida o mencionado cheque para que esta pagasse integralmente a sua dívida, assim obtendo a arguida um benefício que lhe não era devido e que, de outra forma, não lograria obter.

Actuou livre e conscientemente, bem sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei penal.

2ª PARTE

Foi também no âmbito daquela actividade a que a arguida se dedicava que foi contactada por C... , o qual também a mandatou para, em nome deles, efectuar uma operação de mediação financeira que se traduzia na transferência do crédito bancário que aqueles tinham no B.P.I. e na P (...) para o Banco L (...) , S. A., com vista a que esta entidade bancária lhes permitisse saldar todos os débitos que aqueles tinham nas referidas instituições bancárias de forma que o ofendido C... pudesse pagar todos os empréstimos de que na altura era devedor e passasse a pagar uma só prestação de valor inferior ao somatório das várias prestações que tinha a seu cargo.

Essa tarefa foi concretizada e o empréstimo pretendido acabou por ser aprovado e concedido em Março de 2009 pelo Banco L (...) , S. A., tendo, nessa data, esta instituição emitido um cheque para pagamento do débito do dito C... à P (...) , ficando este convencido que daí em diante apenas era devedor perante o Banco L (...) , S. A., ao qual tem vindo a pagar todas as prestações que lhe são exigidas.

Esse cheque emitido em 25 de Março de 2009 pelo Banco L (...) , S. A. foi o cheque nº (...) que movimenta a conta (...) titulada por essa instituição bancária e no qual foi inscrito o valor de € 14.200,00 e o nome Banco P (...) , S. A. no campo destinado à identificação do beneficiário, e foi pelo C... entregue à arguida para esta o entregar à entidade a que se destinava e assim saldar a dívida do ofendido, ficando a arguida bem consciente que ficava incumbida de, com esse cheque, liquidar a responsabilidade que aquele tinha junto da financeira P (...) , pelo que, apesar de a arguida não lhe ter entregue qualquer declaração comprovativa, o C... ficou convencido de que a arguida iria proceder em conformidade com o combinado e que, dessa forma, ficaria integralmente desresponsabilizado das obrigações que tinha para com a P (...) .

Todavia, e não obstante a arguida saber que a importância monetária inscrita do aludido título de crédito que daquela forma recebeu devia ser entregue à financeira P (...) para pagamento da dívida que o C... tinha para com essa instituição bancária, decidiu não entregar esse cheque à referida instituição de crédito a quem o mesmo se destinava, passando a retê-lo em seu poder, acabando por se apropriar em proveito próprio da quantia monetária de € 14.200,00 nele inscrita quando, no dia 27 de Março de 2009 se dirigiu à agência da J (...) da (...) , nesta Cidade e comarca de Coimbra, e o depositou na conta nº (...) por si titulada na J (...) ..

Para o efeito, a arguida apôs ou mandou apôr no verso do dito cheque a seguinte menção: “Banco P (...) ” e duas assinaturas ilegíveis, após o que ali também inscreveu o seu próprio nome, tudo para fazer crer que esse título de crédito lhe tinha sido endossado pela beneficiária do mesmo.

Concomitantemente, a arguida solicitou telefonicamente à financeira P (...) a alteração do contacto telefónico para recebimento de todas as comunicações emanadas dessa instituição de crédito referentes ao contrato de crédito aí contraído pelo C... , indicando o seu próprio número de telemóvel em substituição do número de telemóvel que inicialmente constava no contrato e que era o número de telemóvel daquele, tendo-o conseguido alterar, assim passando a constar naquela instituição o número de telemóvel da arguida, o que implicou que o C... não se tivesse apercebido de imediato que continuava a figurar como devedor, do que só veio a ter conhecimento no dia 5 de Novembro de 2012 quando recebeu a carta junta a fls. 70 proveniente da P (...) a alertá-lo para a existência de prestações em atraso, e só depois dessa data é que procedeu às necessárias averiguações e veio a tomar conhecimento que o seu crédito não tinha sido pago pela arguida com o supra mencionado cheque que para o efeito lhe havia entregue.

Agiu a arguida com a intenção alcançada de fazer seu o cheque que o ofendido C... lhe entregou com a finalidade de o fazer chegar à financeira P (...) para pagamento da dívida que aquele tinha para com essa instituição bancária, bem sabendo que a quantia monetária inscrita nesse título de crédito não lhe pertencia e que, dessa forma, actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário, a quem causou um prejuízo não inferior a 8.461,15 Euros.

Por outro lado, ao apôr ou mandar apôr no verso daquele cheque a menção “Banco P (...) ” e duas assinaturas ilegíveis, bem sabendo que as mesmas não tinham sido produzidas pelos representantes daquela financeira, agiu a arguida, prevendo a possibilidade de tal menção e assinaturas serem aceites como válidas pela instituição de crédito onde depositou esse cheque, conformando-se com tal possibilidade, com o propósito concretizado de criar a aparência de que o mesmo lhe tinha sido validamente endossado pela beneficiária do mesmo, consciente de que, dessa forma, causaria, como causou, um prejuízo ao ofendido na medida em que, nessa sequência, foi responsabilizado pela P (...) pelo pagamento dos valores referentes às prestações que se continuaram a vencer e respectivas penalizações e que julgava já não existir por ter entregue à arguida o mencionado cheque para que esta pagasse integralmente a sua  dívida, assim  obtendo a arguida um benefício que lhe não era devido e que, de outra forma, não lograria obter.

Actuou livre e conscientemente, bem sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei penal.

*

NUIPC 1580/11.0TACBR

A arguida, pelo menos desde 2006 até finais do ano de 2010, exerceu funções de consultora financeira na firma “ I... , Lda.” Com sede na Rua dos (...) e com escritório na Rua (...) , ambas nesta Cidade e comarca de Coimbra.

1ª PARTE

Foi no âmbito dessa sua actividade que foi contactada por D... , o qual a mandatou para, em nome dele, obter um crédito no valor de € 60.000,00 junto do T (...) com vista a, com esse dinheiro, o D... poder pagar todos os empréstimos de que na altura era devedor e passar a pagar uma só prestação de valor inferior ao somatório das várias prestações que tinha a seu cargo.

Essa tarefa foi concretizada e o empréstimo pretendido acabou por ser aprovado, sendo que o montante mutuado foi recebido pelo D... que dessa forma pagou os anteriores empréstimos que titulava.

Contudo, ficou por saldar o valor de € 6.895,00 de que o D... era devedor na P (...) , pelo que, para o efeito, no dia 22 de Junho de 2010 aquele emitiu ao portador e entregou à arguida o cheque nº (...) que movimenta a conta nº (...) de que é titular no T (...) e no qual inscreveu a data de 22/06/2010 e o valor de € 6.895,00, ficando, assim, a arguida incumbida de, com esse dinheiro, liquidar a totalidade das responsabilidades que aquele tinha junto da financeira P (...) , pelo que, apesar de a arguida não lhe ter entregue qualquer declaração comprovativa ou recibo de quitação, o mesmo ficou convencido de que a arguida iria proceder em  conformidade com o combinado e que, dessa forma, ficaria integralmente desresponsabilizado de todas as obrigações que tinha para com essa instituição de crédito.

Todavia, e não obstante a arguida saber que a importância monetária que daquela forma recebeu do D... devia ser entregue à financeira P (...) para pagamento da dívida que aquele tinha para com essa instituição bancária, decidiu não entregar essa quantia monetária à referida instituição de crédito a quem esse dinheiro se destinava, passando a retê-la em seu poder, assim se apropriando da mesma em proveito próprio porque depositou o mencionado cheque no valor de € 6.895,00 na conta nº (...) por si titulada no T (...) .

Ora, como entretanto o D... questionou a arguida sobre a razão de a P (...) não lhe ter enviado qualquer documento comprovativo do pagamento efectuado e da liquidação integral da dívida, a arguida decidiu elaborar o documento junto a fls. 42, que aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais, onde fez constar a dentificação da P (...) e “Banco V (...) , S.A..” como sendo a emitente de tal documento, ali declarando que o D... , titular do contrato de crédito nº (...) , tinha pago a totalidade da sua dívida no valor de € 6.895,00 em Junho de 2010, após o que datou o referido documento com a data de 23/08/2010 e nele apôs ou mandou apôr a assinatura de Z (...) sem que esta lhe tenha dado autorização para o efeito.

Porém, quando o D... recebeu esse documento que a arguida lhe entregou, logo detectou o lapso na identificação do contrato de crédito de que era titular na P (...) , do que deu conhecimento à arguida, pelo que esta, renovando a sua vontade de produzir declarações que não correspondem à verdade, no dia 25/08/2010 elaborou a declaração junta a fls. 43, que aqui também se dá por inteiramente reproduzida para todos os efeitos legais, na qual voltou a fazer constar a identificação da P (...) e “Banco V (...) , S.A..” como sendo a emitente de tal documento, ali declarando que o D... , titular do contrato de crédito nº (...) , tinha liquidado integralmente toda a sua dívida, após o que ali apôs ou mandou apôr a assinatura de Z (...) sem que esta lhe tenha dado autorização para o efeito.

Com este comportamento a arguida conseguiu criar no D... a convicção de que o cheque que lhe entregou tinha servido para liquidar todas as suas responsabilidades para com a P (...) , o que afinal não correspondia à verdade.

Concomitantemente, a arguida solicitou telefonicamente à financeira P (...) a alteração de morada para recebimento de todas as comunicações emanadas dessa instituição de crédito referentes ao contrato de crédito aí contraído pelo D... , indicando a sua própria morada em substituição da morada que inicialmente constava no contrato e que era a morada daquele, mas apenas conseguiu alterar a indicação do número de telemóvel de contacto, assim passando a constar na P (...) o número de telemóvel da arguida, o que implicou que o D... não se tivesse apercebido de imediato que continuava a figurar como devedor, do que só veio a ter conhecimento em finais de Setembro de 2010 quando recebeu a carta proveniente da P (...) , cuja cópia consta de fls. 44, informando-o da existência de prestações em atraso, pois entretanto a arguida deixou de pagar as prestações desse empréstimo titulado pelo D... e cujo pagamento tinha assumido até essa data.

Agiu a arguida com a intenção alcançada de fazer seu o dinheiro que o D... lhe entregou com a finalidade de o fazer chegar à financeira P (...) para pagamento da dívida que tinha para com essa instituição bancária, bem sabendo que tal quantia monetária não lhe pertencia e que, dessa forma, actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário, a quem causou um prejuízo não inferior a € 6.895,00.

Por outro lado, ao mencionar a identificação da P (...) e “Banco V (...) , S.A..” nos documentos de liquidação de dívida que elaborou e entregou ao D... e onde apôs ou mandou apôr a assinatura de Z (...) , bem sabendo que as declarações nelas inscritas não correspondiam à verdade e que aquelas assinaturas não tinham sido produzidas pela representante daquela financeira, agiu a arguida, prevendo a possibilidade de tais menções e assinaturas serem aceites como válidas pelo D... , conformando-se com tal possibilidade, com o propósito concretizado de criar a aparência de que tais documentos tinham sido emitidos pela entidade neles identificada, convencendo-o de que o teor dos documentos em causa correspondia à verdade, consciente de que, dessa forma, causaria, como causou, um prejuízo àquele na medida em que, nessa sequência, foi responsabilizado pela P (...) pelo pagamento dos valores referentes às prestações que se continuaram a vencer e respectivas penalizações e que julgava já não existirem por ter entregue à arguida o montante necessário para que esta pagasse integralmente a sua dívida, assim obtendo a arguida um benefício que lhe não era devido e que, de outra forma, não lograria obter.

Actuou livre e conscientemente, bem sabendo que praticava actos proibidos e punidos por lei penal.

2ª PARTE

Foi também no âmbito daquela actividade a que a arguida se dedicava que foi contactada por E... , a qual a mandatou para, em nome dela, obter um crédito com vista a, com o dinheiro assim obtido, a E... poder pagar todos os empréstimos de que na altura era devedora e passar a pagar uma só prestação de valor inferior ao somatório das várias prestações que tinha a seu cargo.

Essa tarefa foi concretizada e o empréstimo pretendido acabou por ser aprovado, sendo que o montante mutuado foi recebido pela E... que dessa forma ficou com disponibilidade financeira para pagar os anteriores empréstimos que titulava.

Assim, no âmbito do acordo que firmara com a arguida, no dia 9 de Novembro de 2010 a E... entregou-lhe:

1) o cheque nº 1614873612 que movimenta a conta nº (...) de que é titular na J (...) e no qual inscreveu o nome da arguida como beneficiária, a data de 09/11/2010 e o valor de € 9.800,00;

2) o cheque nº 2514873611 que movimenta a conta nº (...) de que é titular na J (...) e no qual inscreveu o nome da arguida como beneficiária, a data de 09/11/2010 e o valor de € 2.000,00; destinando-se tais cheques ao pagamento das responsabilidades tituladas pela E... junto do M (...) (no valor de € 4.637,00), da N (...) (€ 2.082,00), do O (...) (€ 481,98) e do P (...) (€ 2.000,00) e para pagamento de honorários da arguida e despesas com os serviços prestados (€ 2.600,00).

Nesse mesmo dia 9 de Novembro de 2010 a E... ainda entregou à arguida a quantia de € 200,00 para esta os depositar na conta titulada pela E... no L (...) através da qual era pago o empréstimo por si também titulado na financeira R (...) , pelo que, no total, a E... entregou à arguida a quantia de € 12.000,00, pois os referidos cheques no valor de € 9.800,00 e € 2.000,00 foram pela arguida depositados na conta nº (...) por si titulada na J (...) , ficando, assim, a arguida em poder de todos esses montantes monetários por ter sido incumbida de, com esse dinheiro, liquidar a totalidade das responsabilidades que a E... tinha junto das aludidas financeiras, pelo que, apesar de a arguida não lhe ter entregue qualquer declaração comprovativa ou recibo de quitação, aquela ficou convencida de que a arguida iria proceder em conformidade com o combinado e que, dessa forma, ficaria integralmente desresponsabilizada de todas as obrigações que tinha para com as referidas instituições de crédito.

Todavia, e não obstante a arguida saber que as importâncias monetárias que daquela forma recebeu da E... deviam ser entregues às aludidas financeiras para pagamento das dívidas que aquela tinha para com essas instituições bancárias, decidiu não entregar qualquer quantia monetária às referidas instituições de crédito a quem esse dinheiro se destinava, passando a reter em seu poder a totalidade das importâncias que a E... lhe entregou, assim se apropriando de cerca de € 10.000,00 em proveito próprio.

Concomitantemente, a arguida solicitou telefonicamente à financeira R (...) a alteração de morada para recebimento de todas as comunicações emanadas dessa instituição de crédito referentes ao contrato de crédito aí contraído pela E... , indicando a sua própria morada e número de telemóvel em substituição da morada e número de telemóvel que inicialmente constava no contrato e que era a morada e número de telemóvel daquela, tendo-os conseguido alterar, assim passando a constar naquela instituição a morada e o número de telemóvel da arguida, o que implicou que a E... não se tivesse apercebido de imediato que continuava a figurar como devedora, do que só veio a ter conhecimento no dia 24 de Junho de 2011 quando recebeu um telefonema proveniente da R (...) a alertá-la para a existência de prestações em atraso, e só depois dessa data é que procedeu às necessárias averiguações e veio a tomar conhecimento que os seus créditos não tinham sido pagos pela arguida com o dinheiro que para o

efeito lhe havia entregue.

Agiu a arguida com a intenção alcançada de fazer seu o dinheiro que a E... lhe entregou com a finalidade de o fazer chegar às várias financeiras para pagamento das dívidas que titulava em cada uma dessas instituições bancárias, bem sabendo que as quantias monetárias que dessa forma recebeu não lhe pertenciam e que, assim, actuava contra a vontade da sua legítima proprietária, a quem causou um prejuízo não inferior a € 10.000,00.

Actuou livre e conscientemente, bem sabendo que praticava acto proibido e punido por lei penal.

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            Outros Factos Provados 

A demandante E... tem vivido sob grande pressão e sempre com receio de aparecimento de mais créditos, contraídos pela demandada, em seu nome.

O bom nome e honra da demandante foram postos em causa, razão pela qual a demandante tem-se sentido profundamente deprimida e humilhada.

A mãe da demandante E... entregou à arguida a quantia de 10.000,00 Euros a fim desta proceder ao pagamento da quantia pertença da demandante que se havia apropriado, tendo a mesma se confessado devedora perante aquela de tal quantia.

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A arguida ainda procedeu a alguns pagamentos relativos ao mútuo titulado por C... , tendo ficado em divida a quantia de 5.076,69 Euros.

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            A... nasceu em L (...) , é a mais velha de cinco irmãos e o seu crescimento decorreu num contexto familiar de classe média que é referido como harmonioso.

Tinha nove anos quando a família se mudou para Coimbra, onde permaneceu em estreita convivência com os pais (residentes em (...)) e dois irmãos residentes em (...) . A arguida tem dois irmãos emigrados, em Espanha e Alemanha, com quem mantem estreito contacto.

Iniciou a escolaridade em idade própria, num colégio particular de L (...) onde completou a terceira classe. Com a mudança da família para Coimbra ingressou no ensino público. Completou o 12º ano de escolaridade aos 25 anos, em regime de ensino noturno, por equivalência adquirida quando completou o Curso Geral de Administração e Comércio, na Escola (...) .

A... casou aos 21 anos, tendo por esse motivo interrompido os estudos e ingressado no então denominado U (...) ( (...) ), com as funções de telefonista. Passados seis meses tornou-se efetiva do quadro de pessoal deste banco, e transitou para a Secção Administrativa e de Contabilidade, onde exerceu funções durante cerca de seis anos.

Foi transferida para a Agência do (...) com as funções de assistente comercial e, um ano depois, teve a promoção a Sub-Gerente na mesma Agência, que acumulava com a de Procuradora do Banco, onde trabalhou durante cerca de treze anos.

Foi transferida para Coimbra, inicialmente para a Agência de W...... e, posteriormente, para a K..., beneficiando de boa imagem junto dos superiores hierárquicos.

Em 2002/2003 o U (...) passou para o Grupo T (...) e a arguida manteve as funções de assistente comercial.

Em Julho de 2006 passou à situação de reforma por invalidez para toda e qualquer profissão, com o diagnóstico de psicose (desenvolvimento paranóide), beneficiando da pensão de reforma no valor de 588 EUR.

Apesar de reformada para toda e qualquer profissão A... continuou a fazer aconselhamento financeiro a particulares, com vista ao aumento dos seus rendimentos mensais familiares e poder continuar a manter o abastado nível de vida a que estavam habituados.

Em 2007 a arguida recebeu o diagnóstico de Carcinoma da Mama e foi submetida a mastectomia radical à esquerda, em Setembro desse ano. Presentemente ainda é seguida nas consultas de rotina, com algum espaçamento.

O divórcio da arguida aconteceu em Abril de 2011, contra a sua vontade, e procurou “refúgio” emocional na casa do irmão que reside em Espanha (Pamplona) onde permaneceu durante cerca de quatro anos.

Regressou a Coimbra em Agosto de 2015, para estar presente no nascimento do neto e apoiar a filha, com quem tem uma relação muito próxima e cúmplice.

Vive sozinha desde que sua filha se casou e reside na morada constante nos presentes autos, desde Agosto de 2015, em casa arrendada.

Faz prestação de serviços de ama no domicílio de um casal, em regime de horário semanal completo, como forma de angariar mais uma fonte de rendimento mensal e colmatar as dificuldades económicas por subsistir da pensão da reforma por invalidez.

A arguida tem as seguintes rendimentos mensais: Pensão de Reforma: €588,19; Prestação de serviços de ama: €500

As despesas mensais fixas descritas e comprovadas pela arguida são as seguintes: Renda de casa: €360; Água: €17,31; Gás: €18; Eletricidade: 60/70€ (aproximadamente).

Nestas despesas não estão contabilizadas as despesas gerais com alimentação e outras que são de montante variável (vestuário, calçado, medicamentos, etc).

No meio comunitário o seu estilo de vida é referido como pacato, centrado no apoio à família (filha, neto e pais).

*

A arguida não tem antecedentes criminais.

III

            Questão suscitada e a apreciar:

            Se a conduta da arguida integra dois crimes continuados, um de burla e outro de falsificação ou se, pelo contrário, integra um concurso real de crimes, quer de burla quer de falsificação, nos termos em que foi condenada.

IV

           

            Apreciando:  

            1. Esta questão tem a sua base de fundamentação no disposto no artigo 30º, do Código Penal, com o seguinte teor:

            1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
            2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
            3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.

            2. Diz a recorrente:

            “Na perspectiva da recorrente, o elemento indubitavelmente pertinente à economia da figura do crime continuado que adquire especial densidade e acuidade é o da diminuição da culpa do agente. Para dizer de novo com o autor e obra citados[1], haverá de se atentar na nota impressiva desse aludido condicionalismo quando aí refere que “a diminuição da culpa do agente em certos casos de reiteração de condutas criminosas, foi a ideia à luz da qual procurámos delimitar o âmbito do crime continuado ”, complementando o que antes se havia escrito “(...) dever-se-á antes de tudo começar por investigar e traçar o quadro daquelas situações exteriores que, preparando as coisas para a repetição da actividade criminosa, diminuem sensivelmente o grau da culpa do respectivo agente

            E acrescenta:

            “A conduta da arguida é desdobrável na prática (naturalística) de vários crimes quer de abuso de confiança, quer de falsificação de documento; na sua essência, todos eles foram praticados de modo em tudo idêntico, sendo sempre o mesmo o modus operandi e todos eles praticados no decurso de uma encenação que a arguida erigiu e ao abrigo dos quais actuava; também a culpa da arguida, na senda do expendido, se mostra diminuída pois que o eclodir dos primeiros crimes facilitou a sua reiteração factual, por ter a arguida passado a dominar o modo concreto de os repetir”.

 

2. Os requisitos do crime continuado mostram-se descritos nos nºs 2 e 3 do artigo 30º, do Código Penal supra transcrito:

1 - Realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais.

2- Execução essencialmente homogénea das sobreditas violações.

3- No quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa.

4- Um elemento subjectivo que se há-de estender à inteira relação de continuação, abrangendo as hipóteses de um dolo conjunto (planeamento prévio pelo agente das diversas resoluções típicas) ou de um dolo continuado (o plano do agente de que repetiria a realização típica sempre que a ocasião se proporcionasse).

3. Quer a doutrina quer a jurisprudência não divergem quanto à exigência dos necessários requisitos para a integração do crime continuado.

Para além da posição de Eduardo Correia já anotada pela recorrente na sua motivação de recurso, louvamo-nos ainda no que é acrescentado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso:

“Refere o Prof. Germano Marques da Silva em “Direito Penal Português, Parte Geral – II Teoria do Crime”, Verbo, 1998, págs 315 e ss, que “(...) como nota característica do crime continuado destaca-se uma pluralidade de acções que, naturalisticamente consideradas, podem constituir o corpus de uma pluralidade de crimes, tantos quantas as acções, mas que a lei unifica e trata como um crime só.

(...)

O crime continuado distingue-se do concurso real de crimes apenas em razão dos elementos aglutinadores que a lei prevê: unidade do bem jurídico protegido, execução por forma essencialmente homogénea e diminuição considerável da culpa em razão de uma mesma situação exterior.

(...)

No crime continuado não há apenas uma resolução criminosa, mas tantas resoluções quantas as condutas que o integram, de tal modo que cada conduta parcelar constitui materialmente um crime autónomo, apenas unificado para efeitos punitivos e de sorte que a não verificação de um dos pressupostos que determinam a unificação se verificará uma pluralidade de crimes em concurso real.

(...)

O elemento verdadeiramente determinante do conceito de crime continuado é a diminuição considerável da culpa do agente no caso concreto, determinada pela disposição exterior das coisas para o facto (...)”.

E ainda:

“(...) Têm deste modo de se conjugar todos os elementos (...) apontados não só com uma certa homogeneidade, que pode ganhar relevância à luz de um critério espaço-temporal, pelo menos como ponto de referência negativo, mas também com o circunstancialismo exógeno que faça consideravelmente diminuir a culpa do agente. E é neste específico ponto que se toca o essencial. É justamente em homenagem a uma ideia de menor exigibilidade que o crime continuado ganha solidez dogmática, mesmo que só se admita, no plano subjectivo uma “linha psicológica continuada” (...)” (“Formas do Crime” – J.F.Faria Costa, em “Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, Fase I, CEJ, pág.183).

4. Já na jurisprudência encontramos a seguinte posição:

            - Ac. TRE de 6-10-2012:

            I. A pedra de toque do crime continuado, que lhe determina os limites e lhe configura a natureza, está na circunstância da acção se desenrolar no quadro de uma situação exterior ao agente, de forma a poder dizer-se que era para este cada vez menos exigível que se comportasse de acordo com o direito.

- Ac. TRL de 13-04-2011:

 XV. No crime continuado encontramo-nos diante de uma pluralidade de factos aos que, por força da lei, corresponde uma unidade de acção e portanto o tratamento como um único crime. O crime continuado pode entender-se como uma pluralidade de acções semelhantes objectiva e subjectivamente, que são objecto de valoração jurídica unitária.

XVI. Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade delitiva.
            XVII. O cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O
quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).
            XVIII. Só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.

XIX. Sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes.
           

            5. Fazendo a necessária subsunção jurídica dos factos provados aos requisitos exigidos para que de crime continuado se trate, verificamos o seguinte:

            Quanto ao primeiro dos pressupostos, entende-se que o mesmo se mostrará verificado, na medida em que existem distintas resoluções criminosas na conduta da arguida, lesivas dos mesmos bens jurídicos.

            Quanto à execução essencialmente homogénea, embora com algumas variantes de ofendido para ofendido, entende-se que este pressuposto se mostra igualmente verificado, pois tais variantes não são mais do que meras adaptações da conduta da arguida a cada um dos concretos casos.

            Quanto ao requisito de os factos terem sido praticados no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa, entendemos que não se verifica.

            Sobre este requisito pronuncia-se Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 2ª Ed., pág. 162, afirmando:

            “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. É o que sucede quando o agente depara repetidamente com um meio facilitador da prática do crime, como uma janela ou uma porta aberta. Isto é quando a ocasião se proporciona e não quando ele activamente a provoca. No caso do agente provocar a repetição da ocasião criminosa, por exemplo, procurando de novo a vítima no local onde ela se encontra, não há diminuição sensível da culpa. Também não há diminuição sensível da culpa quando o agente engendra ou fabrica o meio apto para realizar o crime (…). Em todos estes casos a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.

            Também afasta a culpa diminuta a circunstância de o agente ter sido advertido por algum órgão do estado ou particular durante a repetição dos factos, uma vez que ele não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica apesar de eles lhe terem sido lembrados.”

            Este exemplo clarifica o presente caso para se concluir que inexiste a situação exterior que possa facilitar ou tivesse facilitado a execução dos crimes pela arguida.

            Como refere o recorrido Ministério Público, “decorre efectivamente da matéria de facto provada…que a arguida praticou os factos, adaptando o seu “modus operandi” a cada situação concreta, através de várias resoluções criminosas, sem que qualquer circunstancialismo externo se vislumbre, que lhe tenha facilitado, propiciado, esta repetição de condutas, desse modo lhe diminuindo a culpa.

            E não é, de todo, a alegada circunstância da manutenção, ao longo do tempo, da sua categoria funcional, ou até o maior domínio que foi adquirindo relativamente à sua própria actuação, que de algum modo possa atender-se no sentido de justificar a repetição dos actos, para efeitos de diminuição da culpa da arguida.

            Na verdade, o que temos é uma determinada atividade exercida pela arguida, ao longo de já alguns anos e que, pelo menos para com estes ofendidos, a mesma praticou determinados factos, adaptando-os a cada caso concreto, de modo a ficar ou a fazer seu o dinheiro que deveria ter outro destino.

            Mas esta forma de agir, de proceder da arguida, não se traduz em qualquer situação exterior que facilite a execução do crime.

Como se pode afirmar que o agente, a arguida, não tenha contribuído para essa repetição?

A arguida não só contribuiu como em cada uma das situações poderia ter tido uma atuação diferente.

É necessário ser rigoroso na aferição dos requisitos de que depende a figura do crime continuado, sob pena de se premiar e promoverem as carreiras criminosas longas. A arguida dá a entender, com a sua pretensão, que, afinal, a sua carreira seria precisamente esta!

Mais uma vez, como responde o Ministério Público na sua resposta,

“(...) É que se o agente concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal da continuação criminosa.

(...)

É esse o entendimento da jurisprudência dominante ao afirmar que inexiste crime continuado - mas concurso de infracções -, “quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa” – cf. Acs. do STJ de 10-12-1997, Proc. Nº 1192/97, de 07-03-2001 e de 12-06-2002, in SASTJ, nºs 49 e 62, respectivamente (...)” – ACSTJ de 19-03-2009

Finalmente, assinala-se que a questão da figura do crime continuado não passou despercebida ao julgador a quo, pois pelo mesmo foi acolhida quanto aos factos em que é ofendido D... , relativamente ao crime de falsificação, decidindo a propósito[2]:

            “Tendo a emissão das duas declarações sido feita no mesmo contexto exterior e num prazo curto estamos perante um só crime continuado nos termos do disposto no art.º 30.º, n.º 2 do C.Penal”.

Pelo exposto e nesta perspetiva, a conduta da arguida, ao invés de lhe diminuir a culpa, traduzia-se antes numa culpa agravada, consistente na firmeza e persistência do propósito criminoso, perante terceiros, que a procuravam.

IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso da recorrente A... , mantendo-se a decisão recorrida nos seus exactos termos.

Custas a cargo da recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) UCs.

Coimbra, 8 de Novembro de 2017

(Luís Teixeira – relator)

(Vasques Osório – adjunto)


[1] Refere-se a EDUARDO CORREIA in A TEORIA DO CONCURSO EM DIREITO CRIMINAL, Almedina, 1983, pág. 271 e ss.
[2] O que se nos afigura correto.