Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3166/19.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO POR BENFEITORIAS ÚTEIS
ÓNUS DA PROVA
BENFEITORIAS VOLUPTUÁRIAS
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 128.º, 5, DO CIRE
ARTIGOS 133.º, 2 E 205.º, 2 E 3, DA CRP
ARTIGO 631.º, 2, DO CPC
ARTIGOS 216.º; 342.º, 1; 756.º; 1273.º E 1275.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A quem invoca o direito a indemnização por realização de benfeitorias úteis incumbe, nos termos do art. 342º, nº 1, do C.Civil, o ónus de provar as características das obras efetuadas com vista à respetiva qualificação, à luz do disposto no art. 216º do mesmo Código, bem como a possibilidade de remoção dessas benfeitorias sem detrimento da coisa benfeitorizada, para os efeitos do disposto no art. 1273º do citado diploma.

II – Se as obras só podem ser reputadas de voluptuárias, não está conferido à Ré/reconvinte ora recorrente, por ser possuidora de má fé, o direito de “indemnização que reclama – art. 1275º, nº2 do C.Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                           *

1 – RELATÓRIO

A..., S.A.” propôs ação de reivindicação de propriedade, sob a forma de processo comum ordinário, contra AA e BB também estes melhor identificados nos autos, sendo que, por recurso, foi admitida a intervenção principal provocada do lado passivo de “B..., Unipessoal Lda.”.

Alegou a A., em síntese, que:

É dona e legítima proprietária de determinado prédio urbano que melhor identifica, aquisição essa efetuada por escritura pública de 19 de Dezembro de 2019 pelo preço de € 505.100,00 no âmbito de determinado processo de insolvência.

Tal imóvel, que se trata de um empreendimento de 10 moradias em banda inacabada, em que não ficou constituída a propriedade horizontal, foi adquirido livre e devoluto de pessoas e bens.

Cerca do ano de 2018 a A. verificou que uma das moradias do aludido empreendimento se encontrava a ser ocupada pelo R. AA, sendo-lhe solicitado que abandonasse a referida habitação.

O que não aconteceu, estando aquele imóvel a ser ocupado pelo R. conhecido e por outros que desconhece, não podendo a A. dele tirar o proveito a que tem direito e nada sendo pago à A. o que lhe causa prejuízos.

Várias vezes foram os RR. interpelados para abandonar a moradia o que têm recusado.

A ocupação é assim ilegal e ilegítima, sendo que caso fosse arrendado tal casa poderia render cerca de € 500,00 por mês.

Termina pedindo:

- declarar-se a A. como dona e legítima proprietária do imóvel identificado no artigo 1º da petição inicial, com a consequente condenação dos RR. a restituírem-no à A. livre, devoluto e em bom estado de conservação e perfeitas condições.

- Condenarem-se os RR. ao pagamento de uma indemnização de € 500,00 por mês correspondentes ao valor da ocupação a contar desde 22 de Maio de 2018.

- Condenarem-se os RR. ao pagamento das quantias vincendas até efetiva restituição da moradia, e no pagamento de uma indemnização a título de “eventuais” danos causados pela utilização e deterioração do imóvel.

                                                           *

Foi citado o R. AA, bem assim o Ministério Público em representação dos RR. incertos.

Apresentarem contestação conjunta o R. acima referido e a R. BB.

Em síntese referiram que a R. BB em 2015 quando passava perto do empreendimento a que alude a A., reparou que na segunda moradia a contar do lado esquerdo de quem está de frente para o prédio estava escrito na parede “vende-se com preço bom” e o número de telemóvel.

Estando a R. interessada em adquirir habitação própria, contactou com o sr. CC das “B...”, manifestando interesse na aquisição, dizendo-lhe este ter aquela moradia à venda.

Na sequência de conversações entre ambos, acertaram o preço da moradia e a forma de pagamento, tendo o CC informado a R. de que a moradia era sua e que o direito de retenção sobre a mesma lhe tinha sido reconhecido numa ação que correu termos no Tribunal ... e já transitada em julgado, sendo que por questões formais que se prendiam com o facto de a moradia ainda não estar registada em nome da sociedade não podiam assinar a escritura.

Foi assim celebrado um contrato promessa, e na data da assinatura do mesmo foi entregue à R. a referida moradia por aquela sociedade, tendo a mesma começado a pagar o preço estipulado na promessa, a saber € 250,00 por mês durante 10 anos.

Logo a R. passou a habitar a moradia nela e a expensas suas levou a cabo várias obras para a tornar habitável.

A partir de Junho de 2018, a R. deixou de liquidar os valores de € 250,00 por mês à “B...” em virtude de ter sido contactada por terceiros que a informaram estar a usar ilegalmente tal habitação, tendo ainda assim liquidado o valor total de € 9.250,00.

A A. conhecia o direito de retenção daquela moradia reconhecido à “B...”.

Tendo assim a R. direito a reter a mesma.

Em reconvenção para o caso de proceder a acção, pede a R. se lhe reconheça o direito de retenção, já que a mesma é titular perante a A. de um crédito de € 30.000,00, acrescido de benfeitorias no valor de € 13.213,24.

Requereu a intervenção principal provocada da Sociedade “B... Unipessoal Lda.”.

                                                           *

Houve réplica da A. à contestação/reconvenção, onde entre o mais arguiu a caducidade do direito de retenção, impugnou os factos da reconvenção e não aceitou o pedido de intervenção.

                                                           *

Após recurso, foi admitida a intervenção da Sociedade “B... Unipessoal Lda.”.

Citada, a Interveniente contestou, referindo ter a posse da moradia ocupada pelos RR. o que lhe foi reconhecido em acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, por via do direito de retenção de que gozava sobre o mesmo, facto este do conhecimento da A.

Reconvindo argui o seu direito de retenção, pedindo seja o mesmo reconhecido até lhe ser pago o valor do seu crédito o qual resulta de sentença proferida em processo de insolvência.

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Replicou a A., em termos que aqui se dão por reproduzidos.

                                                           *

Foi proferido despacho saneador, no qual se fez cessar a intervenção do Ministério Público reconhecendo-se legitimidade à R. BB para a demanda, atribui-se valor à causa, admitiram-se as reconvenções, indicou-se o objeto do litígio e os temas da prova, e bem assim os róis probatórios.

                                                           *

Realizou-se, por fim, a audiência de discussão e julgamento, dentro do estrito formalismo legal, tal como consta das respetivas atas.

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, nomeadamente que gozando a A. do registo a seu favor do prédio ajuizado, importava começar por previamente declarar a A. como proprietária do mesmo, mas sendo os RR. absolvidos do pagamento àquela de qualquer indemnização pela ocupação e utilização respetiva, acrescendo que não tinha a R. direito a reter a moradia porquanto apesar de deter a coisa e possuí-la há mais de cinco anos, as despesas que fez na mesma foram feitas de má-fé, donde era a A. absolvida do pedido de condenação a reconhecer o crédito da R. e pagamento a esta de determinado montante [por não haver qualquer melhoria para a A. das despesas feita por aquela], bem assim improcedendo o alegado direito de retenção invocado pela R., como igualmente improcedia o pedido de cancelamento do registo da aquisição da propriedade a favor da A. [também por não existir registo de qualquer “moradia” a favor dela], e que, por outro lado, ainda improcedia o direito de retenção formulado pela Interveniente, o qual não se lhe reconhecia, indo a A. absolvida também do pagamento de qualquer quantia a essa Interveniente, pelo que, «Aqui chegados, há que ordenar, após trânsito em julgado da presente sentença, a restituição à A. pelos RR. livre e devoluta de pessoa e bens, da moradia ocupada pelos mesmos», termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

« IV- DECISÃO

i- Julga-se a acção parcialmente procedente e consequentemente:

a) condenam-se os RR. AA, BB e a Interveniente B... Unipessoal Lda. a reconhecer a A. A... S.A. como proprietária do prédio urbano situado em Caminho ..., com a área total de 3600m2 e que correspondente a parcela de terreno para construção, registado sob o nº ...21 da Conservatória do Registo Predial ..., e onde se encontram fisicamente implantadas dez moradias.

b) Condenam-se tais RR. a restituir à A., após trânsito em julgado da presente sentença, livre e devoluta de pessoa e bens, a moradia ocupada pelos mesmos, a qual é a segunda moradia a contar do lado esquerdo de quem está de frente, e que está implantada no prédio urbano registado sob o nº ...21 da Conservatória do Registo Predial ..., situado em Caminho ..., com a área total de 3600m2 e que correspondente a parcela de terreno para construção, moradia essa que tem actualmente o número 10 B da Rua ....

c) Absolvem-se os RR. do demais peticionado.

ii- Julgam-se as reconvenções da R. e da Interveniente totalmente improcedentes e nessa sequência:

e) absolve-se a A. de todos os pedidos reconvencionais deduzidos pela R. e pela Interveniente.

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Custas da acção em 30% a cargo da A. - parcialmente vencida - e em 70% a cargo dos RR. e da interveniente - sendo que a R. BB litiga com apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo (artigo 527º do CPC).

Custas da reconvenção da R. BB Yakovyshym, a seu cargo, sem embargo do apoio judiciário com que litiga (artigo 527º do CPC).

Custas da reconvenção da Interveniente a seu cargo (artigo 527º do CPC).

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Registe e Notifique. »

                                                           *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a Ré BB recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1 – O ponto 6 dos factos provados ser alterado e, em face da prova documental autêntica constante dos autos e apreciada pelo Tribunal a quo, passar a constar do mesmo que a C... foi declarada insolvente por sentença de 16 de maio de 2007.

2 - O Tribunal a quo julgou, de forma incorreta, provado o Facto 12.1, pois foi produzida prova no sentido de que, à data da celebração do acordo indicado em 12, a Ré NÃO sabia que o bem objeto desse acordo não pertencia à Interveniente B....

3 - Foi produzida prova de que a Ré estava convicta de que a moradia objeto desse acordo pertencia às B..., tendo-lhe esse direito sido reconhecido por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

4 – Assim, resulta do teor das suas declarações que a Ré, aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda com traditio, estava convicta de que a moradia objeto desse contrato tinha sido atribuída à Interveniente, para pagamento de um crédito que a mesma tinha, decorrente da construção daquele prédio – Vide declarações gravadas sob o registo áudio do julgamento do dia 17/10/2022, Início 15h01m e Fim pelas 15h25m, gravadas entre os 03 minutos e 23 segundos e os 04 minutos e 05 segundos e entre os 20 minutos e 29 segundos e os 20 minutos e os 40 segundos do suporte do registo áudio.

5 - Mais resulta provado que a Ré estava convencida, quando outorgou o contrato promessa e até à citação para os termos da presente ação, de que o direito da Interveniente B..., Lda. sobre a referida 2.ª moradia, objeto do contrato-promessa, lhe havia sido reconhecido pelo Tribunal da Relação de Coimbra - Vide declarações gravadas sob o registo áudio do julgamento do dia 17/10/2022, Início 15h01m e Fim pelas 15h25m, gravadas entre os 03 minutos e 23 segundos e os 04 minutos e 05 segundos e entre os 19 minutos e 46 segundos e os 20 minutos e os 30 segundos do suporte do registo áudio.

6 - A Ré estava convencida de que não havia feito o negócio através da outorga de escritura pública, mas através do documento plasmado no facto 12 dos factos provados, por questões meramente formais, decorrentes de a casa ainda não se encontrar acabada - Vide declarações gravadas sob o registo áudio do julgamento do dia 17/10/2022, Início 15h01m e Fim pelas 15h25m, gravadas entre os 19 minutos e 46 segundos e os 20 minutos e os 30 segundos do suporte do registo áudio.

7 - A Ré nunca duvidou do direito de que a Interveniente se arrogou, nem nunca questionou a validade, nem a legalidade do contrato que celebrou e que a legitimou a tomar posse, como tomou, da moradia e a levar a efeito, como levou, as obras de limpeza e de benfeitorização da mesma, tendo em vista ao seu acabamento e utilização como habitação - Vide declarações gravadas sob o registo áudio do julgamento do dia 17/10/2022: Início 15h01m e Fim pelas 15h25m, mais concretamente entre os 18 minutos e 32 segundos e os 23 minutos e 39 segundos do suporte do registo áudio.

8 - A Ré estava convencida de que a moradia objeto do contrato era da Interveniente, pois existia uma sentença judicial que o tinha decidido e estava convencida de que a moradia apenas não se encontrava ainda em nome da Interveniente, mas que esse facto se tratava de um aspeto formal que iria ser regularizado e que em nada seria impeditivo nem preclusivo do seu direito - Vide declarações gravadas sob o registo áudio do julgamento do dia 17/10/2022, Início 15h01m e Fim pelas 15h25m, gravadas entre os 21 minutos e 37 segundos e os 20 minutos e os 39 segundos do suporte do registo áudio.

9 - A Ré sabia que a moradia não estava no nome das B..., Lda., mas estava convencida de que o direito da propriedade das referidas construções sobre a moradia se encontrava consolidado na Ordem Jurídica e respaldado num acórdão, emanado do Tribunal da Relação de Coimbra.

10 - Pelo que o ponto 12.1 dos factos provados devia ter sido fixado nos seguintes termos: À data da celebração do acordo indicado em 12, a R., e até à citação para os termos da presente ação, a R. estava convencida de que o bem objeto desse acordo pertencia à Interveniente B... e que esse direito lhe tinha sido reconhecido por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado.

11 – Conforme prova produzida nesse sentido e analisada supra, deve ser acrescentado ao elenco dos factos provados que: À data da celebração do acordo indicado em 12, e até à citação para os termos da presente ação, a R. tinha a convicção de se encontrar a exercer um direito próprio, uma vez que o mesmo se encontra titulado por um contrato promessa de compra e venda e dado que à promitente vendedora naquele contrato foi reconhecido judicialmente, por Acórdão transitado em julgado, o direito de retenção sobre a moradia que a mesma levou a efeito (a segunda a contar do lado norte do prédio), fração a que será a atribuída a letra ... no prédio urbano denominado Caminho ..., sito em ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...75, da freguesia ..., concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...54/....

12 – Pelo mesmo motivo, deve ser acrescentado ao elenco dos factos provados que: Tendo sido no pressuposto da existência do direito de retenção na esfera jurídica da Interveniente B..., Unipessoal, Lda. e da legitimidade desta para prometer vender a moradia que a Ré celebrou o contrato promessa de compra e venda, ocupou a casa e a benfeitorizou.

13 - As dificuldades de compreensão e expressão oral e escrita da Ré, natural da Ucrânia, são um facto essencial, uma vez que se, até para um cidadão comum, médio, nativo em português, se revela de difícil interpretação o conteúdo dos contratos, bem como de difícil alcance determinados institutos jurídicos que nos mesmos se manifestam, como é o caso do direito de retenção, tal empresa afigura-se de muito maior dificuldade para uma cidadã ucraniana, como a Recorrente, que de português apenas percebe o básico.

14 - Deve, assim, por se tratar de facto essencial, alegado e provado, ser acrescentado ao elenco dos factos provados que “A Ré é natural da Ucrânia e, apesar de viver e trabalhar em Portugal há alguns anos, tem dificuldade na compreensão e expressão oral e escrita em língua portuguesa.”

15 - Conforme a vasta prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, quando a Ré passou a habitar a 2.ª das moradias existentes no prédio urbano propriedade da Autora, e aí começou a fazer obras, atuou convencida de que aquela moradia pertencia à sociedade B....

16 – Foi no pressuposto da existência do direito de retenção na esfera jurídica da Interveniente B..., Unipessoal, Lda. e da legitimidade desta para lhe prometer vender a moradia, que a Ré celebrou o contrato promessa de compra e venda, ocupou a casa e a benfeitorizou.

17 - As despesas que a Ré fez na moradia não foram feitas de má-fé, mas sim de boa-fé.

18 - Além de estar plenamente convicta de que exercia um direito legítimo e próprio, desconhecia a Autora que, com a sua atuação, prejudicava os direitos de outrem, cuja identidade, frise-se, desconhecia em absoluto.

19 - “não resultando dos factos provados que os trabalhos atinentes às benfeitorias foram realizados já depois de os réus terem conhecimento de que era definitivamente impossível a celebração do contrato prometido, nem existindo outros factos reveladores de má-fé por parte da ré-reconvinte, não se pode considerar excluído, no que concerne à indemnização devida por tais benfeitorias, o direito de retenção invocado pela mesma.” - vide Ac. do T.R.L, de 10-09-2020, proc. n.º 1315/17.4T8ALM.L1-2.

20 - Como está e sempre esteve de boa-fé, não pode ser impedida à Ré a possibilidade do exercício do direito de retenção, com fundamento no artigo 756.º do Código Civil.

21 - O Tribunal a quo considerou que as obras feitas pela Ré “não se podem considerar necessárias pois não foram feitas para evitar a perda ou deterioração da coisa.”, que “não são úteis pois não eram indispensáveis para a sua conservação.” E que “De igual modo, não se vê que qualquer das despesas feitas pela R. se possa também considerar voluptuária.”

22 - Depois de ter considerado que as obras levadas a efeito pela Ré na moradia constituíam benfeitorias e que as mesmas não se enquadravam em nenhum dos três tipos de benfeitorias que o Legislador consagrou e a Jurisprudência tem vindo a acolher, criou o Tribunal a quo, te ipsum, uma quarta e nunca antes vista modalidade de benfeitoria, a que apelidou: “as benfeitoras realizadas para proveito próprio do benfeitorizante…”

23 - Tendo, após a criação deste 4.º tipo de benfeitoria, considerado tratar-se desse tipo as obras realizadas pela Ré na moradia e, como tal, desmerecedoras de compensação.

24 - As obras levadas a efeito, de boa-fé, pela Ré, e elencadas de forma genérica nos pontos 15 a 30 dos factos provados, embora realizadas, também, para proveito da própria benfeitorizante, aumentaram, todavia, o valor da moradia, traduzindo-se, por essa via, num incremento da esfera patrimonial da Autora à custa da Ré, pelo que foram e são benfeitorias úteis, na aceção do artigo 216.º do Código Civil.

25 - A existência de várias moradias ao lado da que a Ré habita, em estado de degradação e ainda não concluídas em nada impede que se reconheça e seja declarada a utilidade das obras realizadas pela Ré na moradia, que tiveram em vista a sua conclusão e que impediram a sua degradação

26 - Estando a moradia que habita em bom estado de conservação e concluída, em virtude das obras que nela realizou a Ré, ressalta à compreensão de que correspondem, tais despesas, a um acréscimo patrimonial na esfera jurídica do benfeitorizado à custa do benfeitorizante.

27 - Não consegue a Ré proceder ao levantamento das benfeitorias realizadas na coisa sem detrimento da mesma, nem dos próprios materiais aplicados

28 - Uma vez que está e sempre esteve de boa-fé, dado que as benfeitorias que levou a efeito são úteis e uma vez que não pode proceder ao respetivo levantamento, tem a Ré direito ao ressarcimento, por parte da Autora, do valor das mesmas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

29 - E tem a Ré ao seu dispor o direito de retenção sobre a moradia, que lhe deve ser reconhecido, de forma a garantir a satisfação do crédito de que é titular, decorrente das despesas feitas por causa do imóvel e de que a Autora irá beneficiar.

30 - Decidiu o tribunal a quo aplicar o artigo 128.º, n.º 5 do C.I.R.E. e, por essa via, declarar caducado o direito de retenção da Interveniente titulado por Ac. do T.R.C., transitado em julgado, por o mesmo não ter sido exercido no processo de insolvência.

31 - Ao obrigar o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva a reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento, e ao abranger no conceito “decisão definitiva” as decisões judiciais transitadas em julgado, viola o artigo 128.º, n.º 5 do C.I.R.E., o disposto no artigo 205.º, n.º 2 da C.R.P.

32 - Ao obrigar o credor munido de um título consistente numa sentença transitada em julgado vir reclamar o seu crédito no processo de insolvência, sob pena de caducidade do mesmo, o artigo 128.º, n.º 5, do C.I.R.E. aniquila a força obrigatória da sentença, consagrada no artigo 205.º, n.º 2, da C.R.P.

33 – É inconstitucional o artigo 128.º, n.º 5 do C.I.R.E., ao estatuir que “mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”, por violação do artigo 205.º, n.º 2 da C.R.P. Inconstitucionalidade que nesta sede de argui e que deve ser declarada com as legais consequências.

34 - Violou o aresto em recurso, ao decidir como decidiu, entre outros, o disposto nos artigos 754.º, 756.º e 1273.º do C.C., 128.º, n.º 5 do C.I.R.E. e 205.º, n.º 2 da C.R.P.

Termos em que e nos melhores de direito, dever-se-á dar provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por douto acórdão que condene a Autora a reconhecer o crédito da Ré, bem como no pagamento a esta dos montantes que a mesma gastou em benfeitorias úteis na moradia, reconhecendo-se-lhe o direito de retenção sobre a moradia, de forma a garantir a satisfação do crédito de que é titular, decorrente das despesas feitas por causa do imóvel, e que declare a inconstitucionalidade arguida. Tudo com as legais consequências.

Assim se fazendo JUSTIÇA!»                                                     

                                                                       *

            Por sua vez, apresentou a A. contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

 «1 – Para um correto enquadramento da questão será relevante referir que a A... adquiriu o prédio urbano sito em Caminho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...54, da freguesia ... (...), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...09, da freguesia ... – ... e ..., no processo de insolvência n.º 843/06...., que correu termos no ... juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa à insolvente C..., Lda, que não finalizou a obra de construção.

2 – Em janeiro de 2012, através do Eng. DD, o mesmo testemunhou que todas as moradias estavam desocupadas. Posteriormente, a proprietária sofreu algumas ocupações clandestinas, mas resolveu com a instauração da respetiva providência cautelar.

3 – Porém, no dia 22 de maio de 2018, com deslocação do Sr. EE, verificou que havia sofrido nova ocupação de uma dessas moradias pelos aqui Recorrentes/Réus e das B... Lda, que alegaram terem a haver da anterior proprietária insolvente – D... Lda, despesas efetuadas na moradia ocupada, e portanto estavam a exercer um direito de retenção contra o insolvente.

4 – A B... Lda sabiam que os anteriores proprietários estavam insolventes e que tinham de reclamar o seu direito na insolvência, mas não o fizeram e as insolvências encerraram com o pagamento a todos os credores. Dessa forma, o crédito caducou, assim como o respetivo direito de retenção.

5 – Por terem direito de retenção celebraram com os aqui Recorrentes/Autores um Contrato-promessa de bem futuro em que prometiam adquirir aquela moradia se a mesma fosse colocada à venda (cláusula 2.ª), e a segunda Outorgante (Ré BB), declarou estar ciente das condições e do facto de estar a celebrar um contrato – promessa de bem futuro, em que o imóvel não está em nome das B... Lda (cláusula 5.º)

6 – Em plena audiência de julgamento a Ré BB disse que sabia que a casa não estava em nome do promitente – vendedor e das declarações transcritas da audiência provou-se isso mesmo “eu sabia que ainda não estava em nome do CC”, provando-se aqui a sua má – fé.

7- O Tribunal a quo deu como provado que a Ré BB sabia que o objeto desse acordo não estava em nome da B..., Lda e que, por isso todas as despesas foram feitas de má fé, pois as despesas na casa estavam a prejudicar o proprietário e que bastaria retirar uma certidão predial para compreender todo o processo. Mais se refere que todas as faturas apresentadas pela Ré BB não foram validadas pelo Tribunal a quo, por não estarem traduzidas e outras por estarem ilegíveis e infundadas.

8 – Neste recurso o Recorrente assenta os seus argumentos de defesa em três fundamentos, em que a Ré não sabia que o imóvel não pertencia à B... Lda, a utilidade das benfeitorias para o Autor A... e a inconstitucionalidade do artigo 128.º, n.º 5 do CIRE

9 – Ora, o primeiro argumento não merece acolhimento porquanto o próprio contrato-promessa assinado pela Ré BB na cláusula 3.º e 5.º indica precisamente que sabia que o imóvel era de um terceiro e que não estava registado em nome do promitente vendedor, nem foi requerida qualquer anulabilidade do respetivo contrato pela Ré BB.

10 – O direito de retenção não o torna proprietário do imóvel, e assim a Ré BB não pode vir afirmar que sabia que não estava em nome da B... Lda, para posteriormente, vir afirmar que estava convencida de que iria estar reclamando a sua boa fé. Desta forma se concordando, em, absoluto, com o que está descrito no Acórdão do STJ de 07/10/1982, processo n.º 070124 em que “haverá má fé quando vícios ou defeitos na aquisição, deles tenha conhecimento, não se abstendo de realizar as despesas com a coisa retida e tendo consciência que lesa o direito de outrem.”

11 – No segundo argumento, o Recorrente afirma que os materiais ali colocados são benfeitorias, mas não respeitam o projeto camarário, tendo sido apenas colocados portas, janelas, estores, vidros, louças de casa de banho, água e luz para tornar a habitação com condições mínimas de habitabilidade, como colocando as restantes telhas no telhado.

12 – O Tribunal a quo não utilizou a expressão “as benfeitorias realizadas para proveito próprio do benfeitorizante …”, ao contrário do que afirma a Recorrente.

13 – Afirmando que “as obras feitas (…), tendo sido apenas realizadas para proveito próprio da Ré “, não existindo as expressões de benfeitorias ou benfeitorizante.

14 – A testemunha que a Recorrente utiliza para justificar as despesas não tem conhecimento da situação, sendo apenas uma pessoa que está a fazer uma obra em frente à moradia ocupada pela Ré BB, nem tem conhecimento dos materiais ali colocados, e todas as faturas não foram validadas e são elegíveis e infundadas.

15 – A recorrente argui a inconstitucionalidade do artigo 128.º, n.º 5 da CRP, mas não existe essa mesma inconstitucionalidade porquanto este mesmo artigo está de acordo com a proteção dos direitos dos outros credores que reclamam o seu direito e que merecem essa mesma proteção através dos direitos adquiridos e uma sentença apresentada passados anos não pode colocar em causa o recebimento dos montantes por parte dos credores.

16 – Assim, não se afetando os direitos dos terceiros de boa fé, mas a Autora A... é alheia a esses mesmos créditos ou despesas que se pede contra a D....

17 – Juridicamente, a Autora é a legitima proprietária do imóvel por escritura pública – artigo 1316.º do Código Civil. Esse direito encontra-se registado a seu favor nos termos do artigo 1268.º do Código Civil e artigo 7.º do Código Registo Predial. O artigo 7.º do Código Registo Predial define que o registo definitivo constitui presunção de que o Direito existe e pertence ao titular inscrito.

18 – O artigo 756.º do Código Civil, na alínea a) , determina que não existe direito de retenção “ a favor dos que tenham realizado de má fé as despesas de que proveio o seu crédito”. A Ré BB sabia que o imóvel não estava em nome da B... Lda.

19 – A título exemplificativo, determina o Acórdão do STJ de 20/11/2011, de que a realização de despesas não pode violar deveres objetivos de lealdade. Neste seguimento decidiu, ainda , o Acórdão do STJ de 07/04/1982 que haverá má fé do retentor quando havendo vícios e defeitos na aquisição, deles tenha conhecimento, não se abstendo de realizar as despesas na consciência de estar a prejudicar ou lesar

o proprietário e no caso concreto está a lesar ao não se cumprir com o projeto camarário.

20 – O artigo 216.º do Código Civil que define o conceito de benfeitoria não se aplica, pois como não foram colocados materiais de acordo com o projeto camarário, a Autora/Recorrida terá de desfazer obrigatoriamente tudo o que foi colocado.

21 – A recorrente não alega os factos essenciais para provar que estamos perante benfeitorias, alega apenas que realizou obras, mas não a utilidade das mesmas para a Autora. Neste seguimento o Acórdão do STJ datado de 02/12/2013, processo n.º 2138/06.1TJLSB.L1.S1, pois se conclui que não existe qualquer utilidade para a Autora.

22 – Assim, se provando que a Ré BB sabia de todo o processo e que as obras que realizou não têm qualquer utilidade para a Autora, mas apenas e só para proveito próprio da Ré BB.

Termos em que, e sem necessidade de mais amplas considerações, deverá a presente apelação ser julgada totalmente improcedente, confirmando-se a decisão proferida pelo tribunal a quo com todos os seus efeitos legais.

Assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA !! »

                                                                      *

            O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

                                                                       *

            Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Ré nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - erro na decisão da matéria de facto, devendo o ponto “6.” dos factos “provados” ser alterado [quanto ao ano da declaração de insolvência em causa], ser o ponto “12.1” dos factos “provados” alterado na sua redação [passando a constar que «À data da celebração do acordo indicado em 12, a R., e até à citação para os termos da presente ação, a R. estava convencida de que o bem objeto desse acordo pertencia à Interveniente B... e que esse direito lhe tinha sido reconhecido por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado»], e ser acrescentado ao elenco dos factos “provados” mais três pontos de facto [sendo o primeiro que «À data da celebração do acordo indicado em 12, e até à citação para os termos da presente ação, a R. tinha a convicção de se encontrar a exercer um direito próprio, uma vez que o mesmo se encontra titulado por um contrato promessa de compra e venda e dado que à promitente vendedora naquele contrato foi reconhecido judicialmente, por Acórdão transitado em julgado, o direito de retenção sobre a moradia que a mesma levou a efeito (a segunda a contar do lado norte do prédio), fração a que será a atribuída a letra ... no prédio urbano denominado Caminho ..., sito em ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...75, da freguesia ..., concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...54/....», o segundo que «Tendo sido no pressuposto da existência do direito de retenção na esfera jurídica da Interveniente B..., Unipessoal, Lda. e da legitimidade desta para prometer vender a moradia que a Ré celebrou o contrato promessa de compra e venda, ocupou a casa e a benfeitorizou.», e o terceiro que «A Ré é natural da Ucrânia e, apesar de viver e trabalhar em Portugal há alguns anos, tem dificuldade na compreensão e expressão oral e escrita em língua portuguesa.»]?;

- incorreto julgamento de direito [designadamente porque «está e sempre esteve de boa-fé, não pode ser impedida à Ré a possibilidade do exercício do direito de retenção, com fundamento no artigo 756.º do Código Civil», sendo que «dado que as benfeitorias que levou a efeito são úteis e uma vez que não pode proceder ao respetivo levantamento, tem a Ré direito ao ressarcimento, por parte da Autora, do valor das mesmas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa», bem assim que «tem a Ré ao seu dispor o direito de retenção sobre a moradia, que lhe deve ser reconhecido, de forma a garantir a satisfação do crédito de que é titular» e que «Ao obrigar o credor munido de um título consistente numa sentença transitada em julgado vir reclamar o seu crédito no processo de insolvência, sob pena de caducidade do mesmo, o artigo 128.º, n.º 5, do C.I.R.E. aniquila a força obrigatória da sentença, consagrada no artigo 205.º, n.º 2, da C.R.P», sendo “inconstitucional”]?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de “Factos provados”:

«1- sob o nº ...21 da Conservatória do Registo Predial ..., encontra-se registado o prédio urbano situado em Caminho ..., com a área total de 3600m2 e que correspondente a parcela de terreno para construção.

2- Pela apresentação nº ... de 2004/06/09, a C... Lda., tendo por causa a compra, adquiriu à D... o prédio indicado em 1.

3- Sob tal prédio consta sob o averbamento - apresentação nº 4822 de 2009/01/09 - a transmissão de crédito tendo por causa “cessão de crédito” sendo sujeito activo da mesma a aqui A. e sujeito passivo a Caixa Económica Montepio Geral, cessão essa resultante da hipoteca voluntária que impedia sobre tal prédio e da qual era sujeito activo a Caixa Económica Montepio Geral, e constante da apresentação nº 11 de 2001/01/09.

4- Pela apresentação nº 3762 de 2011/12/19 provisório por natureza - alínea b) do nº 2 do artigo 92º do Código de Registo Predial - consta a aquisição em processo de insolvência pela A. do prédio acima referido, sendo sujeito passivo da mesma a C... Lda.

5- No processo 6612/06.... em que foram partes, a B... Unipessoal Lda. como Autora, e Réus, Massa Insolvente de D..., FF, C... Lda., Caixa Económica Montepio Geral, por acórdão transitado em julgado cujo seu integral conteúdo aqui se reproduz, foi decido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 18 de Março de 2014:

“nos termos expostos decide-se julgar parcialmente procedente a apelação revogando-se a sentença na parte em que negou à Autora o direito de retenção sobre a moradia indicada na petição inicial, direito que ora se lhe reconhece, e improcedente quanto ao mais, confirmando-se a sentença nessa parte”

6- A C... foi declarada insolvente por sentença de 16 de Maio de 2017, e por sentença de 21 de Novembro de 2018 foi proferida sentença de graduação de créditos na qual os mesmos no que tange ao prédio indicado em 1 foram assim graduados:

“1. Em primeiro lugar:

- Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de 912,48 € (739,58 € + 172,90 €);

2. Em segundo lugar:

- Crédito garantido por hipoteca da A..., S.A., no montante de 770.942,03 €;

3. Em terceiro lugar:

- Crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, I.P., no montante de 13.557,65 €;

4. Em quarto lugar

- Crédito privilegiado do Estado referente a IRC no montante de 1.093,20 €;

5. Em quinto lugar, rateadamente, os créditos comuns (incluindo o remanescente dos créditos privilegiados quanto aos bens sobre os quais não incide o privilégio)”.

7- Nem os RR. nem a Interveniente tiveram intervenção no processo indicado em 6.

8- A A. faz parte do grupo Grupo Montepio do qual faz parte igualmente a Caixa Económica Montepio Geral.

9- Desde data não concretamente apurada, foi iniciada a construção de 10 moradias no prédio indicado em 1.

10- Por volta do ano de 2015, ao passar perto daquelas moradias a R. BB deparou-se com uma placa numa dessas moradias, com um escrito na parede a dizer “vende-se” e um número de telemóvel.

11- Nessa sequência a A. decidiu telefonar para aquele número, tendo falado com o legal representante da Interveniente B..., manifestando interesse na moradia, tendo aquele confirmado que a mesma estava para venda.

12- Após conversações entre a A. e o legal representante da B... foi pelos mesmos reduzido a escrito e assinado, o pelas partes designado “contrato promessa de compra e venda” o qual tem o seguinte conteúdo:

12.1- À data da celebração do acordo indicado em 12, a R. sabia que o bem objecto desse acordo não pertencia à Interveniente B....

13- Por conta do acordo referido em 12 a R. entregou à B... a quantia de € 9.750,00 liquidados entre a data da celebração do acordo e 12 de Junho de 2018.

14- Após a assinatura do acordo mencionado em 12 a R. entrou para a moradia, a qual tal como as restantes, se encontrava inacabada, sem portas ou janelas, sem pintura por fora e por dentro, com lixo dentro e fora das habitações, com casas de banho sem louças nem canalizações, sem água e sem luz e com o piso inacabado.

15- E logo após aí ter entrado a R. iniciou trabalhos de limpeza interior e exterior da moradia nos quais gastou valor não apurado.

16- Procedendo à aquisição de caixilharias em alumínio e vidros para colocação nas portas e janelas com a inerente mão de obra, despendendo valor não apurado.

17- Adquirindo estores e acessórios de montagem por valor não apurado.

18- Limpando o telhado gastando valor não concretizado.

19- Pedindo a ligação ao ramal de abastecimento de água com a colocação do respectivo contador na qual despendeu o valor de € 366,10

20- Executando trabalhos para ligação de energia eléctrica nos quais despendeu a quantia de € 131,77.

21- E mandou executar trabalhos de infraestruturas eléctricas para poder ter dentro de casa electricidade, tendo gasto a quantia de € 467,20.

22- Solicitando a certificação energética pela qual pagou o valor de € 51,23.

23- Adquiriu material eléctrico como sejam tomadas, fusíveis, espelhos, disjuntores, caixas, fios, cabos e lâmpadas, liquidando por tal material quantia não apurada.

24- Pintou a casa por fora e por dentro pagando quantia não apurada.

25- Colocou canos, torneiras, misturadoras, autoclismo e louças sanitárias em casa de banho, contratando ainda serviços de canalização cujo valor não se apurou.

26- Arranjou móveis de cozinha que colocou na mesma, armários, lava-louça e pedra de bancada para tal cozinha despendendo valor não concretizado.

27- E desde meados de 2015 a R. tem usado a moradia como se casa sua fosse aí cozinhando, tomando refeições e dormindo.

28- Recebendo visitas de amigos, e aí pernoitando por vezes o R. seu filho e netos.

29- À vista de todos.

30- Tendo contratado água e luz, e indicando aquela morada como seu domicílio perante todas as entidades com quem se relaciona,

31- Em Junho de 2018 descolocaram-se duas pessoas à moradia que a R. usa, falando com o 1º R. dizendo-lhe que a casa não lhes pertencia.

32- Em Junho de 2018 foi reduzido a escrito e assinado o seguinte documento:

33- A R. B... Lda. procedeu em data não concretizada mas há mais de 15 anos, à construção de duas moradias no prédio indicado em 1, a pedido da D..., uma das quais é a que a R. habita e a que se alude no facto 5.

33.1- Em 10 de Fevereiro de 2021 foi certificado pelo Juízo de Comércio de Leiria – J... que a B... havia em data não indicada, proposto acção de verificação ulterior de créditos reclamando no processo nº 7111/05.... em que é Autor GG, Banco BPI S.A., o valor de capital de € 22.446,00 e juros no montante de € 5.593,21, não constando dos autos até àquela data que a mesma tivesse recebido algum valor.

34- As moradias aludidas em 14, excluindo aquela que vem sendo habitada pela R. encontram-se no estado em que se encontravam em 2015 e melhor descrito no facto 14.»

                                                                       ¨¨

E o seguinte em termos de Factos não provados”:

«a- A A. tem sofrido um prejuízo mensal de aproximadamente € 500,00 por mês desde o momento em que a R. e o R. habitam a moradia a que se vem fazendo referência.

b- Deixando assim a A. de dela poder tirar proveito, incluindo o arrendamento de tal imóvel, tanto no passado como no presente.

c- À Interviente B... Lda. foram reconhecidos créditos no âmbito do processo de Insolvência da D....

d- Na sequência do facto referido em 31 a R. deslocou-se à agência da Caixa Económica Montepio Geral em ..., tendo questionado os funcionários acerca do que se passava com a sua casa, visto que se tinham deslocado duas pessoas à mesma, a dizerem que o prédio era do Montepio Geral, o que, na sua ideia, apenas podia ter-se ficado a dever a um equívoco.

e- Na agência da Caixa Económica Montepio Geral em ... foi transmitido à R. que a não havia nenhum processo relacionada com aquela casa e que a mesma não era propriedade daquela instituição bancária.

f- O que deixou a R. mais tranquila.

g- No entanto e apesar da informação transmitida no balcão de ... da Caixa Económica Montepio Geral, a R. falou com o Sr. CC, legal representante da B..., Unipessoal, Lda., acerca do sucedido.

h- O documento aludido em 32 foi emitido depois do senhor CC informar a R. que a moradia não estava ainda registada em nome da B..., Unipessoal, Lda. e que tinha existido uma venda do prédio.»

                                                                       *

3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz no invocado erro na decisão da matéria de facto, devendo o ponto “6.” dos factos “provados” ser alterado [quanto ao ano da declaração de insolvência em causa], ser o ponto “12.1” dos factos “provados” alterado na sua redação [passando a constar que «À data da celebração do acordo indicado em 12, a R., e até à citação para os termos da presente ação, a R. estava convencida de que o bem objeto desse acordo pertencia à Interveniente B... e que esse direito lhe tinha sido reconhecido por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado»], e ser acrescentado ao elenco dos factos “provados” mais três pontos de facto [sendo o primeiro que «À data da celebração do acordo indicado em 12, e até à citação para os termos da presente ação, a R. tinha a convicção de se encontrar a exercer um direito próprio, uma vez que o mesmo se encontra titulado por um contrato promessa de compra e venda e dado que à promitente vendedora naquele contrato foi reconhecido judicialmente, por Acórdão transitado em julgado, o direito de retenção sobre a moradia que a mesma levou a efeito (a segunda a contar do lado norte do prédio), fração a que será a atribuída a letra ... no prédio urbano denominado Caminho ..., sito em ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...75, da freguesia ..., concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...54/....», o segundo que «Tendo sido no pressuposto da existência do direito de retenção na esfera jurídica da Interveniente B..., Unipessoal, Lda. e da legitimidade desta para prometer vender a moradia que a Ré celebrou o contrato promessa de compra e venda, ocupou a casa e a benfeitorizou.», e o terceiro que «A Ré é natural da Ucrânia e, apesar de viver e trabalhar em Portugal há alguns anos, tem dificuldade na compreensão e expressão oral e escrita em língua portuguesa.»]

Que dizer?

Quanto ao pedido de alteração da redação do ponto “6.” dos factos “provados”, uma vez que está em causa o ano da declaração de insolvência referenciado no mesmo, e que a alteração pretendida tem pleno e total apoio no teor da certidão relativa ao processo nº 843/06.... [certidão sobre a qual o Tribunal a quo fundamentou a decisão relativamente a este ponto de facto], tudo indiciando que o ocorrido – a saber, que a Sociedade “C...” foi declarada insolvente por sentença de 16 de Maio de “2017”, quando, na verdade, o foi no ano de “2007”! – consistiu num mero lapso de escrita, importa, sem mais, deferir a requerida retificação, em consequência de que o dito ponto de facto passará doravante a figurar com o seguinte teor literal:

«6- A C... foi declarada insolvente por sentença de 16 de Maio de 2007, e por sentença de 21 de Novembro de 2018 foi proferida sentença de graduação de créditos na qual os mesmos no que tange ao prédio indicado em 1 foram assim graduados:

“1. Em primeiro lugar:

- Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de 912,48 € (739,58 € + 172,90 €);

2. Em segundo lugar:

- Crédito garantido por hipoteca da A..., S.A., no montante de 770.942,03 €;

3. Em terceiro lugar:

- Crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social, I.P., no montante de 13.557,65 €;

4. Em quarto lugar

- Crédito privilegiado do Estado referente a IRC no montante de 1.093,20 €;

5. Em quinto lugar, rateadamente, os créditos comuns (incluindo o remanescente dos créditos privilegiados quanto aos bens sobre os quais não incide o privilégio)”.»

                                                           ¨¨

Já o seguinte aspeto da impugnação em apreciação é o de que o ponto “12.1” dos factos “provados” seja alterado na sua redação, mais concretamente no sentido de que passe a constar que «À data da celebração do acordo indicado em 12, a R., e até à citação para os termos da presente ação, a R. estava convencida de que o bem objeto desse acordo pertencia à Interveniente B... e que esse direito lhe tinha sido reconhecido por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado».

Recorde-se que o que figura na sentença recorrida é «12.1- À data da celebração do acordo indicado em 12, a R. sabia que o bem objecto desse acordo não pertencia à Interveniente B....»

Para fundamentar uma tal alteração, a Ré/recorrente argumenta, no essencial, que «(…) foi produzida prova bastante no sentido de que, à data da celebração do acordo indicado em 12, a Ré NÃO sabia que o bem objeto desse acordo não pertencia à Interveniente B.... Mais ainda, foi produzida prova de que a Ré estava convicta de que a moradia objeto desse acordo pertencia às B..., tendo-lhe esse direito sido reconhecido por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa», sendo certo que transcreve um trecho da gravação áudio das declarações da própria na audiência de julgamento que considera relevante em apoio dessa sua interpretação/valoração.

Que dizer?

Que, independentemente do manifesto lapso de escrita que constitui a referência a “Tribunal da Relação de Lisboa”, quando efetivamente se tratava e queria aludir a “Tribunal da Relação de Coimbra”, o que é certo é que, salvo o devido respeito, das invocadas declarações da Ré/recorrente, que incluem até o que foi expressamente transcrito pela própria, decorre muito clara e insofismavelmente o contrário do que ela sustenta.

Senão vejamos, o que consta da gravação da audiência do dia 17/10/2022 [inicio às 15:00 e fim às 15:25]:

«(….)

Ré BB: “ (….) Comprei, como você diz, isto não é meu, não comprei, não é? Porque e depois digo, também, A Dra. HH falava para mim. Eu sabia que ela estava, ainda não estava no nome do CC. Na altura, eu sabia, ela falava: nós vamos tentar pôr no nome do CC. Depois, quando conseguimos

Senhor Dr. Juiz: Portanto, a senhora, sabia, quando começou a fazer o pagamento, que aquilo ainda não era da B..., não é?

Ré BB: Sabia, elas falaram, não posso mentir. A Dra. falava, nós vamos tentar pôr. E eu sempre perguntei, liguei. Já dá? Já dá? Não, nós ainda não conseguimos, ainda não. Pronto, eu nunca não pensava que isto fosse estar assim. Eu sabia, a Dra. é que falou para mim que não estava. Ela falava. Só digo, como ela mostrou para mim que o tribunal decidiu, nós vamos tentar pôr”.

(…)

Mandatário da Autora: Há pouco, enquanto estava, quando a dona BB estava aqui a explicar ao tribunal aquilo que foi feito, a dona BB disse, eu acho que ouvi bem, disse “ enquanto estava a fazer isto tudo eu sabia, eu sabia que a casa não estava em nome do senhor CC”

Ré BB: Eu não estava a mentir, não quero. Quando assinei o contrato eu sabia, ela falou “nós logo vamos pôr no nome do CC

Mandatário da Autora: E isso foi com o passar dos meses, com o passar dos anos, sempre soube que aquilo não estava em nome do Sr. CC

Ré BB: Claro, Eles nunca disseram para mim se está feito, se está. Ninguém disse para mim isto.

Mandatário da Autora: Exatamente.

Ré BB: Sempre falaram que não está no nome do CC.

(…)»

 [com destaques da nossa autoria]

Na verdade, se incontestavelmente decorre das declarações da Ré/recorrente na audiência que a mesma sabia que a moradia não estava registada no nome das “B... Lda”, não vislumbramos de todo como sustentadamente poder-se concluir que a Ré «(…) estava convencida de que o bem objeto desse acordo pertencia à Interveniente B...»…

Assente isto, vejamos agora do outro aspeto em causa, isto é, de que para a mesma Ré/recorrente «(…) esse direito lhe tinha sido reconhecido por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado».

O que é efetivamente legítimo concluir, em termos de convicção da Ré/recorrente, quanto ao “direito” reconhecido pelo acórdão do TRC?

Sustenta a mesma que lhe foi dito nas conversas com o “Sr. CC” e com a advogada deste [“Drª HH”], que o “Tribunal ...” havia reconhecido que aquela casa ficava para as “B... Lda” [cf. “Que eu percebi decidiu esta casa para o senhor CC”], e que por força disso estavam a diligenciar para a pôr em nome desta, sendo por isso que se convenceu de que era assim, sendo que não foi realizada “escritura” porque a casa não estava finalizada [cf. “por causa da casa não estar feita, não dá para fazer escritura”].

Será que esta parte das suas declarações merecem credibilidade?

Salvo o devido respeito também entendemos que não.

É que no “contrato-promessa” que foi oportunamente celebrado [entre a Interveniente “B... Unipessoal Lda.” (1ª outorgante”) e a Ré BB (2ª outorgante”)], sob a respetiva “cláusula 3.º”, muito expressa e claramente foi “declarado” por essa Interveniente que o que tinha – fruto do reconhecimento por sentença judicial já transitada em julgado – era o “direito de retenção” sobre a moradia em causa, donde, “promete adquirir o prédio se o mesmo for colocado à venda e logo que o adquira e tenha as condições reunidas para o efeito, obriga-se a vender à segunda outorgante este prédio, livre de quaisquer ónus ou encargos, e a segunda outorgante promete adquirir o mesmo imóvel à primeira outorgante”.

Neste quadro, ainda que a Ré/recorrente ora invoque e clame que era estrangeira e não percebia bem as situações, não é verosímil que não tivesse percecionado que havia uma efetiva distinção entre um “contrato-promessa” [que foi o que celebrou] e uma “escritura”, e bem assim que não tivesse atentado que a dita Interveniente apenas literalmente invocava que, por apenas ter um “direito de retenção” sobre o prédio em causa, “prometia adquirir o mesmo se ele fosse posto à venda”.

Sucede que um qualquer cidadão, estrangeiro ou não – e por leigo e desconhecedor da lei e do direito que fosse! – não é crível que não tivesse percebido e ficado ciente que se a Interveniente declarava que “prometia adquirir o prédio se ele fosse posto à venda”, era porque o mesmo não lhe pertencia, ou não estava decidido que era dela [leia-se, em termos de “direito de propriedade”]!

Sendo certo que, sob a respetiva “cláusula 5.º” desse mesmo “contrato-promessa”, a mesma aqui Ré ora recorrente declarou «que tinha conhecimento e estava perfeitamente ciente das condições da primeira outorgante»…

O que tudo serve para dizer que “o direito” que a Ré/recorrente percecionou como detido pela aqui Interveniente “B... Unipessoal Lda.” não foi nem tinha de ser necessária e logicamente [na perspetiva dela], um “direito de propriedade”.

Termos em que improcede a impugnação à decisão sobre a matéria de facto no particular em apreciação.

                                                           ¨¨

Vejamos agora, para finalizar esta parte, o aspeto de ser acrescentado ao elenco dos factos “provados” mais três pontos de facto.

Essa pretensão – e releve-se o juízo antecipatório! – também improcede, embora por razões distintas para cada um dos três pontos de facto em causa.

Quanto ao primeiro deles [que «À data da celebração do acordo indicado em 12, e até à citação para os termos da presente ação, a R. tinha a convicção de se encontrar a exercer um direito próprio, uma vez que o mesmo se encontra titulado por um contrato promessa de compra e venda e dado que à promitente vendedora naquele contrato foi reconhecido judicialmente, por Acórdão transitado em julgado, o direito de retenção sobre a moradia que a mesma levou a efeito (a segunda a contar do lado norte do prédio), fração a que será a atribuída a letra ... no prédio urbano denominado Caminho ..., sito em ..., inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...75, da freguesia ..., concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...54/....»], essa negativa decorre direta e coerentemente do vindo de enunciar na apreciação antecedente.

É que este ponto de facto constituía o sequente lógico da convicção que se tivesse precedentemente alcançado quanto ao ponto anterior, pelo que, sendo ela negativa quanto a este, também é negativa quanto àquele.

O que decorre das razões precedentemente expressas, que se dão aqui por integralmente reproduzidas.

 Já quanto ao segundo ponto [que «Tendo sido no pressuposto da existência do direito de retenção na esfera jurídica da Interveniente B..., Unipessoal, Lda. e da legitimidade desta para prometer vender a moradia que a Ré celebrou o contrato promessa de compra e venda, ocupou a casa e a benfeitorizou.»], sobreleva decisivamente que contém ele factualidade meramente argumentativa face ao contexto nele em causa, para além de expressar um juízo conclusivo de facto.

Finalmente, quanto ao terceiro ponto [que «A Ré é natural da Ucrânia e, apesar de viver e trabalhar em Portugal há alguns anos, tem dificuldade na compreensão e expressão oral e escrita em língua portuguesa.»], trata-se de um facto “instrumental”, o que consabidamente é razão pela qual não tem que figurar no elenco da factualidade dada como “provada” numa sentença – posição essa reservada aos factos “essenciais” [cf. art. 607º, nº4 do n.C.P.Civil].

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, esta já diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito .

Será assim?

Se bem captamos o sentido do alegado pela Ré/recorrente, o por ela suscitado quanto a ter, e poder exercer, o “direito de retenção”, com fundamento no art. 756º do Código Civil, tinha como pressuposto lógico e jurídico necessário o deferimento da requerida reapreciação da matéria de facto, mormente que resultasse ter ela detido e possuído a coisa/moradia, tendo nela feito despesas de boa fé.

O que não ocorreu, como flui do que antecede.

Pelo que entendemos estar só por aí fatalmente votado ao insucesso o sustentado neste enquadramento.

Pois que subsistem todos os fundamentos de facto e de direito para a decisão de (parcial) procedência da ação e de total improcedência da reconvenção que teve lugar: os fundamentos, de facto e de direito, encontram-se devidamente expostos, sendo certo que face aos primeiros a sentença perfilhou entendimento perfeitamente respaldado na melhor doutrina e jurisprudência sobre as temáticas em causa.

Senão vejamos.

Na verdade, o fundamento determinante e decisivo para não se reconhecer o direito de retenção sobre a moradia à Ré/recorrente, até lhe ser pago o seu alegado crédito, foi o de se concluir que as despesas que ela fez na mesma foram feitas de má fé

Com efeito, o dito art. 756º do C.Civil, com a epígrafe “Exclusão do direito de retenção”, preceitua que:

«Não há direito de retenção:

a) A favor dos que tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar, desde que, no momento da aquisição, conhecessem a ilicitude desta;

b) A favor dos que tenham realizado de má fé as despesas de que proveio o seu crédito;

c) Relativamente a coisas impenhoráveis;

d) Quando a outra parte preste caução suficiente». [com destaque da nossa autoria]

Sendo que, para fundamentar uma tal asserção, argumentou-se pela seguinte forma na sentença recorrida:

«Apesar de deter a coisa e possuí-la há mais de cinco anos, as despesas que fez na mesma foram feitas de má-fé.

Sobre este conceito refere-se o seguinte:

“Nesta disposição, ter-se-á pretendido apelar a um conceito de boa-fé em sentido objetivo (considerando que se tratam de despesas realizadas com a consequência de prejudicar ou lesar o direito do dono da coisa, vd, Ac. RP 16.05.2007.). A realização de despesas não pode, pois, violar deveres objetivos de lealdade e proteção para com aqueles que a retenção é oponível (Ac. STJ 20.11.2011). A assim não ser, o retentor só estaria de má-fé se soubesse que, com a sua atuação, estava a prejudicar o proprietário da coisa ou terceiros, o que na prática significaria que, quando tivesse obtido licitamente a coisa, dificilmente se conseguiria provar que as despesas foram realizadas de má-fé”.[2]

Pois bem, quando passou a habitar uma das moradias existentes no prédio urbano propriedade da A., e aí começou a fazer obras, a R. sabia que aquela moradia não pertencia à sociedade B..., mas a um terceiro proprietário do terreno onde as mesmas estavam implantadas, tendo igualmente conhecimento que as demais moradias não estavam concluídas.

E com a sua acção, de ocupação da habitação, sabia que prejudicava o proprietário do prédio onde tal moradia estava implantada que por via do facto de a mesma estar a ser ocupada pela R. e também pelo R. não podia dela usufruir.

Repare-se até, que bastava à R. ter solicitado uma certidão do registo predial para se inteirar de toda a situação jurídica do terreno onde estava construída a moradia, para por cautela abster-se de assinar um contrato promessa com entidade não detentora de qualquer bem, e deste modo não realizar as obras que realizou.

A este propósito há que chamar à atenção que, o direito de retenção como direito de garantia que é, não coloca o seu titular (a B...) na posição de dono do que quer que seja.

Hipoteticamente, num futuro, a B... até podia vir a adquirir o bem, mas não ou nunca por via do direito de retenção. Vale por dizer então, que as despesas feitas pela R. na moradia que tem usado e fruído, e de onde refere provir o seu crédito foram feitas de má-fé não tendo portanto a mesma direito a reter tal moradia por em fundamento tal R. conhecer a ilegalidade da sua conduta.

(…)»

Alinhamos por inteiro com esta linha de entendimento, o qual, diga-se, não foi minimamente “beliscado” nas alegações recursivas – tendo em conta, obviamente, o quadro fáctico efetivamente apurado e que como tal subsistiu!

E que dizer relativamente à argumentação recursiva consistente na alegação de que «dado que as benfeitorias que levou a efeito são úteis e uma vez que não pode proceder ao respetivo levantamento, tem a Ré direito ao ressarcimento, por parte da Autora, do valor das mesmas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa»?

Salvo o devido respeito, não lhe assiste qualquer razão ao fundar a sua argumentação em que se tratava de benfeitorias úteis.

Mas também nunca se lhe poderia dar acolhimento, mesmo que se qualificassem as benfeitorias como “voluptuárias”.

Senão vejamos.

Na sentença recorrida, depois de se proceder a uma apreciação distintiva quanto à qualificação das “benfeitorias”, concluiu-se no sentido de que improcedia o pedido de condenação da A. a pagar à Ré qualquer valor «(…) por não haver qualquer melhoria para a A. das despesas feita por aquela».

De referir que se perfilhou aí o entendimento de que era de denegar o direito de indemnização à luz do enriquecimento sem causa reclamado pela Ré, na medida em que as benfeitorias em causa nem sequer se podiam qualificar como “voluptuárias” [cf. «(…) não se vê que qualquer das despesas feitas pela R. se possa também considerar voluptuária»]…

Ora, ainda que não se adira por inteiro a essa argumentação, o que é certo é que essa negativa é incontornável pelo que se vai passar a linearmente expor.

O art. 216º do C.Civil define o conceito de “benfeitorias” e procede à sua classificação. No nº 1 estabelece que se consideram benfeitorias «todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa». No nº 2 refere que as mesmas podem ser «necessárias, úteis ou voluptuárias». E no nº 3 classifica-as do seguinte modo: são benfeitorias necessárias «as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa»; são úteis «as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor»; e são voluptuárias «as que não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante».

Em sentido jurídico, são, pois, “benfeitorias” os melhoramentos feitos em coisas por pessoas a elas ligados por alguma relação jurídica, resultante, por exemplo, de locação, comodato ou posse, só sendo de considerar necessárias as despesas imprescindíveis para a sua conservação à luz de critérios objectivos de normalidade e de razoabilidade, ao passo que benfeitorias úteis serão as despesas não imprescindíveis para a sua conservação mas idóneas ao aumento do respectivo valor; as demais são voluptuárias.[3]

Por outro lado, os arts. 1273º e 1275º do mesmo C.Civil estabelecem, respetivamente, o seguinte:

- Que «tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento delas» (nº 1 do art. 1273º), sendo certo que «quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa» (nº 2 do mesmo preceito).

- E que «o possuidor de boa fé tem direito a levantar as benfeitorias voluptuárias, não se dando detrimento da coisa; no caso contrário, não pode levantá-las nem haver o valor delas» (nº 1 do art. 1275º), ao passo que «o possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito» (nº 2 do mesmo artigo).

No caso vertente, temos, desde logo, que a Ré/reconvinte pode e deve ser classificada como possuidora de má fé no que às benfeitorias provadas diz respeito.

Sucede que por decorrência do fixado nos citados arts. 1273º e 1275º do C.Civil, só teria ela direito a ser “indemnizada” se as ditas obras fossem de qualificar como benfeitorias necessárias ou úteis, mas, neste último caso, além da “indemnização” dever ser calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa, aquela só teria direito a ela se o levantamento das benfeitorias importasse detrimento da coisa onde estão implantadas.

Ora, as obras em referência não são de qualificar como “benfeitorias necessárias” por não ter ficado provado facto algum que permita ao Tribunal constatar que foram feitas para “evitar a perda, destruição ou deterioração” do imóvel em que foram realizadas/incorporadas.

E não se podem qualificar como “benfeitorias úteis” por também não ter ficado provado (ónus que em ambos os casos cabia Ré/reconvinte, de acordo com o estabelecido no art. 342º nº 1 do C.Civil[4]) que “aumentaram … o valor” do imóvel em que tiveram lugar.

Por isso, aquelas obras só podem ser reputadas de voluptuárias, o que não confere à Ré/reconvinte ora recorrente, por ser possuidora de má fé, o direito de “indemnização que reclama – art. 1275º, nº2 do C.Civil.

E que dizer quanto à alegação de que «Ao obrigar o credor munido de um título consistente numa sentença transitada em julgado vir reclamar o seu crédito no processo de insolvência, sob pena de caducidade do mesmo, o artigo 128.º, n.º 5, do C.I.R.E. aniquila a força obrigatória da sentença, consagrada no artigo 205.º, n.º 2, da C.R.P», sendo “inconstitucional”?

Mais concretamente, argumenta a Ré/recorrente que «Decidiu o tribunal a quo aplicar o artigo 128.º, n.º 5 do Código de Insolvência e de Recuperação das Empresas e, por essa via, declarar caducado o direito de retenção da Interveniente titulado por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado, por o mesmo não ter sido exercido no processo de insolvência.

Sublinhe-se que foi com base no referido Acórdão que reconheceu à Interveniente o direito de retenção sobre a moradia, que a Ré celebrou o contrato transcrito no facto 12 dos factos provados e sobre o qual passou a exercer, de boa-fé, posse sobre a moradia, a benfeitorizá-la e a habitá-la.»

Que dizer?

Desde logo, que se trata de uma questão para a qual falece legitimidade à Ré/recorrente de suscitar, por não se tratar de uma decisão que direta e efetivamente prejudicou a Ré/recorrente [cf. art. 631º, nº2 do n.C.P.Civil], mas sim e antes, versou sobre pretensão exposta pela Interveniente “B... Unipessoal Lda.”.

Ademais, salvo o devido respeito, que se trata de uma alegação que só se compreende como fruto de algum equívoco ou deficiente compreensão da dogmática em causa.

Vejamos.

Nos termos do art. 205º, nº2 da C.R.Portuguesa:

«As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.»

É certo que de acordo com o nº2 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.

Em comentário a este artigo, Gomes Canotilho e Vital Moreira[5], explicitam que este preceito compreende duas normas conceitualmente distintas: a) a obrigatoriedade das decisões dos tribunais para todas as entidades (públicas ou privadas); b) a prevalência das decisões dos tribunais sobre quaisquer outras autoridades.

Ainda segundo os mesmos Autores, «nenhuma entidade está imune à autoridade das decisões judiciais. Por outro lado as decisões judiciais não necessitam de nenhuma homologação ou confirmação de outra autoridade para se tornarem obrigatórias, nem podem ser anuladas ou superadas por uma decisão de nenhuma outra autoridade, inclusive quando investida de poder legislativo».

Acontece que é o próprio nº3 do artigo 205º da Constituição da República a complementar com o seguinte:

«A Lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução.»

De referir que no seguimento deste preceito constitucional o Código do Procedimento Administrativo comina com a sanção da nulidade os atos que ofendam casos julgados (cf. alínea h) do nº2 do artigo 133º).

Sucede que, s.m.j., o dito art. 128º, nº 5 do Código de Insolvência e de Recuperação das Empresas constitui ele próprio uma regulação dos termos da execução duma decisão jurisdicional, a saber, no sentido de que «(…) mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.»

 Sendo certo que nos merece acolhimento o aduzido a este propósito nas contra-alegações recursivas, a saber, «Esta mesma norma está de acordo com o principio universal do processo de insolvência de que este aglomera todos os credores e deverão os mesmos reclamar os seus créditos, evitando assim que o processo de insolvência possa ter um desfecho célere e útil a todos os que nele reclamam, assegurando que os credores que recebam em ratio final o respetivo montante possam salvaguardar os seus direitos adquiridos.

Se assim não fosse, qualquer credor que viesse reclamar o seu crédito com sentença passados anos iria sempre afetar e ferir os direitos adquiridos de quem recebeu atempadamente no processo o seu crédito.»

Não existe, assim, qualquer inconstitucionalidade do referido artigo.

Termos em que, brevitatis causa, também improcede estre argumento recursivo.

(…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.  

            Custas nesta instância pela Ré/recorrente.                                                  

Coimbra, 30 de Maio de 2023

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Cfr. Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 1ª edição Dezembro de 2018, reimpressão Outubro de 2021, p. 1015 anotação ao artigo 756º do CC).
[3] cfr. VAZ SERRA, in RLJ 106º-109 e, inter alia, os acórdãos do STJ de 09/02/2006 (proferido no proc. nº 06B014) e de 06/05/2008 (proferido no proc. nº 08A1389), ambos eles acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.

[4] Neste sentido, inter alia, os acórdãos do STJ de 06/05/2008 (proferido no proc. nº 08A1389) e de 22/03/2018 (proferido no proc. nº 336/13.0TBTVD.L1.S1), ambos eles acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Cf. CRP, anotada.