Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
185/14.9TBBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: DIVÓRCIO
CONSTATAÇÃO DA RUPTURA
PERDA DE BENEFÍCIO
EX-CÔNJUGE.
Data do Acordão: 11/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – CALDAS DA RAINHA – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 61/2008, DE3 21/10; ARTº 1791º DO C. CIVIL.
Sumário: I – A Lei nº 61/2008, de 21/10, acabou com o chamado “sistema de divórcio sanção”, baseado na ideia de culpa, e todo o regime de divórcio não consentido assenta agora na mera constatação de ruptura.

II - O art.1791º, nº 1 do CC, na redacção da Lei nº 61/2008, de 21/10, aplica-se aos casamentos celebrados anteriores à data da sua entrada em vigor.

III - A perda de benefício em virtude do divórcio opera ipso iure, independentemente de qualquer revogação por parte do autor da liberalidade.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- A Autora – S... – instaurou acção declarativa com forma de processo comum, contra o Réu – D...

Alegou, em resumo:

Em 10 de Dezembro de 1994 casou com S... Em plena constância do casamento, M... e N... (mãe e avó do S...), por escritura pública de 12 de Maio de 2000, doram a ambos o prédio rústico, denominado “ Terra da F...”.

Por sentença de 22 de Abril de 2010 foi decretado o divórcio entre Autora e S...

            Em 8 de Janeiro de 2011 a Autora passou uma procuração a favor do Réu, pai do S..., para este vender o referido prédio, o que fez por escritura de 28 de Janeiro de 2011, pelo preço de € 15.000,00. Assiste-lhe, por isso, o valor correspondente à metade, que o Réu se recusa a entregar.

Pediu a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de € 7.500,00, acrescido de juros legais desde a data da escritura de compra e venda.

Contestou o Réu defendendo, em síntese:

A doação somente foi feita ao S... (filho e neto das doadoras) e não a favor do casal, tratando-se, por isso, de um bem próprio, visto haverem estado casados no regime de comunhão de adquiridos.

Mesmo que a doação tivesse sido feita a ambos, a Autora, com o divórcio, perdeu esse benefício, nos termos do art.1791 do CC, logo não há lugar a “prestação e contas” por parte do Réu.

1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida (11/12/2015) sentença que decidiu julgar a acção improcedente e absolver o Réu do pedido.

1.3.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

O Réu contra-alegou ( fls.98 e segs.) no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1.- O objecto do recurso

As questões colocadas no recurso são as seguintes:

A nulidade da sentença

Alteração de facto

Ampliação de facto

A doação e a perda de benefício

O abuso de direito

2.2.- Os factos provados

1) Em 10 de Dezembro de 1994 a Autora contraiu casamento com S..., sob o regime da comunhão de bens adquiridos, o qual foi dissolvido por divórcio, por decisão proferida a 22/4/2010 no âmbito do Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento que sob o nº... correu termos na Conservatória de Registo Predial (facto admitido por acordo no despacho saneador);

2) O prédio rústico denominado “Terra da F...”, situado na freguesia da ..., concelho do ..., encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o nº...;

3) Em 12 de Maio de 2000, perante Notário, compareceram, M... e N... , na qualidade de Primeiro Outorgante, S... e mulher, S..., na qualidade de  Segundo Outorgante, e D..., na qualidade de Terceiro Outorgante, e “Declararam as Primeiras Outorgantes que doam ao segundo outorgante o prédio  rústico denominado Terra da F..., localizado no limite da ..., descrito na Conservatória de Registo Predial sob o numero ... daquela freguesia, com registo de transmissão da nua propriedade a favor da primeira outorgante, indicada em a) (M...) conforme inscrição G-dois e do usufruto a favor da primeira outorgante indicada em b) (N...), conforme inscrição F-um, inscrito na matriz cadastral sob o numero ..., com o valor patrimonial de 36087$00, a que atribuem o valor de um milhão de escudos, sendo oitocentos mil escudos referentes à nua propriedade e duzentos mil escudos relativos ao usufruto.

Que ela primeira outorgante indicada em a) (M...) faz esta doação ao segundo outorgante seu filho, por conta da quota disponível.

Mais declaram, sob sua inteira responsabilidade, que não possuem outros prédios aptos para cultura contíguos ao ora alienado.

Pelo segundo Outorgante foi dito que aceita as presentes doações.

Declarou o Terceiro Outorgante que autoriza o seu cônjuge  (N...) para a prática deste acto.” (art.2º da petição inicial);

4) A doação foi feita à Autora por esta, à data, se encontrar casada com S...(art.46º da contestação);

5) A Autora e S... pretendiam construir no prédio referido em 2) uma moradia para aí residirem (art.5º do CPC);

6) ...;

7) No inicio do mês de Janeiro de 2011 a Autora recebeu um e-mail remetido por N..., solicitando à mesma que que outorgasse uma procuração conferindo poderes ao Réu para que este pudesse vender a propriedade rústica sita no concelho do Bombarral (art.6º da petição inicial);

8) No dia 8 de Janeiro de 2011 a Autora outorgou uma procuração, constituindo D... como seu bastante procurador “a quem concede plenos poderes para vender ou prometer vender, pelos preços, cláusulas e condições que entender, e a quem entender, o direito que possui no prédio rústico descrito na Conservatória de Registo Predial do ..., outorgando a competente escritura ou contrato, recebendo preços, passando recibos e  tudo o mais que seja necessário para os fins indicados.” (art.7º da petição inicial);

9) No dia 28 de Janeiro de 2011, perante Notário, D..., na qualidade  de procurador de S... e S..., declarou vender a O..., que declarou comprar, o prédio rústico, denominado “Terra da F...”, sito em ..., pelo preço de €15 000 (art.8º da petição inicial);

10) No dia 10 de Abril de 2012 a Autora recebeu um e-mail remetido por N..., informando a Autora que a mesma tinha de participar no IRS de 2014 a venda do prédio rústico (art.9º da petição inicial);

11) S... é filho de D... e de M... (certidão de fls.5).

            2.4.- A nulidade da sentença

            A Apelante arguiu a nulidade da sentença, alegando contradição entre os fundamentos e a decisão, porque o tribunal deveria julgar não provado o facto 4) ( alegado no art.46 da contestação) e não podia concluir que a doação foi feita à Autora por estar casada com o S....

As nulidades da sentença ou acórdão, taxativamente previstas no art.615 nº1 CPC, reconduzem-se a erros de actividade ou de construção e não se confundem com o erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

No que respeita à nulidade cominada no art.615 nº1 c) CPC, só ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Consubstancia-se, como dizem os tratadistas, num vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso ( cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol.V, pág.141, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.686).Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo ( cf., por ex., Ac STJ de 21/5/98, C.J. ano VI, tomo II, pág.95 ).

Ora, tendo a apelante invocado eventual de erro de facto, tanto basta para a inanidade da sua pretensão, concluindo-se pela ausência de qualquer nulidade da sentença.

            2.5. Alteração de facto

            O tribunal deu como provado que:

“4) A doação foi feita à Autora por esta, à data, se encontrar casada com S... (art.46º da contestação)”.

            Para tanto, justificou a convicção na análise crítica da prova, nos seguintes termos:

“ Já em relação à circunstância de a vontade de M... e N... e D... ser que a doação fosse feita apenas a S... (Facto Não Provado A), tal não pôde ser dado como provado.

Na verdade, e ainda que tenha sido afirmado peremptoriamente por M... que apenas pretendia doar ao seu filho, S..., o que foi por este igualmente afirmado, não se pode deixar de realçar a pouca credibilidade dos seus depoimentos, os quais se mostraram pouco claros e esclarecedores e revelando uma clara animosidade para com a Autora.

É particularmente revelador de tal circunstância o facto de M... afirmar não se recordar em que ano foi a doação, se muito tempo antes do divórcio ou não, ou em que ano a Autora entrou para a Universidade (sendo que fez questão de realçar que tinha sido ela e o Réu, seu marido, a suportar as despesas).

Por outro lado, nenhuma explicação lógica foi dada para a necessidade de a doação ser feita apenas a S..., considerando que este era filho único. Nada foi, sequer, esclarecido sobre qual a finalidade do terreno doado.

De resto, S... acabou por afirmar, de modo espontâneo, que “nos estavam a doar um terreno”, o que leva à conclusão de que por todos foi entendido que a doação era feita à Autora e a S...

Acresce que, e ponderando critérios de razoabilidade social, é mais natural que a doação fosse feita a ambos, uma vez que se encontravam casados, namoravam desde a adolescência, e o propósito para a doação era que ambos construíssem no terreno a casa em que iriam morar, tal como afirmaram as testemunhas...

Também a testemunha ... afirmou que a finalidade da doação era para o casal constituído pela Autora e S... “lá fazerem alguma coisa para eles.

Desta forma e perante tais depoimentos, foi dado como Provado o Facto nº4) e 5).”

Pretende a Autora/Apelante que se julgue não provado o facto descrito em 4), indicando como prova o depoimento de testemunhas e a escritura de doação.

            Ouvida integralmente a gravação da prova, verifica-se, em síntese, que:

            J... (pai da Autora) depôs sobre o relacionamento familiar entre a S... e os pais do S..., tanto antes como depois do casamento, afirmando que a doação foi feita para ambos construírem no prédio uma casa de habitação. Questionado (contra-interrogatório) se não fosse por causa do casamento alguma vez doariam também à S..., respondeu não saber.

            M... (mãe da Autora) produziu um depoimento igual ao do marido, no sentido do relacionamento familiar próximo, o terreno foi dado para ambos construírem nele a casa de habitação, e questionada sobre se o S... não fosse casado com a S... a doação seria feita também a ela, respondeu não saber.

            L... (tio da Autora) depôs sobre a relação familiar e que nos convívios ouviu comentar que a doação era para os dois construírem no terreno a casa de habitação, sendo que ele também ia ajudar a edifica-la.

            J... ( professor e amigo da Autora) manteve relação e amizade com o casal (S... e S...), chegou a visitar o terreno, a doação era para os dois construírem uma casa.

            M... (mãe do Sérgio e esposa do Réu) confirmou os termos da doação dizendo, no entanto, que só pretenderem beneficiar o filho e não a nora, para construir uma casa.

...

O facto impugnado corresponde ao alegado pelo Réu na contestação ( arts.46º) e da análise crítica da prova resulta que a doação foi feita também à Autora pelo facto de ela estar casada com o S...

            Desde logo, porque tendo ambos casado em 1994, a doação foi feita seis anos depois, ou seja, em plena constância do matrimónio, que só veio a dissolver-se em 2010. Por mais intenso que fosse o relacionamento, mesmo já antes do casamento, presume-se, claramente, segundo as regras da experiência comum, que se não fosse casada com o S... não seria contemplada com a doação.

            Aliás, nem os próprios pais da Autora, quando pertinentemente foram confrontados com tal questão, disseram o contrário, ficando-se por um “não sei”, e para além disso a maioria das testemunhas referiu que o terreno doado se destinava à construção da casa de habitação do casal.

            E de forma alguma se pode extrair do teor da escritura pública de doação o contrário, ou seja, que a doação à S... não seria feita por causa do casamento, como pretende a Apelante, quando até nela se menciona precisamente estarem casados. Acresce que a circunstância de haverem exarado que “ ela primeira outorgante indicada em a) faz esta doação ao segundo outorgante, seu filho, por conta da quota disponível”, mais corrobora o entendimento de que a S... é referida como segunda outorgante, conjuntamente com o S..., pelo facto de então ser casada com ele, e ter sido por isso que também foi abrangida com tal liberalidade.

            Num juízo de valoração, a prova indicada pela Apelante não impõe decisão diversa, improcedendo a alteração de facto.

            2.6.- Ampliação de facto

            Alegando o vício da deficiência, pretende a Apelante que se conheça dos factos alegados nos arts.10, 11 e 12 da petição inicial.

            Estando já provada a venda do terreno o demais alegado são meras conclusões de direito ( cf. “por efeito da doação a demandante adquiriu em comum e sem determinação de parte o direito (…)”, “a demandante tem o direito a receber do seu mandatário (…)” ).

            O vício da deficiência, regulado no art.662 nº1 c) CPC, tem que se reportar à “matéria de facto”, e não ao enquadramento ou qualificação jurídica dos factos.

            2.7.- O mandato, a doação, a perda do benefício e o abuso de direito

            Em 8 de Janeiro de 2011 a Autora passou uma procuração a favor do Réu conferindo-lhe poderes para a venda do prédio, que havia sido doado.
A procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos (art.262 n°1 do CC). Não é um contrato mas um acto de atribuição, um negócio jurídico unilateral por intermédio do qual uma pessoa é nomeada procurador.
No caso vertente teve como relação jurídica de base (art.265 nº1 do CC) o contrato de mandato, que, por definição, é aquele pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra (art.1157 do CC), tratando-se de uma modalidade particular do contrato de prestação de servidos.
A procuração pode, ou não, coexistir com um mandato, mas neste caso tal mandato existiu, pois o Réu obrigou-se a um acto jurídico por conta da mandante (a venda do prédio).
No dia 22 de Janeiro de 2011 o Réu, na qualidade de procurador, tanto do S..., como da Autora, vendeu o prédio (doado) pelo preço de € 15.000,00.
A pretensão da Autora, ao demandar o Réu, seu procurador, a entregar-lhe metade do valor (€7.500,00) do preço, ou seja, a entregar-lhe o que recebeu em execução do mandato, funda-se no disposto no art.1161 e) CC.
A sentença recorrida considerou, porém, inexistir a obrigação de entrega e por conseguinte violação contratual por parte do Réu, visto que por força do disposto no art.1791 do CC, tendo a doação sido feita em virtude de estar casada com o S..., perdeu, com o divórcio, o benefício recebido, que opera ipso iure independentemente de qualquer revogação por parte do autor da liberalidade.
Após correcto enquadramento e cabal fundamentação jurídica, a sentença concluiu “ Em consequência e face ao exposto, não tendo a Autora qualquer direito ao prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial do ..., inscrito na matriz sob o ... não pode exigir do Réu que este lhe entregue parte do preço resultante da venda desse mesmo prédio”.

            O art. 1791 do CC (na redacção anterior à Lei nº 61/2008 de 21/10), quanto aos efeitos do divórcio, dispunha o seguinte: “ o cônjuge declarado único ou principal culpado perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiros, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”

            A Lei nº 61/2008 acabou com o chamado “sistema de divórcio sanção”, baseado na ideia de culpa, assentando agora todo o regime de divórcio não consentido na mera constatação de ruptura, pelo que alterou o art.1791, cujo nº1 passou a ter a seguinte redacção “ cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiros, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”

            Muito embora o casamento tenha sido realizado em 1994, mas porque o divórcio por mútuo consentimento ocorreu em 22/4/2010, tem aqui aplicação o art.1791 nº1 do CC, na redacção da Lei nº61/2008, por força do regime da aplicação da lei no tempo (art.12 nº2 ( 2ª parte) do CC), já que a lei nova dispõe sobre a situação de casado, abstraindo do casamento que fez nascer o estado de casado, abrange as relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor.

            Significa, portanto, que a lei nova aplica-se também aos casamentos celebrados anteriormente, pois como sugestivamente se afirma no Ac STJ de 3/3/2016 (proc. nº 1808/13), disponível em www dgsi.pt  - “ o casamento e o divórcio têm hoje (depois da Lei nº61/2008) uma nova luz e é essa luz que se deve derramar sobre todos os casados que ponham fim ao seu casamento pelo divórcio depois dela. Sobre todos os casados – e não apenas sobre os que casaram depois da entrada em vigor da Lei nº 61/2008 – incidirá esta nova luz no caso de divórcio “.

            A primeira objecção da Apelante dirige-se à aplicação do art.1791 do CC, mas fê-lo, desde logo, no pressuposto da alteração de facto, que não logrou obter.

            Por isso, comprovando-se que a doação foi feita à Autora por esta, à data, se encontrar casada com S... é indiscutível a aplicação do art.1791 nº1 CC, ou seja a perda do benefício.

            Note-se que a razão de ser desta perda de benefício em virtude do divórcio, agora independentemente de culpa, radica no “reforço do movimento de “despatrimonialização” do casamento, ou seja, a ideia de que o casamento não é um meio eticamente legítimo de adquirir património” (Eliana Gersão, Estudos de Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, vol. IV, pág.347 ).

É certo que o legislador não alterou o art.1760 nº1 b) CC ao manter a referência ao divórcio culposo, mas, sob pena de incoerência legislativa e contradição valorativa, deve considerar-se esta norma revogada na parte da declaração de culpa.

            A segunda objecção prende-se com o abuso de direito.

Como é sabido, o abuso de direito (art.334 CC), na variante do “venire contra factum proprium”, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (o factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.

            O Prof. Baptista Machado ( Obra Dispersa, vol.I, pág.415 a 419 ), depois de afirmar que a ideia imanente na proibição do venire contra factum proprium  é a do “ dolus praesens “, pelo que é sobre a conduta presente que incide a valoração negativa, sendo a conduta anterior apenas o ponto de referência, para se ajuizar da legitimidade da conduta actual, enuncia três pressupostos que caracterizam o instituto: uma situação objectiva de confiança ( uma conduta de alguém entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura), o investimento na confiança ( o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte , com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada), e boa fé da contraparte que confiou. No mesmo sentido, Paulo Mota Pinto, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório”, BFDUC, Volume Comemorativo, 2003, pág.269 e segs., com referências doutrinárias e jurisprudenciais.

Na situação dos autos, pese embora o Réu tenha aceite a procuração, não se verifica qualquer conduta contraditória na recusa em entregar metade do valor do preço da venda, porque a perda do benefício opera ipso iure, independentemente de qualquer revogação por parte do autor da liberalidade, como foi salientado na sentença, com apoio doutrinário e jurisprudencial. Significa, portanto, inexistir qualquer abuso de direito.

2.8.- Síntese conclusiva

a)A Lei nº 61/2008, de 21/10, acabou com o chamado “sistema de divórcio sanção”, baseado na ideia de culpa, e todo o regime de divórcio não consentido assenta agora na mera constatação de ruptura.

b)O art.1791 nº1 do CC, na redacção da Lei nº 61/2008 de 21/10, aplica-se aos casamentos celebrados anteriores à data da sua entrada em vigor.

c) A perda de benefício em virtude do divórcio opera ipso iure, independentemente de qualquer revogação por parte do autor da liberalidade.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença.

2)

            Condenar a Apelante nas custas.

            Coimbra, 15 de Novembro de 2016.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )