Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
675/17.1T9PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: IMPEDIMENTO DE JUIZ;
IMPEDIMENTO POR PARTICIPAÇÃO EM PROCESSO
Data do Acordão: 10/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 40.º DO CPP
Sumário:
Constitui elemento comum de todos os casos específicos de impedimento previstos nas diversas alíneas do artigo 40.º do CPP a intervenção anterior do juiz num (único) processo; na situação vertida na alínea c), o fundamento determinante do impedimento é a participação do juiz, no processo em curso, em julgamento ocorrido.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1 - O arguido A., veio suscitar o impedimento da Juiz do Juízo Local Criminal de Pombal - J2, da Comarca de Leiria, para proceder ao seu julgamento, no âmbito dos presentes autos, com fundamento no facto de já o ter julgado no âmbito do Proc. n° 284/12.1GBPBL, pela prática de um crime de desobediência, p. p. pelas disposições combinadas dos arts. 152°, n° 3, do Cod. da Estrada e 348°, n° 1, al. a), do Cod. Penal, pela prática de um crime de resistência e coacção a funcionário, p. p. pelo art. 347°, n° 1, do Cod. Penal, - condenando-o em pena de multa, em pena de prisão, suspensa na sua execução, e em pena acessória de inibição de conduzir, penas que vieram a ser reduzidas na sequência de recurso interposto para este Tribunal da Relação - sendo que neste processo mandou extrair certidão para fins criminais.
*
Por despacho de 22.03.2018 foi decidido não reconhecer o impedimento, nos seguintes termos:
“Fls. 107 e ss.: Em sede de contestação, o arguido veio invocar como questão prévia, o impedimento da signatária, nos termos do artigo 40°, al. c) do Código de Processo Penal, uma vez que já presidi a anterior audiência de julgamento com o aqui arguido, mais concretamente no processo 284/12.1GBPBL, e ter procedido a extracção de certidão para fins criminais, considerando que é “ser juiz em causa própria”.
O Ministério Público teve vista nos autos, promovendo o indeferimento do requerido, face à inexistência do impedimento alegado pelo arguido, conforme promoção que antecede.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do artigo 40° do Código de Processo Penal, “nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver: c) participado em julgamento anterior.
Ora, a participação em julgamento anterior terá de ser interpretado no sentido de, no mesmo processo, já ter existido outro julgamento e por um qualquer motivo o mesmo ser repetido - não se poderá ser interpretado como pretende o arguido, uma vez que tal originaria a violação do princípio do juiz natural.
Acresce que os factos em causa no presente processo, apesar de terem a sua origem em processo anterior, em que a signatária desempenhou a função de julgador, são completamente diferentes daqueles outros.
Como tal, entende a signatária que inexiste um qualquer impedimento para que proceda à realização da audiência de julgamento, pelo que se indefere o requerido.
Notifique.”
*
2 - Inconformado, o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:
A) Em sede de contestação dos presentes autos, veio o arguido invocar como questão prévia, um impedimento por parte da M.ª Juiz, nos termos a alínea c) do artigo 40.º do C.P.P.;
B) No dia 22 de Março de 2018, a M.ª Juiz, pronunciou-se decidindo não haver qualquer impedimento;
C) No âmbito do processo com o N.º 284/12.1 GBPBL, que correu termos no Juiz 2, do Juízo Local Criminal de Pombal, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, foi o arguido julgado pela M.ª Juiz, que agora pretende novamente julgar o arguido;
D) Não obstante de serem processos diferentes, é certo que não podem deixar de estar ligados, como se de um prolongamento se tratasse;
E) A M.ª Juiz do Tribunal A Quo que pretende julgar o arguido, é a mesma M.ª Juiz, que julgou e condenou o arguido: a) Pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º n.º 3 do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, al. a) do C. Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 b) Pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do C. Penal na pena parcelar de quinze meses 12/24 de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo; c) Na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de seis meses nos termos do artigo 69.º, n,º1, c), do Código Penal;
F) O Arguido recorreu da douta decisão para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, que viria em parte a reduzir as penas aplicadas, decidindo: a) Pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º n.º 3 do Código da Estrada e 348.º, n.º 1 al. a) do C. Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5,50 €; b) Pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do C. Penal na pena parcelar de cinco meses de prisão, substituída por 150 dias de multa à taxa diária de 5,50 €; c) Na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 5 meses e 15 dias nos termos do artigo 69.º, n,º1, c), do Código Penal;
G) Ou seja, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, reduziu o número de dias a aplicar na pena de multa, reduziu a aplicação de uma pena de prisão em menos dez meses do que a que havia sido aplicada, (ainda que substituída por pena de multa e sem suspensão temporal);
H) Facto este que poderá não ter agradado à M.ª Juiz;
I) Pelo que, tendo a M.ª Juiz do Tribunal Á Quo já julgado o arguido e tendo sido a M.ª Juiz quem ordenou vista ao Ministério Público;
J) A fim de instaurar o respectivo procedimento criminal, alegando para o efeito, que o arguido ao não ter entregue a licença de condução no prazo de dez dias após ter sido notificado por entidade policial, como referiu no despacho datado de 8 de Fevereiro de 2017;
K) Notificação esta, que apenas viria a ocorrer a 23 de Março de 2017 (data em que a entidade policial notificou o arguido do despacho e da sentença do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra) e na mesma data o arguido procedeu à entrega da licença de condução, para cumprir o período de inibição que o Tribunal havia decidido;
L) Também não pode deixar de se estranhar, que a M.ª Juiz, no dia seguinte ao levantamento da licença de condução por parte do Arguido, ou seja a 15 de Setembro de 2017, ter mandado oficiar o IMTT, para saber se o arguido tinha pedido a emissão de 2.ª via do título de condução, em que data, se a mesma foi concedida, e em que data foi entregue esse título ao arguido;
M) Podendo subentender-se que poderá existir alguma atitude persecutória;
N) Ao ter julgado o arguido no processo com o N.º 284/12.1GPBL e proceder a novo julgamento do arguido, “é mesma coisa que ser juiz em causa própria”;
O) Não estando dessa forma, asseguradas as garantias de imparcialidade da M.ª Juiz, nem salvaguardados os direitos liberdades e garantias, consagrados constitucionalmente, nomeadamente as garantias no processo criminal, previstas no artigo 32.º n.1 e 2 da C.R.P;,
P) Até porque, os presentes autos são um prolongamento do processo com o N.º 284/12.1GPBL, ou seja estão ambos interligados, este processo não existia, se não tivesse existido processo com o N.º 284/12.1GPBL;
Q) Pelo que e nos termos do disposto na alínea c) do artigo 40.º e 43.º ambos do C.P.P., entende-se que M.ª Juiz encontra-se impedida de proceder ao julgamento do arguido nos presentes autos.
R) Como aliás, se pronunciou o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra a 18/09/2013 (tendo como relator, José Eduardo Martins) referindo que “na versão actual do art.º 40.º do CPP, a norma em causa, aplica-se a qualquer juiz que tenha participado em julgamento anterior ou em decisão de recurso anterior, independentemente de ter sido em fase anterior do processo ou não”.
S) Este preceito tem a antecedê-lo o art.º 40.º, na anterior redacção do CPP, contemplando outras situações de impedimento do juiz em processo penal, mas em qualquer dos preceitos, e na lógica do impedimento, estão situações em que se pode suscitar a questão do desempenho funcional em moldes de isenção e imparcialidade;
T) Pois importa num estado de direito que o juiz que preside ao julgamento o faça com independência, ou seja à margem de quaisquer pressões e imparcialidade, numa posição distanciada, acima dos interesses das partes, sendo desejável também que o público nele tenha confiança, surgindo aos olhos daquele o julgamento como objectivamente justo e imparcial, impondo-se a predefinição de um quadro legal orientado para tal finalidade”;
U) Importa, pois, que o cargo de juiz seja rodeado de cautelas para assegurar aqueles objectivos, para que a comunidade confie nele, pois que a confiança da comunidade nas suas decisões é essencial ao “ administrar a justiça em nome do povo”, nos termos do art.º 205.º, da CRP, como se anota no AC. do TC n.º 124/90, in DR , II Série, de 8.2.91;
V) Além de que só assim se materializa o direito constitucionalmente previsto dos cidadãos a um processo justo – art.º 32.º n.º 1, da CRP.”
W) Aos “olhos” do cidadão comum e do recorrente, objectivamente, os juízes que julgam um processo que já anteriormente julgaram, voltá-lo-ão a julgar da mesma forma;
X) Isto porque, foi realizado um juízo sobre os factos consubstanciadores da prática do crime, sobre o grau da culpa e sobre as exigências de prevenção que ao caso se fazem sentir, ficando com uma convicção de tal modo arreigada quanto à sua culpabilidade que, objectivamente e sem prejuízo da independência interior que os magistrados sejam capazes de preservar;
Y) Ficando inexoravelmente comprometida a independência e imparcialidade desses magistrados no novo julgamento desse processo.
Z) A imparcialidade objectiva, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão.
AA) Pelo que não está, de modo nenhum em causa, a imparcialidade subjectiva do julgador que importava o conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo nas circunstâncias dadas e que, aliás, se presume até prova em contrário, mas uma objectividade que a afirmação da Justiça reclama;
BB) Tal pressupõe, como o texto da lei indubitavelmente denota – proibição de intervir em julgamento relativo a processo em que tiver participado em julgamento anterior –, que as duas intervenções do juiz ocorrem no mesmo processo;
CC) Esta solução legal justifica-se porque o regime do impedimento é aquele que abarca as situações que, de uma forma mais intensa, podem pôr em perigo a estrutura acusatória do processo penal e as inerentes garantias de imparcialidade do tribunal;
DD) E que concomitantemente tem um regime mais rígido, o que só acontece, quanto à incompatibilidade de funções processuais, quando as duas intervenções têm lugar, relativamente aos actos que pressupõem uma formulação de um juízo sobre a culpabilidade do arguido, no mesmo processo.”
EE) Assim sendo, tendo a Mm.ª Juiz participado em julgamento e decisão anterior, que apreciou o mérito da causa e foi objecto de recurso, tendo sido modificada e estando os presentes autos interligados com o Processo com o N.º 284/12.1GPBL, é de considerar que se encontra impedida de fazer o respectivo julgamento. Normas violadas: artigos 40.° c) e 43.º ambos do Código de Processo Penal e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Assim, sem menosprezo pelo douto despacho de que se recorre e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa.s, espera-se decisão que reconheça a existência de impedimento por parte da M.ª Juiz do Tribunal a Quo.”
*
3 - Foi proferido despacho de sustentação nos termos do artigo 414°, n° 4 do CPP, mantendo o despacho proferido a fls. 122-123 dos autos, com os argumentos aí descritos.
*
4 - O recurso foi admitido.
*
5 - O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido por entender que “não assiste qualquer razão ao arguido, não passando o presente recurso de um expediente completamente dilatório, com uma visão conscientemente distorcida da lei processual penal a este respeito.”
*
6 - Na Relação pronunciou-se o Exmo Procurador – Geral Adjunto, subscrevendo a resposta apresentada em 1.ª instância pelo Ministério Público, pela improcedência do recurso, concluindo:
“… Assim, o art.° 40.° do Cod. Proc. Penal, prevê que: “Nenhum Juiz pode intervir em julgamento, ... relativos a processo em que tiver: c) Participado em julgamento anterior”.
Ora, o Ac. TRC de 18/09/2013, in Proc. n° 279/10.0PBCTB.C1, acessível em www.dgsi.pt. citado pelo recorrente A., versa sobre uma situação que nada tem a ver com a situação a que aludem os presentes autos.
Com efeito, no caso do Ac. TRC citado, está-se perante uma situação em que o Sr. Juiz que conheceu do mérito da causa, que julgou e que condenou um arguido, sendo que o Tribunal da Relação determinou que se procedesse à realização de um novo julgamento, mas no âmbito do mesmo processo, tendo aí se decidido que o Sr. Juiz se encontrava impedido de participar no novo julgamento, e tendo aí também se considerado que os actos por si praticados eram considerados nulos, nos termos do art. 41°, n.º 3, do Cod. Proc. Penal, por se encontrar impedido para realizar este novo julgamento.
Assim, no caso deste Ac. TRC, estamos perante uma situação em que o julgamento foi anulado, sendo que o Juiz que proferiu a decisão fica impedido de intervir no novo julgamento, que se irá realizar no âmbito do mesmo processo.
No caso em apreço, estamos perante processos completamente distintos, sendo que os factos que deram origem à instauração dos presentes autos, tiveram origem numa certidão extraída do Proc. n° 284/12.1GBPBL, a pedido do Ministério Público, por indícios da prática de um crime de desobediência, p. p. pelo art. 348°, n° 1, al. b), do Cod. Penal, uma vez que o recorrente A, não procedeu à entrega da sua carta de condução, na sequência da decisão proferida no âmbito daquele processo, que lhe aplicou uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses.
Assim, a situação enunciada no citado art. 40°, al. c), do Cod. Proc. Penal, pressupõe que as duas intervenções do Juiz ocorrem no mesmo processo, o que não será certamente o caso em apreço, sendo que não existe qualquer motivo para pôr em causa a independência e imparcialidade da Mma. Juiz a quem foi distribuído o processo.
Na verdade, entende-se que o facto deste Tribunal da Relação ter diminuído a medida das penas aplicadas ao recorrente A., na sequência do recurso interposto, da decisão proferida no Proc. n° 284/12.1GBPBL, não basta por si só, em nossa modesta opinião, para pôr em causa a imparcialidade objectiva da Mma. Juiz relativamente à decisão que vier a proferir no âmbito dos presentes autos.
Concluindo, somos de parecer que o recurso deve improceder, subscrevendo, no demais, a resposta apresentada pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público em 1ª instância.”

7 - Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..
*
8 - Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
*
9 - Realizada a conferência cumpre decidir.
*
II Fundamentação
II.1 Dos autos resultam os seguintes factos, relevantes à decisão:
- No Proc. n° 284/12.1GBPBL e a pedido do Ministério Público, a juiz cujo impedimento o arguido requereu mandou extrair certidão por indícios da prática de um crime de desobediência, p. p. pelo art. 348°, n° 1, al. b), do Cod. Penal, porque o recorrente A não procedeu à entrega da sua carta de condução, na sequência da decisão proferida no âmbito daquele processo, que lhe aplicou uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses.
- a referida certidão deu origem aos presentes autos.
*
II.2 Decidindo:
II.2.1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:
É hoje entendimento pacífico que são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Por via dessa delimitação a questão a decidir reside em saber se o juiz que tiver mandado extrair certidão a pedido do MP, está impedido de intervir no julgamento do processo instaurado com base na dita certidão, na decorrência do que dispõe a al. a) do art. 40º do C.P.P..
*
II.2.2.
O arguido entende que os presentes autos estão interligados com o processo N.º 284/12.1GPBL, cujo julgamento e decisão foram realizados pela Juiz, e que por essa razão se encontra impedida de fazer o julgamento nos presentes autos.
Os impedimentos encontram-se especificados nos arts. 39.º e 40.º do CPP com base em três ordens de razões: a relação pessoal do juiz com algum sujeito ou participante processual; a intervenção anterior no processo, como juiz ou noutra qualidade; e a necessidade de participar no processo como testemunha.

Suscitada com mais frequência e foco de considerável litigância na prática judiciária é a questão da intervenção no processo, como juiz de julgamento ou de recurso, de um magistrado judicial que, como juiz, teve já antes participação nesse mesmo processo, numa fase processual anterior ou até inclusivamente na mesma fase processual. É esse tipo de impedimento por participação prévia no processo que encontramos regulado no art. 40.º, que se estende agora por cinco alíneas - JORGE DE FIGUEIREDO DIAS/NUNO BRANDÃO - Sujeitos Processuais Penais: https://apps.uc.pt/mypage/files/nbrandao/1083.
Segundo os referidos autores “…, numa compreensão teleológica da norma que atenda à ratio de salvaguarda da imparcialidade que lhe deve estar subjacente e a compatibilize com a necessidade de garantir a harmonia dos atos do processo entre si correlacionados, parece-nos que deve ela ser interpretada restritivamente no sentido de apenas levar ao impedimento do juiz de 1.ª instância que depois de, em sentença, ter conhecido do mérito da causa seja confrontado com um cenário de repetição integral da audiência de discussão e julgamento. Nada que, em todo o caso, deixe desprotegida a garantia de imparcialidade, que sempre contará com a tutela oferecida pelo regime das suspeições (art. 43.º), aliás, muito mais adequado à abordagem casuística que este específico domínio aconselha.” Conforme se pode ler no C.P.P. Comentado [1] de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes Pereira Madeira e Pires da Graça, pág. 131. «a intervenção do juiz em actos ou decisões anteriores do processo … com comprometimento decisório sobre a matéria da causa e o objecto do processo, é susceptível de gerar nos interessados na decisão apreensão ou receio, objectivamente fundados, sobre o risco de algum prejuízo relativamente à matéria da causa e ao sentido da decisão … A verificação de alguns dos motivos indicados determina, por si mesma, a verificação objectiva do impedimento, sem necessidade de alegação e demonstração ou prova das circunstâncias que constituam a razão das apreensões dos interessados quanto à imparcialidade».
É pois manifesto que a intervenção que determina o posterior futuro impedimento supõe um «comprometimento decisório sobre a matéria da causa e o objecto do processo».
Por outro lado, e como realça o acórdão do STJ de Ac. STJ de 19-05-2010, “À luz do que fica exposto e tendo em conta todas as causas de impedimentos taxativamente previstas na lei (als. a) a e) do art. 40.º), certo é constituir elemento comum de todas elas a intervenção anterior do juiz no processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo.”
Revertendo aos autos, resulta evidente que não se verifica o pressuposto das intervenções ocorrerem no mesmo processo.
A ordem de passagem da certidão não foi produzida nos presentes autos.
Assim sendo, não se lhe aplica o impedimento referido na al. c) do art. 40º do C.P.P.
Por outro lado, a referida ordem não demandou conhecimento do mérito da presente causa, pelo que se impõe concluir não ocorrer qualquer motivo susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade da juiz no julgamento a efectuar.
Com efeito, o recorrente refere-se no recurso ao art 43º do CPP que sob a epígrafe “recusas e escusas” estatui, designadamente, o seguinte:
« 1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita , por existir motivo , sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.».
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40.º.
3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.” (…).
Atente-se no que o art.45.º do C.P.P. estabelece:
“1. A recusa deve ser requerida e a escusa deve ser pedida, a ela se juntando logo os elementos comprovativos, perante:
a) O tribunal imediatamente superior; (…)
2. O juiz visado pronuncia-se sobre o requerimento, por escrito, em cinco dias, juntando logo os elementos comprovativos.
3. O tribunal, se não recusar logo o requerimento ou o pedido por manifestamente infundados, ordena as diligências de prova necessárias à decisão. (…).” ( sublinhado nosso)
O recorrente não observou o processado assinalado até porque não suscitou a recusa do juiz perante o tribunal recorrido, tendo apenas invocado o impedimento.
Haveria que alegar circunstâncias sérias e graves, irrefutavelmente denunciadoras de que o juiz natural deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção. O que não fez.
De tal sorte que a questão não foi sequer contemplada no despacho recorrido. E bem.
A jurisprudência dos nossos tribunais tem sido constante no sentido de se exigir a alegação de factos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança, não se bastando com simples generalidades – cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 5 de Abril de 2000, já citado, e de 29 de Março de 2006, in C.J., n.º 189, e o acórdão da Relação de Coimbra , de 2 de Dezembro de 1992, in C.J., ano XVII, 5.º,pág. 92.
O dispositivo do n.º 2 do art. 43.º do C.P.P. foi introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto. Os fundamentos de recusa aí enunciados, como resulta do seu contexto, devem ser interpretados nos termos n.º1 do mesmo preceito, isto é, só são caso de recusa se dos mesmos resultar em concreto motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz – cfr. neste sentido o acórdão do STJ de 27 de Maio de 1995 , in CJ, ASTJ, ano VII, 2.º, pág. 217 - Ac Rel. Coimbra de 8-10-15, relator Des. Orlando Gonçalves.
A inobservância do processado adequado ao requerimento da recusa inviabiliza o seu conhecimento.
De todo o modo, dos autos não constam elementos que revelem circunstâncias ou motivos adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da juiz (n.º 1 do art. 43.º), ou que sejam susceptíveis de constituir suspeição (n.º 2 do art. 43.º).
É assim de observar o princípio constitucional do juiz natural ou legal, previsto no art. 32.º da CRP que impõe que “ nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”
*
III - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.
Fixa-se em 3 Ucs a taxa de justiça.

Coimbra, 24 de Outubro de 2018
(Certifica-se que o acórdão foi elaborado e revisto pela relatora)

Isabel Valongo (relatora)
Jorge França (adjunto)