Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
197/16.8YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
FACTOS
ACUSAÇÃO
PRONÚNCIA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS
ANTECIPAÇÃO DE JUÍZO
CONDENAÇÃO
ARGUIDO
Data do Acordão: 11/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (INSTÂNCIA LOCAL DE GOUVEIA – SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA)
Texto Integral: S
Meio Processual: ESCUSA DE JUIZ
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA
Legislação Nacional: ARTS. 43.º E 359.º DO CPP
Sumário: I - A comunicação da alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, nos termos do disposto no artigo 359.º do CPP não conduz, por si, a um juízo de quebra de imparcialidade e/ou isenção do julgador capaz de o afastar de um futuro julgamento decorrência dos novos factos.

II - Com efeito, não faria sentido que, uma vez obtido o acordo previsto no n.º 3 do artigo 359.º do CPP, o legislador mandasse prosseguir o julgamento pelo mesmo tribunal, não reconhecendo, assim, quebra aos enunciados princípios e, pelo contrário, dando os novos factos - que conduziram à comunicação de uma alteração substancial - origem a um novo processo se encarasse aquele (tribunal/julgador) como diminuído na sua isenção e/ou imparcialidade.

III - Porém, se, como no caso concreto, o julgador antecipa o juízo de condenação - embora não lhe fosse possível continuar o julgamento pelos novos factos e qualificação jurídica, não limitou a sua atividade (em sede de decisão de facto) aos factos constantes da acusação, considerando estes (e só estes) como provados ou não provados, antes expandiu a análise aos factos, previamente comunicados a título de alteração substancial, pelos quais o julgamento não pôde prosseguir, e definiu o seu enquadramento jurídico -, impõe-se reconhecer sair comprometida a dimensão objetiva da imparcialidade, justificando-se, por conseguinte, o deferimento do pedido de escusa.

Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.

1. A... , Mm.º Juiz de Direito, em exercício de funções na Instância Local de (...) – Secção de Competência Genérica, veio ao abrigo do disposto no artigo 43.º do Código de Processo Penal, formular pedido de escusa de intervir no julgamento do processo comum singular n.º 25/16.4T9GVA, no âmbito do qual reveste a qualidade de arguido B... .

Para o efeito invoca: «O Exponente no exercício das suas funções na Instância Local acima mencionada procedeu ao julgamento do arguido B..., no processo n.º 49/13.3TAFAG, onde aquele era acusado da prática de um crime de frustração de créditos, previsto e punido no artigo 227.º - A, n.º 1 e 2, do Código Penal, tendo ali proferido a respetiva sentença, entretanto já transitada em julgado.

No final do julgamento e com base na prova produzida em audiência, o exponente proferiu despacho de alteração substancial de factos não descritos na acusação pública. Factos esses que, no entendimento do respetivo despacho, consubstanciavam a prática de um crime de abuso de confiança.

Tendo o arguido manifestado oposição quanto ao prosseguimento dos autos quanto a esses factos, foi lida a sentença e determinada a emissão de certidão da sentença e da ata de leitura com remessa aos Serviços do Ministério Público.

Os autos acima mencionados tiveram início com a certidão acabada de referir.

O inquérito do processo n.º 25/16.4T9GVA terminou com dedução de acusação pública pela prática dos factos objeto do anterior processo e despacho de alteração substancial.

A prova em ambos os processos é a mesma, quer no que concerne a documentos, quer no que concerne às testemunhas de acusação».

Para concluir: «Pelo que vimos expondo, entendemos, salvo melhor opinião, correr agora o risco sério de a nossa intervenção nos referidos autos n.º 25/16.4T9GVA poder vir a ser considerada suspeita, considerando que o arguido apenas não foi julgado, nem condenado no processo n.º 49/13.3TAFAG, pelo crime de abuso de confiança, por se ter oposto à dita alteração substancial dos factos».

A instruir o pedido junta certidão com as peças processuais pertinentes, concretamente da acusação pública deduzida no processo n.º 49/13.3TAFAG, da ata da audiência de discussão e julgamento onde foi produzida e comunicada a alteração substancial dos factos, da sentença no mesmo prolatada e, finalmente, da acusação (contra B...) agora formulada no âmbito do processo n.º 25/16.4T9GVA.

II.

O princípio fundamental da independência dos Tribunais [artigo 203º da CRP] relaciona-se com a caracterização dos mais elementares direitos dos cidadãos e tem como corolário o princípio da imparcialidade, definido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem [artigo 10º], proclamada, igualmente, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem [artigo 6.º, n.º 1].

A garantia de independência dos Tribunais tem tradução na independência dos Juízes, bem como na obrigação, que sobre os mesmos impende, de imparcialidade.

A Lei da Organização do Sistema Judiciário, à semelhança da LOFTJ, em concretização do artigo 216.º da CRP, dispõe que os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei [artigo 4.º], reservando o Código de Processo Penal o Capítulo VI, do Título I, do Livro I, aos Impedimentos, Recusas e Escusas, como forma de garantir a máxima imparcialidade da jurisdição e, assim, a confiança por parte da comunidade na administração da justiça.

Nos termos do artigo 43.º do Código de Processo Penal:

1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando ocorrer o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3. (…)

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.

(…).

Naturalmente que o legislador não se pronuncia sobre o que pode integrar o motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, tarefa, a nosso ver, impensável, pela dificuldade em concretizar todas as circunstâncias idóneas a tal.

Será, pois, casuisticamente com recurso aos parâmetros, genericamente, delineados que se há-de decidir.

A propósito, escreveu Germano Marques da Silva Ao contrário do que sucede com os impedimentos e sucedia também no CPP de 1929, o CPP não enumera as causas geradoras de suspeição: utiliza uma fórmula ampla, abrangente de todos os motivos que sejam adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (art. 43.º, n.º 1).

Os motivos que podem gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz podem ser da mais diversa natureza. O CPP/29 reduzia-os todos a relações de parentesco, de interesse ou de inimizade que ligassem o juiz ou seus parentes ao assistente, ao ofendido ou ao arguido (…).

O CPP/87 utilizou técnica diferente da do CPP/29, mas as relações que neste constituem motivo de suspeição continuam naturalmente a ser motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz – [cf. Curso de Processo Penal, I, Editorial Verbo, 1994, pág. 198/199].

Por seu turno, ensina Figueiredo Dias, in DPP, 1.0, 320 “pertence”, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu.

Sobre o que denomina por teste subjetivo e objetivo da imparcialidade, refere Pinto de Albuquerque O teste subjetivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjetivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objetivos evidentes devem afastar essa presunção …

O teste objetivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade (…) – [cf. Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 127/128].

Ainda a tal respeito afirma Cavaleiro de Ferreira que importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adotar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. “Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição (…) – [cf. Curso de Processo Penal, I, pág. 237/239].

Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objetiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e abstração na formulação do conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos atos processuais do juiz.

Foi, pois, para obviar a efeitos perversos, e como tal intoleráveis, do princípio do juiz natural, inscrito na Constituição, que o legislador lançou mão dos impedimentos, suspeições, recusas e escusas, acautelando, deste modo, a imparcialidade e isenção do juiz, igualmente com proteção constitucional, garantidas como pressuposto subjetivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objetivo da sua perceção externa pela comunidade (…) – [cf. Manuel Simas Santos e Leal – Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3.ª edição, pág. 304].

Posto isto, debrucemo-nos sobre as especificidades do caso.

Temos por seguro que a comunicação da alteração substancial dos factos levada a efeito pelo julgador no âmbito de um processo não conduz, por si, a um juízo de quebra de imparcialidade e/ou isenção do mesmo, capaz do afastar de um futuro julgamento no seio dos autos, cuja acusação assente nos factos e crime, naquele, transmitidos (comunicados), assim se compreendendo o regime do n.º 3 do artigo 359.º do CPP, enquanto determina, obtido o acordo do Ministério Público, do arguido e do assistente, a continuação do julgamento pelos novos factos, exceto se estes conduzirem à incompetência do tribunal.

Com efeito, não faria sentido que uma vez obtido o dito acordo o legislador mandasse prosseguir o julgamento pelo mesmo tribunal, não reconhecendo, assim, quebra aos enunciados princípios e, pelo contrário, dando os novos factos - que conduziram à comunicação de uma alteração substancial - origem a um novo processo se encarasse aquele (tribunal/julgador) como diminuído na sua isenção e/ou imparcialidade.

Sucede, porém, que na situação em apreço – seguindo um procedimento não isento de crítica - o julgador antecipou o juízo de condenação.

Disso mesmo dá, desde logo, nota no requerimento que consubstancia o pedido de escusa enquanto refere: «… considerando que o arguido apenas não foi julgado, nem condenado no processo n.º 49/13.3TAFAG, pelo crime de abuso de confiança, por se ter oposto à dita alteração substancial dos factos» - [destaque nosso].

Juízo que, insofismavelmente, decorre da sentença proferida no âmbito do processo n.º 49/13.3TAFAG, na qual, após fixados os factos provados (entre os quais se incluem os que consubstanciam os elementos objetivo e subjetivo do crime de abuso de confiança) e não provados, seguidos da fundamentação da convicção, o Exmo. Juiz, ora requerente, afasta a subsunção dos factos ao crime de frustração de créditos imputado na acusação pública, aduzindo então: «Contudo, atenta a posição assumida pelo arguido, isto é de oposição ao prosseguimento dos autos pelos novos factos, não pode o Tribunal, nos termos do artigo 359.º do C.P.P. retirar uma consequência jurídica desses mesmos factos que, quanto a nós preenchem a previsão prevista no artigo 205.º do Código Penal – crime de abuso de confiança» - [destaque nosso].

Cotejando, agora, o acervo factual dado por assente (provado) na sentença proferida no processo n.º 49/13.3TAFAG com os factos vertidos na acusação deduzida no processo n.º 25/16.4T9GVA, constata-se coincidirem estes com aqueles outros que, pese embora à revelia do objeto do processo (49/13.3TAFAG), na sentença foram julgados provados.

É que o Exmo. Juiz – embora não lhe fosse possível continuar o julgamento pelos novos factos e qualificação jurídica – não limitou a sua atividade (em sede de decisão de facto) aos factos constantes da acusação, considerando estes (e só estes) como provados ou não provados, antes expandiu a análise aos factos, previamente comunicados a título de alteração substancial, pelos quais o julgamento não pôde prosseguir.

Neste contexto, resulta para nós claro ocorrer causa que impede o requerente de intervir no julgamento dos autos identificados supra (proc. n.º 25/16.4T9GVA). Não porque – enfatiza-se - a comunicação de uma alteração substancial assim o imponha, mas porque a extrapolação do juízo consentido é de tal forma evidente, que a coisa se impõe, aos olhos dos destinatários, como se fora um julgamento acabado.

E como, para o efeito, relevante é o que foi feito e não já aquilo que devia ter sido impõe-se reconhecer sair comprometida a dita dimensão objetiva da imparcialidade.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar procedente o pedido de escusa formulado pelo Mm.º juiz de direito requerente de intervir no julgamento no âmbito do processo comum singular n.º 25/16.4T9GVA, o qual deverá ser realizado pelo Mm.º juiz que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-lo [artigo 46.º do CPP].

Sem tributação.

Coimbra, 9 de Novembro de 2016

[Processado informaticamente e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)